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Prof.

José do Carmo Toledo

DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA, ESTATÍSTICA E CIÊNCIAS DA COMPUTAÇÃO – DEMAT

Introdução à História da Matemática

História dos números e numerais: uma visão geral


De todas as formas de vida conhecidas sobre a terra, a espécie humana é a única a ter
desenvolvido um procedimento sistemático para armazenar informações úteis e
transmiti-las de urna geração a outra. Uma parte considerável dessas informações
relaciona-se com forma e quantidade. Uma linguagem para relacionar forma e
quantidade e suas várias inter-relações é uma necessidade. Desejamos tratar a
matemática como uma linguagem, pelo menos em suas fases de desenvolvimento
mais remotas.

Uma abordagem possível seria seguir o procedimento geralmente aceito de fixar um


ponto de partida histórico que coincidisse com os mais antigos documentos
encontrados, decifrados e datados. No que se refere à matemática, a maior parte
desses documentos mostra claramente que simbolismos e procedimentos, bem como
os problemas contidos neles, são muito mais antigos que os próprios documentos. Na
maior parte dos casos, estes constituem um produto já altamente acabado, revelando
pouco - se é que revelam alguma coisa - a respeito dos primeiros passos vacilantes da
infância da matemática. Nossa abordagem, por isso é diferente. Para reconstruir as
fases iniciais dessa linguagem, buscamos a ajuda de um ramo especial da
antropologia – a etnografia.

Como descrição científica de culturas, a etnografia inclui o estudo de civilizações


existentes que se desenvolveram em relativo isolamento, pouco influenciadas pelas
principais correntes culturais que emergiram da China, Índia, Mesopotâmia e do Egito.
Essas civilizações isoladas, algumas das quais ainda no nível da Idade da Pedra
quando começaram a ser estudadas, há cerca de cem anos, foram encontradas na
África, Austrália, America do Sul, Indonésia e em vários outros locais dispersos.
Sabemos que civilizações diferentes desenvolveram-se em velocidades muito
diferentes em lugares diferentes. É plausível, portanto, assumir que estudos
etnográficos de civilizações primitivas - que agora sofrem um nítido processo de
extinção ou de modernização – possam fornecer pistas valiosas para 0 conhecimento
de estágios anteriores, e talvez dos mais antigos, de nossa própria civilização, na qual
os vestígios desses estágios foram quase apagados pelas passadas das realizações
posteriores.
Parece certo que ao longo do caminho para níveis mais avançados de civilização, a
enumeração precedeu a numeração, e a numeração, por sua vez, precedeu o número.

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Enumeração

Por enumeração entendemos aqui simplesmente manter-se a par dos objetos de uma
coleção ou conjunto por um cotejo um-a-um dos objetos com outros objetos usados
como marcadores. Se um pastor, ao fim do dia, desejava saber se seu rebanho estava
completo ou não, poderia fazer uma checagem cotejando cada animal com um objeto
de uma coleção conhecida e ordenada que fosse prontamente acessível. Na maior
parte das civilizações estudadas, esta coleção conhecida e ordenada consistia em uma
sequência de partes do corpo humano. Nenhuma linguagem era necessária para levar
a efeito esse cotejo um-a-um. Por exemplo, os bugilai da Nova Guine usavam a
seguinte sequência de partes, que eram ticadas uma a uma por um simples toque do
dedo indicador da mão direita:
Dedo mínimo da mão esquerda
Dedo anular da mão esquerda
Dedo médio da mão esquerda
Dedo indicador da mão esquerda
Dedo polegar da mão esquerda
Pulso esquerdo
Cotovelo esquerdo
Ombro esquerdo
Lado esquerdo do peito
Lado direito do peito

Para checar se um rebanho de proporções adequadas estava completo bastava


lembrar qual a ultima parte do corpo que tinha sido tocada. Se esta parte fosse, por
exemplo, o cotovelo esquerdo, então ao último animal checado corresponderia ao
“cotovelo esquerdo”. A ordem da sequência era fixa e natural. Todos a levavam
consigo.

Observe-se que esse procedimento, além de não implicar um conceito de número,


dispensava a necessidade de ter palavras faladas para as varias partes do corpo
humano. Muitos povos primitivos usavam procedimentos semelhantes. Alguns
chegavam ate 31, usando todos os dedos, das mãos e dos pés, e mais onze partes do
corpo. Uma tribo bastante avançada conseguiu chegar ate 100.

Numeração

Com a criação de uma linguagem incluindo palavras para as várias partes do corpo, era
natural que essas palavras, de preferência as reais partes do corpo humano, fossem
usadas no processo de enumeração e esta mudança marca a transição para a
“numeração”. No dialeto bugilai, palavras que chamaríamos “palavras-número” para
os números iniciais tinham como significado inicial as partes do corpo já mencionadas.

