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‘aos Itracerais de Catdegaeo na Piao (IP) {Gare Brasiora 0 Uva, 8, ers ‘oosinho Sar, apo de pone, 956450. © twesroivo / Sato Ageia; braduedo, organzact, iodo @ sates Nave hans Cita; revsto Hondo Dabesoo] Sia Pau: Pau, 1865. (Pateea) Ison 05.50.0056 1. Lare-arivie«detemineno 2. Lirearive «determine — Ensine- mena bilan | Olver, Na Ass. Tl. Si ozo con2ss7 indeas para cag stares: ‘Ubedade rene bin“ Dewting crt 288.7 2 Uwe ars Ensno belo = Dovna csi 28.7 Colegio PATRISTICA 1. Paes Aposoios 2 Paares Apoogsiss 5 Sutin de Rom 2 Vou ge Uso Samo Agta, 4 Tondace Sante Agosto, Olea 7 ATandase 8. Roost 2 Olea, © agosinte ‘98; Comantro aoe Saios (Saios 1.50 S. Agostaho 52 Comentine aos Samos (Stes 57-100), 8, Agena 813. Comentin a Samos (Samos 107-10), 8. Mgostaho "0. Conasbes, 8. Agostino. 1 Sonus wt ft, 8. Agestone 12.A Grp) Sato Agosto. 13,4 Gaga. Apo (n el) SANTO AGOSTINHO O LIVRE-ARBITRIO 2 edigao Paulus “Tonga Better ato “radu doc! tino coed com vores em ance @em espanol ‘rae, organzagio esto @notas Tatas sans Olvera Hons Dabesco Diegto Esto Pes ktana! Gua ePAUIUS— 1095 os rancace Cun, 229 bett7 201 to Paci (Gras Fax 011) 709627 ‘al 1) ase9068 Ips sla br Groserakgpaiusone PAULUS ada ce S80 Palo 2885 apearto Porias) Fae (0) 9460078 | Tal on ssras 152 05 19-0558 APRESENTACAO ‘Surgiu, pelos anos 40, na Europa, especialmente na Franca, um movimento de interesse voltado para os anti- 4g0s escritores cristaos e suas obras, conhecidos, tradicio- rnalmente, como “Padres da Igreja” ou “Santos Padres”. Esse movimento, liderado por Henri de Lubac e Jean Daniélou, dew origem ts colegdo "Sources Chrétiennes’ ‘hoje com mais de 300 titulos, alguns dos quais com vdrias ‘edigées. Com 0 Coneilio Vaticano II, ativou-se em toda a Igrejaodesejo eanecessidadede renovagao da liturgia, da cexegese, da espiritualidade e da teologia a partir das fontes primitivas. Surgiu a necessidade de “voltar as fontes” do cristianismo, ‘No Brasil, em termos de publicapao das obras destes. autores antigos, pouco se fez. Paulus Bditora procura, ‘agora, preencher este vazio existente em lingua portugue- ssa. Nunca é tarde ou fora de época para rever as fontes da {fécrista, 0s fundamentos da doutrina da Igreja, especial- ‘mente no sentido de buscar nelas a inspiragao atuante, transformadora do presente. Nao se propde uma volta ao pasado através da leitura e estudo dos textos primitivos ‘como remédio ao saudosismo. Ao contrdrio, procura-se oferecer aquilo que constitui as “fontes” do cristianismo Para que leitor as examine, as avaliee colha oessencial, © espirito que as produziu. Cabe ao leitor, portanto, a APRESENTACAO 6 tarefa: do discernimento. Paulus Editora quer, assim, oferecer ao puiblico de lingua portuguesa, leigos, clérigos, religiosos, aos estudiosos do cristianismo primevo, uma série de titulos, ndo exaustiva, cuidadosamente traduzi- dos e preparados, dessa vasta literatura erista do periodo ristico. Pair ara no sobrecarregar o texto eretardar@ letra, ‘procurou-se evitar anotagdes excessivas, as longas intro- dugées estabelecendo paralelismos de versdes diferentes, ‘com referéncias aos empréstimos da literatura paga, filo: ‘séfica, religiosa, juridica, as infindas controversias sobre determinados textos e sua autenticidade. Procurou-se fa~ zercom que resultado desta pesquisa original se tradu: ‘isse numa edigdo despojada, porém séria. Cada autor e cada obra terdo uma introdugdo breve com os dados biograficos essenciais do autor e um comen- ‘rio sucinto dos aspectos literdrios e do contetido da obra suficientes para uma boa compreensao do texto. O que interessa é colocar o leitor diretamente em contato com 0 texto, O leitor deverd ter em mente as enormes diferengas de géneros literdrios, de estilos em que estas obras foram redigidas:cartas, sermées, comentérios btblicos, pardfra- ses, exortasées, disputas com os heréticos, tratados teol6- agicos vazados em esquemas ¢ categorias filoséficas de tendéncias diversas, hinos littirgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade de tratamento e de esforgo de compreensio a um mesmo tema, As constantes, por vezes longas, eitagdes biblicas ou simples transcri- ‘900s de textos escrituristicos devem-se ao fato de que os padres esereviam suas reflexes sempre com a Biblia numa das méos. Julgamos necessério um esclarecimento a respeito dos termos pairolagia,paristiea ¢ padres ou pats da Igreja. O termo patrologia designa, propriamente, 0 estu- do sobre a vida, as obras ea doutrina dos pais da Igreja 7 APRESENTAGAO Ela se interessa mais pela historia antiga incluindo tam- ‘bém obras de escritores leigos. Por patristca se entende 0 estudo da doutrina, as origens dessa doutrina, suas de- pendéncias e empréstimos do meio cultural, floscfico ¢ ‘pela evolugéo do pensamento teoldgico dos pais da lgreja Foi no séeulo XVI que se criow a expresséo “teologia atristica” para indicar a doutrina dos padres da Igreja, distinguindo-a da ‘“teologia biblica’, da “teologia escoldstica”, da “teologia simbélica” e da ‘teologia especulativa”. Finalmente, “Padre ou Pai da Igreja" se refere a um leigo, sacerdote ou bispo, da antiguidade crista, onsiderado pela tradigao posterior como testemu- nko particularmente autorizado da fé. Na tentativa de eliminar as ambighidades em torno desta expresstio, 08 ‘estudiosos convencionaram em receber como “Pai da Igre- Ja” quem tivesse estas qualificasées: ortodoxia de doutri- nna, santidade de vida, aprovacaoeclesidsticaeantiguida- de, Mas os préprios conceitos de ortodoxia, santidade ¢ antiguidade so ambiguos. Nao se espere encontrar neles doutrinas acabadas, buriladas,irrefutdveis. Tudo estava ‘ainda em ebuligdo, fermentando. O conceito de ortodoxia 4 portanto, bastante largo. O mesmo vale para o conceito de santidade. Para o conceito de antiguidade, podemos ‘admitir, sem prejutzo para a compreenséo, a opinido de ‘muitos especialistas que estabelece, para o Ocidente, Igre- Ja latina, o pertodo que, a partir da geragao apostélica, se ‘estende até Isidoro de Sevilha (560-636). Para o Oriente, Igreja grega, a antiguidade se estende um pouco mais até a morte de s. Jodo Damasceno (675-748). Os "Pais da Igreja” sao, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos, foram forjando, cons- truindo.edefendendo a fe, aliturgia, adisciplina, os costu- ‘mes e 08 dogmas cristaos, decidindo, assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussoes, de inspiragdes, de referéncias obrigatérias ao longo detodaa [APRESENTAGKO 8 tradigdo posterior. O valor dessas obras que agora Paulus Editora oferece ao puiblico pode ser avaliado neste texto: “Além de sua importancia no ambiente eclesidstico, 08 Padres da Igreja ocupam lugar preeminente na literatura «, particularmente, na literatura greco-romana. Sado eles ‘osultimos representantes da Antiguidade, cwjaarteliteré- ria, néo raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores. For- mados pelos melhores mestres da Antiguidade cldssica, ‘lem suas palavras e seus escritos a servigo do pensamen- to cristdo. Se excetuarmos algumas obras retéricas de cardter apologético, oratorio ou apuradamente epistolar, ‘0s Padres, por certo, ndo queriam ser, em primeira linha, literatose, sim, arautosda doutrinae moral cristas. Aarte adquirida, nao obstante, vem a ser para eles meio para alcangar este fim, (...) Hd de se thes aproximar oleitor com ‘0 coragdo aberto, cheio de boa vontade e bem disposto & verdade crista. As obras dos Padres se the reverteréo, assim, em fonte de luz, alegria e edificagao espiritual” (B. Altaner; A. Stuiber, Patrologia, S. Paulo, Paulus, 1988, pp. 21-22). A Editora “Prometi mostrar que hd um Ser, ‘muito mais sublime do que 8 nots expinto ‘a nose rasdo, Bile: propria Verdade!™ 138,38) “Ser sabedoriaoutra coisa ndo ser "2 Verdade, na qual se contempla es possi ‘sumo Bem? 128) “0 Sabedora! Luz suavissima da ‘mente purificada.® 138,85) INTRODUCAO, 1. Dados e ocasido da obra Apés sua conversio, em Milo, no ano 386, Agostinho viveu alguns meses na feliz tranguilidade da chécara de Cassiciaco, com sua mae, familiaresediminutomtimerode diseipulos. Dedicavam-se ai aos trabalhos campestres, & contemplacio ea reflexiofilossfica. Colhemos os frutos de seus coléquios, nos famosos dislogos: “Contras Académi- 03", “A vida feliz", “A Ordem” e nos “Solildquios”. "Na Pascoa de 387, ele ecebeu a graga do batismo das ios do bispo de Milao, santo Ambrésio. Propunha-se retornara sua terra natal,em Tagaste,na Africa doNorte, para ai consagrar-se com seus amigos a uma vida de oragio e estudo, como monges. Enquanto aguardavam a partida da embareagdo, em Gctia, porto de Roma, no més de outubro, sua santa mie Ménica falece, apés breve enfermidade. Passada a como- cdo do desenlace, Agostinho decide permanecer em Roma 6 inverno de 387 e todo o ano de 388. Preocupado como estava de defender-se do mani- quefsmo e alertar a seus amigos, compés diversos trata- dos, entre outros: “Demoribus Beclesiae Catholicae” e“De moribus maniquaeorum”, e a presente obra: “De libero arbitrio". Aredagdo desta tltima, porém, iniciada em 388, rio péde ser terminada. Apés o regresso a Tagaste, continuou-a, mas naohavia ainda sido concluida, quando, em 391, foi constrangido a ser ordenado padre, por insis- téncia do povo de Hipona. Somente ai, como presbitero, Agostinho conseguiu pér termo ao trabalho, entre 394 € 396. ernopucio 2 Como prova dessa data, temos uma carta sua 20 ‘amigo Paulino, bispo de Nola (carta 31,7), doinfciodoano 396, Junto’ missiva, enviava um exemplardos és livros de“O livre-arbitrio", reeém-terminado, 