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Plinio Arruda Sampaio (org.

D E S A F I O S D A L U TA
P E L O S O C I A L I S M O
Plinio Arruda Sampaio (org.)

D E S A F I O S D A L U TA
P E L O S O C I A L I S M O

EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
Copyright © 2002, by Editora Expressão Popular

Projeto gráfico, capa e diagramação


ZAP Design

Tradução e revisão:
Geraldo Martins de Azevedo Filho
Maria de Almeida

Ilustração da capa
José Clemente Orozco A trincheira (1923-1924), afresco, Cidade do México - México.
Evocada de maneira visual bastante explícita neste mural, em que o soldado do meio está
deitado de braços abertos como se pregado em uma cruz, a metáfora, cristã, representa as
classes sociais e retrata o sofrimento.

Impressão e acabamento
Cromosete
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Biblioteca Central da UEM. Maringá - PR.

P314S Desafios da luta pelo socialismo / Plinio Arruda Sampaio,


organizador. -- São Paulo : Expressão Popular, 2002.
104 p.
Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br

ISBN 85-87394-33-9

1. Socialismo. 2. Sociologia. 3. Ciências políticas. I. Sampaio, Plinio


Arruda, org.

CDD 21.ed. 306.345


CIP-NBR 12899

Vilma Apª Feliciano CRB 9/1152

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: agosto de 2002

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


Rua Bernardo da Veiga, 14
CEP 01252-020 - São Paulo-SP
Fone/Fax: (11) 3105-9500
Correio eletrônico: vendas@expressaopopular.com.br
www.expressaopopular.com.br
Sumário

APRESENTAÇÃO ................................................................................... 7

I - O SIGNIFICADO DO SOCIALISMO CHINÊS .............................. 11


Zhou Shixiu

II - O SOCIALISMO E AS NOVAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO


E SOCIAIS NECESSÁRIAS .................................................................... 21
Fernando Martínez Heredia

III - AS RELAÇÕES DE PROPRIEDADE E AS RELAÇÕES


SOCIAIS DE PRODUÇÃO NA LUTA PELO SOCIALISMO .............. 45
François Chesnais

IV - A REFUNDAÇÃO ........................................................................... 59
Fausto Bertinotti

V - SOCIALISMO ................................................................................... 75
Michael Löwy

VI - A LUTA PELO SOCIALISMO NA ATUALIDADE ....................... 83


James Petras
APRESENTAÇÃO

Socialismo: o que permanece, o que muda


Todo socialista está em busca de uma adequação do socialis-
mo às condições de um mundo que se transformou completa-
mente a uma velocidade vertiginosa. Portanto, nada mais natural
que houvesse um seminário especial sobre os rumos do socialis-
mo, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Afinal, as cin-
qüenta mil pessoas, vindas de todas as partes do mundo, que se
reuniram na capital gaucha, em janeiro de 2002, se propunham
a pensar “um outro mundo possível”.
Esta publicação reproduz as seis exposições apresentadas no
seminário. Elas permitirão ao leitor entrar no âmago das questões
postas para todos aqueles que não se deixaram abater pelas derro-
tas sofridas pelo movimento socialista no final do século XX, nem
se deslumbraram com as aparências do mundo pós-moderno.
Nada, neste mundo novo, invalida a utopia socialista e isto
ficou muito claro no seminário. A idéia generosa de uma socie-
dade igualitária, fraterna, solidária, formada por homens e mu-
lheres livres do jugo do capital e do preconceito, continua sendo
8

a melhor garantia da humanidade contra o risco, sempre presente


e agora mais do que nunca agravado, da barbárie.
Nada, também, nas novas feições assumidas pelo capital – a
globalização, a produção “toyotista”, a importância da informa-
ção no processo produtivo – anula a necessidade de substituir a
propriedade privada dos meios de produção pela propriedade
coletiva; e de substituir a livre iniciativa dos donos do capital
pela produção planificada. Evidentemente, isto não exclui a crí-
tica à maneira pela qual as experiências socialistas do século XX
realizaram essas reformas. Mas uma coisa é criticar para corrigir;
outra, muito diferente, é para renegar.
Do mesmo modo, as mudanças na composição da categoria
de seres humanos que transferem mais-valia para o capital des-
truíram as teorias a respeito dos sujeitos sociais da revolução so-
cialista. Os antigos operários de macacão transformaram-se em
“trabalhadores rotineiros”, “prestadores de serviços pessoais”, “ana-
listas simbólicos” – o que seja, mas esses novos trabalhadores,
responsáveis por uma produção mais do que nunca socializada,
transferem, como os velhos operários dos séculos de dominação
capitalista, parte dos valores que criam para uma classe de para-
sitas sociais. Esses novos trabalhadores são o sujeito de uma revo-
lução socialista, a qual, hoje, mais do que nunca, ou será mundial
ou não será. À luta deles soma-se atualmente a da multidão dos
“descartáveis” do capitalismo em razão de falta de sua serventia
para o mundo da produção automatizada.
A leitura das seis exposições constantes desta publicação evi-
denciará que há uma razoável concordância entre todos a respeito
dos aspectos básicos do socialismo. Na verdade, quem os renega
já deixou de ser socialista.
Mas, se todos esses aspectos continuam, em sua essência,
inalterados na doutrina socialista, o que precisa mudar?
9

O esforço de retomada do movimento socialista mundial,


depois da grande derrota do final do século XX, deve concen-
trar-se na estratégia, nas táticas, nos estilos e nas estruturas dos
partidos socialistas. Aí sim, mudanças radicais são necessárias.
Excusado dizer que não surgirão da pena de algum iluminado,
mas da reflexão teórica acerca da prática revolucionária de mi-
lhares de militantes socialistas espalhados em todos os movimen-
tos sociais neste conturbado mundo do capitalismo global.
Os seis textos, da lavra de intelectuais comprometidos com
esta prática, sugerem algumas das correções sobre as quais deve-
mos nos debruçar. Sem preocupação de sistematizar essas contri-
buições, mas apenas de provocar a reflexão sobre elas, vão aqui
citadas, ao acaso, algumas que podem causar mais impacto nas
formas de organizar a atual luta de resistência anticapitalista:
– Para fazer avançar o socialismo, não basta montar uma
estrutura partidária e desenvolver uma estratégia exitosa de
conquista do poder. É indispensável começar a pensar e a
experimentar, desde já, formas de transformar o poder do
Estado.
– O empenho transformador da sociedade atual precisa foca-
lizar, ao mesmo tempo e com igual peso, as instituições e a socie-
dade. A transformação socialista não se circunscreve à economia
e ao Estado, mas a toda a organização da vida social. A sociedade
socialista, que pretendemos implantar, é um projeto de civiliza-
ção mais generoso e humano do que a civilização belicosa e indi-
vidualista criada pelo capital.
– O novo intelectual coletivo do processo revolucionário so-
cialista não é mais o partido e sim o movimento. Os movimen-
tos é que mobilizarão os novos sujeitos sociais para a tarefa
civilizatória de destruir a dominação burguesa. Esta constatação
não exclui, entretanto, a necessidade de uma idéia-força unitária
10

e, conseqüentemente, de um sujeito político capaz de produzi-la.


Só que este não será uma “vanguarda” a dar “direção” ao conjun-
to, mas um instrumento de coordenação e sinergia a serviço dos
movimentos.
– Para que as metas da planificação socialista não sejam im-
postas aos produtores por uma tecnoburocracia estatal, é indis-
pensável encontrar formas adequadas de efetiva participação
popular neste processo.

Se pudermos levar alguma contribuição sobre esses pontos


ao 3º Fórum Social Mundial, a realizar-se em janeiro de 2003,
sem dúvida, o movimento socialista dará um grande salto quali-
tativo. Outra não é a ambição da Editora Expressão Popular ao
editar este livro.

Plinio Arruda Sampaio


Agosto de 2002.
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I - O SIGNIFICADO DO
SOCIALISMO CHINÊS
Zhou Shixiu

Em 1º de outubro de 1949, Mao Zedong* proclamou a Re-


pública Popular da China em Beijing. Começou, nessa impor-
tante data, a nova história da China. Essa história é densa e teve
uma primordial importância para a China, e também para o
mundo inteiro, porque a sociedade chinesa entrou no período
socialista e o socialismo modificou essencialmente esse país.
Existia, nos anos 40, um país pobre, extremamente atrasado,
predominantemente rural, que havia sido destruído pela guer-
ra civil e pela invasão estrangeira. Um país no qual, naquela
época, pouca gente acreditava.
Em pouco mais de 50 anos, de 1949 para cá, o socialismo
alterou totalmente esse quadro. Fez da China uma potência in-
dustrial, melhorou profundamente os padrões sociais da China,
transformou o país numa das grandes potências do mundo. Uma
potência que se desenvolve a uma taxa de expansão que é, nos

*
A pronúncia que se consolidou no mundo ocidental, Mao Tsé-Tung, não é a mais
correta, e sim a que aqui se apresenta.
12 Fernando Martínez Heredia

últimos 20 anos, de 8 a 9% ao ano, provavelmente a maior do


mundo.
Cito as palavras do embaixador brasileiro Afonso de Ouro
Preto, “a China é um país que nós conhecemos, potência com a
qual o nosso Brasil deseja manter estreitas relações de aproxima-
ção, apesar da distância geográfica. Queremos estar política e
economicamente perto da China.”
Alexandre Lilov, diretor do Instituto Búlgaro de Estratégia e
ex-presidente do Partido Socialista Búlgaro, apresentou caloro-
sas congratulações à China no seu 50º aniversário, consideran-
do-a um exemplo no mundo. O “Jornal dos Chineses na Europa”
publicou um editorial salientando que a China vem se transfor-
mando num país forte e próspero, considerando este fato um
milagre criado pela nação chinesa.
O triunfo da China, especialmente os avanços dos últimos
20 anos, é uma realidade que é conhecida no mundo todo. Hoje,
aqui no Fórum Social Mundial, quando nós debatemos o “Socia-
lismo”, quero enfatizar que este sucesso se deve ao Socialismo.
Embora saibamos que a maioria dos países socialistas tenham
tido insucesso, o socialismo desenvolvido na China conseguiu
trilhar um caminho que levou o país a um êxito extraordinário.
Quero abordar, neste Fórum, três temas sobre socialismo tipo
chinês: A prática do socialismo na China; o que é o socialismo
tipo chinês; as perspectivas do socialismo chinês.

A prática do socialismo na China


Desde a fundação da RPC, em 1949, a China participa da
sociedade socialista. Esta história pode ser dividida em dois
períodos:
1º) de 1949 a 1976 – época de Mão;
2º) de 1976 até hoje – período de reforma.
Desafios da luta pelo socialismo 13

Ao falar sobre esses dois períodos, faz-se necessário falar so-


bre duas personalidades históricas: Mao e Deng.
Mao Zedong é considerado o principal criador da Nova Chi-
na. No século passado havia uma canção popular – “Vermelho
Oriental” – cujos versos diziam: “O oriente está vermelho, o sol
se levantou. Nasceu Mao Zedong na China. Ele trabalha pela
felicidade da nação e é o salvador do povo chinês”. Até hoje, o
povo chinês considera Mao um herói nacional.
No período entre o fim da década de 50 e o fim da década de
70, a China percorreu um caminho acidentado e sinuoso na cons-
trução socialista.
Criado na década de 1950 e tendo como modelo a então
União Soviética, o sistema socialista da China teve o exemplo
soviético como eixo fundamental no seu desenvolvimento eco-
nômico.
O socialismo soviético caracterizava-se pela procura do alto
grau de nacionalização do sistema de propriedades e pela econo-
mia planejada e centralizada no desenvolvimento econômico. No
decorrer do tempo, a economia planejada começou a mostrar
seus aspectos negativos na mobilização das iniciativas coletivas e
individuais. Devido a esse fator, alguns dirigentes chineses ten-
taram fazer algumas emendas no modelo soviético, cedendo (em
1956) o direito de autonomia às empresas e permitindo a exis-
tência de algumas empresas particulares como suplemento à eco-
nomia socialista. Em resumo, esses dirigentes chineses queriam
que o mercado desenvolvesse seu papel de reajuste sem prejuízo
à estrutura fundamental do sistema de economia planejada.
Foi lamentável, mas Mao não aceitou as idéias dos colegas e a
China não soube conduzir correta e efetivamente os esforços
destinados à reforma do sistema econômico, que incluía o au-
mento da diversificação e a flexibilidade da economia socialista.
14 Fernando Martínez Heredia

A partir de 1957, e por um período de 20 anos, o governo


chinês continuou a obstinada intensificação da economia plane-
jada, fundamentado na concepção de que o socialismo era repre-
sentado por essa economia e, quanto maior fosse a propriedade
pública, maior seria a oportunidade de desenvolvimento. Com
um entendimento parcial sobre a natureza do socialismo, os pro-
blemas relacionados ao sistema econômico centralizado e à pro-
priedade única permaneceram sem solução e, durante um longo
tempo, serviram de obstáculos ao desenvolvimento da produti-
vidade.
A falta de conhecimento e o desvio político provocaram ain-
da o grande caos nacional, isto é, a “Grande Revolução Cultu-
ral”, que durou 10 anos.
Mesmo assim, a China obteve alguns êxitos nos 20 anos se-
guintes. Apesar das vicissitudes, a produção industrial anual au-
mentou em média 11,2%. Foram lançados, com êxito, as bombas
atômicas, os mísseis e os satélites artificiais. Além disso, das gran-
des instalações básicas existentes atualmente para o desenvolvi-
mento do país, 70% foram construídas nos anos 60 e 70.
Comparando com os primeiros anos da proclamação da Repú-
blica Popular da China, a vida do povo melhorou visivelmente,
o número de pobres diminuiu, as condições de assistência médica
foram aprimoradas, o nível de educação se elevou e cresceu a
expectativa de vida do povo.
Inaugurada a Nova China em 1º de outubro de 1949, Mao
colocou em prática a sua idéia de dominação absoluta, conse-
guindo resultados positivos. Na área econômica, Mao insistiu
no modelo de economia estatal, diminuindo o espaço da inicia-
tiva privada, causando uma cisão na realidade chinesa e ocasio-
nando a carência no abastecimento de mercadorias para o povo.
Em relação aos intelectuais, Mao considerou que eles pertenciam
Desafios da luta pelo socialismo 15

à classe burocrata e deveriam ser reeducados. Em 1957, ele ini-


ciou uma campanha contra as tendências de direita, prejudican-
do os intelectuais, dentre os quais cerca de 500 mil foram julgados
e condenados a uma reeducação, o que significou jornadas em
campos de trabalho forçado.
Segundo Mao, o motor de arranque da sociedade era a luta
de classes. Depois de conquistar o poder nacional em 1949, an-
tes ocupado por Chiang Kai-Shek (1887 – 1975), Mao descui-
dou-se da construção do país e deu prioridade à luta de classes,
promovendo diversas campanhas políticas, tais como: a luta con-
tra as tendências de direita, a luta contra as tendências direitistas
dentro do Partido, as “Quatro Limpezas”, e a “Grande Revolu-
ção Cultural”, que levou o país ao caos e resultou em calamidade
nacional. O modelo de Mao foi aplicado inclusive na área eco-
nômica, em 1957, provocando o “Grande Salto”, em que a Chi-
na iria superar a Inglaterra no curto período de 15 anos. Mao
criou no campo a “Comuna Popular”, uma instituição de poder
que agrupava operários, camponeses, intelectuais e comercian-
tes, cuja finalidade era administrar a agricultura, a educação, a
indústria e o comércio. Imaginou que, dessa forma, a sociedade
chinesa poderia chegar mais rápido à sociedade comunista. Mao
negou a economia de mercado e limitou a produção de merca-
dorias, considerando-as como próprias de países capitalistas e,
conseqüentemente, inadequada à sociedade socialista, o que re-
sultou em prejuízo para o desenvolvimento do país.
Em relação aos assuntos internacionais, logo após a fundação
da Nova China, Mao aplicou uma política paralela à URSS, par-
ticipando da Guerra da Coréia (1950 – 1953). Na década de 70,
Mao tinha a idéia de que o mundo se dividia em três partes:
países hegemônicos, como os EUA e URSS; países capitalistas
desenvolvidos e países em desenvolvimento, como os da Ásia, da
16 Fernando Martínez Heredia

África e da América Latina. Acreditando nessa idéia, usou como


estratégia a construção de frentes unitárias nos países em desen-
volvimento, aproveitando a divergência da “Guerra Fria”, para
lutar contra os países hegemônicos, construindo assim uma nova
ordem mundial. (v. BANDUNG, Conferência). Diante desse
posicionamento de Mao, a China projetou-se internacionalmente
e, para o povo chinês, ele foi considerado um herói nacional,
visto que sob a sua direção a China passou da condição de um
país fraco e facilmente invadido pelos imperialistas à de um país
proeminente nos assuntos internacionais e poderoso na defesa
nacional.
Depois da morte de Mao Zedong, em 1976, Deng Xiaoping
tornou-se o núcleo da nova geração de governo. Sob o dois co-
mandos, a Nova China estabelecida por Mao Zedong deu aos
chineses dignidade e confiança; Deng Xiaoping iniciou o pro-
grama de reforma e abertura, dirigindo o povo chinês para o
enriquecimento.
Após a fundação da República Popular da China, em 1949,
Deng Xiaoping, como um dos criadores da Nova China, duran-
te 30 anos dedicou-se à administração da economia nacional e,
posteriormente, assumiu o cargo de vice-primeiro-ministro do
Conselho do Estado. Graças ao seu trabalho na economia nacio-
nal, Deng Xiaoping implantou o conceito prático, que foi dura-
mente criticado devido à estagnação ideológica da China, e ele
terminou sendo exonerado de seu cargo. Em 1976, após o fim
da “Grande Revolução Cultural” que durou 10 anos, Deng
Xiaoping voltou ao palco político e reiniciou a aplicação da nova
política relativa às reformas no interior do país e a abertura ao
exterior.
Deng Xiaoping estudou o processo de desenvolvimento da
Nova China nos 30 anos de sua fundação e concluiu que a Chi-
Desafios da luta pelo socialismo 17

na não podia seguir o modelo de desenvolvimento da então União


Soviética e, sim, deveria procurar adotar um novo modelo. A
partir daí, as reformas que se seguiram tiveram como objetivo o
melhoramento do sistema socialista, que levaria o país à constru-
ção de um socialismo com características chinesas.
Quanto às reformas internas, Deng enfatizou a construção
da economia como o trabalho central do governo em todo o
país. Por outro lado, considerou que a mudança no modo admi-
nistrativo da economia nacional levaria o funcionamento do
mercado a desempenhar o papel de ajustamento.
Enquanto aplicava as reformas no interior do país, Deng, ao
mesmo tempo, promovia ativamente a abertura ao exterior. Nos
30 anos anteriores à aplicação da abertura, a política chinesa com
o exterior possuía características da época da “Guerra Fria”. Mas
Deng incentivou a abertura do comércio exterior a todos os pa-
íses, tomando importantes decisões, tais como: estabelecimento
da zona econômica especial; abertura de mais de 10 portos marí-
timos com finalidade de criar uma faixa litorânea de abertura
econômica ao exterior. Num curto espaço de tempo, as zonas
econômicas especiais e as zonas de abertura econômica obtive-
ram rápido desenvolvimento e impulsionaram a abertura de todo
o país ao exterior. As reformas levaram a China a um socialismo
com características chinesas e desencadearam um desenvolvimen-
to contínuo, estável e rápido. Mais de 200 milhões de chineses
livraram-se da pobreza.

O significado do socialismo chinês


Segundo o resultado da prática do socialismo na China, es-
pecialmente na época de Deng Xiaoping, podemos conhecer o
socialismo típico da China. Então, o que é o socialismo de tipo
chinês?
18 Fernando Martínez Heredia

1º) O socialismo é o caminho correto e razoável para o povo


chinês. Ao seguir esse caminho, o povo chinês conseguiu a inde-
pendência nacional e a liberdade e estruturou um sistema eco-
nômico nacional relativamente completo.
2º) O ponto chave do socialismo para um país socialista é
desenvolver a produtividade. O governo deve trabalhar com a
concretização da construção da economia. O socialismo não é
contraditório à economia de mercado e nem a economia de mer-
cado é patente do capitalismo. O país socialista também tem
mercado.
3º) O caminho do socialismo é uma “Grande Marcha”. De-
pois de 50 anos da fundação da Nova China, o país ainda está na
etapa inicial do socialismo.
4º) O fundamento do socialismo é sempre tratar o povo como
o objetivo da construção socialista e investir todo esforço na
melhoria da vida do povo, permitindo o enriquecimento de al-
gumas pessoas no início para atingir o enriquecimento de todo o
povo no final.
Concluindo, o socialismo de tipo chinês consiste na libera-
ção e no desenvolvimento das forças produtivas, eliminação da
exploração, equilíbrio da distribuição de rendas e, finalmente,
em concretizar o enriquecimento comum do povo.
5º) O socialismo deve saber administrar juridicamente o país,
lutar contra a corrupção e desenvolver a política democrática
socialista. O socialismo não despreza a herança da excelente tra-
dição cultural de seu país, ainda que absorva todos os traços cul-
turais estrangeiros.

