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O DE SALES ne de Genebra S. FRANCI é Bispo e Pi FILOTEIA ‘¢ ow Introdugao 4 Vida Devota | FREI JOAO JOSE P. DE CASTRO, 0. F. M. Vir EDIGAO 1958 EDITORA, VOZES LIMITADA, PETROPOLIS, R. J, RIO DE JANEIRO — SKQ PAULO BELO HORIZONTE oe RE POR” CoM: REVMO, SR. DOM CUNHA’ CINTRA, Ei FRED DES! TODOS MOP RoE MA Tou SSA0_ PSPECIAL MANUEL br OS DIREITOS RESERVADOS S, FRANCISCO DE SALES Vida. — S. atraente pi retrato da_cai to de 1567, or de Sales, na cia sob os cui Sales e Dotado de fundo e¢ de gr se desde log seit coracio permanec! Francisco de Sales, que em si jadlos de_seus de Sionas, cia_ viva, nde. forg a estudos sérios ao constante de a Paris isco com ia em P se até por um voto perpétao vado do gr Ao pais que contr ndo de nobre familia, hoje Franca, anos o jovert Francisco passow a feliz ado Até aos 17 S6 entao é que foi cursar as aulas do colégio de Annecy. senti 8, to puro e jntacto nento ese a sui to esméro e nao se desc dav: pro- de vontade, &ntregou- torna- vida. de estudar entre- 1999799992999 9979999999939993933939333999 10 Filotéia : reita de honrarias e dignidades no mundo, Fran+ cisco, porém, j4 tinha decidido dedicar-se ao es- tado ‘eclesidstico e viver imicamente para Deus, 0 tinico objeto de sew amor. Inquebrantével neste propésito, apesar de t6das as contradigées do pai e parentes, dominou tédas as dificuldades, e aos 18 de dezembro de 1593 recebeu o Sacerdécio das maos do bispo de Genebra, Dom Claudio Granier, Entre os muitos trabalhos que assumiu em sua atividade de padre, merecem especial mencao: a reconciliagao dos habitantes de Chablas com a Igreja ¢ A sua viagem a Paris, onde pregou os sermaes quaresmais, Falecendo em breve o bispo_D. Granier, todos os olhos se volveram para Francisco, como _o seu mais digno sucessor; e 0 Papa, que nao ignorava gs herdicas virfudes do zeloso sacer- dote, néo'duvidou um instante em dar 0 con- sentimento, Em 1602, depois de umi retiro espiritual de 20 dias, Francisco foi sagrado bispo de Genebra, diocese essa que se tornou até a sua morte a are- na de muitas lutas e trabaihos em prol das ove- thas do rebanho de Cristo. A custa de muita ab- negagao tornava-se tudo para todos, a fim de ga- nhar a todos para Jesus Cristo. Uma caridade santa e sempre igual, que se manifestava prin cipalmente para com’ os clérigos subalternos e para com os pobres e desamparados, uma hu- mildade e uma simplicidade de coracao inexcedi- veis, uma mansidao e paciéncia inalteraveis em todas as vicissitudes da vida — cis ai os seus tragos mais caracteristicos. A Congregacdo das 8. Francisco un Visitan por éle juntamente com Santa Francisca de Chantal, sua filha espiritual, é um monumento perene de seu espirito belis- simo e de seu coracio todo terno e compassivo. A sua vida, tao cheia de trabalhos, foi rela- tivamente curta, Aos 55 anos de idadé ja entre- gava a alma nas m4os do Criador, de seu Deus, linico objeto de seu amor, aos 28 de dezembro de 1622, Canonizado em ‘1665, pelo Papa Ale- xandre VII, e Pio IX, em 1877, acedendo ao pe- dido de muitos bispos, elevou-o a dignidade de Doutor da Igreja. Em 1923, foi deciarado por Pio XI Padrociro da Boa Imprensa e dos jor- nalistas catdlicos. Obras. — No meio de_suas_miltiplas e impor- tantissimas ocupacées, Sao Francisco de Sales achou, entretanto, tempo bastante para uma gran- de e’ preciosissima atividade literaria, exarando excelentes obras de ascética crist4, que primam principalmente pela suavidade, solidez, simplici- dade e uma sublime elevacdo de espirito. Eis aqui as principais: 1. Filote » ou Introducéo A vida devota. 2. Teotimo ou Tratado do amor de Deus. 3. Controvérsias. Instrugdes as Inmas da Visitacao. Cartas (cérea de 2,000). Para a apreciacio dessas_ obras, limitamo-nos aqui a transcrever alguns textos de insignes au- tores que néo acham palavras para encomi condignamente: “Os escritos de S, Fran Fénelon — abundam de graga e Nenhum outro santo — © padre Hu- uet — contribuin tanto como S. Francisco de les, com seus escritos para fazer inguém sabe como tle — acrescenta o pa dre Alet (no livro: Divinas oportunidades do dou toramento de §. Fr. de 8.) — na al- ma prostrada, inerte, € al faceis da sal Sem estor- cobre- es San que. durante sas fléres da piedosos opiis- a abel anos_ reco! cristé 0 si S. Fr amor ardente, 0 raficos, muito dessa nos sobre) princip; itos, pela regular 0 da doutr idade por fdas ae ‘iéneia as sedugoes da poe praz nas belezas da © impele para as belezas do cé criatura € um prisma céres o faio ti A essas apreciagdes e fouvores acrescentar outros testemunhos de es forar Gre VII, Mons, de Segur. Mas para Abra-se éste livro igo a folheie-se 0 Tratado do Amor de L se & m&o as suas Cartas. Outro testem ‘0 valor dos ese Vida paginas, {20 cheias de‘uma celeste ung: ©. tradutor e 18 9299G69099999329F99HFFFIFHFDIFDAOGSANSHHABRA “ ry “ PREFACIO DE S. FRANCISCO DE SALES Peco-te, caro leitor, que leias este prefacio, tan- to para a tua como’ para a minha satisfacio. Uma mulher por nome Glieéria sabia distri- ir as flores e formar um ramalhete com tanta hilidade que todos os seus ramalhetes pareciam uns dos outros. Conta-se que o céle- Pausias, tendo procurado imitar com © seu pincgl tamanha variedade, nao a pdde con- re declarou-se vencido. De modo semelhan- te 0 Espirito Santo -dispde e arranja com uma vel variedade as ligdes de virtude que nos da pela boca € pela pena de seus servos. E” sem- pre a mesma doutrina, apresentada de mil mo- dos diferentes. Na presente obra outro fim nao temos em mira sendo repetir o que ja tantas vé- ze se tem dito e escrito sobre esta matéria. Séo esmas flores, benévolo leitor, que te venho r aqui; erenca que ha € que o vamalhete estd disposto diversamente A maior parte dos autores que trataram sobre a devocio dirigiram-se exclusivamente a pessoas retiradas do mundo ow ao menos se esforcaram por Thes