2. Boédio A obra, em forma dialogada, é em grande parte 0 relato das conversas de Agostinho com Evédio, seu amigo econterriineo. Era este jé homem formado, quando conh ceu Agostino. Fora a principio militar, tendo depois dedicado as Letras. Convertido em Milao, recebeu obat ‘mo pouco antes de Agostinho. Ficou a seu lado, apés a mortedeMénica,em Roma, eem seguida oi para Tagaste, participar da primeira comunidade de monges. Mai tarde, em 396, tornou-se bispo de Upsala, perto de Utica, na Africa proconsular. Neste dialogo como em outro, igualmente mantido com Agostinho, o“De quantitate animae” (Sobre a gran- deza da alma”), vemo-lo sempre ser tratado com muita deferéncia e respeito. Suas insisténcias contribuem a trazer aosdidlogos mais vida, mais igor nas provas e, por vezes, mais complexidade e desenvolvimento. Acontece que no livro II da presente obra, Evédio, a partir do eap. 5,12, aparece apenas brevemente uma \iniea vez, no cap. 12,46, Deverse essa auséncia pelo fato de ele no ter acompanhado seu amigo até Hipona. Entre as epistolas agostinianas, conservam-se 4 car- tas por ele dirigidas a Agostinho. A essas, deve-se acres- centar uma, descoberta hé apenas alguns anos por Dom Bruyne. Saoasdemimeros: 158, 160, 161¢ 163, E dobispo de Hipona a ele, conservaram-se apenas trés cartas: riimeros 159, 162 ¢ 164. Morreu Evédio seis anos antesde seu mestreeamigo, em 424, 13 ntRODUGAO 8. Formagao ideolégica do livro Esta importante obra tem como tema o problema da liberdade humana e o da origem do mal moral. Desde a suaadolescéncia, Agostinho preocupava-secomtais ques- tes, uma das causas de sua adesao a0 maniqueismo foi a esperanca de af encontrar uma solugio para as suas duvidas. Contudo, as fébulasheréticas nao osatisfizeram or muito tempo. Teve que prosseguir a angustiante busca da verdade. Essa fase é bem deserita em suas “Confiasdes". Leia-se 0 . I, caps. 3 ¢ 7. ‘Nao podia Agostinho suportaraidéia de que Deus fosse causa do mal. Enfim, em Miao, enquanto a eloguéncia de Ambrésio trazia-o de volta ao catolicismo, a leitura do neoplaténioo Platine trouxe-Ihe alus tdodesejada. Todavia, ainda ndo uma resposta definitivae plena Bem diregdo a Deus que Plotino condusiu Agosti- ho, para levéclo a certeza de um Criador bom e podero- 40, fonte de toda realidade. Desse modo, o mal nao po- dia ter lugar entre os seres, nem prejudicar a exceléncia 4a obra divina. Tampouco poderia o mal impedir ao ho- mem que quisesse, encontrar em Deus a paze a felicide- de. O problema jé fora por Agostinho tratado em seu didlogo“A Orden". Mas. temiveldificuldade quem Cas- siclaco ele ndo ousara enfrentar, consistia na existéncia do“pecado”. Com efeito, é bastante facil demonstrar que ‘mal fisico resolve-se com a Providéneia divina laso por- que o mal visto no conjunto néo é mais um malefcio, mas sim uma contribuigdo eo bem comum eabeleza da rdem, ‘Atéesse onto, atese neoplatinicaosatisfazia. Mas po- deria ser ditoo mesmo do mal moral, que se opie diretamen- tea vontade de Deus? Plotino dava resposta inadmissivel a essa questio perturbadora.Alegava ser amatériaessencial- ‘mente mé, ea esponsével pelomal. Agostinhonao levouer consideracdotal resposta. Mas, guiadopor seu génioe gragas TRoDUCAO 4 ‘as preciosa retifcagies que af eatlica Ihe proporcionava, ‘le propde, com coragem, uma solugéo racional. Oiintento geral de 0 livre-arbitrio aparece assim com clareza, desse ponto de vista, Segundo os dados da fé, Deus todo-poderoso.e Bem supremo criou todas as coisas por meio deseu Verbo,e nada pode escapar a ordem de sua Providén- cia, Todas as suas obras tio boas. O pecado nao pode lhe ser imputado, nem ficar fora da ordem providencial. Diz. Agos- ‘inho: “B' preciso compreender aquilo em que cremos” (12,4; 1,26). Ble procura explicar pela razao a origem do pecado e seu papel na obra de Deus. Em conclusio, chega a ‘afirmar em sintese a fonte do mal moral, o pecado, est no ‘abuso da liberdade, mas esta é um bem. Insiste nisso com ‘tamanhaforga queospelagianos, mais tarde, invocardo, em ‘azo, suas afirmagSes para sustentar as préprias teses. 