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I Tarongesa Dedo mínimo da mão esquerda
2 Meta kina Dedo anular da mão esquerda
3 Guigimeta Dedo médio da mão esquerda
4 Topea Dedo indicador da mão esquerda
5 Manda Dedo polegar da mão esquerda
6 Guben Pulso esquerdo
7 Trankgimbe Cotovelo esquerdo
8 Podei Ombro esquerdo
9 Ngama Lado esquerdo do peito
10 Dala Lado direito do peito

Assim, o uso gradual da linguagem falada marcou um grande passo a frente. Voltando
aos bugilai, notamos que, quando há palavras para as diversas partes do corpo, já não
é necessário percorrer a demorada sequência de ações físicas. Basta dizer as palavras
correspondentes em ordem. Se o último objeto de um conjunto a ser cotejado era,
digamos, podei ("ombro esquerdo"), então toda vez que se tivesse de verificar esse
conjunto bastaria ficar ouvindo e notar se o último objeto checado correspondia ou
não a podei. Isto não significa, contudo, que podei efetivamente se tivesse
transformado num nome para o número cardinal 8. Este tipo de procedimento de
cotejo afigura-se mais qualitativo do que quantitativo. De fato, nessa forma primitiva,
a numeração parece residir inteiramente nas coisas enumeradas e não no espírito
humano. O que se requer é uma sequência ordenada de sinais que possam ser
reproduzidos à vontade. Com a invenção da linguagem, palavras tomam lugar de
objetos na sequência ordenada. O uso de palavras-número, todavia, não implica por si
só o conceito de número cardinal, embora sem dúvida tenha levado a ele.
Experimentos etnográficos com povos primitivos têm mostrado que o domínio de
uma sequência ordenada de palavras-número não leva necessariamente ao conceito
de número cardinal.

Números

Não temos dados suficientes para fixar o período da história primitiva em que foram
descobertos os números cardinais. Os mais antigos documentos escritos de que
dispomos mostram a presença do conceito igualmente na China, Índia, Mesopotâmia
e Egito. Todos esses documentos contém a questão “Quantos ... ?”. Esta questão
pode ser respondida de forma mais adequada em termos de números cardinais.
Portanto, quando esses primitivos documentos foram escritos – e provavelmente
muito antes dessa época – o conceito de numero cardinal já se tinha formado.

Ao tentar reconstruir o tipo de situação a partir da qual o conceito de número cardinal


deve ter surgido, seremos levados a perceber, logo de início, que o conceito
fundamental que hoje expressamos através da palavra “conjunto” deve ter sido uma
das primeiras abstrações feitas pelo homem. Quando os bugilai diziam manda
(“polegar da mão esquerda”), não estavam ainda querendo expressar “mão” ou

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“conjunto completo de cinco objetos”. Só sabiam que num certo ponto da sequência
natural o som manda tinha de ser produzido. Mas os habitantes das ilhas Nicobar,
mais sofisticados, que usavam os dedos das mãos e dos pés como sequência natural
de contagem, quando diziam hean umdjome (que significa "um homem") para
expressar vinte, punham em relevo o conceito de conjunto. 0 uso deste conceito
torna-se mais claro ainda quando examinamos a expressão usada pela mesma tribo
para uma centena – tanein umdjome – onde tanein é a palavra para o cinco. Aqui se
prefigura uma ideia de multiplicação; pelo menos parece haver uma compreensão da
ideia de conjuntos equivalentes.

Com o tempo, alguns povos mais atentos devem ter observado que a ordem dos
objetos dos conjuntos a serem cotejados era irrelevante. 0 passo seguinte parece ter
sido o mais difícil, ou seja, perceber que o nome do último numero ordinal enunciado
não só atribuía um nome ao último objeto do conjunto a ser cotejado, como dizia
quantos objetos havia nesse conjunto, no total. Hoje, é claro, sabe-se que o cardinal
de um conjunto independe da natureza dos objetos que ele contém, assim como da
ordem em que esses objetos estão arranjados.

Sistemas de numeração antigos

Um desenvolvimento mais formal da numeração se encontra na formação dos


sistemas de numeração. Em culturas onde os dedos de uma mão foram usados em
fases mais antigas da numeração, o número de elementos de um grupo básico
tornou-se cinco. Quando foram usados os dedos das duas mãos, esse número tornou-
se dez e quando os dedos das mãos e dos pés foram usados, tornou-se vinte. A
necessidade de um sistema de numeração surge da seguinte questão (que,
naturalmente, não deve ter sido formulada nestes termos): O que deve ser feito
quando a sequência ordenada finita dos marcadores (dedos ou outras partes do
corpo) se esgotou, mas ainda restam objetos a ser contados?

Supõe-se que outros objetos, além dos dedos ou partes do corpo – tais como seixos,
sementes secas ou cortes feitos com um canivete de pederneira num bastão –,
também tenham sido usados nos estágios mais primitivos da enumeração. Se, por
exemplo, um rebanho formado de mais de dez ou vinte carneiros era anotado via uma
correspondência um-a-um com uma pilha de seixos, o número de seixos da pilha
poderia ser facilmente ajustado ao número de cabeças do rebanho. Seixos havia em
toda parte; quando o rebanho crescia, era fácil colocar mais seixos na pilha de
correspondência. Tais objetos, porém, não tinham as duas características essenciais
de que o homem primitivo necessitava – características fornecidas por um conjunto de
partes do corpo – ou seja, uma ordem definida e uma "finitude absoluta".

Assim retornamos a questão que levou aos sistemas de numeração. O que se deve
fazer quando esses marcadores se esgotam e ainda restam objetos a ser cotejados?