ensinar o caminho déste retiro. O mew intento, porem, é ser util agueles que se véem obrigados a viver no meio do mimdo e que nao podem levar uma vida diversa da dos outros. Acontece muitas vézes que estas pessoas, sdb 0 Pretéxto duma impossibilidade pretensa, nem se- quer pensam em aspirar a devocao. ‘Imaginam que, assim como animal algum ousa tocar na- quela erva chamada Palma’ Christi, do mesmo modo pessoa alguma que vive no meio de negé- cios temporais pode fomentar pretensdes a palma da piedade cristé. Mas vou mostrar-Ihes gue mui- to se enganam e que a graca é em suas opera~ gGes ainda muito mais jecunda que a natureza As madrepérolas sao banhadas pelas aguas do mar @ contudo ndo sao penetradas delas; perto das ilhas de Celidénia existem fontes de agua doce no meio do mar; os piranetas entre ag chamas queimar; as nerosas vivem no mundo sem impregnar-se do Seu espirito, acham a doce fonte da devogao no meio das aguas amargas das corrupcses. mun- danas sem queimar as asas de santos desejos du- ma vida virtuosa. Nao ignoro as dificuldades do grande trabalho que empreendo e bem desejara que outros mais doutos e santos o tomassem a si; todavia, apesar da minha impoténcia, farei o que possivel fr de minha parte, para’ auxi ésses coragées generosos que aspiram A devocdo. N fesejo_nem minha intencéo pu blicar esta obra; uma alma de esmerada virtude, tendo recebido de Deus, hd tempo, a graca dé aspirar a vida devota,, pediu-me the ajudasse a conseguir éste designio. Muito devia eu a essa Pessoa, que alids ew julgava plenamente disposta Para ésse Arduo trabalho, Considerei, pois, co- mo um dever, Ja, 0 melhor possivel, dei- xando-lhe uma direcéo por escrito, que Ihe po- deria ser itil no futuro. Aconteceu que essa obra 16 Futotéia caiu nas maos de um santo e sabio religioso que, tendo em yista o proveito que muitas almas dai poderiam haurir, me aconselhou publicé-la. De bom grado anui ao seu conselho, porque ésse santo homem tinha grande influéncia ¢ autori- dade sébre mim. A fim de qumentar um pouco a utilidade desta obra, eu a revi © pus em ordem, acrescentando diversos avisos ¢ conselhos, conforme me_permi- tia 0 pouco tempo de que disponho. Ninguém procure aqui uma obra exarada com esméro, E’ apenas uma série de avisos que julgo necessé- tise a que procure’ dar uma torma clara e precisa. Quanto aos ornamentos de estilo, nem se- quer pensei néles; tenho mais que fazer Dirijo minhas palavras a Filotéia, porque Filo- téia significa uma alma que ama a Deus e € para essas almas que escrev Téda a obra se divide em. cinco partes: na primeira esforco-me, por meio de alguns avisos @ exercicios, a converter o simples desejo de Filotéia numa resolugdo decidida, tomada depois da confissdo geral, por uma protestagio firme e seguida da sagrada comunhao. Esta comunhao, em que ela se entrega inteiramente ao divino Sal- vador, enquanto o Salvador se da a ela, fd-la entrar auspiciosamente no amor divino. Para a levar adiante, mostro-Ihe dois grandes meios de se unir mais e mais com a Majestade divina: 0 uso dos sacramentos, pelos quais Deus vem a nds, € a oracdo, pela qual nos vamos a Deus. Nisto consiste a matéria da segunda parte. A terceira contém a pratica de diversas virtudes que muito contribuem para o adiantamento espi- | | \_ L a __Pretaeio Ww ritual; limito-me, porém, a certos avisos particula- res que ndo se podem achar de si mesmos ou raramente se encontram nos autores. Na quarta parte iaco ver a Filotéia os embustes do ini- migo e lhe mostro como livrar-se déles e ven- cé-ios, Por fim, na quinta parte, eu levo a alma a soliddo, para que ai se refrigere um pouco, tome alento e recupere as fdrcas, de modo que possa caminhar em seguida, com mais ardor, nas veredas da vida devota. Nosso século é extremamente bizarro e jd es- tou vendo dizerem-me que uma obra semelhan- te devia ser escrita por um religioso ou ao me- nos por alguém que professe a vida devota ¢ nao por um bispo encarregado duma diocese tio dificil como a minha, a qual requer para si toda a atencio do prelado. Mas, carissimo leitor, posso responder, com 8. Dionisio, que sio exatamente os bispo$’ que an- tes de todos estéo incumbidos de encaminhar as almas para a perfeicio. Eles ocupam o primeiro lugar entre os homens, como os serafins entre os anjos, ¢ o seu tempo no pode ser empregado duma’ forma melhor. Os antigos bispos e padres da Igreja, que nao se ocuparam menos de suas funcgdes do que nés, encarregaram-se, entretanto, da direcao de certas almas, que recorriam aos seus avisos ¢ A sua pru- déncia. F’.0 que se vé por suas cartas e faziam- no a exemplo dos apéstolos, que, por mais so- brecarregados que estivessem com a evangeliza~ go do mundo, acharam tempo para escrever as suas epistolas, cheias dum amor e afeto extraor- Filotéia — 2 PRAMAS ARHAAASOSAAREOPOSIOSSOVOEBPIHOSDD 18 Filotéia dinrios para com as diversas almas, suas: filhas espirituais, ‘Quem ndo sabe que Timiteo, Tito, Filémon, Onésimo, Santa Tecla, Apia eram filllos espiri- tuais muito caros ao grande S. Paulo, como S. Marcos e Santa Petroniiha o eram a S. Pedro? E ponho neste niimero a Santa Petronilha, porque, como sabiamente provam Bardnio e Galénio, nao foi filha carnal, mas espiritual de S. Pedro. E S. Joao nao escreven uma das suas Epistolas Ca- ndnicas & devota senhora Electa? | E! penoso, confesso-o abertamente, conduzit as almas em particular, mas ésse trabalho nao dei- xa de ter as suas consolagées, Os ceifadores nun- ca estio t90 satisfeitos como quando tém muito que ceifar. E’ um trabalho que alivia e fortitica 0 coracio. Diz-se que, se a fémea do tigre acha um de seus filhotes que © cacador abandona no meio do caminho para cacar outros, imediata- mente o carrega, por mais pesado gue seja, ¢, ajudada pelo amor de mae, corre ainda mais de- pressa do que de costume, Como, pois, um cora- cao paterno nao tomara a si uma alma que an- scia por sta