4, Breve sintese das idéias fundamentais Antes de tudo, para descobrir a origem do pecado, 6 preciso saber qual a sua esséncia. Ora, cometer omal néo ‘nada mais do que submeter sua vontade as paixdes, ou preferir aos bens propostos pela fé eterna uma satisfagéo pessoal. E isso 86 & posstvel pela livre opgao de nossa vontade (livro I). OlivroIl 6ocoragoda obra. Num método ascensional, ‘Agostinho prova a existéncia de Deus, autor de todo bem. Ea vontade livre, mesmo fraca, nao se pode recusar um lugar honroso entre os bens criados. O livro III é complemento e esclarecimento dos livros anteriores. Trata da Providéncia de Deusem face ao seres, livres. Portanto, sempre louvar a Deus por ter criado a vontade livre, mesmo pecadora, como um elemento da ordem universal. Por certo, 0 pecado no depende da presciéncia divina, e nao é necessério & ordem. Sua pre- senca, porém, ndo consegue tornar aordem atual indigna 6 NTRODUCAO de Deus. A ultima palavra a respeito do pecado, como do ‘mal fisico, sera sempre: “Louvores a Deus!” ‘Tal 6 a trama essencial, simples e poderosa de “O livee-arbitrio’ 5. Andlise do andamento dos trés livros Note-se que a divieio em capitulos e ntimeros est conforme o original latino. Todavia, as divisies em partes, fe seegdes, assim como os titulos dados, para melhor com- preensio da leitura, é de autoria da tradutora. ‘Nas Notas complementares encontrar-se-io sinteses dos assuntos tratados, & medida do decorrer dos temas. 6. O livre-arbitrio e 0 maniquetsmo Sem diivida alguma, este diélogo foi especialmente escrito contra os erros dos maniqueus, sem todavia cons- tituir uma obra polémica. Tendo-se convertidoesentindo- ‘se no caminho da verdade, Agostinho sentia necessidade de recuperar-se, a sie aos amigos. Eis uma breve sintese da teoria maniquéia: Para os ‘maniqueus, havia duas divindades supremas a presidiro universo: 0 prinefpio do Bem eodoMal—aluzeastrevas. ‘Como conseqiiéncia moral, afirmavam ter o homem duas almas. Cada uma presidida por um desses dois prine‘pios. Logo, o mal é metafisico e ontolégico. A pessoa nao é livre nem responsdvel pelo mal que faz. Este lhe é imposto. 7.A solugdo do problema do mat na interpretagao de Agostinho Ao grande problema do mal, conseguiu Agostinho apresentar uma explicagao que se tornou ponto de referés cia durante séculos e ainda hoje conserva a sua validade. muTRoDUCKO 16 —Se tudo provém de Deus, que é 0 Bem, de onde provém o mal? Depois de ter sido vitima da explicagao ualista maniquéia, como vimos, ele encontra em Plotino a chave para resolver aquestio: o mal nio é um ser, mas deficigncia e privagao de ser. B ele aprofunda ainda mais a questio. Examina 0 problema do mal em trés niveis: a) metafisico-ontalégico; ) moral; fisio. — a) Do ponto de vista metafisico-ontoligico, nao existe mal no cosmos, mas apenas graus inferiores de ser, em relagio a Deus, graus esses que dependem da finitude do ser eriado e dos diferentes niveis dessa finitude. Mas mesmo aquilo que, numa consideracao superficial, parece “defeito"(e portanto poderia parecer mal), na realidade, na ética do universo, visto em seu conjunto, desaparece. ‘As coisas, as mais infimas, revelam-se momentos articu- lados de tum grande conjunto harménico. —b) O mal moral é 0 pecado. Esse depende de nossa mé vontade. E'a ma vontade nao tem “causa eficiente’, sim muito mais, “causa deficiente”. Por sua natureza, a vontade deveria tender para o Bem supremo. Mas, como cexistem muitos bens eriadose finitos, a vontade pode vir a tender a eles e, subvertendo a ordem hierérquica, preferiracriatura a Deus, optandopor bens nferiores,em ver dos hens superiores. Sendo assim, omel derivado ato dequeniohé um inicobem, sim muitos bens, con do precisamente o pecado na escalha ineorreta entre es- sos bens. O mal moral, portando, é ‘aversio a Deo” e ‘conversio ad ereaturam”. O fato de se ter recebido de Deus uma vontade live é para nés grande bem. O mal é ‘o mau uso dese grande ber. —€) 0 mal fisico, como as doencas, os sofrimentos ‘¢a morte, tem significado bem preciso para quem reflete na fé: 6 a consequéncia do pecado original, ou seja, 6 conseqiiéncia domal moral. Acorrupsiodo corpoque pesa ” eTmoDuGao sobre a alma no éacausa, masa pena do primeiro pecado (cf.G.Reale,D. Antiseri, “Hist. da Filosofia", Paulus, pp. 455. 456). 8. As “Retractationes” ¢ a resposta aos pelagianos No precioso livro de revisio de suas obras, tio con: cienciosamente elaborado pelo bispo de Hipona, no nal de sua vida, a noticia a respeito de *O livre-arbitrio” 6 das mais longas e importantes. Encontramo-la. no LI,9,16. ‘A posicao de Agostinho é muito clara. Bxplica le que setratavaentdo, naquelaccasiao,derefutaros maniqueus, 8 quais negam o livre-arbitrio da vontade e pretendem fazer recair em Deus a responsabilidade pelo mal e pelo pecado. E contra eles que o tratado insiste,valorizando grandemente 0 papel da liberdade humana. A tal ponto que, na controvérsia pelagiana, advinda anos apés, Pelé- gio nao hesitou em se servir do “De libero arbitrio” para atacar a doutrina eatélica do pecado original. Pretendeu até tirar da obra argumentos de certas férmulas antima- niguéias de Agostinho. O doutor de Hipona assinala 13 passagens das quais os pelagianos poderiam abusar con- tra ele, Mas em ver de responder sucessivamente as dificuldades apresentadas por essas passagens, ele prefe- re lembré-las em bloco. No final, toma resolutamente a ofensiva para explicar em que sentido falou sobre a li berdade. E lembra, vitoriosamente, que, pelo