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Em principio, três métodos diferentes foram desenvolvidos para resolver este
problema, embora apenas um deles sobrevivesse na sociedade moderna. Uma
maneira de continuar é simplesmente estender a sequência ordenada dos
marcadores. Certamente em procedimentos em que a sequência original de contagem
era a dos dedos de uma mão, extensões aos dedos da outra mão, ou aos dedos dos
pés, ou ainda a outras partes do corpo, eram fáceis. Mas a vantagem real da
numeração sobre a enumeração consiste em usar palavras em vez de ações, e a
necessidade de um vocabulário ampliado teria apresentado dificuldades a muitos
desses povos – provavelmente a maioria deles.

De fato, uma maneira mais simples, e que se prestou especialmente bem à


representação escrita, foi a extensão por repetição. Como exemplo único, considere-se
o caso dos "homens de contar" encontrados em desenhos feitos em cavernas, que
remontam a Média Idade da Pedra. Esses homens usavam os dedos das duas mãos.
Quando um "homem de contar" tinha esticado todos os dedos, um segundo homem
era introduzido na pintura, depois um terceiro, e assim por diante, para continuar a
contagem em correspondência um-a-um sobre a mesma base. Uma contagem de
trinta e cinco está registrada na Figura 1.

Embora a base numérica seja


obviamente dez. esse sistema
não e posicional. Pode ser
considerado um sistema
aditivo. Como a adição é
comutativa e associativa, não
faz diferença um homem de
Figura 1
contar estar situado numa
fileira ou noutra.

Examinando-se os símbolos usados em muitos dos sistemas de numeração mais


antigos (por exemplo. Babilônicos, egípcios, gregos antigos e romanos, verifica-se o
uso de urna única marca para cada coisa contada. Esta corresponde a um dedo
esticado para cada elemento. Novos símbolos, por sua vez, eram usados para dez
(todos os dedos erguidos nas duas mãos). A repetição dos símbolos permitiria a
representação de qualquer número.

Novamente urna grande quantidade de símbolos repetidos seria necessária para


números muito elevados. Uma extensão óbvia dessa abordagem era o uso de um
terceiro símbolo, para dez dos segundos símbolos. Os numerais romanos I, X, C, M
ocorrem imediatamente como exemplos típicos de tal sistema. Uma ilustração mais
antiga é o sistema hieroglífico egípcio, em que os símbolos mostrados na Figura 2
representavam sucessivas potencias de dez.

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Um sistema de numeração
aditivo não posicional baseado
no dez e certamente um
desenvolvimento natural, se
Figura 2 não inevitável.

Embora consideravelmente superiores a métodos anteriores de extensão da


numeração, esses sistemas têm desvantagens óbvias quando usados para expressar
números muito grandes ou para certos procedimentos de cálculo.

O terceiro procedimento de extensão é o que resultou nos sistemas de numeração


atuais. Esses sistemas são posicionais, isto é, baseiam-se num valor de posição, e se
iniciam com a escolha de certo número como base. Suponhamos que a escolha seja
dez, e vejamos como o modelo posicional pode ter se desenvolvido a partir dos
homens de contar que usavam os dedos das duas mãos. (Um desenvolvimento
semelhante poderia ser dado com relação à contagem com um ábaco.)

Desenvolvimento da numeração posicional

O modelo posicional envolve duas ideias distintas. Primeiro, quando urn homem de
contar tiver erguido todos os seus dedos, ele terá de voltar à posição original (com as
mãos fechadas) antes de poder continuar seu procedimento de contagem. Esta ação
por si só não é suficiente para garantir um modelo posicional, ainda que, de certo
modo, seja a ideia básica envolvida na numeração posicional de base dez. Por estar
com a atenção voltada para realizar criteriosamente a correspondência um-a-um entre
os dedos de suas mãos (numa certa ordem) e os objetos a serem cotejados, ele tem
poucas condições de lembrar quantas vezes esticou todos os dedos e começou de
novo. Isto ocorre especialmente quando o conjunto a ser cotejado é grande. Ele
necessita, portanto, de uma outra ideia, que consiste numa espécie de "memória" ou
"memória-registro" para as contagens dos "todos" - que seja prontamente acessível e
fácil de ler.

Ha indícios de que vários tipos de procedimento de memória foram usados em


diferentes momentos. Desejamos destacar aqui o procedimento de colocar em cena
um segundo homem, para anotar com os dedos as contagens dos "todos" de seu
companheiro. 0 segundo homem registra com um dedo esticado cada contagem de
"dez" do primeiro homem. Isso possibilita à equipe de dois homens registrar
contagens até noventa e nove, quando aparece nova dificuldade. Ela pode ser
superada, e obviamente foi superada, simplesmente estendendo-se o principio da
memória. Esse princípio pode ser enunciado assim: cada homem na fila de contagem
deve estar pronto para, a qualquer momento, fazer um outro registro, seja esse
registro iminente ou não. Quando esse princípio é aplicado a uma contagem de
noventa e nove, o resultado é a sequência apresentada na Figura 3.

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Figura 3

Da primeira posição, com cada homem de contar esticando nove dedos, uma
contagem adicional de um resulta na segunda posição e depois na terceira.