propria -perfeigdo, carregando-a_co- mo uma mae a seu fiho, sinta embora'o seu peso? Sem thivica, ésse coracio deve ser verdadeira- mente paterno; razio pela qual os apdstolos € os homens apostélicos chamavam as seus disei- pwios de filhos e até de filhinhos De mais, caro leitor, é verdade que eserevo s6- bre a vida devota, sem que possua cu mesmo a devacao, mas ndo'sem que tenha um grande de- sejo dea ter; e & éste desejo que me anima, Um douto dizia Um bont modo de aprender é Preficlo 19 estudar: um melhor, é esentar, mas o melhor de todos, € ensinar. Acontece muitas vézes, diz San- to Agostino a piedosa Florentina, que, dando, se adquire um titulo para receber e que, ensinan. do, nos obrigamos a aprender. Diz-se que os pintores se apegam nao s6 aos Quadros que pintam, mas também as‘ coisas que querem desenhar. Mandou Alexandre ao insupera- vel Apeles que the pintasse.a formosa Campaspe, sua amada. Apeles, tendo que fixar demoradat mente Campaspe para ir eopiando suas. feiches na tela, acabou gravando-a também no coracdo, Apaixonou-se tanto por ela que Alexandre bon dosamente Iha deu em casamento, privando-se, por amor déle, da mulher que mais amou na terra E nisso, diz Plinio, revelou 2 grandeza de seu coragao, tanto quanto poderia manifesté-la numa das suas _maiores vitérias, Meu caro leitor, pen= 80 que, sendo eu bispe, Nossa Senhor quer que eu desenhe nos coracies nao sé as virtudes ton muns, como também a devocio que Ihe € tao ra; e eu o faco de bom grado, eumprindo o meu dever e esperando que, gravando-a no es- Pirito dos outros, © meu também reveberd alg ma coisa, E a divina Majestade, vendo que me apego vivamente a devocio, se dignard de infun- di-fa em meu coracao. A bela e casta Rebeca, dane do de beber aos camelos de Isaac, tarnowse sua espdsa_e recebeu déle os brincos'e pulseiras de ouro. Espero, pois, também, da imersa bondade de meu Deus, que, conduzindo as suas caras ove- Ihas as Aguas salutares da devogao, éle escolhe- r4 minha alma para sua espOsa, pondo em meus ouvidos as palavras de oure de seu amor e em 2 20 Filotés meus bracos a forga de praticd-las. Nisto con siste, pois, a esséncia devocao verdadeira, que suplico a’ Majestade divina de conceder a’ mim ea todos os membros da Igreja, & qual quero submeter para sempre meus escritos, minhas acées, minhas palavras, m ntade e meus pensamentos. Annecy, no dia de Santa Maria Madatena, 1609. ORACAO DEDICATORIA Si ‘0’ doce Jesus, meu Senhor, mew Salvador e met Deus, aqui me fendes prostrado diante de vossa Majestade, para oferecer e consagrar éste escrito & vossa ‘¢! Vivificai com vossa bén- ¢do as palavras que contém, a fim de que as Almas, para quem as escrevi, possam delas reti~ rar aS inspiragoes sagradas’ que thes desejo € particularmente a de implorar em meu favor a vossa imensa misericérdia, Nao se dé o caso de que, mostrando acs outros o caminho da pieda- de neste mundo, venha eu a ser eternamente re- provado e confundido no outro. Antes pelo con- trario, em companhia di ir a cantar fo, a ex- ico, testemunho de fidelidade, no meio dos perigos ¢ vicissitudes desta vida mortal: VIVA JESUS! VIVA JESUS! Senhor Jesus, vivei € reinai em nossos co- racdes pelos sécilos dos séculos. Assim seja”. PARTE 1 Avisos e exercicios necessirios para uma alma, que comeca a sentir os p desejos. da vida devota, até possuir uma von- tade resoluta e sincera de abraga-la A natureza da devogio Aspiras A devocio, Filotéia, porque a fé n le sumamente agrad vel & Majestade divina. Mas, como cs pequenos erros em que se cai a é vi modo quase necessario que, vas ¢ falsas. E” mister saibas discernir uma das outras, para que te deixes enganar e no te dés a exercicios de uma devocdo’ tola e supersticios Um pintor por nome io, ao debuxar painéis, costumava desenhar néles aquelas mi Tes a quem consagrava estima e apréco. E’ éste um emblema de como cada um se afigura e tra- ¢a a devocdo, empregando as cores que Ihe su- gerem! as su ies. Quem & da 999980988 9099999993999999909090900300 22 Fitotéia, ao jejum tem-se na conta de um homem devoto, quando 6 assiduo em jejuar, embora fomente em set coracio um ddio oculto; ¢, ao passo que nao ousa humedecer a lingua com’ umas gotas de vi- nho ou mesmo com um pouco de 4gua, receoso de iio observar a virtude da temperanca, nao se faz escriipulos de sorver em largos haustos tu- Goo que the insinuam a murmuragdo ea ca Iii ‘icidvel do sangue do proximo, Uma mu- iher que recita diariamente um acervo de ora es se considerard devota, por causa déstes exer- ios, ainda que, fora déles, tanto em casa co- mo alhures, desmande a lingua em palavras co- Idrieas, arrogantes ¢ injuriosas. Rste alarga os cordies da bélsa pela sua consideragio com os pobres, mas certa 0 corag&o ao amor do préximo, a quem nao quer perdoar. Aquéle perdoa ao ini- migo, mas satisiazer as dividas é 0 que nao faz sem ser obrigado a forca, Todas estas pessoas fém-se por muito devotas ¢ sao talvez ti tidas no mundo por {ais, conquanto realmente de modo algum o sejam. Indo os soklaclos de Saul a casa de David, pa- rq prendé-Jo, entreteve-os em conversa Micol, sua esposa, para ocultarthes a sua fuga; mandou me- ter num leito uma estétua coberta com as roupas de David e com a cabeca envolta em pélos. Feito isso, disse aos soldados que o esposo- estava en- férmo e que presentemente estava dormindo, E’ ésse o trro de muitos que aparentam um exterior muito devoto e sao tides por homens realmente espiritua S que, na verdade, nao passam de mas de devocao. a A ‘ ' Parte 14 23 A verdadeira devogao, Filotéia, pressupde 0 amor de Deus, ou, methor, ela mésma é 0 mais Perfeito amor a Deus. Esse amor chama-se gra- , porque adereca a nossa alma e a torna bela Sos ollos de Deus. Se nos da férca e vigor pa- ta praticar o bem, assume o nome de caridade E, se nos faz praticar o bem fregiiente, pronta e cuidadosamente, chama-se devogio e atinge en- tio ao maior