menos em quatro lugares, fez mengio da acio indispensével da graga de Deus. Na verdade, nao se pode argumentar do mesmo ‘modo contra a doutrina dos maniqueus ea dos pelagianos... Leiam-se as notas complementares desta edigdo: —no |. In, 28(12, 26), 30(13,28); 33(14,80); nol In, 20,2); 60(18,47); —no | Il: n. 82(18,50); 84(18,52); 40(20,58). rnopucko 18 Em conclusao, constatamos que se é certo que Agos- tinho, no presente didlogo, ndo fala com insisténeia sobre ‘a graca como medicina e socorro do livre-arbitrio, porém insinua-a vérias vezes. Numa delas, expressamente (11,20,54). O que ele repete, uma e mil vezes, é que 0 ho- mem élivre para fazer obem e que nao ¢forcado.acometer mal por nenhuma necessidade. Se o homem peca, a culpa é sua. Agostinho insiste fortemente na bondade cessencial e infinita de Deus. Sem o livre-arbitrio nao ha- veria mérito nem desmérito, gloria nem vitupério, res- ponsabilidade nem irresponsabilidade, virtude nem vicio (cf. BAC III, Introducao, p. 246). Santo Agostinho, na verdade, constituiu-se 0 de- fensor de nossa liberdade e da graca divina, ao mesmo tempo. 9. A vontade, a liberdade e a graca Etienne Gilson resumiu de modo muito eficaz 0 pensamento agostinianosobreasrelagéesentrea liberda- de, a vontade e a graca, da seguinte forma: “Duas condi- es so exigidas para fazer o bem: um dom de Deus que 6 a graca e o livre-arbitrio. Sem o livre-arbitrio nao haveria problemas; sem a graga, o livre-arbitrio (apés 0 pecado original) nao quereria obem ou, seo quisesse, nao conseguiria realizé-lo. A graca, portanto, nao tem oefeito de suprimir a vontade, mas sim de torné-la boa, pois ela se transformara em ma. Esse poder de usar bem o livre- arbitrio 6 precisamente a liberdade. A possibilidade de fazer omal 6 inseparével do livre-arbitrio, mas o poder de no fazé-lo 6 a marca da liberdade, E o fato de alguém se encontrar confirmado na graca, a pontode nao poder mais fazer 0 mal, 6 0 grau supremo da liberdade. Assim, 0 homem que estiver mais completamente dominado pela raga de Cristo sera também o mais livre: ‘libertas vera 19 erRoDUGAO est Christo servire” (cf. Gilson, “Introduction a rétude de Saint Augustin’, pp. 202s) 10, Agostinho,fildsofo ou teélogo? A presente obra é considerada como uma das que melhor apresenta o pensamento filoséfico de Agostinko. ‘Mas sabemos que, para ele, o estudo da filosofia sempre {foi caminhada para Deus eno pura ocupacio intelectual. Ea sabedoria, certa posse beatificante de Deus. Dessa maneira, Agostinho foi sobretudo tedlogo, e até os seus trabalhosfiloséficos sao dirigidos para. teologia.“Olivre- arbitrio” 6 exemplotipico disso. Nao obstante, em suas pesquisas racionais, a Revela- so no intervém diretamente. Mostra-se apenas como tum ponto de apoio indireto. teocentrismo agostiniano é fundante. Sera pela idéia de Deus que se estabelece a comunicagaoentrefilosofia eteologia. Inclusive aidéia de Deus, em plano natural, encontra-se necessariamente enriquecida por toda uma contribuigdo sobrenatural, Repousa sobre ela, como em sua base normal. ‘As principais passagens em que Agostinho refere-se expressamente ao plano teoldgico, nesta obra, sio as seguintes: 1125; 6,14; 1 IL: 26; 8,24; 11,30; 14,87; 16,99; 20,54; 1. IIE 9,28; 10,31 e quase toda a 3* Parte: 17,47 a 25,76. 1. Apreciagao geral da obra Este livro é realmente um grande tratado de porte e duragdio. Obra extensa, profunda e decisiva, deimportan- cia excepcional, pelos muiltiplos e graves problemas estu- dados, sobretudo aquele fundamental, a respeitoda natu- ernopucio 20 reza, origem e causa do pecado, assim como a responsabi- lidade humana por seus atos livres (cf. Pe. E. Seijas, BAC II, p. 240). ‘Apresenta Agostinho uma demonstracdo racional da ‘moral, fandamentando-a. Nao seria suficiente, para ele, ‘uma explicagao psicolégica do livre-arbitrio. Tampouco, contenta-se com a contribuigao da f6, pois recorre expres- samente & razdo (II,2,5.6) ‘0 que hé de mais valioso na obra 6 a prova da existéncia de Deus. E ela original de Agostinho. Jé fora exposta de modo abreviado em “A verdadeira religiao” (90,54-56; 31,57), todavia encontra-se aqui exposta de maneira mais extensa. ‘Edenominada a prova pela verdade, pelas idéiaseternas,ou ‘melhor, prova pela via do esptrito. 86 a razao argumenta. Outro ponto de particular valor é a doutrina exposta sobre a Providéneia, no L. II. Ja foi dito ser esse um dos ‘mais possantes fardis a iluminarem constantemente 0 pensamento do genial Agostinho. Essa tese que dominou toda sua vida, dominou também toda a Idade Média. 