Futuro do socialismo chinês


Os próximos 5 a 10 anos condensam um período muito im-
portante para o desenvolvimento econômico-social da China e
Desafios da luta pelo socialismo 19

também a fase mais espinhosa da reforma chinesa. Por isso, a Chi-


na definiu um plano de desenvolvimento econômico-social nacio-
nal para os próximos 10 anos e desenhou as perspectivas de
desenvolvimento para os próximos 5 anos. O desenvolvimento
será o tema principal; o ajuste estrutural, o eixo; a reforma, a aber-
tura e o progresso científico-tecnológico, a força de propulsão; e a
qualificação do nível de vida popular será o ponto de partida. Para
conseguir realizar esses objetivos, será necessário um ajuste com-
pleto às estruturas produtivas, regional, urbano-rural e do sistema
de propriedade, colocando em prática a estratégia de desenvolver
o grande oeste, que tem como meta central a construção de infra-
estruturas e a melhoria do meio ambiente. Além disso, o país pla-
neja fomentar a ciência e a educação, destinando investimentos na
formação dos recursos humanos, nas inovações científico-
tecnológicas e estruturais e acelerando o processo da informatização.
O esforço conjunto terá como objetivo alcançar o equilíbrio do
desenvolvimento econômico e social, conseguir que as reformas
avancem paralelamente e governar o país de acordo com a lei e a
moralidade. Este é o primeiro ano na execução do 10º Plano
Qüinqüenal, que contou com um início positivo. No contexto da
desaceleração geral da economia mundial, a China tem mantido a
tendência de rápido crescimento. A taxa de crescimento do PIB
chinês, no primeiro semestre deste ano, foi de 7,9%. Recentemen-
te, na 18ª Reunião do Grupo de Trabalho Mundial de Comércio
sobre a China, foram aprovados todos os documentos legais em
relação à entrada da China naquela organização.

Segundo Sima Qian, o mais famoso historiador chinês antes


de Cristo, o objetivo do historiador é estudar a relação entre o
homem e a natureza, conhecer as razões das mudanças e das re-
formas de uma sociedade.
20 Fernando Martínez Heredia

Há dois mil anos atrás, Sima Qian, pai da história chinesa,


assinalou a China na história. Hoje, participando deste Fórum
Social Mundial, posso assegurar que um brilhante futuro socia-
lista é possível, é realidade. O povo chinês percorreu um longo e
acidentado caminho, mas, com persistência e disciplina, encon-
trou o caminho adequado e, hoje, a nação chinesa se projeta no
cenário mundial. Acredito que todos os países poderão encon-
trar seus próprios caminhos, espelhando-se ou não na experiên-
cia chinesa, convictos de que o progresso de uma nação depende
sobretudo de seus cidadãos.
Almejo a todos os participantes e aos seus povos que alcan-
cem o desenvolvimento sem abrir mão da humanidade e que a
“Paz” seja o objetivo de todos.
Desafios da luta pelo socialismo 21

II - O SOCIALISMO E AS NOVAS
RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E
SOCIAIS NECESSÁRIAS
Fernando Martínez Heredia

Venho falar de socialismo, mas, para fazê-lo, antes de tudo quero


expressar aqui minha solidariedade, como cubano, com a luta do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com os Atingidos
por Barragens, com todos os demais que resistem e lutam, no Bra-
sil e em todas partes do mundo; minha solidariedade com a Via
Campesina, com os organizadores deste seminário, onde nos cabe
debater e trocar idéias sobre o socialismo. A formação, o debate e o
estudo não são divagações na luta pelo socialismo; são uma forma
importante dessa mesma luta, que nos torna mais fortes e mais efi-
cazes e também nos proporciona, como hoje, neste lugar, a emoção
e o encontro, a arte da dança nos pés dos filhos dos camponeses e a
canção internacional dos trabalhadores cantada em todas as línguas,
em todos os idiomas que os povos inventaram para expressar o amor,
o trabalho e a busca da felicidade e da liberdade.

Pensar o socialismo
Quando se fala de socialismo, surge a necessidade de distin-
guir entre as propostas e o dever ser do socialismo, por um lado,
22 Fernando Martínez Heredia

e as formas concretas que existiram e existem em países e regiões,


a partir das lutas de libertação anticapitalistas, e nas sociedades
que realizaram transições socialistas. A prefiguração, os ideais, a
profecia, o projeto são a alma e a razão de ser do socialismo e
forjam a meta que inspira a combater. Contudo, as experiências
são a própria matéria da luta e da esperança; por meio delas, o
socialismo avança e por elas é avaliado.
Esta distinção é básica, mas não é a única distinção impor-
tante na reflexão sobre o socialismo. Quando queremos conhe-
cer uma experiência socialista, nos deparamos com um problema
interno do país em questão: como se dão, ali, as relações entre o
poder existente e poder desejado; e com outro problema, este
externo: aquele que se refere às relações entre o país em transição
socialista e o restante do mundo. Na realidade, são dois proble-
mas, mas não estão separados: as práticas de cada um deles afe-
tam o outro e, em grande medida, os definem.
As questões apresentadas até aqui não existem em separado,
nem em estado “puro”. Devem ser enfrentadas simultaneamente
e estão mescladas ou combinadas, ajudando-se, dificultando-se
ou confrontando-se, exigindo esforços ou sugerindo esquecimen-
tos e adiamentos fatais. Suas realidades – e outras situações e
êxitos contrários – condicionam em certa medida cada processo.
Cada transição socialista se debate entre as mudanças civilizatórias
e as mudanças de libertação conquistadas ou não; as correlações
entre graus de liberdade que se tem e necessidades que o obri-
gam, as motivações e atitudes dos indivíduos, que são os que
fazem o socialismo e qualquer outra coisa, a razão de Estado e o
internacionalismo, e outros dilemas e problemas. Para que o pen-
samento cumpra sua função decisiva, neste empenho nunca an-
tes visto, de ir contra o conjunto das relações de opressão que
têm existido e criar um mundo novo, é necessário que a reflexão
Desafios da luta pelo socialismo 23

se ocupe dos problemas centrais. Alguns problemas teóricos mais


gerais são de valor permanente, como o da necessidade da revo-
lução em escala mundial frente ao âmbito nacional de cada ex-
periência socialista e frente a um capitalismo que tem sido cada
vez mais profundamente globalizado; ou o problema de definir
o que é fundamental desenvolver nas sociedades que empreen-
dem um caminho de instituição do socialismo.
Porém, não devo continuar sem responder a uma pergunta
urgente: o que é que o socialismo tem a ver conosco? Opino
que a única alternativa prática ao capitalismo atual é o socialis-
mo, e não a extinção ou o aperfeiçoamento da chamada
globalização, que é uma vaga referência ao grau em que o capi-
talismo transnacional e de dinheiro parasitário exerce sua do-
minação no mundo atual; tampouco será alternativa o fim do
neoliberalismo, palavra que serve para descrever determinadas
políticas e a principal forma ideológica adotada pelo grande
capitalismo atual. Estes conceitos não são inocentes; a lingua-
gem nunca é inocente. Quando se aceita que a “globalização é
inevitável”, está-se ajudando a escamotear a consciência das
atuais formas de exploração e de dominação imperialista, e sua
longa história de mundialização da pilhagem aberta e das do-
minações sutis, classificando-se como fenômeno natural – como
se fosse o clima – uma cruel forma histórica de oprimir as maio-
rias. O repúdio ao neoliberalismo indica um avanço importan-
te de consciência e é uma instância unificadora nas lutas sociais
e políticas; porém, o capitalismo é muito mais abrangente, in-
cluindo o neoliberalismo e todas as vantagens “não liberais” de
seu sistema econômico e de seus poderes que dominam o Esta-
do, a política, os meios de comunicação, a escola, a corrupção
e a “luta” contra ela etc. Dominar tudo através da imposição de
uma linguagem que condiciona os pensamentos possíveis faz
24 Fernando Martínez Heredia

parte da guerra cultural desenvolvida pelo capitalismo em es-


cala mundial.
É pela sua própria natureza que o sistema capitalista se torna
sinistro para a maioria da população do planeta e para o próprio
planeta, e não por suas supostas aberrações, por uma malformação
que pode ser extirpada ou por um equívoco que pode ser corrigi-
do. O capitalismo chegou a um ponto de seu desenvolvimento
em que colocou em prática toda a capacidade do sistema, com
um alcance mundial, mas sua essência continua sendo o lucro e
a avidez pelo lucro; é a dominação, a exploração, a opressão, a
marginalização ou a exclusão da maioria das pessoas, é a trans-
formação de tudo em mercadoria, a depredação do mundo em
que vivemos, a guerra e todas as formas de violência que lhe
servem para se impor, ou para dividir e contrapor os dominados
entre si. Só a eliminação do poder do capitalismo e um combate
criativo, amplo e muito prolongado contra a persistência de sua
natureza poderá nos salvar. A única proposta capaz de impulsio-
nar tarefas tão incontestáveis e extraordinárias é o socialismo.
Porém, a afirmação do socialismo é a pressuposição do
enfrentamento de um poderoso grupo de perguntas e desafios. O
socialismo é uma opção realizável, é viável? Pode existir e persistir
em países ou regiões do mundo sem controle dos centros econô-
micos do mundo? É um regime político e de propriedade, e uma
forma de distribuição de riquezas, ou está obrigado a desenvolver
uma nova cultura, diferente, oposta e mais humana que a cultura
do capitalismo? Por sua história, o socialismo não está também
incluído no fracasso das idéias e das práticas “modernas”, que se
propuseram a aperfeiçoar as sociedades e as pessoas? Não se pode
esquecer nem dissimular nenhum desses desafios, precisamente
para dar uma base firme à idéia socialista, tirar proveito de suas
experiências e ter mais possibilidades de realizá-la.
Desafios da luta pelo socialismo 25

É certo que, recentemente, as lutas populares têm sofrido


muitas derrotas no mundo e que a dominação parece mais pode-
rosa do que nunca, embora na realidade, também tenha grandes
debilidades e elementos contra si. O maior potencial adverso da
dominação é uma enorme cultura acumulada de experiências
em conflitos sociais e políticos – e de avanços obtidos pela Hu-
manidade – cultura de resistências e rebeldias que fomentam
identidades, idéias e consciência, e manifesta reações e exigências
colossais e urgentes. Tudo isso favorece a opção de sentir, neces-
sitar, pensar e lutar por avanços e criações novas. Essas lutas se-
rão socialistas. Desejo que meus comentários sejam uma modesta
contribuição ao debate e à formação política, que são indispen-
sáveis para o aperfeiçoamento desses propósitos. Escolho apenas
umas poucas questões, dado o tempo de que disponho, sabendo
que serei bastante parcial em minha exposição.
Temos visto duas maneiras diferentes de entender o socialis-
mo no mundo do século 20: o socialismo que temos vivenciado
ou o socialismo com que temos sonhado. Elas têm estado muito
relacionadas entre si, costumam reivindicar a mesma origem his-
tórica, não têm sido excludentes. Mas, atenho-me aqui às dife-
renças entre elas, porque são elas que nos permitem vislumbrar o
essencial.
A primeira é um socialismo que pretende mudar totalmente
o sistema econômico mediante a racionalização dos processos de
produção e de trabalho, a eliminação do lucro, o crescimento
sustentado das riquezas e a chamada satisfação crescente das ne-
cessidades. Propõe-se a eliminar o caráter contraditório do pro-
gresso, cumprir o sentido da história, concluir a obra da civilização
e o ideal da modernidade. Seu material cultural prévio tem sido
o pensamento europeu, que contribuiu com a fonte de doutri-
nas cívicas por excelência do Ocidente. Este socialismo propõe
26 Fernando Martínez Heredia

cumprir a promessa de modernidade, introduzindo a Justiça e a


harmonia universal. Para consegui-lo, necessita de um grande
desenvolvimento econômico e de grande liberdade para os tra-
balhadores, a tal ponto que a economia deixe de ser medida pelo
tempo de trabalho. A democracia seria realizada por este socialis-
mo em um grau muito superior aos projetos anteriores mais ra-
dicais. Liberdades individuais completas, garantidas, instituições
intermediárias, (entre o produtor e o consumidor), controle ci-
dadão (sic), extinção progressiva dos poderes. Em uma palavra,
toda a democracia e toda a proposta comunista de uma associa-
ção de produtores livres. Seu pressuposto é que, racionalmente,
não é possível ao capitalismo a realização daqueles fins tão eleva-
dos: só o socialismo pode torná-los realidade.
A outra maneira de entender o socialismo tem sido a de rea-
lizar em um país a libertação nacional e social, criando um novo
poder, pondo fim ao regime de exploração capitalista e sua pro-
priedade, eliminando a opressão, acabando com a miséria e pro-
movendo uma grande redistribuição das riquezas e da Justiça.
Tem na base de suas práticas outros pontos de partida. Suas ma-
ravilhosas conquistas são o respeito à integridade e à dignidade
humana, a obtenção de alimentação, serviços de saúde e educa-
ção, emprego e demais condições para uma qualidade de vida
decente para todos, e o estabelecimento de prioridade dos direi-
tos das maiorias e das premissas de igualdade efetiva das pessoas
de diferentes posições social, de raça ou de gênero. Propõe ga-
rantir sua ordem social e um desenvolvimento econômico
mediante o poder e a organização revolucionária a serviço da
causa, da honestidade administrativa, da centralização dos re-
cursos e sua destinação aos fins econômicos e sociais seleciona-
dos ou urgentes; da conquista de relações econômicas
internacionais menos injustas e dos planos de desenvolvimento.
Desafios da luta pelo socialismo 27

Este socialismo deve percorrer um penoso e longo caminho para


garantir a satisfação das necessidades básicas, promover enérgica
resistência a seus inimigos e combater suas debilidades; criar ins-
tituições democráticas e um Estado de direito e desenvolver uma
nova cultura, diferente e oposta à do capitalismo.
No âmbito do primeiro socialismo, é privilegiado o significa-
do burguês do Estado, da Nação e do nacionalismo, que são
vistos como instituições da dominação e da manipulação. No
âmbito do segundo socialismo, a libertação nacional e a plena
soberania têm um peso crucial, porque a ação e o pensamento
socialistas deverão exterminar o binômio dominante estrangeiro-
nativo e combinar com êxito o desejo de justiça social com o de
liberdade e de autodeterminação, frente ao domínio exercido pelas
metrópoles coloniais e neocoloniais. As profundas diferenças
existentes neste terreno – entre o socialismo realizado em regiões
do mundo desenvolvido e o produzido no mundo que foi subju-
gado pela expansão mundial do capitalismo – têm conduzido a
grandes desacertos teóricos e políticos e a graves desencontros
práticos.
A exploração do trabalho assalariado e a missão do proletariado
têm um lugar prioritário na ideologia do primeiro socialismo;
nas práticas do segundo, o ponto central são as reivindicações de
todos os oprimidos, explorados ou humilhados. A profunda
mudança nas vidas das maiorias não pode esperar, qualquer que
seja o critério que se tenha sobre os procedimentos utilizados ou
os debates que, com toda razão, se produzam acerca dos riscos
implicados, porque a força deste tipo de revolução socialista não
está em uma racionalidade que se cumpre, mas sim em potenciais
humanos que afloram.
A liberdade social – e sublinho social – é priorizada neste se-
gundo tipo de socialismo como uma conquista obtida pelos pró-
28 Fernando Martínez Heredia

prios participantes, mais que as liberdades individuais e os recur-


sos conseguidos de um Estado de direito; é uma liberdade que se
goza ou que faz exigências a seu próprio poder nos planos sociais,
e é aquela que gera mais autovalorizações e expectativas cidadãs. A
legitimidade do poder está ligada a sua origem revolucionária, ao
pacto social que está na base da política e à capacidade que esse
poder tem de representar o espírito libertário que se deixou enqua-
drar por ele, de manter o rumo e de defender o projeto.
O segundo tipo de socialismo não pode desprezar o esforço
civilizatório como um objetivo inferior ao socialismo. Deve pro-
porcionar roupa, sapatos, emprego, atendimento à saúde e instru-
ção a todos; mas, a seguir, todos querem ler jornais e até livros; e,
quando ficam sabendo que existe a Internet, querem navegar nela.
O auge das expectativas de qualquer pessoa no mundo atual pode
ser imenso. E este socialismo dos pobres revela então o que a pri-
meira vista pareceria um paradoxo: o socialismo que está a seu
alcance e o projeto que pretende realizar está obrigado a ir muito
além do que o cumprimento dos ideais da razão e da modernidade;
deve compreender que seu caminho é negar que a nova sociedade
seja resultado da evolução do capitalismo e negar a ilusão de que
basta a expropriação dos instrumentos do capitalismo e será possí-
vel construir uma sociedade que o “supere”. Ou seja, este socialis-
mo se vê obrigado a trabalhar pela criação de uma nova concepção
da vida e do mundo, ao mesmo tempo que se põe em prática.
E então aparece também outra questão principal. Do mesmo
modo que todas as revoluções anticapitalistas triunfantes não acon-
teceram em países com maior desenvolvimento econômico – dei-
xando de cumprir, portanto, o dogma que postula o contrário – e no
último meio século todas essas revoluções aconteceram no chamado
Terceiro Mundo, o socialismo factível e desejável não depende da
evolução progressiva do crescimento das forças produtivas, nem da
Desafios da luta pelo socialismo 29

antiga exigência de “correspondência entre as forças produtivas e as


relações de produção”, mas sim de uma mudança radical de perspec-
tiva social e econômica e de uma conjunção de forças sociais e polí-
ticas unificadas por um projeto de libertação humana.
Nessa perspectiva é preciso qualificar – e avaliar de maneira
apropriada – os fatores necessários para empreender e fazer avan-
çar a transição socialista. Dou exemplos. Destruir os limites do
possível torna-se um fator fundamental, e que a confiança de não
existirem limites para a ação transformadora se torne um fenôme-
no de massa. Dentro do possível modernizações são alcançadas,
mas a transição constituída por elas só produz, ao final, moderni-
zações da dominação e novas integrações ao capitalismo mundial.
A educação tampouco pode estar em nível com a economia: deve
ser, precisamente, muito superior a ela e muito criativa. Esta edu-
cação socialista não se propõe formar indivíduos para submeter-se
à dominação e interiorizar seus valores; ao contrário, deve ser um
território antiautoritário e, ao mesmo tempo, um veículo para as-
sumir capacidades e conscientização, uma educação obrigada a ser
superior às condições de reprodução da sociedade, porque deve ser
criadora de novas forças para a libertação.
Diante da falta de tempo, reúno perguntas sobre questões
cruciais: o desenvolvimento econômico é um pressuposto do
socialismo, ou o socialismo é um pressuposto do que até agora
temos chamado de desenvolvimento econômico? Que objetivos
pode e deve ter realmente a “economia” dos regimes de transição
socialista? Que crítica socialista do desenvolvimento econômico
é necessária neste século 21? Outro campo de perguntas: Através
do aperfeiçoamento da democracia marcha-se em direção ao so-
cialismo, ou através do crescimento do socialismo marcha-se ao
aprofundamento da democracia? Como passar da ditadura revo-
lucionária, que abre caminhos para a libertação humana, para
30 Fernando Martínez Heredia

formas cada vez mais democráticas que, com seus novos conteú-
dos e procedimentos, assegurem a preservação, a continuidade e
o aprofundamento daqueles caminhos? Como conseguir e asse-
gurar que a transição socialista inclua sucessivas revoluções na
revolução?
O balanço crítico das experiências socialistas que existiram e
existem é um exercício indispensável em toda atividade de for-
mação sobre o socialismo. Nunca o esqueço, mas não me toca
fazê-lo em minha intervenção. Limito-me então a reiterar – de
passagem – que os principais inimigos internos das experiências
fracassadas de transição socialista foram a incapacidade de for-
mar gradualmente campos culturais próprios, diferentes e opos-
tos à cultura do capitalismo, e a recaída progressiva dessas
experiências nos modos capitalistas de reprodução da vida social
e da dominação. E, do mesmo modo, reiterar que, apesar de
tudo, as lutas anticapitalistas e de libertação do século 20, e a
acumulação cultural que essas lutas produziram, são os fatos mais
transcendentes do século que terminou. Enquanto o capitalis-
mo, cada vez mais centralizado e excludente, produziu mons-
tros, sufocou ideais em um mar de sangue e de lama e perdeu sua
capacidade de promessa, tão atrativa. Por isso é que hoje o capi-
talismo esforça-se para consumar o escamoteio de cada ideal e de
cada transcendência e de reduzir os tempos apenas ao presente,
sem passado nem futuro, para nos impedir de recuperar a me-
mória e formular novos projetos, essas duas armas nossas, tão
poderosas.