Nesse momento, o "homem-memória" ou o "homem dos dez", como poderia ser


chamado, está na mesma posição em que estava o homem de contar original quando
tinha esticado os seus dez dedos e estava pronto para retornar à posição de mãos
fechadas. O homem dos dez está agora numa situação em que não poderá registrar
outra contagem de "todos", se esta se tornar necessária. Também ele agora precisa de
algum tipo de memória-registro, e isto significa que um terceiro homem será
necessário. Esse terceiro homem aparecerá como está mostrado na Figura 4. O
numeral 100, colocado abaixo dos homens de contar, com cada dígito designando o
número de dedos apresentado pelo homem correspondente, elimina a necessidade de
palavras para explicar que um numeral zero se impõe na numeração posicional.

Figura 4

Por certa o "0" é um "porta-lugar" na numeração posicional, mas ele é muito mais que
isso. É o símbolo para o número cardinal do conjunto vazio – isto é, um numeral para o
numero cardinal zero. A sequência dos homens de contagem torna claro que o zero é
as duas coisas. A Figura 4 mostra dois dos significados fundamentais do zero num
desenho abrangente e compreensivo.

Sequência histórica e síntese moderna

Nossa tese é de que as enumerações evolveram para a numeração através do uso da


linguagem falada e, posteriormente, da linguagem escrita. As linguagens também
desempenharam um papel primordial na mudança da ênfase matemática da
numeração para o número. Pode parecer estranho que tenha existido um interesse
sério e consistente pela numeração antes de se formar o conceito de número. A
estranheza, naturalmente, se deve à falta de uma visão puramente retrospectiva. Do
ponto de vista moderno, tende-se a considerar a numeração como ligada a meios de

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expressar números – isto é, a criação de símbolos para certas ideias. Pareceria natural
que o conceito de número fosse anterior ao interesse por símbolos para expressar esse
conceito. Todavia, esperamos ter conseguido mostrar que não foi esse o caminho pelo
qual a numeração realmente se desenvolveu. A numeração evolveu da enumeração
não verbal simplesmente porque a linguagem surgiu como um procedimento
simplificador.

Isto não significa, todavia, que deveríamos tentar reconstituir a sequência histórica de
acontecimentos ao ensinar nossas crianças. Hoje em dia as crianças chegam, mesmo
ao jardim de infância, com grande facilidade no uso da linguagem e com um
vocabulário razoavelmente completo de palavras-número. A única coisa que, de fato,
precisamos fazer para essas crianças modernas – mas devemos fazê-lo direta e
consistentemente – é deixá-las descobrir o quanto antes que a última palavra-número
atribuída ao ultimo objeto de um conjunto a ser contado não só dá nome àquele
objeto, enquanto o último de uma sequência ordenada, como também designa a
número cardinal do conjunto todo.

Na abordagem moderna do ensino da matemática elementar, distinguimos desde a


início numerais de números. Também separamos o estudo dos números em dois
aspectos ou ramos diferentes. Um aspecto diz respeito ao que é chamado
"propriedades dos números". 0 outro lida com "sistemas numéricos" - isto é, com as
propriedades das operações com números e as relações que essas operações têm com
os conjuntos de números para os quais estão definidas. Se omitimos deste relato
qualquer referencia à geometria, podemos apresentar o esquema elucidativo na
Figura 5.

Figura 5

Historicamente, o interesse pelos cálculos é anterior em muitos séculos ao interesse


pelas propriedades dos números. Por outro lado, o interesse pelas propriedades dos
números precede em quase dois milênios o interesse por sistemas numéricos. É a
partir desse ultimo interesse, porém, que se produzem os modelos unificadores e

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simplificadores da matemática moderna. A maior parte dos historiadores atribui o
interesse principal por cálculos aos povos orientais e o interesse principal par sistemas
numéricos àqueles que mais ou menos seguiram a tradição predominantemente
grega. Ao que parece, contudo, deve-se a essência da abordagem moderna a uma
síntese dos dois pontos de vista – uma síntese alcançada bem recentemente.

Os significados do zero

Consideremos a papel do zero com respeito ao esquema apresentado na Figura 5.


"Zero como porta-Iugar" seria um conceito pertinente à numeração, ao passo que
"zero como cardinal do conjunto vazio" pertenceria a numero. Podemos concluir que o
zero é as duas coisas, dependendo de se estar pensando primordialmente em
numeração ou em numero. Pode-se afirmar aqui que, transcendendo o plano
elementar, pode haver muitos outros significados para o zero. Mas nos
concentraremos só nesses dois e focalizaremos um por vez, a partir de um ponto de
vista histórico.

A numeração não-posicional, que precedeu em muito a numeração posicional na


maioria das regiões civilizadas do mundo antigo, é puramente aditiva. Quando vários
símbolos individuais eram combinados para formar um numeral, chamava-se o
numero a ser expresso como a soma dos números expressos pelos símbolos
individuais. Como a adição é comutativa e associativa, a ordem em que os símbolos
aparecem no numeral não têm como afetar a soma; logo qualquer ordem pode ser
usada.

Por exemplo, no sistema de numeração não-posicional do período grego clássico (c.