12, Influéncia exercida por Agostinko, em particular através desta obra ‘Agostinho é considerado, sem contestagio, um dos, ‘maiores génios de todos os tempos. DizB. Altaner na sua Patrologia:“Agostinho 60 mais ceximio fil6sofo dentre os Padres da Igreja e, sem divida, ‘o mais insigne te6logo de toda a Igreja. Jé em vida, suas ‘obras Ihe granjearam numerosos admiradores. Exereeu profunda influéneia na vida da Igreja ocidental, e que perdura até & época moderna. Isso nao s6 na filosofia, dogmética, na teologia moral emistica, masaindana vida social e caritativa, e também na formagio da cultura medieval” (ef. op. cit., p. 415). 21 nTRODUGAO Em particular, foi imensa a influéncia operada por meio deste dialogo filoséfico, no transcurso dos séculos. Nao hé escritor, em toda a Idade Média, que fale ou trate da questi do livre-arbitrio e do pecado que nao tenha ido beber nesta fonte agostiniana. Baaté os nossos dias, os temas debatidos na presente obra permanecem de real atualidade. A leitura refletida fe degustada ser muito enriquecedora a todos os que buscam conhecimento mais aprofundado sobre as te- iticas expostas, LIVROI O PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO INTRODUGAO(,1-2,5) O PROBLEMA DO MAL Capitulo 1 & Deus o autor do mal? 1. Euddio Pego-te que me digas, sera Deus 0 autor do mal?! ‘Agostino Dir-te-i, se antes me explicares a que mal te referes. Pois, habitualmente, tomamos 0 termo “mal” em dois sentidos: um, ao dizer que alguém praticou © mal; outro, ao dizer que sofreu algum mal ‘Ev. Quero saber a respeito de um e de outro, ‘Ag, Pois bem, se sabes ou acreditas que Deus 6 bom —e nfo nos é permitido pensar de outro modo —, Deus rio pode praticar 0 mal, Por outro lado, se proclamamos ser ele justo — e negé-lo seria blasfémia —, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como eastigos aos ‘aus. E por certo, tais castigos parecem males aqueles que 08 padecem. H porque, visto ninguém ser punido injustamente — como devemos acreditar, ja que, de acor- o.com a nossa fé, 6a divina Providéncia que dirige ouni- ‘verso —, Deus de modo algum seré oautor daquele primeiro ‘género de males a que nos referimos, #6 do segundo Ev, Havers entao algum outro autor do primeiro gé- zero de mal, uma ver estar claro nio ser Deus? "Ag. Certamente, pois o mal no poderia ser cometido sem ter algum autor. Mas caso me perguntes quem seja (PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 26 ‘autor, nao o poderia dizer. Com efeito, no existe um 6 «tinico autor. Pois cada pessoa ao cometé-lo é 0 autor de ‘sua mé agao. Se duvidas, reflete noquejé dissemos acima: ‘as mas agdes so punidas pela justiga de Deus. Ora, elas nndo seriam punidas com justica, se‘nao tivessem sido praticadas de modo voluntario# O mal vem por ter sido ensinado? 2. Ev. Ignoro se existe alguém que chegue a pecar, sem antes o ter aprendido. Mas caso isso seja verdade, pergun- to; De quem aprendemos a pecar? Ag. Julgasa instrucdo (disciplinam) ser algo de bom? Quem se atreveri a dizer que ainstrugio é um ‘Ag. E-caso no for nem um bem nem um mal? Ev. Amim, parece-me que é um bem. ‘Ag. Por certo! Com efeito, a instrugdo comunica-nos ou desperta em nés a ciéneia, e ninguém aprende algo se 1ndo for por meio da instrugdo. Acaso tens outra opiniio? Ev. Pengo que por meio da instrugao nao se pode aprender a no ser coisas boas. Ag. Ves, entéo, que as coisas mas nao se aprendem, postoque o termo “instrucio” deriva precisamente do fato de alguém se instruir. Ev. De onde hio de vir, entao, as mas agdes pratica- das pelos homens, se elas nao sio aprendidas? Ag. Talvez, porque as pessoas se desinteressam e se afastam do verdadeiro ensino, isto 6, dos meios de instru- 40. Mas isso vem a ser outra questo. O que, porém, ‘mostra-se evidente é que a instrugso sempre é um bem, vvisto que tal termo deriva do verbo“instruir”. Assim, serd impossivel o mal ser objeto de instrugio. Caso fosse censinado, estaria contido no ensino e, desse modo, a instrugio nao seria um bem. Ora, a instrugio é um bem, a (OPROBLEMADO MAL ‘como tu mesmo jé 0 reconheceste, Logo, 0 mal nao se aprende. B em vao que procuras quem nos teria ensinado 1 praticé-lo. Logo, se a instrugio falar sobre o mal, sera para nos ensinar a evité-lo endo para nos levar a cometé- lo, De onde se segue que, fazer omal, ndo seria outra coisa doquerenunciar a instrugdo. (Poisa verdadeira instrucéo 86 pode ser para o bem.) 3. Ev, Nao obstante, julgo que ha duas espécies de instrugio: uma que nos ensina a praticar obem, eoutra a praticar o mal. Mas ao me perguntares se a instrucio era ‘um bem, o amor mesmo do bem absorveu-mea atencaode tal modo a me fazer considerar, unicamente, o ensino re- lative as boas ages, motivo pelo qual respondi queele era sempre um bem. Mas dou-me conta, agora, que existe um. outro ensino, que reconhego seguramente ser mau, e de cexjo autor indago. ‘Ag. Vejamos. Admites pelo menos o segui inteligéncia integralmente um bem? Ev, Ala, com efeito, considero de tal modo ser um bem, que nada vejo poder