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Era uma vez um estudante, um autêntico estudante; vivia num sótão e não
possuía nada. E era uma vez um merceeiro, um autêntico merceeiro; vivia
no rés-do-chão e era dono do prédio inteiro. E foi por isso que o duende
decidiu morar com o merceeiro. Além disso, todos os Natais recebia uma
tigela de papa de aveia com um grande pedaço de manteiga lá dentro. O
merceeiro tinha posses para isso, de maneira que o duende continuava a
morar na loja. Há por aqui algures uma moral, se a procurarem bem.
Uma noite, o estudante entrou na mercearia pela porta das traseiras para
comprar um pedaço de queijo e velas. Fez as compras e depois pagou, e o
merceeiro e a mulher acenaram-lhe com a cabeça e disseram «boa noite». A
mulher, contudo, era bem capaz de fazer mais do que acenar; era muito
faladora — falava, falava, falava. Tinha o que se chama o hábito de falar
pelos cotovelos, disso não havia dúvida. O estudante também fez um aceno
— e foi nessa altura que viu qualquer coisa escrita no papel que
embrulhava o queijo e parou para ler. Era uma página de um velho livro de
poemas, uma página que nunca devia ter sido arrancada.
Ora isto foi uma frase indelicada, especialmente aquela parte respeitante à
banheira, mas o merceeiro riu-se, e o estudante também; afinal de contas,
fora apenas uma brincadeira. Mas o duende ficou aborrecido por alguém se
atrever a falar assim com o merceeiro — ainda por cima o senhorio, uma
pessoa importante que era dono do prédio todo e vendia manteiga da
melhor qualidade.
E lá foi em bicos de pés, pela escada das traseiras acima, até ao sótão onde
morava o estudante. Havia luz lá dentro. O duende espreitou pelo buraco da
fechadura e viu o estudante a ler o velho livro da loja.
O duende nunca tinha visto nem ouvido falar de tais maravilhas; e muito
menos seria capaz de as imaginar. Portanto, ficou ali à porta, em bicos de
pés, a espreitar, de olhos muito abertos, até que a luz se apagou. O
estudante devia ter assoprado a vela e ido para a cama — mas o duende
continuava sem ser capaz de arredar pé. Parecia-lhe ouvir a linda música,
que ainda ecoava no ar, ajudando o estudante a adormecer.
E portanto, é claro, voltou para baixo, para a mercearia. Ainda bem que o
fez, porque a banheira tinha quase esgotado o dom de falar pelos cotovelos,
contando todas as notícias dos jornais que estavam guardados dentro dela.
Tinha falado para um lado e estava prestes a virar-se para o outro e a
continuar quando o duende devolveu o dom de falar pelos cotovelos à
mulher do merceeiro adormecida. E, a partir dessa altura, todas as coisas da
loja, desde a caixa registadora até à lenha, seguiram as opiniões da
banheira; tinham-lhe tanto respeito que, depois daquilo, quando o
merceeiro lia nos jornais críticas de peças ou de livros, pensavam que ele
tinha aprendido tudo com a banheira.
Mas o duende já não aguentava ficar ali sentado a ouvir toda a sabedoria e
bom senso pronunciados na loja; assim que via luz através das frinchas da
porta do sótão, parecia ser atraído para lá por cordelinhos, e tinha de subir a
escada e pôr-se a espreitar pelo buraco da fechadura. Sempre que o fazia,
sentia-se invadido por uma sensação de indizível grandeza — a espécie de
sensação que se tem quando se vê o mar encapelado com ondas tão fortes
que o próprio Deus podia vir montado nelas! Que maravilha seria sentar-se
debaixo da árvore com o estudante! Mas era impossível.
Mas uma noite, já bem tarde, o duende acordou com uma grande agitação à
sua volta. Estavam pessoas a bater nos estores, o guarda-nocturno apitava:
havia fogo, e toda a rua parecia estar em chamas. Que casa é que estava a
arder? Aquela ou a do lado? Onde era o fogo? Que gritos! Que pânico! Que
agitação! A mulher do merceeiro estava tão desorientada que tirou os
brincos de ouro das orelhas e meteu-os num bolso, para salvar pelo menos
alguma coisa… O merceeiro foi a correr buscar os seus valores, a criadita
foi buscar o seu xaile de seda que tinha comprado com o ordenado. Toda a
gente foi a correr buscar aquilo a que dava mais valor.
Depois, foi a correr para cima do telhado, mesmo para o alto da chaminé, e
ficou ali sentado, iluminado pelas chamas da casa a arder do outro lado da
rua, sempre firmemente agarrado ao boné vermelho com o tesouro lá
dentro.
Mas, quando o fogo ficou extinto e o duende já tinha tido tempo para
pensar com mais calma, bem…