grau de perfcicdo, Vou esclarect-lo com uma. explicagéo tao simples guao natural, Os avestruzes tém asas, mas nunca se elevam acima da terra. As galinhas voam, mas t¢m um yoo pesado © 0 levantam raras vézes © a pouca altura, O voo das guias, das pombas, das an- dorinhas 6 veloz e¢ alto e quase continuo. De mo- do semelhante, os pecadores séo homens. terre- nos ¢ véo se arrastando de continue A flor da terra. Os justos, que sao ainda imperieitos, ele- vam-se para © céu pelas obras, mas fazem-no lenta e raramente, com uma espécie de peso no coracdo, So s6 as almas possuidoras de uma devocio sélida que, a semelhanga das dguias e das pom- bas, se exalcam a Deus por um voo vivo, st- blime e, por assim dizer, incansayel. Numa pa- lavra, a devocio nao é nada mais do que uma agilidade e viveza espiritual, da qual ow a ca- Tidade opera em nés, ou mos mesmos, levados pela caridade, operamos todo o bem de que so- mos capazes, A caridade nos faz observar todos os manda- mentos de Deus sem excecio, e a devocdo faz com que os observemos com toda a diligéncia e 24 Pilotéia fervor possiveis. Todo aquéle, portanto, que n&o cumpre os mandamentos de Deus nao ¢ justo e, muito menos, devoto; para se ser justo, é neces- sario que se tenha caridade e, para se ser devoto, € necessario ainda por cima que se pratique com um fervor vivo e pronto todo o bem que se pode. E como a devocao consiste essencialmente num amor acendrado, ela nos impele e incita nao sd- mente a observar os mandamentos da lei de Deus, pronta, ativa e diligentemente, mas também a pra- ticar as boas obras, que sio apenas conselhos ou inspiragdes particulares. Um homem ainda con- valescente duma enfermidade anda com um passo Jento e sé por necessidade: assim um pecador re- cém-convertido vai caminhando na senda da sal- vacio devagar e arfando, sé mesmo pela neces- sidade de obedecer aos ‘mandamentos de. Deus, até que se manifeste néle o espirito da piedade Entéo, sim; como um homem sadio e robusto, caminha, nao sé com alegria, como também en~ vereda corajosamente pelos caminhos que parecem intransitaveis aos outros homens, para onde quer que a voz de Deus o chame, ja pelos conselhos evangélicos, j pelas inspiracdes da graca.. Por fim a caridade e a devocio nao diferem mais en tre si do que o fogo da chama; a caridade & 0 fogo espiritual da alma, o qual, quando se levan- ta em labaredas, tem o nome de devocao, de sorte que a devocao nada acrescenta, por assim dizer, ao fogo da caridade além dessa chama, pela qual a caridade se mostra pronta, ativa e diligente na observancia dos mandamentos de Deus e na pra- tica dos conselhos e inspiragdes celestes. Parte L 2 ‘caPiTULo IL Propriedades e exceléncia da devocio Aquéles que desanimavam os israelitas da em- présa de conquistar a terra prometida, diziam-Ihes que esta terra consumia os habitantes, isto é, que os ares cram téo insalubres que ai nfo se po- dia viver, e que os naturais da terra.eram homens barbaros e mionstruoses a ponto de comer os setts semelhantes, como gaianhotos. Déste modo, Filo- téia, 0 mundo anda a difamar diariamente a santa devocdo, espathando por toda parte que ela torna os espiritos melancélicos e os caracteres insupor- taveis © que, para persuadir-se, ¢ bastante con- templar © semblante enfadonho, triste ¢ pesaroso das pessoas devotas. Mas, como Josué e Caleb, que tinham ido explorar a terra prometida, asse- guravam que erami, muito ao contrario, paragens deliciosas e encantadoras por sua fertilidade e beleza, assim também todos os santos, animados do Espirito Santo ¢ da palavra de jesus Cristo, asseveram que a vida devota € suave, aprazivel e ditosa, Ve o mundo que as_pessoas devotas jejuam, rezam, soirem com paciéncia as injirias que thes fazem, cuidam dos enfermos, déo esmolas, dam longas vigilias, reprimem os impetos da co- lera, detém a Violéncia de suas paixdes, renun- ciam aos prazeres sensuais e fazem tantas ou- tras coisas que sao de si custosas e contrdrias A nossa natureza, mas 0 mundo ndo vé a devocio interior, que torna tudo agradavel, doce e facil Presta ‘atengio as abethas no lomilho: 0 sumo que ai encontram é muito amargo, mas, ao chu- a 999999990909009339399399339999939339399839 pareni-no, as abelhas 0 convertem em mel. Con- jessamos a puridade, alias mundanas, que no coméso muitas amarguras encontram as pessoas devotas nos exercicios de mortificacdo e penitén- cia, mas com o tempo e a prdtica essas amar- guras se vo mudando em suavidades e delicias Os_mértires, no meio das chamas e amarra- dos As rodas, pensam estar deitados num leito de flores, perfumado deliciosamente. Ora, se_a tlevocdo pode suavizar por sua dogura os maio- res formentos e a mesma morte, que ndo fard ela ha pratiea das virtudes, por mais dificuitosas e ‘as que sejam! Nao se poder dizer que a deyocdo € para esses atos de virtude o que o agicar @ para as frutas que ainda estio verdes, suavizando-Ihes 0 sabor, €, se ja esto maduras, tirando-Ihes 0 resto que ainda possa sobrar de amargo? Na verdade, a devocio sozona todas as coisas com uma_afabilidade extrema; atenua 5 amargor das mortificagies; preserva 0 pesar dos pebres; consola os oprimidos: humilha o orgulho ‘a prosperidade; soleva o enjéo da solidao; tor- na recolhidos es que andam a lidar com o ‘mun- do; para nossas almas 0 que o fogo & no ine verno € 0 orvalho no verao; faz-nos moderados na abundancia e pacientes no sofrimento e pobre- za; tira proveito tanto das honras, como dos des- prezos; enfrenta com a mesma disposigio o pra~ zer e a dor e inunda nossa alma duma admird- vel suavidade. Contempla a escada de Jacob, a qual ¢ uma ver- dadeira imagem da vida’ devota. Os dois lados da escada representam, um a oracdo que suplica 0 amor de Deus e 0 outro a recepgao dos sacra Parte I, 2. Ea mentos que 0 conferem, Os degraus sao os diver- sos gratis de caridade, pelos quais se sobe de virtude em virtude, ora’ abaixando-se até a