existir de melhor no homem. De ‘maneira alguma posso considerar a inteligéncia como um mal, ‘Ag. Mas quando alguém for ensinado e nao se ser- vir da inteligéncia para entender, poder ser ele con- siderado como alguém que fica instruido? O que te pa- Ey, Parece-me que ele no o pode de modo algum. ‘Ag. Logo, se toda a inteligéneia é boa, e quem nao ‘usa da inteligéncia nao aprende, segue-se que todo aguele que aprende procede bem. Com efeito, todo aquele que aprende usa da inteligéncia e todo aquele ‘que usa da inteligéncia procede bem. Assim, procurar 0 autor de nossa instrucao, sem diivida, é procuraro autor de nossas boas agées. Deixa, pois, de pretender descobrir 5 serdia ‘PECADO PROVEM DO LIVRE-ARBETRIO 28 no sei que mau ensinante, Pois se, na verdade, for mau, ele no seré mestre. £ caso eeja mestre, nao poderd ser. Capitulo 2 Por qual motivo agimos mal? 4, Ev, Sejacomodizes, ja que tao fortemente me obrigas areconhecer que nio aprendemos a fazer o mal, Dize-me, entretanto, qual a causa de praticarmos o mal? * Ag. Ah! Suscitas precisamente uma questo que me atormentou por demais, desde quando era ainda muito Jovem. Apés ter-me cansado inutilmente de resolvé-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal violéneia que fiquei prostrado. Tao ferido, sob o peso de tamanhas e tio inconsistentes fabulas, que se ndo fosse meu ardente desejo de encontrar a verdade, e se no tivesse conseguido 0 auxilio divino, nao teria po- dido emergir de 14 nem aspirar & primeira das liber- dades—a de poder buscar a verdade.* Visto que a ordem seguida, entio, atuou em mim com tanta eficécia para resolver satisfatoriamente essa questo, seguirei igual- ‘mente contigo aquela mesma ordem pela qual fui iberta- do. Seja-nos, pois, Deus propicio ¢ faga-nos chegar a entender aquilo em que acreditamos. Estamos, assim, bem certos de estar seguindo o caminho tragado pelo profeta que diz: “Se nao acreditardes nao entendereis”* Ora, nés cremos em um s6 Deus, de quem procede tudo aquilo que existe. Nao obstante, Deus nao é 0 autor do pecado. Todavia, perturba-nos o espfrito uma considera- so: se o pecado procede dos seres criados por Deus, como nio atribuir a Deus os pecados, sendo tio imediata a relagdo entre ambos? 29 ‘PROBLEMA DO MAL. Pontos fundamentais da fé 5. Ev, Acabas de formular, com toda clareza e preciso, a dhivida que cruelmente me atormentou o pensamento,e ‘que justamente me levou a me empenhar nesta reflexao contigo. . ‘Ag. Tem coragem e conserva a fé naquilo que crés. Nada é mais recomendével do que crer, até no caso de estar oculta a razio de por que isso ser assim e nao de outro modo. Com efeito, conceber de Deus a opiniao mais excelente possivel é 0 comeco mais auténtico da piedade.* E ninguém teré de Deus um alto conceito, se nao crer que ele 6 todo-poderoso e que ndo possui parte alguma de sua natureza submissa a qualquer mudanga. Crer ainda que ele é 0 Criador de todos os bens, aos quais ¢ infinita- ‘mente superior; assim como ser ele aquele que governa com perfeita justiga tudo quanto criou, sem sentir neces- sidade de eriar qualquer ser que seja, como se no fosse auto-suficiente. Isso porque tirou tudo do nada. Entretanto, ele gerou, nao o criou, de sua propria esséncia, aquele que Ihe 6 igual, o qual é como professa- ‘mos, o Filho tinico de Deus. E aquele a quem nés denomi- amos, procurando as expresses mais acessiveis: “For- ea de Deus e Sabedoria de Deus” (1Cor 1,24). Por meio dele, Deus fez tudo o que tirou do nada. ‘Tudo isto tendo sido estabelecido, contando com a ajuda de Deus, procuremos agora, com empenho, compre- ender a questo por ti proposta, seguindo a ordem que se segue. PRIMEIRA PARTE (3,6-6,15) ESSENCIA DO PECADO — SUBMISSAO DA RAZAO AS PAIXOES Capitulo 3 Busca da origem do pecado 6. Ag. Tu me perguntas: Qual a causa de procedermos mal? E preciso examinarmos, primeiramente, o que seja proceder mal. Dize-me o que pensas a esse respeito, Ou, ‘se ndo podes resumir todo o teu pensamento em poucas palavras, pelo menos, dé-me a conhecer tua opinido, ‘mencionando algumas més agées, em especial Ev. Osadultérios, os homicidios eos sacrilégios,’ sem falar de outros maus procedimentos, os quais no poss ‘enumerar, por me faltar tempo e meméria. Quem nao considera aquelas acdes como mas? Ag. Dize-me, primeiro, por que consideras 0 adulté- 40? Nao ser porque a lei o proibe de ser Ev. Porcertoquendo. Blendoéum mal precisamente por ser proibido pela lei, mas, aocontrario, éproibido pela lei por ser mal. Ag. Pois bem! Mas se alguém insistir junto a nés, ‘exagerando os prazeres do adultério e perguntando-nos, ppor que o julgamos mau e condensvel? Seria preciso, na ‘tua opinido, recorrer a autoridade da lei, junto aqueles que desejam nao somente crer, mas também entender? Pois eu também, como tu, ereio inabalavelmente e até 31 [ESSENCIA DO PECADO proclamo que todas as nacdes e povos devem admitir ser © adultério um mal. Agora, porém, a respeito dessas verdades confiadas & nossa fé, esforcamo-nos de ter igual- ‘mente um conhecimento pela razio, mantendo-as com certeza plena.’ Reflete, pois, o quanto puderes, e dize-me por quais motivos erés que o adultério é um mal. Ev. Sei que 6 um mal porque ndo quisera ser eu ‘mesmo vitima dele, na pessoa de minha esposa. Ora, quem quer que faga um maloqual ndoquer que lhefacam, procede mal. ‘Ag. Entao! E se a paixio inspirasse a alguém de centregar sua prépria esposa a outro, ede aceitar volunta- riamente que ela fosee violentada, desejando ele, por sua ‘vez, obter a mesma permissio em relacdo a esposa do ‘outro? Conforme tua opinifo, néo faria ele mal nenhum? Ev. Ao contrério, ele agiria muito mal. ‘Ag. Mas conforme a regra proposta hé pouco por ti, ‘esse homem nao peca, porque néo faz o que nio gostaria de suportar. Procura, por conseguinte, outra razo para me convenceres de que o adultério é mal Razées insuficientes da origem do mal 7. Bv, Parece-me ser o adultério ato mau, porque mui- tas vezes tenho visto homens serem condenados por esse ‘Ag. Ora! Nao se tem condenado também, com fre- 4éncia, a muitos homens, por suas boas agdes? Recorda aquela histéra,ejé nio te envio a outros livros profanos, mas &histéria que é mais excelente que todas as outras, por gozar da autoridade divina (os Atos dos Apéstolos). Encontrards af o quanto deveriamos ter em mé opiniaioos apéstolos e todos os martires, se accitassemos ser a condenagdo de um homem por outros osinal certo de ma aio. Pois todos aqueles eristios foram julgados dignos de (OPECADO PROVEM DO LIVRE-ARBITRIO 32 condenacao por terem confessado a sua fé. De modo que, se for mal tudo o que os homens condenam, segue-se que, naquele tempo, era crime crer em Cristo e confessar a prépria f6, Mas se nem tudo que é condenado pelos homens 6 mal, serd preciso que procures outra razio que te permita me garantir que 0 adultério é mal. Ev. Nada encontro para te responder. 0 mal provém da paixdo interior 8. Ag. Talver seja na paixdo que esteja a malicia do adultério. Pois ao procurares o mal num ato exterior visfvel,cafateem impasse.Para tefazer compreender que 4 paixio é bem aquilo que é mal no adultério, considera umhomem questa impossibilitado de abusar da mulher de seu préximo. Todavia, sefor demonstrado, deum modo ou de outro, qual o seu intento e que o teria realizado se 0 pudesse, segue-se que ele no é menos culpado por ai do que se tivesse sido apanhado em flagrantedelito (Mt 5,28). Ev, Nada 6 tao evidente. Vejo jé nao ser mais preciso longos discursos para me convencares do mesmo respei- todo homicidio, do sacrlégioe, enfim, de todos os outros pecados. Com efeito, ¢ claro que em todas as espécies de ages mas 6 a paixéo que domina. Capitulo 4 Objegdo: ¢ os homicidios cometidos sem paixio? 9. Ag. Sabes que essa paixio 6 também denominada ‘concupiscéncia?"™ Ev. Sei. Ag. E 0 que pensas? Entre essa concupiscéncia ¢ o medo, hé alguma diferenca ou nenhuma? 33 [ESSENCIA DO PECADO Ev. Parece-me haver grande diferenca entre eles. ‘Ag. Acho que és dessa opiniao porque a concupiscén- cia tende para o objeto e que o medo o foge? Ev. E-bem como dizes. ‘Ag Pois bem! Se um homem matar a outro, nao pelo desejo de conseguir alguma coisa, mas pelo temor dde que Ihe suceda algum mal? Nao seria esse homem hhomicida? Ep, Certamente,o seria. Mas nem por isso sua aco deixaria de ser dominada pela concupiseéncia. Pois aque- Je que mata um homem levado pelo medo, deseja, sem duivida, viver sem medo. ‘Ag. E parece-te que viver sem medo é algum bem de somenos? Ey. Ao contrério, parece-me ser um bem muito gran- de, Masde modo algum esse bem deve chegar aohomicida por meio de crime. ‘Ag. Nao pergunto o que pode chegar a esse homem, mas que deseja. Pois, por certo, visa a um bem quem deseja uma vida isenta de medo. Por isso, nao podemos condenar tal desejo. Caso contrario, deveriamos declarar ceulposos todos aqueles que desejam algum bem. Logo, somos forgados a reconhecer que ha uma espécie de hhomicidio no qual nao se pode encontrar a primazia de mau desejo. Portanto, néo seré exato dizer que todo pecado, para que seja mal, nelea paixaodeve dominar. Ou em outras palavras, haveria uma espécie de homicidio que poderia nao ser pecado. Ev. De fato, Se o homicidio consiste no ato de matar ‘um homem, pode acontecer que isso seja, por vezes, sem pecado. Pois o soldado mata o inimigo; o juiz ou seu mandante executa 0 criminoso; e também, talver, o lan- ‘adorde flechas, quando uma delas escapa de suas mos, ‘sem 0 querer ou por inadverténcia, Todas essas pessoas, 1nio me parecem pecar ao matar um homem,

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