A experiência cubana
Os estudos e os debates sobre a experiência da revolução so-
cialista de libertação nacional cubana podem ser muito valiosos
para os objetivos de formação que se tem aqui. Cuba é um pe-
Desafios da luta pelo socialismo 31

queno país latino-americano com uma história muito rica. Pas-


sou pela colonização, por integrações sucessivas ao capitalismo
mundial, por lutas tremendas por sua libertação, o que criou o
Estado nacional e uma consciência política nacionalista muito
forte e de caráter popular, uma precoce e completa subordinação
neocolonial aos Estados Unidos, grandes e muito ativos movi-
mentos operários e sociais, difusão de idéias de justiça social e
socialistas, uma grande insurreição popular e uma história de
mais de 40 anos de poder revolucionário de transição socialista,
que tem tido relações com praticamente com todos os movi-
mentos e eventos significativos dessas últimas décadas. Serei bas-
tante seletivo em minha exposição, por razão de tempo,
chamando mais a atenção sobre traços principais do que sobre
fatos e dados.
Na origem, houve um processo muito intenso desde a insur-
reição nacional até a liquidação de toda ordem interna e de sujei-
ção neocolonial vigentes, mediante um novo poder popular e
mobilizações praticamente permanentes de massas cada vez maio-
res, que mudavam as relações e as instituições sociais, ao mesmo
tempo que mudavam a si mesmas. O tempo se condensou e as
idéias, a confiança e os sentimentos a respeito da vida cívica e de
grande parte da vida cotidiana foram transformadas; o povo se
apoderou de seu próprio país, aprendeu a viver nele de outra
maneira e adminsitrar seu funcionamento. Para sobreviver, se-
guir em frente e continuar produzindo mudanças foi necessário
um novo poder muito forte, que partiu de princípios diferentes,
atuou com grande decisão e criatividade, levantou um novo sis-
tema de instituições e relações sociais e políticas, e recebeu uma
credibilidade ilimitada. Os limites do possível retrocederam – e
algumas vezes se romperam – os que dominavam foram expro-
priados e a propriedade privada foi dessacralizada; marcharam
32 Fernando Martínez Heredia

juntos longamente o espírito libertário e o poder revolucionário;


todas as oposições, ataques, resistências às mudanças e as míni-
mas insuficiências foram vencidos, em jornadas e anos maravi-
lhosos e traumáticos. É difícil exagerar o alcance que teve a grande
revolução, e é impossível entender a Cuba atual sem levar em
conta todo esse processo.
Não me deterei nas décadas em que o país multiplicou suas
forças, agora de maneira sistemática, e em que a transição socia-
lista encontrou os limites de suas possibilidades. Os esforços su-
premos, os trabalhos diários, os acertos e as conquistas, os erros,
a sistemática agressão imperialista, os obstáculos, as vinganças
da geopolítica, o internacionalismo, os desvios de rumo e as de-
formações filhas do próprio processo, as más influências, a mag-
nífica resistência antiimperialista sem concessões – e outros temas
– tornariam interminável a mais sucinta análise e debate de uma
experiência latino-americana que, no entanto, é preciso conhe-
cer. Faço somente breves comentários sobre a Cuba atual*.
A existência de Cuba socialista é escandalosa, porque nega uma
exigência básica da ideologia dominante no mundo atual: que é
necessário resignar-se ao domínio do capitalismo sobre a existên-
cia cotidiana, a organização social e a vida dos países em todo o
mundo. O país sofreu, pela segunda vez, um corte brusco e súbito
de suas relações econômicas principais, apenas 30 anos depois que
os Estados Unidos provocaram o primeiro – corte que causou uma
crise econômica profundíssima e uma grande deterioração da qua-
lidade da vida – e outra vez conseguiu sobreviver. Cuba não se

*
Os parágrafos que seguem sobre Cuba foram tirados, com pequenas reduções, do capí-
tulo IV do ensaio de minha autoria “A alternativa cubana”, publicado três semanas após
a realização deste II Fórum Social Mundial, in “HEREDIA, F. Martinez. El corrimiento
hacia el rojo. Editorial Letras Cubanas, La Habana.”
Desafios da luta pelo socialismo 33

somou à sucessão das “quedas do socialismo”, apesar dos agravan-


tes causados pelo fim de uma ampla e longa bipolaridade, e de um
formidável desprestígio mundial do socialismo. Empregou esfor-
ços gigantescos e sistemáticos ao longo dos anos 90 para que sua
sobrevivência se transformasse na viabilidade de seu regime; hoje,
todos reconhecem que o objetivo foi alcançado. A Cuba atual é
um complexo composto por sua acumulação social revolucioná-
ria, pelos elementos da crise dos anos 90 e por suas transformações
e permanências em curso. A continuidade de seu tipo socialista de
organização social é o dominante em suas expressões políticas e no
balanço que pode ser feito de sua sociedade.
Cuba demonstrou ser uma alternativa viável ao não aplicar,
em suas crises, as políticas econômicas exigidas no mundo atual,
e foi em frente sem prejudicar a vida das maiorias, ao contrário
do que se tornou usual. Seu Estado continuou sendo muito forte
e intervencionista, em alto grau, na economia, ao contrário do
que se exige. Desde 1995 até hoje, sua economia vem se recupe-
rando em ritmo gradual, mas constante, e ganha em eficiência
apesar das enormes mudanças que precisou implementar.* Uma

*
A evolução do Produto Interno Bruto real (para 1993 = 100) foi estimada pelo Instituto
Nacional de Estatística de Cuba em: 1995 = 103,2; 1996 = 111,2; 1998 = 115,6; 1999 =
122,8; 2000 = 130,2 (La Habana, 2000). A previsão foi superada pelo crescimento real
de 2000 em 5,6%; a produtividade do trabalho cresceu 4,6% (Informes de Osvaldo
Martinez, Presidente da Comissão de Assuntos Econômicos, e de José Luís Rodrígues,
Ministro da Economia e Planejamento, à Assembléia Nacional do Poder Popular. Granma.
La Habana. 22-12-2000, p. 4, e 23-12-2000, p. 4). Contudo, Rodríguez esclarece que,
com isso, foi possível chegar a apenas 85% do PIB de 1989, ainda que com “uma econo-
mia mais eficiente, assegurando um desenvolvimento qualitativamente superior”. Em
“Desconexão, reinserção e socialismo em Cuba” (1992), questiona o valor das compara-
ções diretas dos dados econômicos de Cuba 1974-1991 com os dados de anos anteriores
e seguintes (in Em el horno de los 90, Edit. Barbarroja, Buenos Aires, 1998, p. 85). Os
investimentos internos em 2000 (3 100 milhões de dólares) (sic) foram mais do que o
dobro dos investimentos em 1995 e 16% superiores aos de 1999. Efetivamente, os inves-
timentos cresceram 5.8%.
34 Fernando Martínez Heredia

primeira razão básica desse êxito é que Cuba utiliza com eficá-
cia suas próprias forças. Sua população tem níveis gerais e capa-
cidades úteis que, em muitos aspectos, são realmente notáveis
e estão bem consolidados; a economia possui apreciáveis níveis
de reprodução, controle, diversificação e outros traços positi-
vos; a infra-estrutura tem desenvolvimento; o sistema de servi-
ços sociais está entre os mais avançados do mundo, e tem
resistido bem à deterioração produzida pela crise; a paz social e
política favorecem em muito a atividade econômica; o Estado
e as estruturas de poder em geral se mostram capazes na reali-
zação de suas tarefas.
Torna-se extraordinária a combinação de capacidade na ati-
vidade econômica, flexibilidade e exercício de controles severos,
que pode se observar mencionando apenas alguns assuntos da
última década. O turismo, que quase não existia, contribuiu em
1998 com 50% do total da receita nas exportações de bens e
serviços e já é um setor consolidado e dinâmico. A economia
açucareira decresceu a partir de 1993, mas não entrou em colap-
so, nem pôs fim a sua enorme massa de trabalhadores; recupe-
rou-se até quatro milhões de TM em 2000, é cada vez mais
eficiente e busca sua diversificação. O níquel multiplicou sua
importância e registra uma sólida expansão produtiva (72 000
TM em 2000) e comercial (vende para mais de trinta países),
alta eficiência, proveitosa associação com o capital estrangeiro e
renovação tecnológica. O setor energético é um caso exemplar: o
holding estatal Cubapetróleo aproveitou o enorme conhecimen-
to acumulado e, em plena crise, continuou a expansão produtiva
e estabeleceu empresas mistas com companhias de vários países;
passou de 0,8 milhões de TM em 1991 para 3,3 em 2000, e
agora aproveita o gás associado ao petróleo. Cerca de 70% da
eletricidade é produzida com petróleo nacional; em 2001 há pre-
Desafios da luta pelo socialismo 35

visão para alcançar 90%, e uma produção de quatro milhões de


TM de petróleo e gás.
Junto a uma reorientação radical do comércio exterior, fo-
ram realizadas inumeráveis gestões e negócios no setor externo.
Internamente, o país, com o maior percentual de terra estatal do
mundo, entregou, em usufruto gratuito, a maior parte das gran-
jas estatais a seus coletivos de trabalhadores, com seus equipa-
mentos e rebanhos (1993); uma distribuição singular que
transformou em cooperativistas um grande número de trabalha-
dores. Estabeleceu-se a circulação legal do dólar junto ao peso
cubano (1993), medida ousada para um regime rigorosamente
antiimperialista, que franquiou uma grande captação de divisas
pelas remessas feitas por emigrantes a seus familiares em Cuba e
uma rede comercial estatal; o peso está cotado a 27 por dólar.
Um país com 94,4% de emprego estatal, em 1988 abriu espaço
legal ao trabalho por conta própria, que mantém certa amplitu-
de, embora dentro de normas restritivas.
Apesar de todos os elementos positivos mencionados, Cuba
não pôde evitar de se deparar com uma situação muito difícil,
a partir dos limites de seu desenvolvimento e do duplo efeito
da aguda crise por que passou nos anos 90 e do agravamento
da situação da maioria dos países em relação ao altíssimo grau
de centralização do sistema capitalista mundial e da natureza
de sua forma dominante transnacional e parasitária atual. Cuba
é muito vulnerável em suas relações econômicas internacio-
nais, pelos intercâmbios desiguais e pelo escasso controle das
condições em que se realizam, o que eterniza seu crônico
desequilíbrio comercial, pela vulnerabilidade frente ao movi-
mento das finanças e seu alto endividamento externo. As fon-
tes de financiamento externo, ou estão vedadas, ou se tornam
muito difíceis e onerosas. Se o País não naufraga nessa situa-
36 Fernando Martínez Heredia

ção tão adversa é precisamente pelas forças que retira de seu


regime social.
Por outro lado, o crescimento das desigualdades sociais tem
sido uma conseqüência da situação e das medidas adotadas, o
que é grave, pois afeta a essência igualitária quanto à
redistribuição de riqueza e oportunidades do sistema de transi-
ção socialista cubano. A desigualdade principal é pela renda e
pelo acesso ao consumo. É mais desgastante porque está associa-
da à dupla moeda; os dólares não são obtidos pela realização de
trabalhos mais complexos ou por atitudes individuais credoras
de maior reconhecimento pela sociedade. Obtém-se, sobretu-
do, de atividades relacionadas com a economia mista, com o
turismo, com algo aleatório como receber remessas, e com uma
ampla gama de atos que vão, desde o oferecimento privado de
serviços e produtos, até o enriquecimento de intermediários e
negócios ilegais, nas duas moedas. Os preços informais em
moeda cubana são demasiadamente altos para a renda pessoal e
familiar da maioria. A corrupção – esse demônio da falsa moral
pública atual do capitalismo – devia ser analisada em suas fun-
ções sociais em cada caso concreto. Na Cuba atual tem um
papel silencioso.
Nessa nova situação se integram grupos privilegiados e, em
seu entorno, vão se formando constelações sociais. O certo é que
ainda são de procedência realmente variada e carecem de toda
legitimidade que acompanhe sua capacidade aquisitiva, mas a
cultura política nacional é suficientemente sólida para que se
deduza que esses grupos poderiam chegar a ser mais privilegia-
dos, integrar-se mais e desenvolver auto-identificações e proje-
tos. Um efeito extremamente prejudicial desta realidade social é
o sério desgaste das motivações e dos valores socialistas, gerando
um sutil desarmamento ideológico cotidiano, alheio à violência
Desafios da luta pelo socialismo 37

e às decisões dos enfrentamentos políticos, mas, a longo prazo,


mais perigosos que estes para a vigência do socialismo.
A cultura socialista é vigorosamente sustentada pela política
social do regime. A realocação de recursos através do orçamento
central do Estado é um mecanismo que redistribui a renda em
favor dos serviços, setores estatais e de interesse da sociedade e
mantém a confiança no objetivo das medidas econômicas. Ofe-
reço alguns dados de ano 2000. O desemprego tem sido evitado
e combatido; de 8,1% da PEA em 1995 caiu até 5,5%. A renda
média do trabalhador foi de 359 pesos, alta vinculada ao aumen-
to do salário médio (7,3%) e a estímulos variados que entre um
terço e mais da metade do total dos assalariados recebem: paga-
mento por produção, em divisas, alimentos, roupa e sapatos,
outros artigos. O Estado subsidiou produtos regulamentados ao
consumidor em 755 milhões de pesos e está aumentado, de al-
guma forma, sua oferta de alimentos nos mercados “liberados”,
a preços mais baixos que o setor privado. A alimentação total per
capita foi estimada em 2.585 quilocalorias e 68 gramas de proteí-
nas. Houve aumento em diversos serviços e se enfrenta a grande
deterioração sofrida pela infra-estrutura. Mesmo assim, os infor-
mes oficiais qualificam como discreto o avanço nas condições de
vida da população. A seguridade social atendeu a 1,4 milhão de
pessoas (12% da população); são atendidos de maneira diferen-
ciada aqueles com baixos rendimentos e outros menos favoreci-
dos, através da assistência social. O montante e a proporção a
respeito do total nos gastos públicos correspondentes à saúde,
educação e seguridade social vêm crescendo durante toda a década
anterior até hoje.*
*
A situação social de Cuba continua sendo excepcional na América Latina, segundo
dados de organismos internacionais, como pode ser visto em dois informes recentes: o do
Laboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade da Educação aos Ministros da
38 Fernando Martínez Heredia

A cultura política dos cubanos é decisiva. Aponto apenas dois


traços seus, embora muito relevantes. O primeiro, a atitude frente
aos objetivos do trabalho e da relação indireta entre seus resultados
e as retribuições, que caracterizam a transição socialista – tão dife-
rentes ao que é normal no capitalismo – continua se manifestando
na abnegação com que enormes massas de trabalhadores e técni-
cos deram e dão continuidade à produção e aos serviços, em novas
condições nas quais a finalidade do trabalho e as retribuições socia-
listas são debilitadas e obscurecidas, reforçando-se a retribuição
direta e o egoísmo. O segundo, a peculiar relação com o consumo
criada pela revolução, que faz parte da cultura cubana contempo-
rânea, tem resistido à tremenda ofensiva de uma década de mu-
danças e influências que, em grande medida, favorecem
modificações das necessidades e dos desejos, assim como também
a adoção de representações e relações capitalistas. Apesar da deterio-
ração registrada, aquela relação com o consumo continua sendo
um valor socialista, e um fator decisivo para a estratégia e para o
desempenho econômicos do País, desde o ângulo do apoio ou da
rejeição da população, quando, em um caso como o cubano, a
disposição favorável da maioria é indispensável.
A acumulação revolucionário prévia foi decisiva nos anos de
crise aguda e conserva um papel principal apesar das modifica-
ções da situação. O fenômeno político de massa, fundamental
dos anos 90, foi o predomínio da coesão, da disciplina e da ativi-
dade social em apoio da maneira de viver que fora construída
nas três décadas anteriores, o que se expressa, não somente nas

Educação dos países da América Latina na VII Reunião Intergovernamental do


PROMEDLAC; Cuba ocupa o 1o lugar na região, com índices duas vezes superiores à
média regional (Cochabamba, março de 2001); outro, de risco de saúde sexual e
reprodutiva: Cuba tem a menor taxa da região (Population Action International: Investi-
gação em 133 países).
Desafios da luta pelo socialismo 39

instituições e na legislação, mas também na consciência social,


nos costumes, nas representações que se estendem aos diversos
espaços públicos e privados. Esse comportamento social majori-
tário tem sido a chave da política do período. Entendo que sua
motivação fundamental em escala mais geral da sociedade se apóia
em três pontos: a) a unidade entre os cubanos é vital para enfren-
tar todas as questões cruciais que vêm se apresentando desde fi-
nais do anos 80; b) o regime político vigente dedica-se a manter
ativamente a maneira de viver que a revolução e a transição socia-
lista construíram, defende eficazmente a soberania nacional e
controla a economia nacional; c) um retorno ao capitalismo em
Cuba significaria para a maioria dos cubanos, um desastre, em
perda de direitos sociais e de qualidade de vida, em exploração
do trabalho, pobreza e humilhações e em soberania popular.
A atuação social consciente tem dado ao sistema um elevado
grau de autonomia política. O poder político tem utilizado essa
autonomia para conduzir o País pelas situações de todos esses
anos, mantendo sob seu estrito controle variáveis fundamentais,
que são o setor econômico estatal majoritário, que inclui os ban-
cos, as comunicações e o comércio exterior – um bloco ainda
maior, se somarmos as cooperativas rurais criadas em 1993 – e as
economias mista e privada, sujeitas a um controle muito amplo;
uma enorme capacidade negociadora exterior, a exemplar políti-
ca social; o sistema político, os meios de comunicação, a educa-
ção e outros campos da produção espiritual. O desgaste do
discurso político já era percebível desde antes de 1989, e os anos
mais críticos sem dúvida deterioraram em certa medida a
credibilidade e a aceitação do regime. Contudo, este nunca se
deslegitimou, e a firmeza e a eficiência de sua atuação lhe permi-
tiram recuperar terreno. A administração pública e a manuten-
ção da ordem se baseiam no consenso e não na repressão. O
40 Fernando Martínez Heredia

mesmo poder político que garante todas as mudanças e as medi-


das tão diversas da transição atual é claramente percebido como
defensor do socialismo e da soberania. Hoje, é o eixo da situação
cubana e, por sua vez, depositário das esperanças da maioria.
A formação social cubana atual é de transição em dois senti-
dos: a) é de transição socialista, porque reproduz as condições
econômicas e políticas que dão continuidade a este regime e esta
é a base da forma de governo; b) está em um processo de reinserção
limitada no sistema de economia mundial controlado pelo capi-
talismo, de tal modo que até agora administra todas as suas variá-
veis favoráveis para manter o controle, tomar decisões e alocar
recursos; ou seja, para continuar sendo de transição socialista em
vez de realizar uma integração progressiva ao capitalismo mun-
dial. Seus principais trunfos são seu tipo de relação entre poder
econômico e poder político, e o consenso majoritário com que
conta. Uma e outra – embora com diferenças entre si – baseiam
sua legitimidade na revolução realizada e no regime de transição
socialista, e não na reinserção em curso. Isso proporciona enor-
me firmeza ao regime vigente. Mas, para um futuro não deter-
minado, constitui uma séria interrogação se se poderá ou não
evitar: a) a contaminação de atores ou beneficiários das relações
econômicas não socialistas e suas constelações sociais dentro do
desejo de participar na forma capitalista de vida que vêem ou
imaginam, e que essa influência se estenda a outras camadas da
sociedade; b) que a transição socialista vá perdendo lentamente
seu caráter dominante frente à atração das relações de tipo capi-
talista, tanto econômicas quanto todo seu complexo cultural, e o
regime seja permeado e ganho para a integração ao capitalismo
mundial, com suas especificidades nacionais.
Se este é o problema principal, então as tensões e batalhas
fundamentais não se dão, hoje, nos terrenos da economia ou da
Desafios da luta pelo socialismo 41

política, mas, sim, no terreno ideológico, ou, mais exatamente,


em um terreno cultural em que as ideologias estão incluídas. É ób-
vio que, nesta luta, as influências externas cumprem papéis mui-
to maiores do lado capitalista que do lado socialista, o qual tem
conseqüências muito diversas. De maneira muito particular, Cuba
também participa na atual guerra cultural mundial.
A reabsorção de Cuba pelo capitalismo exigiria atos de von-
tade para os quais não existem hoje legitimidade alguma, nem
conjuntura favorável nem forças sociais dispostas e suficientes.
Este fato, e o alto grau de controle efetivo que possui, dão ao
regime cubano todo um período a seu favor. É preciso aproveitá-
lo, agindo acertadamente. Volta a ser decisiva a atuação qualifi-
cada para fazer que uma tendência e não a outra seja triunfante.
Esta atuação não pode se limitar a repetir o que, em outros tem-
pos, foi eficaz, porque o meio e as variáveis que incidem atual-
mente são diferentes: tem de ser uma atuação criativa e original. A
transição socialista está obrigada a se basear na intencionalidade
da construção social e no uso cada vez mais e melhor planejado
dos meios e das idéias com que conta; e basear-se na participação
democrática cada vez maior da população, porque ela é a força
fundamental do regime e sua motivação e sua eficiência depen-
dem dos elementos envolvidos numa construção social tão radi-
calmente nova e diferente. O cubano tem percorrido todo o
caminho “moderno” da individualização e tem aprendido a criar
e a ampliar vínculos de solidariedade para enfrentar e superar a
modernidade mercantil capitalista. Se a extraordinária cultura
política dos cubanos se mobiliza e exerce seu discernimento e
sua ação frente aos problemas e perigos reais de hoje, se suas
idéias, opiniões, iniciativas e esforços forem utilizados, essa cul-
tura será decisiva para o aperfeiçoamento das pessoas e das insti-
tuições no sentido socialista.
42 Fernando Martínez Heredia