servir © proximo e suportar-ihe as fraquezas, ora guin- dando o espirito, pela contemplacdo, até a unido caritolégica com’ Deus. Considera como Qsecs anjos resplandecentes, re- vestidos dum corpo humano, sohem € descem’ pe- la escada, lembrando-nos os verdadeiros devotos, que possuem um espitite evangélico. Parecem jo- vens € com isso esiéo indicando o vigor e a ati- vidade espiritual da devocio. Suas asas represen- tam o voo ¢ enlévo da alma para Deus, por meio da oracao; e, como éles tém também pés, parece que nos estio inculcando 0 nosso dever, aqui na terra, de viver com os outros homens em santa harmonic € sociedade. A beleza e o jabilo que transparccem em seus semblantes nos ensi- nam com que tranqiiilidade devemos encarar os incidentes ca vida; sua cabeca, suas maos © pés descobertos d&o-nos a refletir que nenhum cutro motivo devemos ter cm nossas intencies e acdes além do de agradar a Deus. O resto do corpo trazem-no coberio de uma gaze finissima, dando- nos a entender que, na necessidade de nos ser- virmos do mundo ¢ das coisas mundanas, deve- mos tomar shmente o que € de todo imprescindivel, Cré-me, Filotéia, que a devocto é a rainha das irtudes, sendo a’perfeicao da catidade como a nata para o leite, a flor para a planta, o brilho para a_pedra preciosa, o perfume para o bal- amo. Sim, a devocao exala por toda parte um odor de suavidade que conforta o espirito dos homens e alegra os anjos, 28 Filotéia CAPITULO mn A devocao é util a todos os estados e circuns- tancias da vida O Senor, criando o universe, ordenou as ar- vores que produzissem frutos, cada uma segundo a sua espécie; e ordenou do’ mesmo modo a to- dos os fieis, que sio as plantas vives de sua Igre- ja, que fizessem dignos frutos de picdade, cada um segundo o sew estado © voca¢ao. Diversas sio as regras que devem seguir as pessoas da socie. dade, os operdrios e os plebeus, « mulher casada a solteira e a vitiva. A pratica da devocdo tem que atender & nossa satide, as nossas ocupagies, e deveres particulares. Na verd ade, Filotéia, se- ria porventura louvavel se um bispo fosse viver to solitario como um cartuxo? se pessoas casa das pensassem tio pouco em ajuntar pare si um pectilio, como os capuchinhos? se um operario freqiientasse tanta a igreja como um religiose o cOro? se um religioso se entregasse tanto a obras de caridade como um bispo? Nao seria ridicula uma tal devocio, extravagante e insuportavel? En- tretanto, & 0 que se nota muitas vézes, eo mune do, que nao distingue nem quer distinguir a de~ vosao verdadeira da imprudencia daqueles que a praticam désse modo excentrico, censura ey tupera a devocao, sem nenhuma razao justa e real Nao, Filotéia, a verdadeira devocdo nada des- trdi; ao contrario, tudo aperfeicoa. Por isso, ca- 80 uma devogao impeca os legitimos deveres da vocacéo, isso mesmo denata que nao é uma de- vocao verdadeira. A abelha, diz Aristoteles, tira i i ‘ Parte I, 8 © mel das fléres, sem as murchar, e as de intactas e frescas como as achou; a devogao ver- dadeira ainda iaz mais, porque nao so em nada estorva 0 cumprimento'dos deveres dos diversos estados e ocupacses da vida, mas também os tor na mais meritosos e lhes confere o mais lindo ornamento. Diz-se que, lancando-se uma pedra preciosa no mel, esta se toraa mais brilhante e vigosa, sem perder a sua cor natural; assim, na jamilia em que reina a devocéo, tudo’ melhora e se torna mais agradavel: diminuem os cuidados pelo sustento da familia, o amor conjugal € mais sincero, mais fiel o servigo do Principe, © mais naves e eficazes os negécios € ocupagdes. £7 um ¢rro e até uma heresia querer expulsar a devocdio da corte dos principes, dos exércitos, da tenda do operdrio e da vivenda das pessoas casadas. E’ verdade, Filotcia, que a devocio me- ramente contemplativa, mondstica ou religiosa, nao se pode exercer nesses estados; mas existem amti- tas outras devogies adequadas a aperfeigoar os que as seguem, J no Antigo Testamento deparam-se-nos insig- nes exemplos Ua vida devota no lar doméstico; assim, Abrado, Isaac, Jacob, David, Job, Tabias, Sara, Rebeca, Judite e, na nossa era, S. Jost, LE dia e S. Crispim levaram uma vida devota’ nos seus trabathos manuais, Santa Ana, Santa Mar Santa Monica, Aquila e Prisca, nos trabaliios da casa, 0 centuriao Cornélio, 8, Sebastiio e S, Mau- ricio, no exército, 0 grande Constantino, Santa Helena, S. Luis, Santo Amadeu e Santo Eduardo, em seus tronos. Aconteceu, de fato, que muitos 30 Filotéia perderam a perfeicdo nas solidies que sto tao propicias & santidade e houve muitos também que a conservaram no meio do bulicio do mundo, por mais prejudicial que Ihe fésse. “is — diz S. Gregorio —— nao guarden na solidio aquela castidade admiravel que tinha con- servado no meio duma cidade corrompida”, Enfim, onde quer que estivermos, podemos e devemos aspirar continuamente a. perfeicdo. CAPITULO IV Necessidade de um diretor espiritual para entrar © progredir nos caminhos da devocao Querendo Tobias mandar o filho a uma terra longingua e estranha, disse-Ihe: Vai em busca de aigum komem gue te seja ficl, gue vd contigo EVo que te digo também a fi, Filotéia; se tens uma vontade sincera de entrar nas veredas da devocdo, procura um guia sabio e pratico que te concuza. Esta 6 a adverténcia mais necess4- ria_e importante. Em tudo o que fazemos — diz o devoto Avila so femos certeza de estar fazendo a vontade de Deus, enquanto néo nos apartamos daquela obediéneia submissa, que os santos tanto enco- mendaram e praticaram tao. fielmente. Ouvindo Santa Teresa da ausieridade e pe niténcias de Catarina de Cardona, concebeu gran- de desejo de imita-la e foi tentada a nao seguir © sew confessor, que Iho proibia Eutretanto, como se submetesse, Nosso Senhor Ihe disse: “Minha filha, o camino que segues & Parte I, 4 sh bom e seguro; tu estimavas muito essas penitén- cias, mas eu estimo mais ainda tua obediéncia” Desde entio ela