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Sonho de Demba (Edição Revisada)
Sonho de Demba (Edição Revisada)
EDIÇÃO REVISADA
Joed Venturini
Esta história missionária é uma obra de ficção missionária baseada
em fatos e acontecimentos reais da região leste da Guiné-Bissau.
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Capítulo 1
Um arrepio de frio percorreu o corpo magro e pequeno de
Demba. O menino reagiu procurando o pano que lhe servia de
lençol. Como o pano era curto, ele se encolheu ainda mais para
poder se cobrir por completo.
Um clarão iluminou repentinamente o quarto onde a criança
estava e seguiu-se após uns segundos um forte ribombar de
trovão. O vento fresco que entrava pela porta aberta levantava
poeira que chegava ao nariz de Demba.
Ainda deitado, ele abriu os olhos. Estava totalmente escuro!
Era alta madrugada, talvez duas ou três horas da manhã. Novo
relâmpago clareou o quarto. Demba podia ver a mãe e a irmã
numa cama, do outro lado do lado do quarto. O teto de palha que
dava um cheiro característico. A casa parecia tremer ao rugir da
tempestade.
Um novo relâmpago permitiu que o menino visse um ratinho
que saía sorrateiramente do local aonde se guardava o arroz.
Demba podia ouvir o ressonar do pai no quarto ao lado, pois as
paredes não iam até o teto deixando que os sons passassem
livremente de um quarto para o outro.
O menino sentou-se na esteira que lhe servia de cama. Tinha
uns 8 anos, era extremamente magro com uma bela cor castanha
clara e a cabeça redonda, meticulosamente rapada. O nariz, de
base larga, era arredondado, as bochechas altas, o sorriso fácil, os
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O Sonho de Demba
Capítulo 2
Várias semanas tinham se passado desde que Demba tivera o
sonho daquele lugar diferente onde se cantava sobre Issa (Jesus).
O sonho já se repetira algumas vezes e ele aprendera a gostar
daquele sonho.
Entretanto, a vida lhe foi cruel. A irmã, de quem Demba tanto
gostava, foi embora para a aldeia de seu marido. Aquele
casamento amargurara o menino, mas o pior estava por vir. Uma
tarde sua mãe deitou-se febril e com dores do corpo. Cobriu-se
com vários panos para suportar os calafrios que sentia e queixava-
se que a cabeça parecia querer arrebentar. A prostração dela era
grande. Já tivera malária tantas vezes que perdera a conta, mas
esta parecia de algum modo pior, mais forte.
O feiticeiro veio com seus tratamentos. Receitou certos chás
de plantas da floresta. Fez um novo amuleto e declarou que
alguém queria mal à mãe de Demba. O menino, assustado, pediu
a seu pai que rezasse por ela a Alá (Deus) para que ficasse boa.
Porém, a resposta não veio. A mulher piorou e entrou em coma.
Não havia meios para tratá-la. O hospital ficava a muitas dezenas
de quilómetros e, provavelmente, não poderiam fazer nada pois
carecia de medicamentos. Era preciso esperar o desenlace; e ele
veio mais cedo do que Demba esperava.
Foi numa tarde. A cumbosa (outra mulher do mesmo
marido) de sua mãe saiu de casa com gritos de lamento. Com uma
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O Sonho de Demba
Capítulo 3
Após a aventura da viagem, Demba foi entregue aos cuidados do
professor de árabe. A aldeia onde estavam era grande e tinha
duas mesquitas rivais onde meninos de várias idades aprendiam a
ler, em tábuas de madeira, os estranhos caracteres da língua de
Mohamed (Maomé).
A etnia predominante ali era Mandinga, e Demba não
entendia a língua deles, o que era o que bastante assustador para
alguém que estava longe da família. Havia, porém, outros
meninos no seu grupo que eram fulas, e logo Demba se ligou
muito a um deles, de nome Mamadu.
A rotina era pesada para os meninos. Eram acordados cedo,
todos os dias, e tinham que ir aos campos do mestre lavrar a
terra, pois era tempo de chuvas e havia que semear o milho, a
batata-doce e o amendoim. Não era o que o menino esperava,
mas não podia reclamar. A fome, porém, era seu maior obstáculo.
De manhã não comiam nada! Trabalhavam até umas duas
horas da tarde, quando lhes era oferecida uma tigela de arroz
para cada três meninos. À tarde, e já com o corpo moído e
cansado, eram obrigados a sentar-se por várias horas decorando
os textos do Alcorão, sem entenderem nada do que estavam
dizendo. Na maioria das vezes deitavam-se sem mais nenhuma
refeição. Num feriado muçulmano, ou alguma ocasião especial,
tinham a sorte de jantar o mesmo que no almoço.