O apolitismo e o pensamento e os sentimentos conservado-


res têm registrado avanços em Cuba nesses últimos anos. Mas
não têm se generalizado; estamos em meio a uma intensa bata-
lha de valores. É necessário derrotar as crenças sobre as relações
e representações capitalistas como algo dado, de origem exter-
na, que é inevitável aceitar. E impedir que se converta em algo
“natural” para os cubanos a existência de desigualdades sociais
e hierarquias devido ao poder do dinheiro. Está se desfazendo
também a questão crucial do vínculo entre o cubano e o socia-
lismo, que estiveram unidos na identidade nacional durante
décadas. Identidade e nacionalismo integraram, em seu núcleo,
a justiça social, o que os enriqueceu decisivamente e significou
uma contribuição muito valiosa de Cuba ao pensamento e às
lutas pela libertação no chamado Terceiro Mundo. As reela-
borações do problema devem constituir um aspecto central da
cultura cubana atual.
Cuba descobre o vigor e a complexidade de suas diversidades
sociais – antigas ou emergentes – com sentimentos diferencia-
dos; é compreensível porque a revolução destruiu os sentidos da
sujeição da sociedade ao poder da república burguesa neocolonial,
mudou a vida social e construiu seu próprio sistema de relações
e instituições sociedade-poder e sociedade-Estado. A crise dos
anos 90 e as desigualdades sociais recentes têm muito a ver com
tudo isto, mas seria absurdo reduzir a questão a elas, ou acreditar
que uma diversidade social ativa expressa a debilidade do Esta-
do. Este erro participa da desastrosa confusão entre o Estado e o
socialismo, que tanto dano causou às experiências do século 20.
A diversidade social em movimento é uma grande riqueza do
país e um potencial de renovação de todos os aspectos da vida
social, que pode fortalecer muito o socialismo, se seus ideais,
atividades e organizações sentirem que o socialismo é seu condu-
Desafios da luta pelo socialismo 43

tor, e se os órgãos e a cultura socialista forem capazes de hege-


monizá-la.
Cuba socialista é uma alternativa latino-americana ao capita-
lismo, alternativa que existe e que mostra, com suas conquistas e
suas realidades, que é possível viver de outra maneira, mais hu-
mana, e que os países podem ser outra coisa além de lugares de
contradições inaceitáveis, frustrações e iniqüidades. Cuba man-
tém o sistema social e a estratégia que lhe permitem conservar
sua maneira de viver, sua soberania nacional e sua autonomia no
mundo atual. Os obstáculos e tarefas que tem diante de si não
podem ser enfrentados por um país capitalista dependente, seja
pequeno ou grande . Porém não lhe bastará persistir. Frente às
opções e aos problemas de hoje e os que virão, acertará se avan-
çar no caminho do socialismo, em vez de retroceder. Entre esses
avanços estarão a multiplicação dos participantes sistemáticos
no controle e nas decisões sobre a economia, a política e a repro-
dução das idéias e na elaboração de um projeto socialista mais
avançado, integrador e complexo, mais capaz e participativo do
que os que têm existido. Estará na continuação da estratégia eco-
nômica a base da premissa de que seu primeiro objetivo é o bem-
estar da população, do aproveitamento racional dos recursos e
de conseguir aumentos de eficiência, mas também de autono-
mia em sua inserção internacional. Estará colocar em primeiro
plano a batalha pelo predomínio dos vínculos de solidariedade
sobre o egoísmo e o individualismo, e fazer que as liberdades e o
interesse social se complementem.

Um comentário final
Desculpem-me pela extensão da exposição de alguns aspec-
tos da experiência cubana. Pareceu-me conveniente fazê-lo por
duas razões. Cuba é um caso exemplar para ilustrar o desenvolvi-
44 Fernando Martínez Heredia

mento do segundo tipo de socialismo, influenciado e em muito


íntimas relações e contradições com o primeiro; e a vigência de
seu regime e da luta por seu projeto nos permitem, por sua vez,
confiar que nossos sonhos são viáveis e dispor de uma realidade
para estudar os traços, conflitos e possibilidades de nossos empe-
nhos socialistas. Além disso, por ser cubano, parece-me um de-
ver internacionalista dar informações honestas sobre Cuba
socialista, um laboratório social que também é de todos vocês.
Não se pode ser socialista sem ser internacionalista. Na atual
situação, seria sumamente prejudicial tentar obrigar aqueles que
lutam conseqüentemente pelo socialismo a escolher entre man-
ter sua autonomia e dos interesses e ideais de sua luta, ou subme-
ter-se a relações que exigem o comprometimento com outros
objetivos que não sejam os da libertação humana. Temos de ela-
borar, antes de mais nada, estratégias para coordenações interna-
cionais flexíveis que, por sua vez, constituam exemplos e avanços
daquilo que buscamos. Temos toda razão quando dizemos que o
socialismo não pode esperar que se consolide um poder para es-
tabelecer novas regras nas relações humanas e na convivência
democrática. Os cubanos – como todos aqueles que têm pratica-
do realmente o internacionalismo – sabemos que quem mais
contribui em uma relação internacionalista é quem acaba mais
beneficiado por ela, porque se desenvolve humanamente, por-
que amplia mais sua capacidade de ser superior à reprodução
egoísta das relações e do mundo existente, e ajuda a criar um
campo prático de relações novas, contra o sentido comum, que é
sempre burguês, e contra a reprodução do capitalismo dentro de
cada um de nós, que é a mais poderosa e sutil forma da existência
do capitalismo.
Outro mundo é possível. A luta pelo socialismo é o caminho
imprescindível para conquistar este outro mundo.
Desafios da luta pelo socialismo 45

III - AS RELAÇÕES DE PROPRIEDADE


E AS RELAÇÕES SOCIAIS DE
PRODUÇÃO NA LUTA PELO
SOCIALISMO
François Chesnais

Companheiros e companheiras, é com muita emoção que


faço uso da palavra neste grande auditório. É com muita emoção
que venho aqui como convidado da Via Campesina e do MST,
no contexto de duríssimos combates pela terra, cujos objetivos
entendo e com os quais compartilho totalmente. Antes de entrar
no tema, vou dedicar minha intervenção aos estudantes da Plaza
de Tiananmen. Eles foram e são nossos irmãos e irmãs e não
podemos conversar sobre o socialismo – e temos a participação
nesta mesa de um representante da China – sem recordar que
não pode haver socialismo sem respeito absoluto às liberdades de
expressão política e de organização.
Para nós, reunidos hoje nesta sala, neste ciclo de seminários,
nos foi dada a tarefa de restabelecer o projeto do socialismo ou
comunismo (para mim, ambos são sinônimos) em sua dimensão
mais fundamental: como projeto de emancipação humana cole-
tiva e individual, tanto social quanto de cada homem e mulher
enquanto indivíduo, mas temos de fazê-lo com base nos proces-
sos econômicos e políticos e das lutas sociais que estão se dando
e se produzindo hoje em dia.
46 François Chesnais

Dar forma teórica e respostas políticas a processos econômi-


cos e políticos concretos
Companheiros, companheiras, no Manifesto Comunista,
Marx e Engels afirmam que as posições dos comunistas não são
outra coisa – e eu diria que não podem e não devem ser outra
coisa – que a expressão geral das condições reais e efetivas da luta
de classes existente em um momento histórico dado, de um
movimento que se descortina diante de nossos olhos. É neste
marco que eu vou colocar algumas questões.
Hoje, nossa tarefa é propor este projeto de emancipação
humana coletiva e individual dentro do movimento multiforme
chamado “antiglobalização”, que busca os caminhos de sua coor-
denação no combate contra o capitalismo globalizado. Este
movimento ainda tem de alcançar plena consciência de si mes-
mo e, neste sentido, nossa tarefa é ajudá-lo a encontrar uma
saída verdadeira, um caminho para a superação do capitalismo
e para a destruição de seus aparelhos de dominação. Os ho-
mens e as mulheres dominados e explorados buscam novamente
um meio de tomar, em suas mãos, o combate para sua emanci-
pação. Ninguém pode fazer isso por eles. O princípio funda-
mental estabelecido por Marx e Engels no Manifesto afirma
que a emancipação da classe trabalhadora só pode ser obra da
própria classe trabalhadora. Este princípio vale igualmente para
este novo movimento social e político contra a globalização
capitalista e imperialista, este novo movimento em direção de
um internacionalismo atuante.
A única coisa que nós, comunistas, podemos fazer é estabele-
cer, em cada etapa da luta, tanto imediata quanto a longo prazo,
as prioridades da ação e as opções para as formas de luta.
Quais devem ser, no âmbito internacional atual e dentro des-
ta perspectiva internacionalista – sobre a qual o companheiro
Desafios da luta pelo socialismo 47

cubano insistiu tão justamente – as prioridades de nosso movi-


mento?
Em primeiro lugar, minha opinião é que, hoje em dia, a prio-
ridade entre as prioridades é a de defender o processo revolucio-
nário incipiente na Argentina, contra as ameaças externas já
declaradas e as ameaças internas que se darão mais adiante.
Em segundo lugar, e relacionado com o anterior, temos de
estar prontos para atuar contra qualquer intervenção na Colôm-
bia, Venezuela e Cuba. Temos de levar a sério as ameaças de
George Bush, entender que, para este senhor e seu governo, nós
somos terroristas, na medida em que questionamos a ordem ca-
pitalista e imperialista e lutamos contra isso. Portanto, devemos
compreender que a terceira grande prioridade é nos dirigir à ju-
ventude, à classe trabalhadora e aos organismos antiglobalização
nos Estados Unidos para trazê-los para o nosso lado. Não pode-
mos deixar de combater esperando que as forças que se reuniram
em Seattle voltem a se reunir outra vez para lutar contra os pla-
nos de George Bush na América Latina e no Caribe. No final
dos anos 50 e 60, a revolução cubana soube buscar um forte
apoio na juventude e na intelectualidade norte-americanas. O
povo do Vietnam também soube fazê-lo. Isto deve se repetir, e se
torna vital, já que o militarismo imperialista só pode ser detido
desta maneira.

Socialismo e liberdades de pensamento, de expressão


política e de organização
Tenho utilizado a expressão “socialismo ou comunismo” como
projeto de emancipação humana coletiva e individual. Este foi o
projeto de Marx, não só do “jovem Marx”, mas também do Marx
da Comuna de Paris, do Marx dos comentários dos programas
do Partido Social Democrata Alemão, de Marx até sua morte.
48 François Chesnais

Tenho utilizado a expressão de emancipação humana coletiva e


individual, mas não há neutralidade na escolha desta definição;
pelo contrário, ela traz consigo uma série de conseqüências fun-
damentais, tanto para o amanhã quanto para hoje.
Para o amanhã, significa que, uma vez superado o momento
inicial do isolamento político e da destruição organizativa e físi-
ca dos aparelhos e estruturas de dominação capitalista e imperi-
alista, bem como dos que defendem essa dominação, não pode
haver socialismo sem o respeito – sem exceção – dos direitos de
expressão política e cultural, de organização de reunião nos pla-
nos econômico, político e cultural.
Todos os passos que foram dados para restringir estes direitos –
primeiro, fora do partido bolchevique contra outros partidos; de-
pois, rapidamente, dentro do próprio partido – prepararam as con-
dições para a ditadura stalinista e para o domínio econômico,
político e social de uma burocracia, bem como para a reconstru-
ção de uma sociedade de dominação social. No caso da China,
minha opinião é que, como em todos os países onde a revolução
foi conduzida para se estruturar de acordo com o modelo soviético
stalinista, estes direitos foram negados desde o início e a Praça de
Tiananmen é a expressão mais dura de tudo isto. Hoje, conhece-
mos as conseqüências, sabemos o resultado final: a restauração
capitalista, e este caminho não pode voltar a ser o nosso.
Esta conclusão não é uma nova abstração, mas tem conseqüên-
cias práticas para o momento atual. Vamos encontra-las no pla-
no do reconhecimento dos movimentos sociais e das formas
alternativas de luta, que têm traços que anunciam ou prefiguram
as relações constitutivas do socialismo. Tem conseqüências prá-
ticas também nas relações que temos de estabelecer entre mili-
tantes, quanto como entre os movimentos sociais, as organizações
políticas e os sindicatos. A liberdade de expressão e o respeito às
Desafios da luta pelo socialismo 49

posições dos demais é algo que temos de construir hoje mesmo


e, assim como o fazemos nesta sala, temos de fazê-lo em toda a
ação política.

O lugar teórico estratégico do conceito de relações de


propriedade
Companheiros, companheiras, em que consiste o projeto
emancipador? Ou, mais precisamente, baseado em que tipo de
relações sociais este projeto pode se sustentar? A resposta que
proponho é dizer que o projeto emancipador tem de se sustentar
em relações de propriedade e de produção que permitam aos
trabalhadores da cidade e do campo duas questões fundamen-
tais: em primeiro lugar, eles mesmos determinarem e decidirem,
através de mecanismos coletivos de decisão política, a destinação
social e o uso dos meios de produção, comunicação e intercâm-
bio acumulados socialmente ou legados pela natureza e pelo tra-
balho de gerações anteriores. Em segundo lugar, no marco das
decisões tomadas neste nível, organizar, de forma autônoma, o
trabalho nos níveis descentralizados onde se desenvolvem as ca-
pacidades de produção.
O conceito de relações de propriedade, a partir de um enfoque
teórico e político marxista, não se refere ao mero aspecto superficial
– o que é meu, o que é teu, o que é deles – nem sequer apenas ao
que determina de forma imediata o nível de vida, mas se refere às
relações que determinam a destinação social, o uso e também o
não uso da terra – que vocês conhecem melhor do que eu – dos
recursos naturais, dos meios de produção e comunicação e da dis-
tribuição dos produtos coletivos do trabalho social.
Atualmente, uma das maiores contradições – cujas conseqüên-
cias estão em alta na tomada de consciência do movimento
“antiglobalização”, mas que á preciso ainda compreender me-
50 François Chesnais

lhor – é a contradição entre o autogoverno da socialização e


internacionalização dos meios de produção e comunicação e sua
apropriação privada de forma concentrada em mãos de uns pou-
cos.
Vivemos em uma sociedade em que a produção está alta-
mente socializada. A grande maioria dos produtos industriais é o
resultado de uma corporação produtiva complexa e intensa; in-
clusive uma grande parte da produção agrícola também se apóia
nos resultados dessa corporação do setor industrial. No entanto,
a sociedade dos produtores manuais e intelectuais hoje está sepa-
rada de qualquer influência sobre a destinação de seu trabalho.
Vivemos, efetivamente, em uma sociedade em que as decisões
mais importantes tomadas a respeito da destinação social, ao uso
e ao não uso dos meios de produção e à distribuição dos resulta-
dos do trabalho socializado estão concentradas em poucas mãos,
e inclusive se encontram fora do alcance dos mecanismos políti-
cos das instituições parlamentares eleitas. Esta é a primeira di-
mensão da relação tão decisiva que os trabalhadores mantêm com
os meios de produção.
A segunda dimensão, inseparável da primeira, diz respeito à
relação de cada coletivo de trabalho, fábrica, oficina, fazenda,
com os meios de produção com os quais os trabalhadores desse
coletivo de trabalho realizam seu trabalho concreto. Hoje em
dia, esses meios de produção são propriedade privada de empre-
sas, de grupos industriais, de latifundiários e de acionistas. O
trabalho social acumulado é concebido como propriedade do
capital e, portanto, como uma força alheia aos trabalhadores. A
relação que os trabalhadores mantêm com os meios de produção
consiste em serem explorados como assalariados do capital e é
essa relação que tem de ser rompida. Hoje em dia, a relação passa
pela intermediação do mercado de trabalho e pela determina-
Desafios da luta pelo socialismo 51

ção, a todo momento e de forma brutal, de os proprietários dos


meios de produção decidirem descentralizar a atividade produtiva
fora da fábrica, ou transferir a produção a países ou nações nos
quais a taxa de lucro possa ser mais alta para eles.

Enfrentamentos com a burguesia no terreno


da propriedade
Tanto as relações de propriedade quanto as relações concre-
tas dos trabalhadores com seus meios de produção são centrais
na obra de Marx e em muitos escritos de Engels. Sua compreen-
são foi pormenorizada por muitos comentários de Marx e temos
de voltar a esses conceitos. A importância teórica, frente a esses
conceitos, tem conseqüências políticas muito importantes.
Primeiro, para determinar a pretensão de uma sociedade pós-
revolucionária de denominar-se socialista e que essa sociedade
tenha um futuro como economia não capitalista. E entendo a
capacidade de Cuba de resistir, porque, nesse país, ao menos há
traços dessas relações diretas dos trabalhadores com seus meios
de produção, e é por isso que a sociedade cubana resiste.
Segundo, a importância teórica desses conceitos nos permite
identificar e reconhecer reivindicações, demandas e formas de
ação que desafiam a burguesia no plano das relações de proprie-
dade, ou que aproximam, mesmo que seja de forma transitória,
de uma nova forma de relação dos trabalhadores com seus meios
de produção.
É neste ponto da intervenção que devo ressaltar a importân-
cia que tem para mim estar aqui presente, como convidado da
Via Campesina e do MST, e, mais ainda, ressaltar a importância
que, no meu entender, tem a reivindicação defendida pelo MST
de negar que os proprietários tenham o direito de, através do uso
inadequado e prejudicial, tornarem as terras improdutivas. Sua
52 François Chesnais

ação é um desafio no plano das relações de propriedade da terra


e significa entender que as relações de propriedade dos meios de
produção é uma relação determinante para combater a burgue-
sia e para construir novas formas de relação social.
Venho da tradição política de Rosa Luxemburgo, de Gramsci
e de Trotsky, na qual a greve geral com ocupação de fábricas, o
tipo de greves de Torino, da França de 36 e de 68, eram greves
para lutar e estabelecer elementos de controle dos trabalhadores
sobre a produção. Estas são formas de luta que desafiam a bur-
guesia na base do seu poder.