600-300 a.C.) usava-se um sistema alfabético ordinal. 0 princípio desse sistema foi,
muito provavelmente, transmitido à Grécia pelos fenícios, um povo de navegadores e
comerciantes. Nesse sistema, cada letra do alfabeto desempenha um papel duplo:
serve como um numeral e como uma letra. Em alguns sistemas de numeração desse
tipo, como o hebreu, nenhum símbolo especial era usado para indicar se urna
composição de letras denotava um nome ou um número. No sistema grego
apresentado na Figura 6, muitas vezes usavam-se apóstrofes para indicar que uma
letra devia ser interpretada como um numeral.

Figura 6

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Obviamente este é um sistema de base dez, mas não-posicional. A representação do
numero 345 pelas letras-numerais gregas da tabela poderia ser  (300 + 40 + 5 =
= 345). 0 número 345 poderia ser representado com a mesma facilidade por  (5 +
+ 40 + 300 = 345). Percebemos, então, que há seis maneiras diferentes de representar
o mesmo número.

Por outro lado, se fôssemos fazer as variações correspondentes num sistema de


numeração posicional de base seis ou mais, os seis numerais 345, 354, 435, 453, 534 e
543 representariam seis números diferentes.

Representemos agora o número 305 mais uma vez usando as letras-numerais dos
gregos. Obviamente há duas maneiras de representá-lo:  (para 5 + 300) e  (para
300 + 5). Haverá necessidade de um símbolo para o zero num sistema de numeração
não-posicional?

O zero como um porta-lugar - Por outro lado não era possível a numeração posicional
funcionar adequadamente sem um símbolo para uma posição ou lugar vazio. Na
Suméria pré-babilônica, onde já em 3500 a.C. era usado um sistema de numeração
posicional de base sessenta (por alguns pouquíssimos especialistas), às vezes era
indicado um lugar vazio deixando-se, de fato, um lugar vazio no numeral. Veja a figura
7 a seguir.

Figura 7

O numeral sumério aí mostrado podia representar (4 x 60) + (5 x 1) = 245. Mas


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também podia representar (4 x 60 ) + (5 x 1) = 14.405. Somente um exame cuidadoso
do contexto era capaz de revelar o significado do numeral. Como na maioria dos
sistemas de numeração posicional e não-posicional era usada alguma forma de ábaco
para cálculos, a ideia de deixar um lugar vazio no numeral provavelmente foi sugerida
por um sulco vazio num ábaco de seixos ou por um fio vazio nas formas mais
sofisticadas.

E impossível traçar precisamente 0 desenvolvimento do nosso atual sistema de


numeração. O chamado sistema de numeração indo-arábico. Esse sistema é chamado
assim em alusão aos hindus, que provavelmente o inventaram, e em alusão aos
árabes, que mais tarde o disseminaram. Em 825 d.C., o matemático persa al-
Khowarizmi descreveu o sistema hindu completo com valor posicional e um zero. Por
volta de 900 temos um conjunto de numerais de origem arábica bem estabelecido
(Fig. 8). 0 ponto representa o zero no sentido de lugar vazio, o porta-lugar.

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Figura 8

Mais recentemente, foram encontrados conjuntos de numerais hindus que datam de


antes do ano 800 e que, além de terem um símbolo para o zero, quase igual ao que
usamos hoje, também especificam um nome definido para ele. (Estes símbolos mais
antigos são o modelo do conjunto da Figura 8). 0 nome do símbolo zero era sunya, que
significava então, tal como hoje em sânscrito, "vazio" ou "espaço em branco". Todavia,
não implica absolutamente o sentido de “vácuo” ou “nada”. Há indícios de que o
conceito de zero como porta-Iugar seja anterior ao conceito de numero.

O zero como numero - 0 zero como número tem uma história bastante diferente.
Aqui também seria mais conveniente recorrer ao esquema da Figura 5 e considerar
separadamente os dois ramos de desenvolvimento do conceito de numero – o das
“propriedades dos números" e o das "propriedades das operações com números. Ainda
que os gregos dos séculos VI, V e IV antes de Cristo tenham sido os principais
incrementadores do estudo das propriedades dos números, eles nunca reconheceram
o zero como número. Para eles, o conjunto dos números inteiros começava com o um,
ao qual seu saber numérico assinalava atributos como "masculino", "razão", "essência
dos números", "origem de todas as coisas" e "o divino princípio". Mesmo onde
aspectos místicos eram menos pronunciados que na tradição original pitagórica, com
seus conceitos de "numero poligonal", "número perfeito", "números abundantes e
deficientes" e "números amigáveis", para mencionar apenas alguns, o zero não tinha
lugar nas reflexões gregas. Da mesma forma, quando matemáticos gregos deram
alguns passos vacilantes no sentido do desenvolvimento de um sistema de números,
como no admirável tratamento dos irracionais devido a Eudoxio, o zero não teve
nenhuma participação.

Até onde nos é possível chegar, recuando na historia, podemos dizer que
provavelmente foram os matemáticos hindus e árabes, do período de cerca de 500
d.C. a 1100, os primeiros a reconhecer o zero como número. Tudo indica, ainda, que a
iniciativa tenha sido antes dos hindus. Isto aconteceu de duas maneiras: (1) através
das tentativas de resolver certas equações quadráticas de um tipo que se pode
2
descrever como sendo da forma AX – BX = 0, onde uma raiz é zero, enquanto a outra
é algum número racional diferente de zero, e (2) através de um estudo cada vez mais
sistemático das propriedades das operações com números.