devotou-se tanto a esta virtude que, além da obediéncia devida a sens superio- res, ela se ligou, por um voto especial, a seguir a direcdo de um homem prudente e de bem, o que sempre a edificon ¢ consolou muito, De mo- do semelhante, j4 antes e depois dela, muitas al- mas santas, que gueriam vive inteiramente sob a dependéncia de Deus, submeteram a sua propria vontade 4 de um de seus ministros. E’ essa a sujeicao humilde que Santa Catarina de Sena tan- to encomia em sews didlogos. Foi também a pré~ tica da santa princesa Isabel, que prestava uma obediéncia perteita a direcéo do sabia Conrado. Nem outro foi o conselho que, ao morrer, deu a S. Luis, seu fitho “Confessa-te a mitido e escollie um confessor insigne por sua ciéncia ¢ sabedorid, 0 qua: te ajude com suas Iizes em tudo 0 que for neces- sario para a tua direcéo espiritual O amigo fiel & uma forte protecdo ~ diz a Sa- grada Escritura — guem 0 achow ackow um ie Souro. O amigo fiel é unt medicamento de vida e de imortalidade, ¢ os que temem o Senkor acha- raéo um tal amizo. Trata-se aqui principalmente da imortatidade da vida futura; e, se_a quisermos aleancar, con- vém ter um amigo fiel ao nosso lado, que di- tija as nossas acoes com uma méo segura, atra vés das ciladas © embustes do inimigo, Ele sera para nés um tesouro de sabedoria para evitar o mal e praticar o bem de uma maneira mais perfeita; Gle nos dara confbrto para. aliviar-nos 32 Filotéia em nossas quedas e nos dard a remédio mais necessario para a cura pericita de nossas en- fermidades espirituais Mas quem achard um tal amigo? Diz o sabio que € aguéle que ieme a Deus, isto é, 0 homem humilde que anseia com ardor o seu adiantamen- to espiritual, Se é, pois, tao importante, Filotéia, ter um guiz. experimentado nos caminhos da devocao, pede com todo o fervor a Deus que te mande tm segundo o seu Coragdo e nao duvides nem um instante que Gle te enviaré um diretor sdbio e fiel, ainda que fésse um anjo do céu, co- mo ao jovem Tobias, De fato, ésse amigo deve ser um anjo para ti, isto é uma vez que o tenhas obtido de Deus, ja ndo_o deves considerar como um simples ho- mem. Nao deposites a tua confianga néle sendo com respeito a Deus, que, por seu ministério, te quer gular e instruir, suscitando no seu coracio © nos seus labios os sentimentos e as palavras necessarias para a tua direcao, Por isso deves ouvi-lo como @ um anjo que vem do céu para te dirigir, Ajunta a esta confianga uma sinceridade a toda prova, tratando-o franca e abertamente e deixando-Ihe ver em tua alma todo o bem e o mal que ai se encontram: o bem serd mais certo e 0 mal menos profundo; a tua alma sera mais forte nas adversidades ¢ mais moderada nas consolagies, Unt religioso respeito também de- ves ajuntar A confianca, de tal forma que o res- peito nao diminua a contianga, nem a confianga © respeito. Confia néle como uma filha em seu pai e respeita-o como um filho sua mae. Numa palavra: esta amizade, que deve unir a forga com | Parte 1.5 38 a docura, tem que ser toda espiritual, toda san- fa, tOda 'sagrada, toda divina “Escolhe, pois, um entre mil — diz Avila” — e eu.te digo: escolhe um entre dez mil, porque se acham muito menos do que se cuida, que se- jam capazes déste oficio. Deve ser cheio de ca- ridade, ciéncia e prudéncia; se faltar uma des- tas trés qualidades, a escollia sera arriscada. Re- pito-te ainda uma vez: suplica a Deus um dire- tor e, quando o achares, agradece a divina Ma- jestade; persevera entdio em tua escolha, sem ir procurar outros; caminha para Deus com toda a simplicidade, humildade ¢ confianga ¢ tua viagem sera certamente feliz. CAPITULO v Necessidade de comegar pela purificagdo da alma Apareceram as fldres em nossa terra — diz 0 Espéso sagrado — chegou o tempo da poda. — Que flores’ sto estas, para nds, 6 Filotéia, senao 0s bons desejos? Logo que éies despertam em nossos coracdes, é preciso envidar todo o es- fOrco para purificd-los de tédas as obras mor- tais e supériluas, Prescrevia a lei de Moisés que a donzela, noiva de um israelita, tirasse o ves- tido do seu cativeiro, cortasse os cabelos ¢ apa- rass¢ as unhas. Serve isto de licio & alma que aspira a honra de ser esposa de Jesus Cristo, a qual se deve despojar do homem ‘velho e se te- vestir do novo, deixando o pecado e em seguida ir cortando com os demais impedimentos acess6- rios' que podem ser um empecilho para o amor. Filotéia — 3 pe OCHA HHEEEEBHOODHOOHOELESESEOS Oe a Filoté A cura da alma, assim como a do corpo, s6 se consegue comecando por combater os maus humores corrompidos, e € 0 que chamo purificar o coracao. Num instante operou-se isto em S. Paulo € 0 mesmo Ié-se nas vidas de Santa Ma- dalena, Santa Pelagia, Santa Catarina de Sena ¢ de alguns outros santos ¢ santas. Mas uma transtormacao t4o repentina é na ordem da gra- ca um milagre tao grande como na ordem da na~ tureza a ressurrei¢ao de um morto, e por isso no a devemos pretender. A cura da alma, Filo- teia, assemelha-se a do corpo; € vagorosa, vai progredindo gradualmente, aos’poucos, com ‘mu to custo e intervalos; mas neste seu passo lento ela é tanto mais segura. Creio que nio te é des- conhecido © antigo provérbio — que as doencas vem a cavalo ea galope e se vao a pé e muito devagar; outro tanto podes dizer das enfermida- des espirituais E’, pois, necessario, Filotéia, que te armes de muita paciéncia e coragem, Ah! que pena me fa- zem aquelas pessoas que, por se verem cheias de imperteigdes, depois de alguns meses de devo- Ho, comegam ‘a inquietar-se © perturbar-se, ja guase a sucumbir a tentacéo de deixar tudo ¢ tornar atras, Mas um outro extremo, igualmente perigoso, € 0 de certas almas que, deixando-se seduzir por uma tentagdio contréria, desde os primeiros dias se tm na conta de livres de suas inclinagoes mas, que jd pensam ser perfeitas an- tes de fazer algum progresso e que, arrojando-se a voar sem asas, se elevam ao que hd de mais su- blime na devosao. : Parte 1. 