O capitalismo neoliberal põe a sociedade em perigo


Companheiros, companheiras, entramos em uma nova fase
histórica, que exige de nossa parte a maior atenção e a maior das
lutas. Entramos em uma fase histórica marcada pelo início de
um processo de colapso de países e de suas estruturas econômi-
cas, sociais e políticas, sob o peso da especulação promovida pelo
capital financeiro internacional. Isto é algo novo. No século 20,
os momentos de colapso social radical derivaram diretamente
das guerras interimperialistas. No século 21, os momentos de
colapso social serão o resultado da atuação do capital financeiro,
das potências hegemônicas e das instituições internacionais
encabeçadas pelo FMI. Na verdade, o processo começou na dé-
cada de 1990, mas foi difícil caracterizá-lo com precisão por es-
tar ligado, tanto às condições particulares de desintegração dos
Estados multinacionais dirigidos pela burocracia stalinista, ou
por seus Estados-satélite, e às condições particulares dos Estados
multinacionais criados na África de forma totalmente artificial,
quanto ao resultado do triplo processo de colonização,
descolonização e recolonização neoliberal. O colapso da socieda-
de indonésia também poderia ser interpretado em termos de uma
Desafios da luta pelo socialismo 53

combinação entre o impacto da crise financeira e fatores de luta


nacional e religiosa particulares.
Mas, com à Argentina, estamos enfrentando um caso de ver-
dadeiro colapso das estruturas sociais, justamente em um dos
países mais desenvolvidos fora do grupo dos países centrais do
imperialismo. Este colapso é o resultado da integração total e
completa da Argentina aos mecanismos da chamada “economia
globalizada” e da adesão absoluta – sem restrições – da burguesia
parasitária local e de todos os seus partidos políticos aos patrões
do chamado “neoliberalismo”.
Quais são os objetivos do neoliberalismo? Os objetivos per-
seguidos por estas políticas têm sido a liberação, a desregula-
mentação e a privatização da economia com fins deliberados por
parte do capital financeiro, em todas as suas configurações – gru-
pos industriais e multinacionais, bancos internacionais e fundos
de investimento financeiro – que atuam para devolver a este ca-
pital toda a sua liberdade, ou seja, a totalidade das prerrogativas
que tinham antes da crise dos anos 30 e dos processos revolucio-
nários da II Guerra Mundial.
O capital deveria ser liberado, ter sua liberdade devolvida. As
regras de trabalho que prejudicam as relações entre o capital e as
empresas deveriam ser desregulamentadas. Deveria ser proposta
a compra de todas as indústrias do Estado, ou serem nacionaliza-
das. Deveria haver liberdade de ação no campo dos investimen-
tos e da saúde. Os sistemas de investimento público deveriam ser
desmontados para serem submetidos aos mercados financeiros.
Por último, deveriam ser criados novos direitos para a proprieda-
de privada, como esse novo direito à propriedade científica e às
patentes.
Este processo tem beneficiado o capital mais concentrado
em todas as suas formas e todas as configurações do capital fi-
54 François Chesnais

nanceiro, mas tem sido feito sempre da forma mais intensa em


favor e sob o domínio do setor mais “financeirizado” do capital
financeiro. Os ganhadores têm sido os portadores de títulos de
dívidas públicas e de empresas, o sistema acionista, os bancos
internacionais e as bolsas de valores mundiais, em cujo centro
estão Wall Street e NASDAQ. Na verdade, estamos vivendo, te-
mos vivido e estamos combatendo no marco do capital financei-
ro puro, no auge da renda como categoria econômica, política e
social dominante, no auge de todos os privilégios no interior do
capitalismo, de exploração sem investimento ou com investimen-
to mínimo e de extração de mais-valia. O domínio da renda é o
domínio da pilhagem. Estamos diante de um sistema que não se
dirige à reprodução ampliada do capital, mas à pura reprodução
do domínio de uma oligarquia financeira e de seus aparelhos de
poder e de dominação.
Isto fica totalmente claro nos discursos de Bush quando fala
em nome daqueles que não têm outro objetivo senão o de man-
ter e reproduzir sua dominação, qualquer que seja o custo para o
mundo inteiro.

Defender o direito de autodeterminação política e


social do povo argentino
Companheiros, companheiras, termino minha intervenção
com algumas considerações a respeito da solidariedade que de-
vemos à Argentina, diante da magnitude e da brutalidade do
colapso econômico e social do povo argentino, que gerou uma
rebelião popular importantíssima.
A sociedade argentina foi arruinada em suas estruturas por
este capitalismo que traz, no âmbito do neoliberalismo, até suas
últimas conseqüências, as tendências destrutivas que estão anali-
sadas na obra de Marx e dos grandes teóricos marxistas. Isto nós
Desafios da luta pelo socialismo 55

já sabíamos. O que não se podia prever com certeza é que, frente


ao colapso da sociedade argentina, assistíssemos a esta grande
rebelião, a esta insurreição de todo o povo contra a brutal des-
truição social sofrida pela Nação, enquanto povo explorado e
dominado. Isto, hoje, é o fato que consideramos de real impor-
tância, de uma importância extraordinária.
Quais são os aspectos mais importantes deste processo ar-
gentino? Sem dúvida alguma, para mim, o aspecto mais impor-
tante é a capacidade de autoconvocação e de auto-organização
que vem demonstrando. A esta altura do processo de reorganiza-
ção do povo para defender sua própria existência, as assembléias
de comunidades, como a assembléia interbairros do Parque Cen-
tenário, por um lado, e o movimento “piqueteiro”, por outro,
são as duas principais instituições que caracterizam a auto-orga-
nização.
Quais poderiam ser as respostas aos desafios de enfrentamento
entre o povo argentino e a oligarquia local e o imperialismo –
imperialismo do FMI, dos bancos e das multinacionais, tanto
européias quanto norte-americanas – que se depreendem da aná-
lise sobre as relações de produção e de propriedade apresentadas
nesta intervenção?
Em primeiro lugar, trata-se obviamente de defender o povo
argentino e suas organizações no momento em que decidam to-
mar uma série de medidas urgentes para deter a saída de recursos
e terminar com os mecanismos de pilhagem, da integral capta-
ção do produto do trabalho daquele país. Terminar com a pilha-
gem supõe, com certeza, o repúdio à dívida externa, que não é
do povo, mas sim da oligarquia “nacional” e dos governos suces-
sivos, começando pelos da ditadura militar. Mas pressupõe tam-
bém uma série de medidas para impedir a fuga de recursos: o
controle do câmbio, o congelamento dos lucros das empresas
56 François Chesnais

estrangeiras, a interdição da exportação de capital e a quebra do


sigilo bancário. Isto, por sua vez, supõe, não só medidas executi-
vas, mas também a atuação direta dos trabalhadores dos bancos e
do sistema financeiro. Se os trabalhadores desse setor atuarem
nesse sentido, temos de estar com eles para lhes dar nosso apoio.
Já sabemos, pelas notícias trazidas por companheiros argen-
tinos, que as assembléias nos bairros estão tomando iniciativas
sempre mais audazes para atender às necessidades básicas, por
exemplo, em matéria de saúde (financiamento e abastecimento
dos hospitais). Considero que, à medida que as crises econômica
e a crise política (que não são idênticas, mas interligadas) se agra-
varem, e que as multinacionais começarem a sair do país por
medo do processo, que é revolucionário em sua essência, os tra-
balhadores argentinos vão se deparar com a necessidade de esta-
belecer formas de controle operário sobre a produção nas fábricas.
Teremos de estar prontos para apoiar tal formação de comitês de
fábrica, é algo que temos de apoiar. Mais adiante pode acontecer
que seja proposta a expropriação das empresas estrangeiras.
Mas este processo, como já disse o camarada cubano, só
pode existir, só tem futuro se puder contar realmente com o
apoio internacionalista. É por isso que eu quero fazer uma pro-
posta ao MST, ao companheiro João Pedro, a proposta – incluída
a demanda – de que do setor do movimento social deste Fórum
saia uma reivindicação, uma convocatória a todos os trabalha-
dores da América Latina e de fora da América Latina para que
apóiem a Argentina, para que apóiem Cuba. Mas, particular-
mente, uma declaração de apoio a essa incipiente revolução
Argentina para que eu possa também levá-la em meu regresso à
Europa. Um chamamento de solidariedade total e de manifes-
tação de seu repúdio à dívida pública, de apoio à construção de
assembléias nos bairros, nas fábricas, de criação de um novo
Desafios da luta pelo socialismo 57

processo institucional, porque a única saída é a construção de


uma nova ordem política.
Tudo isto não é uma abstração, mas significa a criação de
relações de produção e instituições de um novo tipo de poder.
Isto é o socialismo, e quando começa a se colocar, como creio
que a Argentina está fazendo, temos de afirmar a nossa solidarie-
dade. Isto é internacionalismo. Isto é a luta pelo socialismo.
IV - A REFUNDAÇÃO
Fausto Bertinotti

Podemos definir a nova ordem mundial como uma “revolu-


ção capitalista restauradora”. “Revolução” porque, sem dúvida
alguma, trata-se de uma transformação de grandes dimensões.
“Capitalista” porque esta enorme mudança mantém intacta a
natureza do processo capitalista, onde tudo muda, mas a forma
de produção continua a mesma. “Restauradora” porque mani-
festa formas de um novo domínio sobre o mundo.
Esta revolução capitalista restauradora tem sua origem na
derrota do movimento operário, na crise do ciclo fordista-
keinesiano e na queda dos regimes do Leste Europeu. Na Euro-
pa, nasce com a derrota da última tentativa de contestação contra
o capitalismo representada pela grande revolução estudantil e
operária dos anos 70.
A queda dos regimes do Leste Europeu e a derrota do movi-
mento operário possibilitaram ao capital a introdução da idéia
de um mundo unificado, no qual se verifica uma acumulação
ilimitada e onde o trabalhador se transformou no verdadeiro alvo
do sistema: difundiu-se, pois, nesses últimos anos, uma gigan-
60 Fausto Bertinotti

tesca inovação que modificou a composição social do capital,


que modificou a composição do trabalho e que produziu uma
nova hegemonia cultural das classes dominantes. Desta
hegemonia cultural o núcleo forte é a inovação, a palavra chave é
“novo”.
Pareceu-nos assistir ao renascimento de um novo positivismo,
a um novo baile Excelsior.
Esta grande inovação modificou substancialmente a relação
entre a produção e a natureza, entre a produção e as pessoas,
entre a produção e a organização social. A sua filosofia é a da
absolutização da competição. E, em seu nome, aumentam as
desigualdades e as injustiças. Neste mundo globalizado, a cada
dez segundos uma mulher ou um homem morre porque não
tem água para beber; a renda de 600 milhões de pessoas que se
encontram nos quarenta e três países mais pobres equivale à ren-
da de três pessoas supermilionárias. Em 1820, no início da revo-
lução industrial, os países ricos tinham uma renda que equivalia
ao triplo daquela dos países pobres; em 1920, era 15 vezes àque-
la; depois da II Guerra Mundial, 30 vezes; hoje, os países ricos
têm uma renda equivalente a 80 vezes àquela dos pobres.
Mas esta revolução é tão forte que conquista enormes con-
sensos, e os conquista enquanto se agravam os desequilíbrios,
aumentam a distância entre ricos e pobres, entre Norte e Sul,
terminando por derrubar as conquistas fundamentais do mun-
do do trabalho. O mundo ao qual dá espaço não é o do “fim do
trabalho”, mas o do “trabalho sem fim”.
Seu modelo é o social norte-americano, porque mais flexível
no trabalho e porque privado de um antagonismo de classe orga-
nizado.
Com esta revolução foram estabelecidas as bases de um pro-
cesso universal de privatização de toda forma de intervenção do
Desafios da luta pelo socialismo 61

governo na economia e de liberalização do mercado de trabalho.


Os governos nacionais entraram em crise e modificaram o pró-
prio papel. A soberania e a democracia foram substituídas por
governos legitimados exclusivamente pelas funções que assumem
e não pelo consenso que têm junto aos povos. Nessa revolução,
os principais sujeitos do compromisso social e democrático – os
partidos do movimento operário e os sindicatos – entraram de
modo subalterno.
A globalização, então, produziu novas instituições, produziu
hegemonia, produziu o pensamento único, mudou os sujeitos
políticos, a natureza dos governos nacionais e das grandes for-
mações do movimento operário. Mudou as formas de governo.
E a sua força e hegemonia pareceram irresistíveis mesmo diante
das denúncias que contra elas se fizeram. Foram denunciadas as
injustiças e as contradições. Foi denunciado o agravamento das
condições econômicas no Hemisfério Sul, o aumento da distân-
cia entre ricos e pobres, as novas formas de exploração do traba-
lho. Mas sua hegemonia se manteve porque conseguida através
do envolvimento de forças políticas do centro, da esquerda e
também daqueles que deveriam ter se oposto àquele processo,
mas que terminaram por se preocupar somente em governá-lo.

A segunda globalização
Este processo já entrou em crise, por isso pode-se falar de
segunda globalização, a “globalização da crise”. Quais são as di-
ferenças entre essas duas fases e em que consiste a passagem de
uma à outra?
Que a primeira globalização produzisse desigualdades e in-
justiças era claro para todos, para os seus difamadores ou os seus
apologistas. Mas os últimos sustentavam que, mesmo em pre-
sença de aspectos negativos, ela produzia crescimento, desenvol-
62 Fausto Bertinotti

vimento, civilização. Hoje, estamos diante da traição das pro-


messas sobre as quais a modernização capitalista tinha construído
a própria hegemonia. De um lado, as promessas de civilização
são, progressivamente, substituídas por uma verdadeira crise de
civilização; de outro, a idéia de crescimento irrefreável vem sen-
do contestado pela própria crise econômica. Substancialmente,
bloqueou-se aquele grande e prometido processo que deveria
desenvolver-se em nível planetário, que cancelaria qualquer idéia
de crise, que reconduziria à globalização capitalista toda e qual-
quer idéia de futuro, diante das quais as injustiças e o progressivo
deterioramento da democracia eram considerados secundários.
Com ele foi abalada aquela convicção de que o mundo não po-
deria ser, de modo algum, diferente deste que a globalização es-
tava definindo, aquele pensamento “único” que não dava margem
a dúvidas, contradições e ulteriores aprofundamentos.
As crises, porém, reapareciam. O futuro, que deveria ser qua-
se cientificamente determinado, está sendo dominado pela in-
certeza. A vida cotidiana, que os progressos da ciência e da
tecnologia deveriam ter coberto de segurança, encontra-se, por
sua vez, exposta à arbitrariedade e ao medo. Um caso que se
oferece como exemplo perfeito: “a vaca louca”. A exploração da
matéria viva, que teria de dominar a fome e a morte, fazendo
com que os homens ficassem mais fortes e mais capazes de do-
minar a natureza, atingiu o resultado oposto. Mais que
dominadores, encontramo-nos ainda mais sujeitos a domínios
desconhecidos; mais do que nos distanciando estamos nos apro-
ximando da morte.
A guerra retorna com violência e, ainda que a globalização
tente revertê-la a seu favor, tentando transformá-la em “consti-
tuinte”, ela deixa clara (junto ao caráter oligárquico do novo go-
verno do mundo) a incapacidade de resolver a exclusão de grandes
Desafios da luta pelo socialismo 63

massas do planeta do bem-estar e também das mais elementares


possibilidades de sobrevivência. A segunda globalização tem ori-
gem neste segundo quadro, contraditório e instável.
Não é um fenômeno e uma mudança insignificantes, e tam-
bém não é o único. Manifestou-se com uma violência desconheci-
da e se fez evidente no dia 11 de setembro um outro fenômeno
que assinala outro aspecto da crise da “primeira globalização”. Fez
vir à tona um novo e impensável tipo de exclusão de categorias do
pensamento único. Aquela de quem recusa, não somente o mode-
lo econômico e social proposto pela modernização capitalista, mas
a própria civilização ocidental. Uma exclusão que promove um
processo cultural que não prevê nem busca algum momento de
integração, no qual se pode desenvolver o fundamentalismo e onde
é possível criar esta mescla cultural de um terrorismo que nasce e
se constitui sobre um pensamento político autônomo.
A resposta dada com a guerra, por parte de quem parecia
fechado em certezas inabaláveis e foi atingido, não é mais que o
reconhecimento da falência da globalização como momento de
hegemonia e de cooptação. É também outra prova de que a pri-
meira forma de globalização não consegue mais ser propulsora e
que deve-se readaptar aos tempos da crise, levando em conside-
ração, também, o combate violento com aquela parte do mundo
não integrada nos processos econômicos, sociais e culturais.
E ela – a guerra – tem um forte componente econômico,
quer porque o controle das reservas petrolíferas é um dos ele-
mentos da desavença, quer porque levou a propostas de políticas
econômicas e governamentais que a primeira globalização que-
ria eliminar. Refiro-me às abrangentes intervenções públicas que
o governo dos Estados Unidos está planejando.
Para revelar plenamente a incoerência do processo de
globalização, volta à cena o espectro da crise econômica, que
64 Fausto Bertinotti

investe também contra os Estados Unidos, o país locomotor do


desenvolvimento, o país cujo modelo econômico e social é mais
favorável aos seus processos.
Mas a globalização também entra em crise porque, hoje, um
novo sujeito a coloca em discussão.
Em uma situação incipiente de incerteza “global”, nasce o
movimento não-global, que se revelou no momento em que al-
cançou uma massa crítica capaz de evidenciar todas as “crises”,
provocadas pela globalização, que ainda não eram visíveis. Evi-
denciou-as, conseguiu remontar os efeitos do mal-estar às suas
causas. Com este nascimento e neste processo, o pensamento
único se rompeu, a globalização perdeu seu caráter exclusivo e
fundamental e apareceu no horizonte a idéia de que “um outro
mundo é possível”.
Quais são, então, as características desta nova fase? A precarie-
dade é uma das mais evidentes. Paradoxalmente, podemos dizer
que, enquanto a primeira globalização fundou sua estabilidade,
sua segurança e também sua agressividade sobre a precariedade
do mundo do trabalho, nesta segunda globalização a precarieda-
de se transformou em condição geral. Ela governa a existência de
todos, inclusive dos próprios processos de modernização. O sím-
bolo desta precariedade e desta falibilidade é, exatamente, a des-
truição feita por mãos terroristas das duas torres de Manhattan.
A segunda característica é a consciência, cada vez mais difun-
dida, de que, com a globalização, não estamos diante da “última
sociedade”; ela não é a única estrada para definir o futuro, não é
o único e possível modelo econômico e social. Perdeu a objetivi-
dade que a fazia parecer, aos olhos da maioria, quase um proces-
so natural. Pode ser colocada em crise, seja por um movimento
que contesta suas razões e propõe um outro modelo, seja por um
fenômeno destrutivo. E o crescimento econômico, além de não
Desafios da luta pelo socialismo 65

ser o único quadro possível, precisa também levar em considera-


ção a possibilidade do aparecimento de uma crise que pode, in-
clusive, transformar-se em depressão.