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O Sonho de Demba
Capítulo 4
Aproximava-se o Ramadão, mês em que os muçulmanos
comemoram a suposta revelação do Corão pelo anjo Gabriel a
Mohamed. Todos os muçulmanos de idade adulta devem jejuar
durante o tempo em que haja luz solar durante o mês. O marabu
ordenara que os meninos cortassem todo o mato à volta da casa,
pois queria tudo bonito para as festas sagradas. E foi
pessoalmente supervisionar o trabalho.
Demba tremia de medo à medida que ia se aproximando do
local onde Mamadu começara a esconder o dinheiro e onde ele
agora guardava suas economias. O muru parou bem ao lado da
pedra vermelha que servia de marcação ao local. A certa altura,
estranhando aquela pedra de cor diferente, a chutara para longe.
Demba fechou os olhos certo de que fora descoberto, mas o
professor de árabe já se afastara do local, sem dar importância ao
pequeno buraco que se tornara visível com a retirada da pedra.
Imediatamente, Demba cobriu o buraco com algumas
palhas, certificando-se de que ainda estava assinalado, para não
perder o dinheiro. Por pouco não foi apanhado! Deveria tratar
dessa fuga o mais depressa possível!
A data escolhida foi o início do jejum. O mês de Ramadão é
uma época difícil para todos os muçulmanos, mas os primeiros
dias são os piores, pois o jejum é bem mais difícil de se tolerar
enquanto o corpo não se habitua à falta de alimentos. O marabu
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ficava de mau humor, ainda pior do que lhe era habitual. Deitava-
se a maior parte do dia, para melhor suportar o sacrifício, com um
ar de grande sofrimento e um gemido ocasional.
Demba reparou que o homem se desleixava no controle dos
meninos por causa da provação e resolveu agir sem mais
delongas. Naquele dia deveriam ir pedir esmola em uma aldeia
vizinha. Quando se viu só, o rapaz voltou para casa tendo o
cuidado de evitar o caminho principal. Retirou o dinheiro que
escondera e o contou novamente. Deveria chegar e sobrar para
pagar o transporte.
Partiu então para o local onde paravam as candongas. Seu
coração batia descompassado. E se o muru se levantasse por
qualquer motivo e saísse de casa? E se o encontrasse? E se alguém
estranhasse sua presença ali com todos os meninos foi da aldeia?
Tudo era possível, mas agora era tarde para começar com medos
e receios.
Resoluto, o menino avançou. No ponto de parada das
candongas tudo seria decidido. Se o carro se demorasse demais a
chegar ele estaria perdido, pois seu plano dependia de rapidez.
Tinha que contar também com a boa vontade do pessoal do carro,
pois poderiam negar-lhe o embarque estranhando um menino
que viajava só. Com tais considerações, Demba se posicionou
atrás de uma árvore onde podia ver o local da paragem dos carros
sem ser visto. Mas, de repente, vinda não se sabe de onde, passou
a mulher que cozinhava para o marabu.
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O Sonho de Demba
Capítulo 5
Duas semanas tinham se passado desde que Demba
conseguira fugir das mãos do marabu. Os anciãos de sua aldeia
tinham aconselhado seu pai a levá-lo de volta, pois a fuga foi uma
grave falta de disciplina e desonra para a família. Mesmo que o
menino tivesse sofrido um pouco, isso era parte da vida e valia a
pena aguentar alguma dor para ser um dia chefe de mesquita.
O pai de Demba, porém, viu o estado em que o filho
retornara e ouviu seus relatos sobre o tratamento recebido nas
mãos do “mestre”. Já tinha ouvido de outras pessoas histórias
semelhantes e concluíra que aquele marabu não era de confiança
e que Demba não lhe seria devolvido.
No entanto, decidiu que seria um desperdício deixá-lo na
aldeia. Ele foi destinado a estudar e ali não havia escola. Então
ficou resolvido que Demba seria levado para Bafatá, onde poderia
ficar na casa de um tio e frequentar a escola. E lá estava o menino
de novo na estrada e desta vez para a cidade.
Bafatá era a segunda cidade do país, porém estava
decadente. As casas, do tempo colonial, sem manutenção e
deixavam a cidade com um ar de “cidade fantasma”. Mas era uma
grande cidade mesmo assim! Havia até electricidade algumas
horas por dia! E, à noite, se houvesse luz, podia até ver televisão!
Demba estava deslumbrado com tudo aquilo! O tio o
recebera muito bem! O primo de Demba tinha a mesma idade que
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