Quanto ao primeiro ponto, a maioria dos matemáticos antigos aceitava o zero como
uma solução possível, ainda que não se desse muita importância a tal solução, uma
vez que o zero não era muito significativo como solução de problemas práticos.

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Quanto ao segundo, há diversos relatos bem documentados e importantes, dos quais
dois serão citados aqui. 0 matemático hindu Mahavira (c. 850 d.C., Mysore, india)
escreveu um grande livro, Ganita-Sara-Sangraha (0 compendio do cálculo), no qual há
a afirmação: "Um número multiplicado por zero é zero, e aquele número permanece
inalterado quando é dividido por, somado a ou diminuído de zero”. Essa afirmação
parece conter já a essência do conceito de zero como "elemento neutro da adição", e é
interessante observar que Mahavira considera que a divisão por zero tem o mesmo
efeito que a adição e a subtração de zero - ou seja, que não tem nenhum efeito sobre
o número sobre o qual opera, como divisor. Essa concepção grosseira e errada foi
substituída nos trabalhos do grande matemático hindu Bhaskara (professor em Ujjain,
Índia). Bhaskara afirma, 300 anos depois de Mahavira, cujos trabalhos conhecia, que
"um número definido dividido por cifra [zero] é um submúltiplo do nada". E prossegue
para ilustrar este entendimento escrevendo (usaremos notação moderna): “10 ÷ 0 =
= 10/0” e “3 ÷ 0 = 3/0”. Diz Bhaskara: "Essas frações, cujo denominador é cifra são
denominadas quantidades infinitas". Quase todos os escritores de menor importância
desse período reconhecem o zero como elemento neutro da adição e – sob certas
restrições – da subtração, mas a maior parte deles ou evitava o problema de dividir por
zero ou declarava que o resultado de tal divisão não tem sentido.

Em suma, podemos dizer que o zero tornou-se plenamente reconhecido como número
somente a partir de Bhaskara. Podemos seguramente reafirmar que na matemática
elementar moderna o zero é tanto um porta-Iugar como um número cardinal,
dependendo de que se considere numeração ou sistema de números.

"O gênio grego"

"O gênio grego" não aconteceu espontaneamente. Uma vez estabelecidos no


Peloponeso e na costa oeste da Ásia Menor, os gregos começaram a viajar.
Provavelmente adquiriram conhecimentos sobre embarcações através dos fenícios, os
mercadores do mundo antigo. Logo, partiram para lugares distantes. Nessas viagens,
fizeram contato com muitas culturas mais antigas - na Índia, na Mesopotâmia e no
Egito. Aprenderam e, em parte, absorveram modos de viver que tinham levado
milênios para se desenvolver. Muitas vezes o conhecimento, a sabedoria e a religião
pertencentes a cada uma dessas culturas antigas eram indistinguíveis entre si. 0 que
os primitivos gregos traziam de suas viagens ao exterior era uma curiosa e intrincada
mistura de vários cultos religiosos e de filosofias de vida desenvolvidas sob condições
muito diferentes daquelas que lhes eram familiares. Acumularam também uma
imensa riqueza de conhecimentos referente a praticamente todos os aspectos da
vida. Profundamente entrelaçado a tudo isso estava o conhecimento da numeração e
dos números, astronomia e – como o chamaríamos hoje – astrologia, e uma
abundância de padrões geométricos e desenhos. Aqui, interessam-nos apenas a
numeração e os números.

Pode-se conjecturar que os gregos dos séculos VI e V a.C. não estivessem muito
interessados em numeração – se é que, de fato, tinham algum interesse nisso. Isto
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era verdade, apesar de um fato que parece absolutamente certo: os viajantes gregos
que estiveram no Oriente tiveram contato íntimo com sistemas de numeração
posicional. Como o dos babilônios, que eram muito superiores ao seu sistema não-
posicional, quanto ao esquema e quanto a operacionalidade. Ao que parece, suas
mentes não estavam voltadas para aspectos mecânicos e rotineiros da matemática
elementar, mas tinham fascínio por razões subjacentes suspeitadas e possíveis
justificações.

Uma escola de historiadores da matemática afirma que o fato de os gregos não


reconhecerem e não adotarem um sistema de numeração eficiente do qual tinham
conhecimento constitui “uma mancha negra na matemática grega, brilhante sob
outros aspectos". Todavia, na ausência de informações de primeira mão, uma
interpretação diferente também é possível. A irmandade original pitagórica (c. 550–
300 a.C.) era uma sociedade secreta aristocrática cujos membros preferiam atuar por
trás dos bastidores e, dali, dirigir os assuntos sociais e intelectuais do mercado com
mão-de-ferro. Seus iniciados, de origem nobre, eram ensinados verbalmente. Não se
permitiam documentos escritos, pois estes poderiam denunciar os segredos, em
grande parte responsáveis por seu poder. Entre esses antigos pitagóricos estavam
homens que sabiam mais sobre matemática (tal como ela se constituía na época) do
que a maioria do povo de então. E difícil aceitar a ideia de que esses homens fossem
rematados ignorantes com respeito aos problemas de numeração. Em vez de assumir
que houvesse um "ponto cego" com respeito à numeração, parece plausível que eles
tinham reconhecido claramente que um sistema posicional de base dez tornaria a
habilidade computacional acessível às pessoas de todas as condições. Isso, por assim
dizer, democratizaria rapidamente a matemática, diminuindo pelo menos um dos
controles de poder que tinham sobre as massas, que, para fazer cálculos
matemáticos, eram obrigadas a consultar especialistas e a usar tabelas complicadas.
E essas duas fontes de assistência eram controladas pela irmandade. Há precedentes
históricos para essa explanação. Tanto na civilização babilônica como na egípcia os
cálculos matemáticos eram manipulados por um grupo pequeno e exclusivo de
especialistas, frequentemente os sacerdotes. Seus conhecimentos e habilidades
especiais, ciosamente reservados para si, davam-lhes influência e poder. Os
pitagóricos talvez tenham simplesmente seguido seu exemplo. .