Nada mais é como antes


Não se pode mais, na situação que descrevi, perseguir o objeti-
vo mais alto, mais político – a transformação do estado de coisas
existente – limitando-se a percorrer, de novo, os caminhos do grande
e terrível século XX. É evidente que, para se chegar à transforma-
ção do estado de coisas existente, é necessário agir diversamente. É
evidente que, antes de tudo, devem ser mudados os sujeitos que se
candidatam a perseguir o objetivo da transformação.
Por que não podemos mais agir como antes, ao menos na-
quela parte do mundo que chamamos de ocidental? Porque re-
gistramos uma profunda crise política, em particular, uma crise
política da esquerda.
Esta revolução capitalista restauradora demoliu o compro-
misso social e democrático que, na Europa, tinha-se realizado
depois da vitória contra o nazi-facismo. As conquistas dos traba-
lhadores, as conquistas da classe operária, as conquistas progres-
sistas e as da civilização foram agredidas a tal ponto que foi
radicalmente modificado o panorama social, institucional, cul-
tural e civil. Nessas condições, produziu-se um obscurecimento,
um eclipse da política, porque a natureza restauradora desta
reestruturação capitalista colocou em discussão dois pontos do
compromisso alcançado até então: uma democracia que, pro-
gressivamente, alargasse os próprios horizontes a faixas sociais
antes excluídas e a autoridade do estado-nação.
Com uma regressão social e civil tão violenta, a moderniza-
ção capitalista foi também capaz de exercitar uma hegemonia
tão forte que se pôde, então, falar de “pensamento único”.
66 Fausto Bertinotti

A crise política na Europa foi, sobretudo, uma crise política


da esquerda, que se manifestou na crise de todos os partidos co-
munistas da Europa e em uma grande parte daquele que chama-
mos ocidente, com uma mudança radical das formações
socialdemocráticas, que se transformaram, segundo a inspiração
da “terceira via”, em formações neoliberais e neocentristas.
O eclipse da política e a crise política da esquerda não de-
terminaram uma total destruição porque se acenderam algu-
mas chamas de resistência política e social em nome de
identidades, em nome de ideologias, em nome de reivindica-
ções sociais. Em todo caso, resistência. Uma resistência impor-
tante, mas cujos modelos, sujeitos, conteúdos não são mais
capazes de serem propulsores e regeneradores da política. Não
se pode mais agir como antes.
Pode-se, porém, recomeçar. A globalização capitalista já en-
trou em crise. O que quer dizer, simplesmente, que suas injusti-
ças, suas contradições, seus desequilíbrios vieram à luz. Isto já se
tinha verificado e era já sabido, em maior ou menor medida.
Sabia-se que aumentava a distância entre ricos e pobres, que cres-
cia o número de mortos por fome no mundo, que as conquistas
da civilização vinham sendo devastadas nos países de capitalis-
mo avançado e que uma tecnocracia neocapitalista tomava o lu-
gar da soberania nacional e da democracia. Hoje, podem-se ver
outras coisas. Vê-se a crise da globalização, ou seja, a sua incapa-
cidade de dar espaço, não mais a uma igualdade social, negada já
na raiz, mas também a um desenvolvimento quantitativo.
Por outro lado, a política renasce a partir dos movimentos
que se constituíram na crítica e na contestação a esta moderniza-
ção capitalista, devido à traição de expectativas criadas ao redor
da modernização, enquanto se consuma a falência de todas as
políticas de colaboração tentadas com ela. O centro-esquerda,
Desafios da luta pelo socialismo 67

desde Clinton a Schroeder, a Blair, a D’Alema, faliu totalmente.


Faliu em relação à tarefa de dar à política a missão de governar
esta revolução através da moderação das políticas neoliberais e
através de novas regras. Esta hipótese foi eliminada, mas acabou
por emergir como novo fundamento de uma política de esquer-
da, uma crítica radical à globalização. A última fronteira de uma
política que, definindo-se reformista, foi somente um acompa-
nhamento da revolução capitalista, reduziu-se a cacos e emergiu
por sua vez como única possível refundação da política, um
movimento que contesta nas raízes a lógica e a inspiração, a na-
tureza da globalização. Efetivamente, este movimento, de Seattle,
fala de um outro mundo, possível, redescobrindo a política no
seu ponto mais alto, a idéia de transformação do mundo e da
sociedade existentes.

O primeiro movimento depois do século XX


Que movimento é este e o que pede? É o primeiro movimen-
to pós-novecentos. Distingue-se de todos os movimentos operá-
rios e de contestação que vivenciaram este grande e terrível século.
É uma nova subjetividade que representará o futuro do mundo.
Este movimento, na verdade, não é um fenômeno excepcional e
conjuntural. É uma longa onda que tem o mesmo sentido que o
movimento operário teve no século XX. Atravessará o futuro
como uma crítica permanente a esta globalização capitalista.
Naturalmente, está construção e, por isso, é complexo, não tem,
ainda, uma “idéia força” unitária, mas contém todos os elemen-
tos críticos à globalização: os de raiz operária, os que se origina-
ram com o feminismo e com a cultura de gênero, os ambientalistas
e ecologistas, os que nasceram a partir de necessidades sociais
insustentáveis e dramáticas, da fome e doenças do sul do mundo
e da alienação do norte do mundo.
68 Fausto Bertinotti

Nos últimos anos, desde Seattle até os dias de hoje, este mo-
vimento manteve sua marcha, não permanecendo, porém, igual
ao que tem sido. Dentro da idéia de que um outro mundo é
possível, vem crescendo a capacidade de uma outra proposta
política. Não é verdade que este movimento tenha vocações pre-
dominantemente éticas e redistribuidoras. Certamente, não se
resolveu a questão do sujeito e dos sujeitos da transformação:
mas esta questão já foi colocada. Ao mesmo modo, amadureceu
um nível de consciência crítica agora já mais anticapitalista que
antiliberal. Isso não significa que tenha sido completamente ela-
borada uma hipótese de superação do sistema, mas o processo
que nos leva, desde a denúncia de injustiças sociais e econômicas
até a individualização de suas causas, é iniciado e já se encontra
“em andamento”. Quando, por exemplo, se fala de direito à água
como necessidade essencial, universal, coloca-se em movimento
um percurso reivindicador, de dimensão tanto local quanto glo-
bal, que pode fazer explodir instâncias transformadoras, não so-
mente relativas à relação da humanidade com o meio-ambiente,
mas também relativas às composições políticas, aos poderes, à
propriedade.
No movimento existem também tendências, propensões, di-
versidades significativas. Em Porto Alegre entraram em cena, pela
primeira vez, os “reformistas”. Uma demonstração, uma nova
demonstração de que o movimento é capaz de atravessar territó-
rios que, até hoje, lhe tinham sido proibidos a priori, ganhando
consensos em âmbitos não afins e que, usando uma terminolo-
gia clássica, ganhando hegemonia. É também a demonstração
de que uma parte dos reformistas, diante da crise irreversível do
“reformismo real”, diante da derrota mundial do centro-esquer-
da, intui a capacidade de abrir, de qualquer modo, uma nova
estação. Penso a Soares, como exemplo de todos aqueles que,
Desafios da luta pelo socialismo 69

mesmo permanecendo no interior de uma lógica reformista, ad-


vertem para a necessidade de uma refundação, que têm um com-
portamento diverso da cínica arrogância dos reformistas reais
ainda no poder, como Blair e Schroeder.
Trata-se de uma interessante estratégia de atenção, quase uma
forma de “neomoroteísmo”. Diante dos movimentos de 68 e 69,
Aldo Moro propôs equilíbros mais avançados. Hoje, por parte
dos reformistas, estamos diante de algo análogo.
Mas, no movimento, em relação e em reação aos reformistas,
toma corpo uma tendência que podemos definir antipartidária,
que tenta preservá-lo de toda contaminação através de uma es-
pécie de barreira separatista. O movimento pode somente fazer
o movimento, afirma-se.
Estas são, por exemplo, as posições da ATTAC francesa.
Há, também, uma terceira componente, aquela que propõe
o socialismo como meta final do mundo possível de ser
construído. É uma idéia que não percorre as vias tradicionais da
ciência da revolução, mas se expressa, sobretudo, por meio de
experiência social radical. A idéia socialista que há entre os
metalúrgicos da CUT, entre os militantes de Via Campesina,
entre os Sem Terra brasileiros, não é periférica e também não é
vivida como herança histórica: reapresenta-se quase, em um es-
tado nascente, como solução racional para as injustiças do mun-
do, com êxito possível da necessidade de liberdade. Estas
tendências lançam de novo, com força, a relação entre “new glo-
bal” e partidos anticapitalistas e comunistas.

A refundação da política
Este movimento é a grande novidade do nosso tempo e é
uma verdadeira ocasião para a refundação da política. Uma oca-
sião enorme e extrema. Grande porque é uma oportunidade.
70 Fausto Bertinotti

Extrema porque, se a política da esquerda perder esta ocasião,


perde a possibilidade de se refundar no novo século. Estamos,
então, diante de uma passagem crucial. Quanto maior é a possi-
bilidade de dar nova vida à política, tanto mais alto é o risco de
morte. O movimento existe e, de qualquer forma, irá pela sua
estrada, mas sem esta refundação da política, encontrar-se-á sem-
pre privado de uma força, da possibilidade de se propor ao inte-
rior da batalha que o novo adversário histórico propõe.
Quem tem origem na história do movimento operário e co-
munista tem a obrigação de se confrontar com o problema da
ruptura histórica com aquele que denominamos modelo alemão,
ou seja, com o modelo lassalliano de relação partido-sindicato-
cooperativas, que inspirou todos os movimentos socialistas, co-
munistas, socialdemocráticos. Para redescobrir a validez das razões
do nascimento do movimento operário, aquele modelo tem de
ser superado, definindo uma nova relação entre as forças políti-
cas e o movimento, que não pode mais ser uma relação entre pai
e filho. As forças políticas de esquerda, quer se chamem comu-
nistas, quer de outro modo, devem perder a presunção teórica de
serem o guia externo do movimento em nome de uma primazia
ideológica teórica, de uma cátedra que ninguém está disposto a
lhe reconhecer. A reconstrução de uma esquerda radical,
neocomunista, passa por recolocação em discussão esta relação
hierárquica.
De que modo? Antes de tudo, modificando a relação entre o
empenho na sociedade e o empenho nas instituições. As
instituções são importantes, mas o pêndulo da política há de ser
levado à sociedade, entre as forças que nela agem, às subjetivida-
des críticas. Não sei se as instituições seguirão o passo. Digo,
porém, que a refundação da política tem de ser reconstruída na
sociedade.
Desafios da luta pelo socialismo 71

Tem, também, de ser revista a relação entre poder e processo


de transformação. Não no sentido de que o poder não é impor-
tante, mas no sentido de se perder o hábito mental de fazer pre-
ceder a conquista do poder ao processo de transformação. É este
hábito mental que nos levou da conquista do Palácio de Inverno
à dramaticidade das condições e à ruína dos países do Leste Eu-
ropeu. E que, hoje, leva a esquerda no poder a governar os pro-
cessos existentes sem mudar nada, ou quase nada. Ou então
introduzindo, sim, uma mudança, mas na natureza da esquerda,
em sua identidade, nas suas categorias, reduzindo-a àquela parte
do mundo que se deveria combater.
Deve-se recolocar em discussão a relação entre formação de
decisões no interior do partido e formação de decisões no movi-
mento. O partido deve ter a ambição de fazer uma proposta,
mas deverá também confrontá-la com o movimento e aceitar as
conclusões que derivam deste confronto.
Naturalmente, seria somente um início, mas seria o início de
uma esquerda alternativa, isto é, de uma nova esquerda
anticapitalista da qual os comunistas poderiam ser uma parte,
mas não o todo, o início de um processo de transformação, ou
seja, um processo revolucionário.
Seria, no final das contas, o início do retorno a um caminho
em direção ao comunismo.

O socialismo hoje
O socialismo hoje é necessário, depois da derrota do movi-
mento operário do século XX e diante de um capitalismo, o da
globalização, que se fez ainda mais perigoso. O grande confron-
to do movimento operário com o capitalismo, no século passa-
do, terminou com a nossa derrota, mas esta derrota não cancela,
ao contrário, reforça as razões pelas quais nasceu o socialismo, e
72 Fausto Bertinotti

à luta de classes resta um instrumento decisivo para o desenvol-


vimento da civilização e da história.
O problema da revolução é atual. Se faz ainda mais atual neste
novo capitalismo, que transforma o mundo deixando inalterado o
poder do capital, ou melhor, criando um novo domínio.
Não é só uma questão de injustiça, é também uma questão de
barbárie. Esta revolução capitalista corre o risco de destruir a hu-
manidade e, efetivamente, precisa da guerra para poder funcionar.
Este capitalismo produz uma nova barbárie. Como afirmava
Karl Marx, se a luta de classes não produz uma nova civilização,
o risco é a dissolução de ambas as classes em luta. Por isso o
socialismo é necessário. E hoje é também possível. Depois da
escuridão desses anos, chegou de novo o dia. Este é o amanhecer
do movimento dos movimentos, dos povos de Seattle. Que não
se iludam os novos padrões do mundo e os senhores da guerra:
este movimento irá longe. Neste movimento existem forças di-
versas, histórias diversas, culturas diversas, mas, pela primeira
vez, estas diferenças não são um ponto fraco, mas sim um ponto
de força. Este movimento, em todo o mundo, trouxe ao cenário
político uma nova geração. Não é ainda um movimento com-
pletamente anticapitalista, mas contém todas as potencialidades
para sê-lo, para construir uma alternativa ao capitalismo, para
construir um outro mundo .
Este movimento permite que se mantenham juntas todas as
forças críticas, sobre bases discriminantes simples. Podem e devem
fazer parte dele todos os que são contra a guerra e contra as políti-
cas neoliberais. Ele é o nosso futuro, mas necessitamos nos per-
guntar o que ainda falta para que o futuro possa ser conquistado.
Para recomeçar, devemos fazer as contas com a nossa história, re-
fletindo também sobre erros e tragédias que a atravessaram, senão
não conseguiremos entender porque fomos derrotados. Somos
Desafios da luta pelo socialismo 73

anões sentados sobre as costas dos gigantes, mas devemos ter a


coragem intelectual de criticar os gigantes, de examinar critica-
mente o movimento socialista. Movimento que, no século passa-
do, teve três funções fundamentais: foi o movimento de luta de
todas as classes subalternas no mundo, foi uma teoria de crítica ao
capitalismo e foi a base da construção de governos nacionais que
se disseram socialistas. Temos de ter a coragem de admitir que esta
última experiência morreu, e que não é repetível. É necessário dizê-
lo agora para que o morto não coma o vivo. Aquela experiência
não foi derrotada somente pelo capitalismo, foi-o, sobretudo, pe-
los seus próprios erros. Foi vencida porque uma grande idéia de
liberação do mundo se transformou em uma forma de opressão
estatal. Temos de deixar esses erros para trás de forma definitiva,
valorizando a experiência de luta do proletariado no mundo e
redescobrindo o extraordinário valor do ponto de partida de Marx.
No século passado, aprendemos algumas coisas importantes:
a revolução, a transformação da sociedade capitalista ou é mun-
dial ou não o é. Aprendemos que não é suficiente tomar o poder,
é necessário transformar o poder se quisermos transformar a so-
ciedade. Aprendemos que a primazia da política não vive nas
instituições e no governo, mas na realidade social e na vida das
classes e das pessoas. Que a ciência, a economia e o governo não
são neutros. Que precisamos construir, nós mesmos, uma nova
ciência da sociedade e, para construí-la, não são suficientes os
conhecimentos e os saberes oficiais e formalizados. Não basta o
que se aprende na universidade, serve aquilo que se aprende na
vida. Serve a experiência. Então, sem a experiência dos campo-
neses, dos trabalhadores, dos jovens, das mulheres, não se cons-
trói a nova ciência da sociedade.
O que precisamos aprender ainda? Temos de aprender a nos
abrirmos ao mundo, deixarmos de lado as nossas prevenções teóri-
74 Fausto Bertinotti

cas, como também as ambições vanguardistas dos partidos do


movimento operário. A política do socialismo deve estar no povo
como o peixe está na água. Necessitamos construir uma cultura
porque a nossa cultura de classe é necessária, mas não suficiente.
Há outras culturas críticas igualmente importantes: a cultura das
mulheres, a cultura dos ecologistas, a cultura da paz, as culturas do
Hemisfério Sul. Temos de nos abrir a experiências diversas da nos-
sa. É importante a reivindicação e a luta operária, mas são igual-
mente importantes experiências de vida de outras realidades que,
mesmo não sendo socialistas, exprimem instâncias de liberação.
Para construir o socialismo, precisamos construir um novo
movimento operário em escala mundial e um novo proletariado,
composto não somente pelos que trabalham nas fábricas, mas
por todos aqueles e todas aquelas que se encontram subordina-
dos ao domínio capitalista: um novo proletariado para uma nova
estratégia da liberação. Precisamos de um novo sujeito político
que, creio, estamos começando a construir.
A refundação de uma estratégia da transformação da socie-
dade capitalista e a refundação dos partidos que querem o socia-
lismo recomeça com a participação popular e com a crítica dos
povos ao poder capitalista. Gramsci falava sobre o partido da
transformação socialista como se se tratasse de um intelectual
coletivo. Creio que devemos ter, agora, a coragem da transfor-
mação: não é o partido que deve ser o intelectual coletivo, é o
movimento que tem de ser o intelectual coletivo, que deve pen-
sar na revolução e praticar a transformação.
Dentro do movimento, pode viver o projeto de uma força
política; fora do movimento, perde o socialismo e o capitalismo
vence. O movimento nos oferece, hoje, uma ocasião. Esforcemo-
nos para não perdê-la.
Desafios da luta pelo socialismo 75

V - SOCIALISMO
Michael Löwy

Ser socialista significa ser radical. A palavra “radical” vem do


latim radix, “raiz”. Radical é aquele que ataca os problemas pela
raiz. Como, or exemplo, os companheiros do MST e da Confe-
deração Camponesa da França que, no ano passado, por ocasião
do 1o Fórum Social Mundial, organizaram um passeio pelo inte-
rior do Rio Grande do Sul para arrancar, pela raiz, plantações
transgênicas da multinacional Monsanto. Qual é a raiz dos pro-
blemas sofridos pela humanidade neste começo de século? Qual
é a raiz do desemprego, da pobreza, da monstruosa desigualdade
social? Qual é a raiz do neoliberalismo, da dívida externa, da
especulação financeira incontrolável, dos programas de “ajuste
estrutural”, da ditadura do FMI? A raiz é o sistema capitalista
mundial, a lógica global da acumulação capitalista, a hegemonia
mundial do grande capital financeiro, a propriedade capitalista
do meios de produção. Muitos nesse Fórum Social Mundial com-
partilhamos este diagnóstico. Mas precisamos começar a discutir
as alternativas. E, se buscamos uma alternativa radical, é a ques-
tão do socialismo que se coloca na ordem do dia.
76 Michael Löwy

O socialismo a que me refiro não é aquele “socialismo” que


desmoronou depois da queda do muro de Berlim, pobre carica-
tura burocratica de um sistema político que há muito tempo já
havia perdido seu espírito revolucionário inicial. Tampouco é
aquele “socialismo” de certos partidos que se declaram socialistas
ou socialdemocratas, mas não passam de social-liberais, simples
administradores da ordem estabelecida. Quando me refiro ao
socialismo, refiro-me à utopia socialista, ao sonho radical de jus-
tiça social e da comunidade de bens, que tem séculos de história
e que encontramos nas palavras de fogo dos profetas bíblicos, na
prática fraternal das primeiras comunidades cristãs, nas revoltas
camponesas da Idade Média; um sonho que encontrou sua for-
ma moderna e revolucionária no pensamento e na ação de Karl
Marx e Frederico Engels. O socialismo de que estou falando é
aquele que inspirou os mártires do “1° de Maio”, de Chicago, e
tantos outros combatentes assassinados pelas classes dominan-
tes, que sacrificaram suas vidas pelo ideal socialista da emancipa-
ção dos trabalhadores da cidade e do campo: Emiliano Zapata e
Rosa Luxemburgo, Farabundo Marti e Leon Trotsky, Buenaven-
tura Durruti e Antonio Gramsci, Camilo Torres e Ernesto
Guevara, Carlos Marighella e Chico Mendes.
No que consiste o socialismo? Ele não tem nada de misterioso
ou obscuro. Seu princípio fundamental é transparente e claro como
água da cascata: os meios de produção devem pertencer à socieda-
de e as grandes decisões sobre investimentos, produção e distribui-
ção não devem ser abandonadas às leis cegas do mercado, a um
punhado de exploradores, ou a uma camarilha burocrática, mas
tomadas, depois de um amplo e pluralista debate democrático,
pelo conjunto da população. Nada mais simples, mas exige, para
ser realizado, uma verdadeira revolução, a supressão do sistema
capitalista e do poder das classes dominantes...
Desafios da luta pelo socialismo 77