5. 35 O Filotéia, muito de temer € uma recaida de quem se subtrai tao cedo das maos do médico! Deveriam considerar os anjos da escada de Jacob, os quais, tendo asas, subiam, no entanto, de de~ grau em’ degrawt. Diz o profeta: Em vdo’ vos le~ vantais antes de amanhecer. A alma que surge do pecado para uma vida deyota pode-se comparar ao despontar do dia, que nao dissipa as trevas num instante, mas pou- co a pouco, quase imperceptivelmente. Ninguém seguiu ainda tao bem o conselho de purificar 0 coracéo, como aquéle santo peniten- te que, embora ja fdsse lavado de suas iniqitida- des, pedia sempre de novo a Deus, durante a sua vida, que o lavasse sempre mais désses pecados. Por ‘isso no nos devemos perturbar a vista de nossas imperfeigdes, porque a luta contra elas no pode nem deve acabar antes de nossa mor- te. A nossa perfeicio consiste em combaté-las; mas n&o as podemos combater e vencer, sem que as sintamos e conhecamos; a propria vitéria que esperamos conseguir sobre elas, de modo algum consist em nao as sentir, mas exclusivamente em nao consentir nelas. Demais, sentir as suas impressies no & dar © proprio consentimento. Neste combate espiri- tual convém muitas vézes que, para o exercicio, da humildade, Ihes suportemos os ataques mo~ lestos; entretanto, sé seremos vencidos se per- dermos a vida ou a coragem. Ora, as imperfei- gdes e faltas veniais nado nos podem tirar a vida espiritual da graca, de que sé 0 pecado mortal nos priva; portanto, o que temos que temer ai 3 26 Filotéia é a perda_da coragem; mas digamos, com Da- vid, a N. Senhor: Salvai-me, Seakor, da pusilani- midade e do desdénimo. ’, pois, sumamente conso feliz. a nos- poderemos LO VI y-Antes de tudo € necessirio que a alma se puri- fique dos pecados mortais Sg, Libertar-se do pecado deve ser 0 primeiro cuida~ # do de quem quer purificar o coracdo, e 0 meio de fazé-lo se depara no sacramento da penitén- + ‘cia, Procura o coniessor mais digno que possas achar; toma um désses livrinhios préprios para me que se deve efe- tuar sébre a vida passada, como os de Granada, Bruno, Arias, Auger; Ié-os com atencdo, notan= do, ponto por , tudo em que ofendeste a Deus desde 0 uso da’ razao e, se nao confias em tua memoria, assenta por escrito o que notaste me, detesta e abomina os pecados viva e perfeita que siderando éstes mo- simos: gue pelo pecado perdeste a Deus, abanionaste os teus direitos s6- mereceste as penas eternas do infer- no e renunciaste a todo 0 amor de Deus. Ja vés, Filoiéia, que te estou falando da con- isso geral de toda a vida; mas digo francamen- \ __Parte 1, 6 3 sua utilidade e proveito para o coméco, Iho-ta encarecidamente, Acontece nao. raras vé- zes que as confissies ordinarias de pessoas que levam uma vida negligente e comum sio defei- tuosas ¢ mal feitas; ndo se preparam nada ou quase nada; n&o tém a contri¢do devida; confes- sam-se com wma vontade secreta de con a pecar, ou porque nao querem evitar as ocasides do pecado ou porque n&o querem envidar todos os meios necessdrios para a emendacdo da vida; € nesses casos uma confissio geral torna-se_ne- cessdria para assegurar a salvacao. Além a confissdo geral nos da um conhe nos ¢ ossos pei tages; tranq 80s fares; ramente os pecados com mi Pratando-se, poi completa de tua vi de tr Jo perfeita ver, gerd SOO RAAAARA AAA ARAAARAROEIODAREDOOHOADD 38 Filotéia CAPITULO VIL Em seguida, é necessério puriticar a alma de téda a afeicéio a0 pecado Todos os isractitas sairam do Egito, mas mui- tos deixaram 1& 0 set coracio préso; por isso € que tio deserto se Ihes despertaram desejos das cebolas ¢ viandas do Egito. Assim também ha muitos penitentes que efetivamente saem do_pe- cado, porém no the perdem 0 afeto; quero dizer: éles se propfem nao recait no pecado, mas com uma certa relutancia e pesar de abster-se de seus deleites. O coracéo os denuncia e afasta de si, mas sempre tende novamente para éles, A se- melhanca da mulher de Lo, que virou a cabeca para Sodoma. Privam-se do pecado, como os doentes dos meldes; é verdade que n&o os co- mem com médo da morte, de que o médico os ameagara; mas aborrecem-se da dieta, falam dela com ayersio e nao sabem o que fazer; a0 me- nos, querem cheird-los muitas vézes e tém por ditosos os que os podem comer. Eis ai um re- trato fiel dos penitentes fracos ¢ tibios. Passam algum tempo sem pecado, mas com pesar; muito estimariam poder pecar, se nao fossem condena- dos por isso; falam do pecade com um certo gos- to que © vao prazer Ihes proporciona e pensam sempre que os outros se satisfazem e deleitam cometendo-o. Renuncia alguém na confissio a0 proposito de vingar-se, mas dai a pouco vé-lo-ds numa roda de amigos, conversando de bom gra- do sobre 0 motivo de'suas queixas; diz que sem © temor de Deus faria isso ou aquilo; que a lei divina, quanto a ésse ponto de perdoar os A Parte I, 7 nimigos, ¢ muito dificil de observar; que prou- vesse a’ Deus que fdsse permitida a vingancal Ah! quao enredado esté o coragio deste misero homem pela afeicéo ainda que livre do pecado, € quanto se assemelha aos israelitas de que falei acima, E’ isso exatamente 0 que devemos dizer também daquelas pessoas que, detestando seus améres pecaminosos, conservam ainda um resto de prazer em familiaridades vas e em demon: tracoes demasiado vivas de acatamento e amiza- de. Oh! que perigo imenso esta correndo a sal- vacio déstes penitentes! Portanto, Filotéia, uma vez que aspiras since- ramente & devocio, nio sé deves deixar 0 peca- do, mas é também necessério que teu_coracio se purifique de todos os afetos que the foram’ as causas e sao presentemente as conseqiiéncias; pois, além de constituirem um continuo perigo de recaidas, enfraqueceriam a tua alma e te abateriam © espirifo — duas coisas que, como deixei_dito — sao irreconciliaveis com a vida devota. Essas almas, que, tendo deixado 0 pecado, sao tao tie bias e vagarosas no servico