Seja como for, os pitagóricos não aperfeiçoaram nem divulgaram a numeração, mas se
concentraram – além do seu magnífico trabalho em geometria – no estudo das
propriedades dos números, particularmente dos inteiros positivos. Com isso deixaram
de lado, talvez conscientemente, o estudo das propriedades das operações numéricas,
muito mais significativo, que os teria levado a criar uma estrutura para os sistemas de
números similar a que criaram para a geometria.

A língua grega daquela época remota tinha duas palavras de especial importância para
nosso propósito: logistike e arithmetike, que podem ser traduzidas respectivamente
por "logística" e "aritmética".

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A logística grega - A logística lida com numeração e computação (cálculos),
entendendo-se pela última os vários meios e caminhos pelos quais um numeral
complicado podia ser transformado em outro mais simples – tal como transformamos
uma multiplicação numeral, digamos 8 x 27, no numeral mais conveniente 216. De
acordo com a filosofia antidemocrática e aristocrática da irmandade, a logística era
considerada uma ocupação indigna de um homem de bem. Assim, ela era deixada, em
grande parte, ao povo das classes mais baixas, que fazia da computação um afazer
especial, usando ábacos e tabelas (tábuas) que devem ter sido projetadas para eles
pelos pitagóricos. Os pitagóricos talvez explicassem a esses comerciantes como tais
tabelas e dispositivos deviam ser usados, mas nunca diziam como fazê-los ou quais
os modelos secretos que os tornavam possíveis.

A "aritmetica" grega - 0 jovem de origem nobre que desejasse se iniciar nos segredos
da irmandade enfatizava o estudo da arithmetike. Arithmetike, como é de imaginar,
não era absolutamente a "aritmética" dos dias atuais, mas, antes, o que descrevemos
como "teoria dos números" ou, possivelmente, "aritmética superior".

Para avaliar a preocupação dos pitagóricos com as propriedades dos números,


devemos ter em mente duas coisas: (1) Os gregos haviam herdado de culturas
orientais primitivas uma mescla quase inextrincável de conhecimentos numéricos
genuínos, mitos e crenças religiosas. (2) 0 sistema de numeração prevalecente nesse
período fazia uso do alfabeto padrão grego, suplementado por símbolos especiais de
modo a constituir um conjunto de vinte e sete caracteres. Embora não houvesse
dificuldades em determinar quando os símbolos representavam um número em vez
de uma palavra, era possível usar o valor numérico de cada letra para atribuir um único
número a qualquer palavra dada. Como os numerais , , , e  representavam 30, 70,
3 e 200, respectivamente, a palavra  (logos), cujo significado e "razão", "ideia"
ou "pensamento" tinha o valor numérico 373 em nossa notação (30 + 70 + 3 + 70 +
200).

Ao que se saiba, a irmandade pitagórica só tinha membros do sexo masculino, a


despeito da anedota duvidosa que nos conta que a bela namorada de Pitágoras – o
grande mestre do movimento – foi admitida como membro. Não é de surpreender que,
de acordo com o saber numérico pitagórico, os números ímpares fossem considerados
masculinos! Os homens, pelo menos os de berço apurado, podiam ter logos. As
mulheres, associadas aos números pares, evidentemente não podiam. Alguns dos
primeiros números pares e ímpares estavam associados a atributos humanos como
"opinião" (dois); "justiça" (quatro, por ser o primeiro quadrado perfeito); "casamento"
(cinco, uma vez que representa a "união" do primeiro ímpar com o primeiro par). "Um"
não era considerado um número em si, mas como o (divino) gerador de todos os
números. A lista dessas associações é extensa.

Independentemente das razões místicas que possam ter motivado os pesquisadores


pitagóricos dos tempos iniciais, eles descobriram muitas propriedades curiosas e

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fascinantes dos números. Os números pares e os números ímpares já foram
mencionados antes. Como o ponto de vista grego em relação a matemática era mais
geométrico do que aritmético, e como em seus trabalhos mais antigos, pelo menos, os
gregos só consideravam números inteiros, não é de surpreender que tentassem
representar números por modelos geométricos.

Logo depois do círculo, que muitos consideravam a figura plana mais próxima da
perfeição, o quadrado era a mais importante. Arranjos quadrados de pontos,
provavelmente formados de seixos nas versões mais antigas, levaram os gregos a
números que eram quadrados perfeitos – isto é, números que podem ser expressos
como o produto de dois fatores iguais (Ver Figura abaixo.)