O socialismo significa, concretamente, que a produção não


será mais submetida às exigências do lucro, da acumulação do
capital, da produção em massa de mercadorias inúteis ou noci-
vas, mas voltada para a satisfação das necessidades sociais: ali-
mentação, vestuário, habitação, saneamento básico, água,
educação, saúde, cultura. Significa também o fim da discrimina-
ção racial – contra o negro, o mestiço, o indígena – da opressão
das mulheres, da desigualdade social, da destruição do meio
ambiente, das guerras imperialistas. E aqui, na América Latina,
significa antes de tudo: o fim de séculos de dominação colonial e
imperialista sobre os povos de nosso continente.
Um dos primeiros marxistas latino-americanos, o peruano José
Carlos Mariátegui, já escrevia em 1928: “Contra uma América do
Norte capitalista, plutocrática, imperialista, só é possível opor, de
maneira eficáz, uma América, latina ou ibera, socialista”.1 Qua-
renta anos mais tarde, Che Guevara retoma esta bandeira socialis-
ta e antiimperialista, que havia sido esquecida por tanto tempo, e,
polemizando com os partidários de uma suposta “revolução de-
mocrático-nacional em aliança com a burguesia nacional” (políti-
ca que predominava na esquerda latino-americana nesta época)
afirma: “as burguesias autóctones perderam toda sua capacidade
de oposição ao imperialismo – se é que alguma vez a tiveram – e
agora são apenas seu reboque. Não há mudanças a fazer, ou revo-
lução socialista ou caricatura de revolução”.2 Com esta conclusão
de sua famosa “Mensagem à Tricontinental”, de 1967, ele cortou
o nó que amarrava a esquerda no continente latino-americano e

1
J.C.Mariátegui, “Aniversario y Balance”, 1928, Indeologia y Politica. Lima, Amauta,
1971, p. 248.
2
Ernesto Che Guevara, “Mensaje a la Tricontinental”, 1967, in Obra revolucionaria.
Mexico, ERA, 1973, p. 645.
78 Michael Löwy

abriu um formidável horizonte de esperanças que até hoje ilumina


nossas consciências.
Qual socialismo? Cada vez mais crítico, nos seus últimos anos,
em relação às experiências socialistas européias, Ernesto Guevara
buscava, para Cuba e para a América Latina, um novo caminho
socialista. Também aqui suas idéias coincidem com as idéias de
José Carlos Mariátegui, que havia escrito no mesmo documento
de 1928: “Não queremos, certamente, que o socialismo seja nas
Américas calco e cópia. Deve ser criação heróica. Temos de dar
vida, com nossa própria realidade, com nossa própria lingua-
gem, ao socialismo indo-americano”.3
Não sabemos se Guevara conhecia este texto de Mariátegui.4
Mas, de qualquer forma, se pode-se considerar que boa parte de
sua reflexão e de sua prática política, sobretudo no curso dos
anos 60, tinha como objetivo sair do beco sem saída a que levava
a imitação, o “calco e cópia”, do modelo soviético. Suas idéias
sobre a construção do socialismo são uma tentativa de “criação
heróica” de algo novo, a busca – interrompida por sua morte –
de um paradigma de socialismo diferente das caricaturas buro-
cráticas até então existentes.
O motor essencial dessa busca de um novo caminho (mais
além de questões econômicas específicas) é a convicção de que o
socialismo não tem sentido – e não pode triunfar – se não repre-
senta um projeto de civilização, uma ética social, um modelo de
sociedade totalmente antagônico aos valores do individualismo
mesquinho, do egoísmo feroz, da competição, da guerra de to-

3
J.C. Mariátegui, op.cit., p. 249.
4
Possivelmente o havia lido, posto que sua primeira companheira, a socialista peruana
Hilda Gadea, lhe havia emprestado os escritos deste autor nos anos que precederam a
revolução cubana.
Desafios da luta pelo socialismo 79

dos contra todos da “civilização capitalista” – este mundo no


qual, dizia Che, o “homem é um lobo para os outros homens”.
A construção do socialismo é inseparável de certos valores
éticos, contrariamente ao que afirmavam as concepções
dogmáticas e economicistas, que só consideravam “o desenvolvi-
mento das forças produtivas”. Na famosa entrevista com o jor-
nalista francês Jean Daniel (julho de 1963), Guevara insistia: “o
socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa.
Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo contra a aliena-
ção. (...) Se o comunismo passar por cima dos fatos da consciên-
cia, poderá ser um método de distribuição, mas não será mais
uma moral revolucionária”.5 Se o socialismo pretende lutar con-
tra o capitalismo e vencê-lo em seu próprio terreno (o terreno do
produtivismo e do consumismo), utilizando suas próprias armas
(a forma mercantil, a concorrência), está condenado ao fracasso.
O socialismo para o Che era o projeto histórico de uma nova
sociedade, baseada em valores de igualdade, solidariedade, cole-
tivismo, livre discussão e participação popular. Tanto suas críti-
cas – crescentes – ao modelo soviético, quanto sua prática como
dirigente político e sua reflexão sobre a experiência cubana são
inspiradas por esta utopia revolucionária.
A questão da planificação socialista ocupa um lugar central
em seus escritos econômicos. Mas, em seus últimos anos, a ques-
tão da democracia socialista na planificação começa a aparecer
como uma questão essencial. Por exemplo, numa crítica ao Ma-
nual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS,
redigida por volta de 1965-66, ele avança um princípio demo-
crático fundamental: na planificação socialista, é o próprio povo,

5
In L’Express, 25 de julio del 1963, p. 9.
80 Michael Löwy

os trabalhadores, “as massas”, que deve tomar as grandes deci-


sões econômicas:
“Em contradição com uma concepção do plano como deci-
são econômica das massas conscientes dos interesses populares,
se oferece um placebo, no qual só os elementos econômicos de-
cidem o destino coletivo. É um procedimento mecanicista,
antimarxista. As massas devem ter a possibilidade de dirigir seu
destino, de decidir qual é a parte da produção que será destinada
à acumulação e qual deverá ser consumida. A técnica econômica
deve operar nos limites dessas indicações e a consciência das
massas deve assegurar sua realização”.6
Contra a monopolização das decisões por um punhado de
tecnocratas, o Che insistia na necessidade de uma verdadeira
participação popular: os grandes problemas socioeconômicos de
uma nação não são técnicos, mas, sim, políticos e devem ser ob-
jeto de debate e decisão democrática.
A reflexão de Guevara sobre o socialismo não concerne uni-
camente à Cuba e à América Latina: ela é universal, mundial,
internacional. Para o Che, o verdadeiro socialista, o verdadeiro
revolucionário é aquele que considera sempre os grandes proble-
mas da humanidade como seus problemas pessoais, é aquele que
é capaz de “sentir-se angustiado quando se assassina um ser hu-
mano em qualquer lugar do mundo e sentir-se entusiasmado
quando, em algum lugar do mundo, se levanta uma nova ban-
deira de liberdade”.7 Há uma frase de José Marti que Ernesto

6
Por razões inexplicáveis, este documento ainda não foi publicado. Citamos uma passa-
gem mencionada no artigo do economista cubano Carlos Tablada, “Le marxisme du Che
Guevara”. Alternatives Sud, vol. III, 1996, 2, p. 173.
7
E. Che Guevara, Obras 1957-1967. La Habana, Casa de las Americas, 1970, tomo II,
pp. 173, 307, cf. também p. 432: “La revolución cubana... es una revolución con
caracteristicas humanistas. Es solidaria con todos los pueblos oprimidos del mundo”.
Desafios da luta pelo socialismo 81

Guevara citava com freqüência em seus discursos e na qual via “a


bandeira da dignidade humana”: “Todo ser humano verdadeiro
deve sentir na sua face a bofetada dada em qualquer outro ser
humano”. O internacionalismo para Guevara – ao mesmo tem-
po modo de vida, fé profana, imperativo categórico e pátria espi-
ritual – era inseparável da idéia mesma de socialismo, enquanto
humanismo revolucionário, enquanto emancipação dos explo-
rados e dos oprimidos do mundo inteiro, numa luta sem tréguas
nem fronteiras contra o imperialismo e contra a ditadura do ca-
pital.
As balas assasinas da CIA e de seus sócios bolivianos inter-
romperam em outubro de 1967 este trabalho de “criação herói-
ca” de um novo socialismo revolucionário, democrático,
humanista e internacionalista.
Nos últimos trinta anos, aprendemos a enriquecer nossa idéia
do socialismo com a contribuição do movimento das mulheres,
dos movimentos ecológicos, das lutas de negros e indígenas con-
tra a dicriminação. Assim é o processo de construção do projeto
socialista: não um edifício pronto e acabado, mas um imenso
canteiro de obras, onde se trabalha para o futuro, sem esquecer
as lições do passado.
O socialismo exige uma transformação revolucionária da so-
ciedade. Não se trata de esperar que o capitalismo desmorone
por suas próprias contradições. Como dizia Walter Benjamin,
nossa geração aprendeu uma lição importante: o capitalismo não
vai morrer de morte natural. Para que desapareça o mais rapida-

Como disse simples e poeticamente Roberto Fernandez Retamar: ao Che “no le preocupaba
estar al dia: lo que le preocupaba era ofrecer al mediodia de la justicia el caudal de sus
conocimientos. Y la justicia le reclamo vincularse con los humillados y ofendidos, echar
su suerte con los pobres de la tierra”, “El Che, imagen del pueblo”, Contracorriente. La
Habana, diciembre, 1996, n° 6, p. 4.
82 Michael Löwy

mente possível, não devemos esperar que “as condições amadu-


reçam”, mas agir plantando as sementes do socialismo. Cada le-
vante indígena, como o dos zapatistas, em Chiapas, ou da
CONAIE, no Equador, cada ocupação de terras do MST, cada
insurreição popular, como o “argentinazo”, cada mobilização
contra a globalização capitalista, como as de Seattle ou de Gêno-
va, cada reunião como esta, de dezenas de milhares de pessõas
que sonham com um futuro diferente, é uma semente de socia-
lismo. Depende de nós que estas sementes cresçam, dêem árvo-
res, galhos, folhas e frutos.
Desafios da luta pelo socialismo 83

VI - A LUTA PELO SOCIALISMO


NA ATUALIDADE
James Petras

Introdução
Uma discussão sobre a luta pelo socialismo nos dias de hoje
deveria começar pela definição do que é e do que não é socialis-
mo. É importante ter clareza política, não só das falsas alterna-
tivas, mas também dos componentes básicos da sociedade
socialista. Este ensaio tratará do assunto, analisando critica-
mente três das mais influentes ideologias anti-socialistas, de-
fensoras de uma esquerda renovada e que apresentam um
enfoque alternativo de socialismo. Em seguida, será apresenta-
da uma discussão da via militante ao socialismo e uma crítica
das ilusões a respeito da política eleitoral. Por último, será exa-
minado o atual contexto mundial e os desafios e oportunida-
des que se apresentam à Esquerda frente à ofensiva imperialista
de Washington.

O que não é socialismo


A esquerda enfrenta, em essência, três alternativas falsas de
socialismo: 1) a “terceira via”, promovida por Tony Blair; a
84 James Petras

Socialdemocracia européia e do Terceiro Mundo e 3) o “socialismo


de mercado” ao estilo chinês.
A “Terceira Via”, proposta pelo líder do Partido Trabalhista
inglês, Tony Blair, pretende apresentar uma outra relação (uma
terceira via) entre a propriedade pública dos meios de produção
e dos serviços sociais e o mercado liberal não regulamentado. De
fato, reúne o que há de pior:uma enorme e dispendiosa burocra-
cia estatal, a serviço das poderosas instituições financeiras e dos
banqueiros, e uma legislação autoritária, que transgride as liber-
dades individuais. Na prática, a “Terceira Via” de Blair é um
caminho direto para a guerra, para a crise e para a intensificação
das privatizações às custas dos consumidores, do meio ambiente
e dos trabalhadores. O regime de Blair tem sido um ativo e sub-
misso colaborador de Washington nos selvagens bombardeios
de civis na Iugoslávia, no Afeganistão e no Iraque, assim como
na conquista e ocupação do Afeganistão, de Kôsovo e da
Macedônia. A “Terceira Via” promoveu a desindustrialização da
Inglaterra, o “boom” especulativo das telecomunicações e seu
colapso, precipitando o país na atual recessão. O programa de
privatizações de Blair solapou o plano nacional de saúde, trans-
formou o sistema de transporte e de infra-estrutura no pior da
Europa Ocidental e jogou os trabalhadores ingleses no pior lu-
gar em relação aos direitos sociais. Sem dúvida alguma, a “Ter-
ceira Via” não passa de um eufemismo para o neoliberalismo
autoritário e para o militarismo.
A segunda versão da burguesia para o socialismo é a
socialdemocracia. Durante os últimos vinte anos, os partidos
socialdemocratas e populistas da Europa e da América Latina
abandonaram seus programas reformistas, de bem-estar social,
em prol de políticas neoliberais, subordinando-se à hegemonia
imperialista dos Estados Unidos, e, na América Latina, adotan-
Desafios da luta pelo socialismo 85

do programas de ajusta estrutural do FMI. Num breve espaço de


tempo, os socialdemocratas e os populistas converteram-se ao
neoliberalismo, fazendo a redistribuição da riqueza entre as clas-
ses altas e o capital estrangeiro. Não são mais partidos reformis-
tas das classes trabalhadoras, são partidos reacionários,
pró-imperialistas e neoliberais. Os melhores exemplos desta con-
versão são, no Brasil, o PSDB, de Fernando Henrique Cardoso,
e, na Argentina, o Partido Peronista.
O terceiro exemplo de falso socialismo é o chamado “socia-
lismo de mercado” chinês. A realidade política da China nos
mostra a subordinação da propriedade social ao mercado capita-
lista. O “socialismo” chinês não tem absolutamente nada de so-
cialista: os trabalhadores chineses têm as jornadas de trabalho
mais extensas, os piores salários e os menores direitos sociais de
todos os trabalhadores asiáticos. Os capitalistas chineses e seus
sócios de outros países têm lucros altíssimos e, ilegalmente, en-
viam ao estrangeiro, anualmente, entre 30 e 40 bilhões de dóla-
res, provocando o surgimento das maiores desigualdades sociais
da Ásia. O Estado socializa as dívidas das empresas privadas e das
elites estatais corruptas, que roubam milhões do tesouro nacio-
nal para financiar seus investimentos,suas contas no estrangeiro
e seus estilos de vida de um luxo obsceno. O “Socialismo de
Mercado” é uma ideologia usada para justificar a transferência
da propriedade coletiva para o capitalismo selvagem.

O que o socialismo significa atualmente


Em contraposição a tais exemplos de “falso socialismo”,
atualmente o verdadeiro socialismo, em primeiro lugar, implica
na socialização dos meios de produção, na transformação da
propriedade e no controle dos bancos, das fábricas, da terra, dos
serviços sociais, do comércio exterior, assim como na transferência
86 James Petras

do poder dos capitalistas para os produtores diretos, para os


consumidores e para os defensores do meio ambiente. O
socialismo significa oposição a todas as guerras imperialistas, às
intervenções militares, significa o apoio à autodeterminação das
nações e dos movimentos de libertação nacional. Num regime
socialista, a representação e as eleições terão lugar nos locais de
trabalho, nos bairros e nas cooperativas, buscando a formação de
uma assembléia nacional, que devera prestar contas diretamente
às organizações dos trabalhadores, dos camponeses e dos consumi-
dores. O socialismo promoverá profundas reformas na família,
no trabalho e nos serviços sociais para facilitar a igualdade entre
homens e mulheres O orçamento deverá ser modificado para,
em vez de subsidiar os capitalistas e de pagar a dívida externa, ser
canalizado para um amplo e gratuito serviço de saúde, educação
e lazer para o povo em geral.
As diferenças entre o verdadeiro e o falso socialismo são fun-
damentais e das quais não se pode esquivar. Não existem bases
para uma aliança com o falso socialismo. Os antagonismos sociais
entre as classes manifestam-se no conflito entre o verdadeiro e o
falso socialismo. As diferenças não são apenas intelectuais; são,
também, práticas.

A via militante ao socialismo


O caminho para o socialismo implica numa série de ativi-
dades práticas para os militantes socialistas, em contrapartida
às práticas elitistas dos líderes políticos do falso socialismo. Na
luta pelo socialismo, os militantes atuam em vários níveis de
ação: 1) no comprometimento direto com as lutas cotidianas
nos bairros, nos locais de trabalho e nas ruas; 2) na organização
do movimento de massas, sem sectarismos, para promover uma
reforma agrária integral, para promover a socialização das fá-
Desafios da luta pelo socialismo 87

bricas, da propriedade pública e dos bancos, assim como pro-


mover o controle estatal do comércio exterior; 3) na organiza-
ção dos militantes para a tomada do poder político – e não
dando importância apenas à participação em fóruns internacio-
nais, ou se reunindo com outros turistas de esquerda sem ne-
nhuma base social em seus países de origem; 4) na reunião dos
militantes em busca da solução dos problemas do dia-a-dia,
dos problemas das massas e para estudar os processos políticos,
as estruturas do poder, assim como a elaboração de alternativas
revolucionárias; 5) na coordenação das lutas das massas com a
criação de formas socialistas de organização e de participação
em assembléias deliberativas; 6) na não aceitação de líderes que
cultivam o personalismo e que subordinam as lutas e as organi-
zações populares a seu poder pessoal; 7) no investimento de
tempo e recursos pelos militantes na educação política de diri-
gentes e organizadores, para que sejam capazes de tomar deci-
sões difíceis, com discussão das táticas e da estratégia nas
assembléias; 8) no enfrentamento, pelos dirigentes, dos mes-
mos riscos a que estão sujeitos os seus dirigidos – os dirigentes
de vem estar na linha de frente da luta, deixand0o de lado a
política de gabinete. Para inspirar, na luta de massas, uma ati-
tude resoluta, é importante “mostrar a cara”.
A história e a experiência nos mostram que a ação popular
direta de massas é o único caminho viável para se conseguir as
mudanças fundamentais no poder, na propriedade e na auto-
estima. Eleições para parlamentos impotentes não conduziram a
nenhuma reforma digna desse nome nos últimos vinte e cinco
anos. Dirigentes populares que começam seu trabalho político
na esquerda e, depois, são eleitos para o parlamento, são assimi-
lados pelo sistema e acabam discursando ao povo e trabalhando
para o capital. No caso, a trajetória de Lula confirma esta análise.
88 James Petras

Ele começou liderando lutas populares e terminou abraçando a


direita neoliberal em uma coligação eleitoral.

Combater ilusões: Eleições, a via parlamentar


e as reformas
A aproximação do Partido dos Trabalhadores , no Brasil, à po-
lítica neoliberal a possível escolha pelo candidato a Presidente da
República pelo PT – Lula – de um grande empresário direitista –
José de Alencar – como candidato à vice-Presidência na chapa
petista, revela a decadência da esquerda parlamentar em sua evo-
lução rumo à direita. Durante os últimos 25 anos de eleições par-
lamentares, em que as massas, de maneira uniforme, serviram de
base aos políticos burgueses e aos grandes financiadores em todas
as campanhas eleitorais, a grande maioria da classe trabalhadora,
dos camponeses e dos desempregados, sofreu uma severa queda
em seu nível de vida. As campanhas eleitorais burguesas serviram
de fachada para legitimar o poder e as decisões das elites não eleitas
do FMI, do Banco Mundial e dos funcionários nativos a serviço
da burguesia no poder. Como resultado, os líderes políticos eleitos
levam adiante políticas conservadoras: a concentração das terras às
custas dos camponeses sem terra e dos pequenos produtores; a
corrosão dos direitos democráticos populares ao governar por de-
creto e ao apoiar uma legislação antitrabalhadores; a imposição de
uma política macroeconômica (o “neoliberalismo”), que destrói o
mercado interno, desgasta o controle da coisa pública e solapa a
propriedade dos setores estratégicos da produção, das matérias-
primas e das finanças. Contrapondo aos fracassos das políticas elei-
torais, a política da ação direta dos movimentos sócio-políticos do
Brasil, Equador, Argentina e de outros lugares, têm acumulado
vitórias com mudanças sociais e políticas significativas. O Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil, atra-
Desafios da luta pelo socialismo 89

vés de sua política de ocupações de terras, conseguiu o assenta-


mento de mais de 250.000 famílias. A CONAIE, do Equador, já
conseguiu destituir dois presidentes. Na Argentina, a união das
forças dos movimentos de desempregados (Piqueteiros), das orga-
nizações de vizinhos (panelas vazias) e dos jovens ativistas conse-
guiram o não-pagamento da dívida externa, a destituição de cinco
presidentes e, finalmente, criar um movimento popular de âmbito
nacional contra toda a classe política burguesa.
Em contraste com as vitórias práticas dos movimentos sócio-
políticos comprometidos com a ação direta de massas, a impotên-
cia, a corrupção e a cooptação da esquerda eleitoral salta à vista.
O processo eleitoral não tem impacto sobre as políticas dos
candidatos eleitos. Várias vezes, durante as campanhas eleitorais,
os candidatos burgueses e os de esquerda prometem a criação de
empregos, o ataque ao “neoliberalismo” e a defesa de um sistema
econômico mais eqüitativo. Entretanto, quando assumem seus
cargos, aprofundam e ampliam as privatizações, impõem novas
políticas de ajuste estrutural e aumentam a repressão à luta dos
movimentos populares. Os candidatos eleitos pelos partidos de
esquerda se vêem impotentes na oposição ou, muito pior, evolu-
em para alianças e colaboração com a direita, recebem grandes
salários e, paulatinamente, se distanciam das lutas das massas,
priorizando as atividades nas instituições. Freqüentemente, os
políticos de esquerda transformam os militantes que os ajuda-
ram a se eleger em funcionários de baixo nível e transformam os
movimentos em comitês eleitorais. A transformação dos parti-
dos socialdemocratas e populistas e seus líderes em adeptos do
neoliberalismo significa que as principais organizações que lu-
tam pela reforma agrária, pelo cancelamento da dívida externa,
pelo sistema nacional de saúde etc., são os movimentos sociais
de ação direta. Os velhos partidos socialdemocratas e populistas
90 James Petras

não são mais reformistas. São partidos que trabalham para o ca-
pital local, multinacional e imperialista.
O enfraquecimento do reformismo socialdemocrata está re-
lacionado com o fato de que a burguesia dominante já não é
“nacional” – produz para o mercado estrangeiro, deposita seus
lucros no estrangeiro, depende de financiamentos estrangeiros e
de tecnologia estrangeira Está integrada nos circuitos imperialis-
tas do capital. Os socialdemocratas dependem do capital exter-
no e não podem promover reformas sociais sem sofrer fugas de
capital, pressões financeiras etc.. Instados a abandonar as políti-
cas de colaboração de classes e a construir poderosos movimen-
tos de massas para realizar “reformas”, os socialdemocratas
esquecem as reformas e se acomodam nos interesses de seus sócios
capitalistas estrangeiros. O abandono pelos socialdemocratas de
seus programas reformistas de “bem-estar” social ilustra sua su-
bordinação e sua dependência da orientação do capitalismo de
mercado, das finanças e das redes imperialistas.
O fato de movimentos sócio-políticos, sindicatos e marxistas
continuarem apoiando “criticamente” os partidos ex-socialde-
mocratas, converte-os em reféns da burguesia neoliberal e em
traidores de seu compromisso com a transformação social.
Com o colapso do projeto neoliberal – ilustrado pela falência
da Argentina e pela recessão mundial – a possibilidade de refor-
mas sociais e de uma recuperação do estado de bem-estar capita-
lista é remota. As reformas pelo estado de bem-estar aconteceram
num período de expansão capitalista na Europa e nos Estados
Unidos, durante o período de 1950-1972, e na América Latina,
entre os anos de 1940 e 1970. Atualmente, os capitalistas vêem
os operários e os camponeses enquanto custo de produção para
os mercados externos e não como um consumidor para o mercado
interno.
Desafios da luta pelo socialismo 91

A polarização mundial provocada pela atual ofensiva militar


dos Estados Unidos enfraquece qualquer tentativa de as forças
reformistas organizarem coligações progressistas. O apoio dos
socialdemocratas à cruzada contra-revolucionária de Washing-
ton reforça as forças repressivas do Estado e a legislação repressi-
va dirigida contra as reformas propostas pelos movimentos
populares.
Os socialdemocratas, enredados na polarização cada vez mais
profunda entre o imperialismo e os movimentos populares, aban-
donam sua oposição ao militarismo, à ALCA e à dívida externa. A
recessão e a queda da arrecadação tornam impossível aos
socialdemocratas subsidiar as exportações e as empresas falidas,
socorrer instituições financeiras, pagar a dívida externa e, ao mes-
mo tempo, financiar reformas sociais para as classes populares.
A queda das exportações, a diminuição dos investimentos
estrangeiros e a queda do Produto Interno Bruto significam que
o projeto reformista, de apoiar o neoliberalismo ao mesmo tem-
po em que incrementa os gastos sociais, não é viável. O compro-
misso socialdemocrata de incrementar um modelo neoliberal no
momento em que os Estados imperialistas aumentam o protecio-
nismo e expandem a concessão de subsídios à sua agricultura,
significa que a crise socioeconômica na América Latina será
aprofundada e que seu regime político estará em crise perma-
nente. A possibilidade de se combinar reformas sociais com regi-
mes neoliberais é virtualmente nula.
Somente os movimentos populares revolucionários ou ra-
dicais podem levar a cabo reformas, no transcurso de uma
ação direta de massas, que edifiquem novas formas populares
de representação. As reformas duradouras somente serão pos-
síveis sob um novo Estado revolucionário de operários e cam-
poneses.
92 James Petras

A conjuntura atual: Obstáculos e oportunidades


A luta pelo socialismo nesta conjuntura exige que evitemos
dois conceitos errados: 1) a suposição de que o imperialismo
americano é onipotente e onipresente, que Washington automa-
ticamente terá êxito em tudo o que diz ou faz; 2) a suposição de
que o aumento das lutas populares na América atina, particular-
mente na Argentina, significa que estamos entrando em um novo
período revolucionário – em uma luta pelo Poder.
A ofensiva militar mundial dos Estados Unidos (sua rejeição
unilateral aos tratados de Kioto, de mísseis, de armas biológicas
etc., a marginalização da Europa/OTAN pelos americanos no
massacre do Afeganistão, seu apoio incondicional aos israelenses
no massacre dos palestinos, suas propostas de novas guerras con-
tra o Irã, o Iraque e a Coréia do Norte, a intervenção americana
em grande escala na Colômbia, a campanha para desestabilizar o
Presidente da Venezuela, Chávez, o colossal aumento dos gastos
militares...) tem a função de deter o declínio de seu poder e a
influência no mundo. Antes dos acontecimentos de 11 de se-
tembro de 2001, o Irã conseguiu enfraquecer o boicote dos Esta-
dos Unidos, ob tendo financiamentos e promovendo o comércio
com a Europa e a Ásia. O Iraque tornou-se membro efetivo da
OPEP e da organização internacional dos países islâmicos. A
Intifada Palestina e o Hezbollah, no Líbano, desafiam o poder
israelense. Na América Latina, Chávez, na Venezuela, rechaçou
a política imperialista americana – o bombardeio do Afeganistão,
o Plano Colômbia, os vôos americanos sobre o espaço aéreo
venezuelano e o cronograma dos Estados Unidos para a ALCA.
Os avanços militares e políticos das FARCs e a degradação do
regime fantoche de Pastrana, ameaçam o domínio americano e
seu controle sobre a Colômbia. O colapso do regime pró-Esta-
dos Unidos na Argentina, em dezembro, e os movimentos po-
Desafios da luta pelo socialismo 93

pulares ameaçaram o domínio americano em um país-chave na


América Latina. No Brasil, a radicalização do eleitorado, os cres-
centes protestos contra a ALCA, o crescimento dos movimentos
populares (como o MST) e o enfraquecimento do governo FHC
refletiram a queda da influência americana no maior e mais im-
portante país latino-americano.
A consolidação da União Européia e da sua moeda, o euro,
ameaçou a supremacia do dólar e dos Estados Unidos como san-
tuário para as fugas de capitais. Os conflitos comerciais com a
Europa resultantes dos subsídios e do protecionismo americano
desafiaram a retórica de Washington sobre mercados livres.
A militarização da política dos Estados Unidos e seu
unilateralismo expõem a volta em direção ao imperialismo
neomercantilista. Como reposta aos desafios mencionados, Wa-
shington adotou uma nova estratégia: o neomercantilismo. A
ALCA está fundamentada na idéia de um bloco comercial com o
objetivo de concorrer com a Europa e privilegiar os investimen-
tos e as exportações americanas. A defesa das posições econômi-
cas monopolistas dos Estados Unidos depende de uma
militarização cada vez maior e da intervenção americana para
proteger e subsidiar os setores não competitivos de sua econo-
mia. O neomercantilismo e a intervenção militar representam,
sérias ameaças para os movimentos populares. Entretanto, as bases
do poder imperialista dos Estados Unidos são vulneráveis e as
contradições e as crises do império americano são profundas e
crônicas, criando oportunidades para o avanço da luta pelo socia-
lismo.
Enquanto os Estados Unidos expandem seu poderio militar
pelo mundo afora e ameaçam os países de quatro continentes,
sua economia encontra-se fragilizada, precisando financiar seu
enorme déficit de suas contas com o exterior, não através de sua
94 James Petras

produção, mas com a emissão de dólares. Alguns de seus gigan-


tes corporativos (Enron, Quest, Crossways) quebraram e os in-
vestidores perderam a confiança nos assessores de investimentos
e nas agências contábeis de Wall Street. Os lucros sofreram redu-
ção, assim como as exportações. Excedente do orçamento ameri-
cano converteu-se num crescente déficit. Enquanto os gastos
militares aumentaram, há menos recursos para subsidiar e/ou
salvar as multinacionais em processo de quebradeira. E, o mais
importante, os bancos americanos e as “agências de crédito” es-
tão ameaçados por craques financeiros tipo Argentina, e por ne-
gativas ao pagamento da dívida, que pode causar a ruína do
império financeiro de Wall Street.
As duas forças motrizes do império americano estão se mo-
vendo em direções opostas: sua economia está em declínio, en-
quanto seus gastos militares expandem-se, o que causa
conseqüências insustentáveis. Mais ainda, as conquistas milita-
res têm, de um lado, os inevitáveis custos, mas, de outro lado,
não produzem lucros a curto ou a médio prazos. Os custos das
intermináveis guerras em escala mundial agravarão mais e mais o
já grave desequilíbrio entre os investimentos improdutivos da
expansão militar e a atividade econômica em queda.
A outra contradição encontra-se na transição dos Estados Uni-
dos para um império neomercantilista. Na versão atual do impé-
rio, o Estado imperialista tem um papel central no estabelecimento
da primazia econômica das corporações e dos bancos americanos.
O Estado imperialista aumenta os subsídios agrícolas para con-
quistar mercados externos, mantém ou introduz novas barreiras e
assegura, para as multinacionais americanas, contratos de recons-
trução nos países-cliente ao fim das guerras imperialistas. O Esta-
do imperialista provê subsídios para suas empresas exportadoras e
estabelece barreiras alfandegárias e cotas para proteção de suas in-
Desafios da luta pelo socialismo 95

dústrias cada vez menos competitivas (aço, automóveis etc.). Os


Estados Unidos insistem no Acordo Latino-americano de Livre
Comércio, que é um tratado comercial promovido pelo Estado e
destinado a privilegiar os investimentos americanos à custa dos
competidores europeus e japoneses.
A melhor explicação para a postura militarista e unilateral de
Washington encontra-se em seu redirecionamento rumo ao
neomercantilismo: a intenção de assegurar vantagens comerciais
– não pela competência do mercado, mas através de decretos
unilaterais de Estado e pela intervenção militar, que intimida os
competidores e enfraquece ou desorienta o desenvolvimento de
sua economia.
Entretanto, o neomercantilismo acirra os conflitos e provoca
maiores rivalidades entre os países imperialistas. A Europa tem
denunciado as ameaças americanas contra os Estados produtores
de petróleo do Golfo – Iraque e Irã – com os quais vem
incrementando, tanto os investimentos, quanto o comércio de
petróleo. Os países asiáticos, como a China e a Coréia do Sul,
têm contestado as ameaças militares americanas contra a Coréia
do Norte – ameaças essas que abalam o comércio e a ampliação
dos investimentos interasiáticos. A aliança militar dos Estados
Unidos com Estados árabes seus apaniguados é a contrapartida
aos esforços da União Européia em tentar estreitar as relações
com a Associação dos Estados Islâmicos. Na América Latina, a
EU está promovendo um acordo de integração e de livre comér-
cio com o MERCOSUL, a organização regional de comércio
que inclui o Brasil, a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e a Bolí-
via. Enquanto que a diferença de poderio militar entre os EUA e
a EU se amplia, o mercado integrado da EU e seus vínculos com
o exterior proporcionam um formidável desafio à construção do
império neomercantilista. À medida que as tensões e os conflitos
96 James Petras

são exacerbados, as rivalidades poderiam causar um impacto com


o enfraquecimento das bases econômicas do império militar
americano e seus esforços para debilitar a sociedade européia.
Por exemplo, logo após as conquistas militares americanas no
Afeganistão, estes se negam a cooperar com os europeus visando
a erradicação dos cultivos de drogas, com um potencial de pro-
dução de 4.500 t de ópio e 450 t de heroína – das quais 150 t
irão abastecer a Europa e ameaçarão seu tecido social. (Financial
Times, 18 de fevereiro de 2002, p. 3)
Segundo, a invasão militar americana e os bombardeios vito-
riosos não produzem áreas propícias a investimentos e que pro-
duzam lucros: áreas potenciais para investimentos são destruídas
e são formadas economias corruptas, tribais e mafiosas, como
aconteceu em Kôsovo, na Albânia, na Macedônia e na Bósnia.
No Afeganistão, os senhores tribais da guerra estão combatendo
selvagemente por todo o país, inclusive em Cabul. Os regimes
apaniguados de Washington acabam como Estados falidos, sem
lei, incapazes de impor as mínimas condições de segurança, me-
nos ainda de estabelecer as condições básicas para investimentos.
Enquanto Rumsfeldt compara favoravelmente a conquista mili-
tar do Afeganistão com o uso de alta tecnologia com a
“bliekzkrieg” nazista na Europa (Financial Times, 18 de fevereiro
de 2002, p. 4), a inovação no uso de armas guiadas pelo laser não
produz o menor impacto para tirar os EUA de uma recessão
industrial que já dura dois anos.
O imperialismo de Washington, exatamente pelo fato de ter
vinculado seus Estados apaniguados do exterior com o mercado
americano, espalhou sua crise pelo mundo todo.
Todos os assim chamados “Estados protegidos neoliberais”
tiveram redução em suas exportações, queda mos preços de suas
mercadorias e tiveram muitas de suas empresas falidas. A ban-
Desafios da luta pelo socialismo 97

carrota da estratégia de crescimento “com base nas exportações”


significa que os Estados apaniguados apresentaram sérias difi-
culdades em suas receitas e em seus rendimentos, que os impe-
dem de importar alimentos básicos e produtos acabados ou
semi-acabados, o que provoca taxas negativas de crescimento,
queda nos níveis de vida e pressões pela renacionalização das in-
dústrias estratégicas e dos bancos, assim como uma mudança
estratégica: a produção para o mercado interno.
A oposição ao domínio americano e europeu alastrou-se, desde
os desempregados e os pobres do campo a uma classe média
empobrecida e com mobilidade social descendente. Isto está bas-
tante claro na Argentina, onde a classe média teve todas as suas
economias confiscadas pelo regime apaniguado em colaboração
com os bancos estrangeiros. Como resultado, pela primeira vez
na história recente da Argentina, a classe média desse país
radicalizou suas exigências para incluir um amplo conjunto de
reivindicações antiimperialistas.
Por último, e o mais importante, a intervenção militar dos
EUA em defesa de seus apaniguados e sua dependência quase
exclusiva da guerra e das ameaças militares, está criando uma
polarização favorável à esquerda, o que faz aumentar a oposição
aos EUA e o isolamento de seus aliados.
As 50.000 pessoas em passeata contra o Acordo de Livre
Comércio, por ocasião do II Fórum Social Mundial, em Porto
Alegre, em 4 de fevereiro de 2002, representam apenas a ponta
de um “iceberg” da crescente oposição popular. Centenas de
milhões de dólares de ajuda às forças militares e paramilitares da
Colômbia não foram suficientes para modificar o equilíbrio das
forças da guerrilha e dos militares desse país. Pelo contrário, de-
formou ainda mais a economia do país e fortaleceu a oposição
das organizações cívicas.
98 James Petras

Na Bolívia, no Paraguai e no Equador, as mobilizações de


massas, as greves gerais e os bloqueios de estradas têm sido mais
amplos e efetivos ao paralisar a economia, desacreditando os re-
gimes apaniguados.
No Brasil, o papel ativo dos movimentos populares e dos
partidos de origem marxista nas lutas de massas ainda exerce
uma poderosa influência em importantes setores da população.
Ainda mais importante, o incessante caráter de massa dos levan-
tes populares na Argentina e a renúncia imposta a cinco presi-
dentes (“num curtíssimo espaço de tempo”) são indicadores do
potencial revolucionário nesse país.
Entretanto, esta contra-ofensiva popular – que, apesar da
política de militarização global de Washington, segue em frente
– tem suas limitações. Muitos dos movimentos de massas lutam
por reivindicações específicas (comida e trabalho, por exemplo,
para os desempregados argentinos); os movimentos são regio-
nais e setoriais e ainda não contam com uma condução nacional
capaz de propor o desafio da tomada do poder. Muitos dos diri-
gentes ativistas desafiam os regimes apaniguados, mas, rapida-
mente, negociam acordos de curto prazo (a maioria dos acordos
nunca é cumprida pelo Estado). Dessa forma, entra-se num cír-
culo vicioso de mobilização: ação direta – confrontação – nego-
ciação – acordos – promessas não cumpridas – mobilização etc.
etc. No entanto, já existem sinais importantes de um grande avan-
ço nas questões políticas. Muitos dos ativistas e militantes lati-
no-americanos estão totalmente desiludidos com os líderes
eleitorais de esquerda. O pacto de Lula com o Partido Liberal e
seu amplo apoio à política pró-capitalista obrigam à maioria da
esquerda conseqüente a se voltar para a ação direta de massas e,
possivelmente, para a formação de um novo pólo socialista. Na
Argentina, as lutas nos bairros, nos subúrbios empobrecidos da
Desafios da luta pelo socialismo 99

classe trabalhadora, dos desempregados, dos setores da classe


média com mobilidade social descendente, do funcionalismo, a
data significativa não é o 11 de setembro, como quer Bush, mas
os dias 19 e 20 de dezembro, os dias das barricadas e da derrota
do regime fantoche neoliberal no poder.

Conclusão
Estamos vivendo um período de guerras imperialistas, levan-
tamentos populares, crescente militarização e polarização política
e social.
A intenção de Washington de formar uma aliança contra-
revolucionária mundial mostra fissuras cada vez mais profun-
das. As bases econômicas do império apresentam enormes falhas.
E a resistência popular está em fase de expansão nos países co-
lonizados.
As alternativas reformistas, mesmo que ainda atuantes, já não
são viáveis. Os políticos voltados para as eleições e para os parla-
mentos encontram-se cada vez mais isolados das grandes con-
frontações históricas. As grandes máquinas sindicais já não
controlam nem detêm as lutas das massas. E é no interior dessas
lutas que o socialismo está ressurgindo, tanto das cinzas da expe-
riência stalinista derrotada e desacreditada, quanto de uma
socialdemocracia igualmente corrupta e servil, chafurdada na lama
neoliberal.
A luta pelo socialismo ressurge inicialmente através de uma
série de reivindicações por mudanças estruturais: reforma agrá-
ria, renacionalização dos bancos, dos sistemas de telecomunica-
ções e dos recursos estratégicos. No entanto, o avanço do
socialismo não se desenvolve de forma linear: sofremos derrotas
e retrocessos, com dirigentes históricos da classe trabalhadora,
como Lula e o Partido dos Trabalhadores, no Brasil, comprome-
100 James Petras

tendo-se com a reação e desorientando seus partidários da classe


operária. Um regime neoliberal é derrubado (De La Rúa) e subs-
tituído por outro (Duhalde) na Argentina. Interrupção de rodo-
vias e greves na Bolívia desafiam o Estado, mas terminam
repentinamente sem tocar nas questões fundamentais. Na Co-
lômbia, a insurreição popular desenvolve-se de forma desigual:
poderosa no campo, fraca nas cidades. E as rivalidades pessoais e
divisões entre “reformistas” e revolucionários continuam.
A coordenação internacional entre os movimentos nacionais
e a organização de manifestações internacionais deve ser parte
integrante do calendário político. As lutas nacionais, os movi-
mentos localizados formam militantes revolucionários conscientes
no interior dos movimentos. O império não pode estar sempre
em todo lugar, não é onipresente. À medida que a luta pelo socia-
lismo se estende dos militantes para as massas, a ameaça da re-
pressão e da propaganda contra-revolucionária deixa de intimidar
os movimentos de massas. Os desempregados, os empobrecidos,
os desamparados, com os olhos famintos e os punhos cerrados,
avançam: a questão é quem organizará a luta pelo poder político
socialista.

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