Figura 9

Removendo os seixos ou apagando os pontos acima das diagonais mostradas na


Figura 10, eles obtinham configurações para números triangulares como mostra a
Figura 11.

Figura 10

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A sequência dos números triangulares pode ser gerada pela fórmula
n(n  1)
2
que, para n = 1, 2, 3, ... fornece os números 1, 3, 6, 10, 15, ...

Outras propriedades dos números – em parte descobertas, em parte herdadas do


saber oriental pelos pitagóricos – dizem respeito aos números perfeitos, deficientes e
abundantes.

O uso de letras do alfabeto no duplo papel de letras e numerais por parte de vários
sistemas de numeração deu origem a uma espécie de magia numérica secreta (na
realidade seria magia "numeral"), conhecida como numerologia ou gematria. Para os
numerologistas, duas palavras eram equivalentes quando somavam o mesmo número
ao se interpretarem essas letras como numerais. Infelizmente, esse misticismo
numérico não se confinou à mitologia grega, nem ao mundo antigo. Par exemplo, em
praticamente todos os períodos da história alguns escritores cristãos foram capazes
de mostrar, igualando nomes e numerais, que arqui-inimigos de suas ideias eram
indicados pelo "numero da besta" no livro do Apocalipse, 666! (Apoc. 13:18)

A ligação dos gregos com os números primos era bem mais séria e mais profunda.
Sabe-se que, com exceção do um e do dois, qualquer número inteiro que não é primo
pode ser expresso como um produto de primos. Os gregos não só formalizaram essa
descoberta como estabeleceram a que mais tarde se tomou conhecido como "teorema
fundamental da aritmética" (onde o termo "aritmética" é tomado no sentido original
grego) – a saber, que um número composto pode ser expresso como um produto de
primos de uma só maneira (não contando, naturalmente, as possíveis permutações de
fatores). Este teorema é conhecido como "teorema da fatoração única". De fato, se
144 é fatorado como

12 x 12
(4 x 3) x (4 x 3)
(2 x 2 x 3) x (2 x 2 x 3)
ou como
9 x 16
9 x (4 x 4)
(3 x 3) x (2 x 2 x 2 x 2)
ou como
8 x 18
(2 x 4) x (2 x 9)
(2 x 2 x 2) x (2 x 3 x 3),

em rodos os casos o resultado final fornece o mesmo número de fatores – quatro, 2 e


,dois 3. Assinalamos, com referência a isso, que o teorema da fatoração única não se
aplica aos números complexos, da forma a + bi.

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Euclides apresentou nos seus Elementos uma demonstração de que o conjunto dos
números primos e infinito – isto é, que não há um número primo que seja o maior de
todos. Apesar de muitas tentativas, algumas feitas pelos maiores matemáticos de
seu tempo, por enquanto não se divisou nenhum método prático para testar se um
número grande é ou não é primo, nem foi descoberto um gerador verdadeiramente
geral de números primos.

Com o devido respeito a muito poucos aritméticos gregos isolados, deve-se sublinhar
que os únicos números aceitos pela grande maioria dos matemáticos gregos eram os
números naturais. Eles interpretavam o que chamamos hoje de números racionais
como razões entre números naturais. Alguns dos pitagóricos verdadeiramente
grandes conceberam os números que não podiam ser expressos como razões de
números naturais. Como sempre, chegaram a esse conceito através de situações
geométricas. O primeiro desses matemáticos foi Eudoxio (408-355 a.C).

Eudoxio mostrou que a medida da diagonal do quadrado unitário não podia ser
expressa como razão entre dois números naturais – como diríamos hoje, que o
símbolo 2 não representa um número racional. Eudoxio desenvolveu uma
engenhosa teoria das "razões iguais", que, com alguns aprimoramentos de pouca
monta, poderia ter se tornado a base de um sistema de números reais.
Provavelmente, Eudoxio só foi compreendido por poucos contemporâneos seus; é
duvidoso que qualquer um deles (inclusive, talvez, o próprio Eudóxio) fosse capaz de
prever o enorme alcance de sua descoberta.

Para a maioria dos matemáticos gregos, a própria ideia de quantidades


incomensuráveis era desagradável e espantosa. A teoria de Eudóxio das razões iguais
logo foi descartada e esquecida. Mais de dois milênios se passaram até que os
matemáticos alemães Dedekind e Cantor retomassem o trabalho no ponto em que
Eudóxio o interrompera, e o terminassem, criando o sistema dos números reais e, com
isso, um "lugar" legítimo para os números imaginários e complexos. Assim, o gênio
grego não se interessou mais por sistemas numéricos do que por sistemas de
numeração. Enquanto a contribuição matemática de muitas culturas antigas foi a
numeração, a principal contribuição grega foi a arithmetike, conhecimento das
propriedades dos números.

Hoje, porém, nem a logistike nem a arithmetike compreendem o núcleo de abordagem


segundo o qual se ensina a matemática elementar. A abordagem moderna é
definidamente orientada para as propriedades estruturais dos sistemas numéricos
(não dos sistemas de numeração) – isto é, para os modelos e propriedades das
operações com números que fornecem unidade, simplicidade e continuidade, desde o
sistema dos números inteiros até o dos números complexos.

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