de Deus, asseme- lham-se a pessoas que tém uma cOr palida: nao & que estio verdadeiramente doentes, mas bem se pode dizer que sew aspecto, seus gestos ¢ 16- das as suas acées esto doentes. Comem sem apetite, riem sem alegria, dormem sem repouso e mais se arrastam do que andam. Déste modo aquélas almas, em seus exercicios espirituais, que nem so numerosos nem de grande mérito, pra~ ticam © bem com tanto dissabor e constrangimen- to que perdem o britho e graca que o fervor da as obras de piedade, 40 “Potin CAPITULO vit Como alcangar éste grau de pureza Para isso ¢ necessdrio formar uma_ idéia viva e a mais perfeita possivel do mal imenso que traz o pecado, a fim de que 9 coracao se compunja e .desperte em si uma contric¢éo vee- mente € profunda. Uma contricéo, por mais té- nue que seja, mas verdadeira, é bastante para alijar da alma o pecado, maxime se for unida & virtnde dos sacramentos; mas, se é penetrante € veemente, entéo pode purificar 0 coracao tam- bém de todas as mas inclinagées que provém do pecado. Considera os seguintes exemplos: Se odia- mos aiguém pouco profundamente, aborrecemo- nos simplesmente de sua presenca e 0 evitamos; mas, seo nosso ddio € violento e de morte, nao nos limitamos a esta repugndncia interior’ e a esta fugida: o rancor que Ihe guardamos ester de-se também as pessoas de sua casa, a Seus pa- rentes € amigos, cnja convivéncia nos € insupor- tavel. O seu retrato mesmo nos fere os olhos e © coragdo, € tudo o que the diz respeito nos de- sagrada. Assim, o penitente que odeia de leve os seus pecados e tem uma contrigao fraca, se bem que verdadeira, facil e sinceramente se determi- na e propde a’néo os cometer de novo; mas, se seu ddio é vivo ¢ profunda a sua dor, nao. sé detesta. o pecado, mas abomina também os ha- bitos maus e tudo aquilo que o pode atrair e servir-lhe de ocasiao de pecar. E’, pois, neces- sario, Filotéia, que dés & dor de teus_pecados a maior intensidade e extensio de que fores capaz, Parte 1, 9 para que abranjas até as minimas cireunstincias do pecado. Foi assim que Madatena, desde o pri meiro instante de sua conversio, perdeu todo o gosto aos prazeres, a ponto de ao os conservar Sequer no pensamento, e David protestava que odiava o pecado e os caminhos ¢ veredas do pe- cado, E? nisso que consiste a renovagio da ale ma, que 0 mesmo profeta comparava ao remon- tar da’ aguia. Mas, para persuadires-te vivamente da ruindade do pecado e conceberes-the uma dor verdadcira, cumpre aplicares-te a fazer bem as meditagies se- guintes, cujo exercicio destruira, com a graca de Deus, em teu coracio, todo o pecado até ais rai- zes, Com éste intento eu as escrevi para ti, se gundo o método que me parecen melhor. Faze~ as uma por uma, conforme a ordem que seguem; toma apenas uma em cada dia e, se for possivel, eu te aconseilio que seja de manha, porque éste € 0 tempo mais proprio para éstes exercicios de espirito; depois pensa durante o dia, contigo mesmo, sobre aquilo de que ainda te lembras ¢ se ainda nao tens pratica em meditar, Ié, para ta tornar mais facil, a segunda parte deste livro, CAPITULO 1X Meditacdo sobre a criagio do homem PREPARAGAO . Poete na presenca de Deus. 2. Pede a Deus que te inspire. @ PH AARAAARARARARAAARABRAROBOBABALOEARA 2 Bilotéla CONSIDERACAO 1. Considera que se passaram tantos e tantos anos antes que viesses a0 mundo, sendo teu ser lth puro nada, Onde estavamos nds, minha alma, durante éste tempo? O mundo ja ‘existia desde uma longa série de séculos ¢ nada havia de tudo aguilo que nés somos. 2. Pensa que Deus te tirou do nada para te fazer o que és, sem que tu Ihe fosses necessdria, mas imicamente por sua bondade, 3. Porma uma idéia elevada do ser que Deus te deu, porque € 0 primeiro e 0 mais perfeito de todos os séres déste mundo visivel, criado pa- ra uma vida e felicidade eternas ¢ capaz de unir- se perfeitamente A Majestade divina APETOS E RESOLUGOES 1. Humitha-te profundamente diante de Deus, dizendo com o salmista: Oh! minha alma, sabe que o Senhor é teu Deus e que foi éle que te féz e ndo tu que te fizeste a ti mesma. O’ Deus, Sou uma obra de vossas mdos. 0’ Senhor, t6da a minita substdncta ¢ um puro nada diante de vés; e quem sou eu, para que me queiras fazer éste bem? — Ah! minha alma, tu estavas mergulhada no abismo do nada e ai estarias ainda, se Deus nao te tivesse tirado. 2. Agradece a Deus, 0 meu Criador, vis, cuja beleza iguala a grandeza infinita, quanto vos de- vo, porque me tendes feito por vossa misericér- dia indo isso que eu sou, Que farei eu para ben- dizer condignamente 0 vosso santo nome e para agradecer a vossa infinita bondade? Parte 1.9 43 3. Confunde-te, Mas, ali! meu Criador, em vez de me unir convosco pelo amor e por meus ser vigos, minhas paixdes revoltaram meu coragao contra vos, separaram e afastaram minha alma’ de vos e ela entregot-se ao pecado e devotou-se & injustiga. Respeitei e amei to pouco a vossa bon- dade, como se nao tivésseis sido meu Criador. Eis aqui, pois, as boas resolugdes que vossa graca me faz tomar! Renuncio a estas vas com- placéncias que, desde ha tanto, tém ocupado o meu espirito e'o meu coracae inicamente comigo mesmo, que sou nada. De que te glorificas, pé e cinza! ou melhor, que tens em ti, verdadeito e miserdvel nada, em que te possas comprazer? Que- ro humilhar-me, e por isso farei isto ou aquilo, sofrerei este ow aqucle desprézo; quero absoluta~ mente mudar de vida; seguirei’ dora em diante © movimento desta inclinagdo que meu Criador me dew para éle; honrarei em mim esta qualida- de de criatura de Deus e como tal me considera- rei imicamente: consagrarei todo o ser que re- cebi déle a obediéncia’ que the devo, com todos os meios que tenho e sdbre os quais pedirei con- selhos a meu pai espiritual concLusxo 1. Agradece a Deus. Bendizei, 6 minha alma, ao Senhor e tddas as coisas que hé dentro de mim bendigam o sew santo nome! 2. Oferece-te a Deus. O' meu Deus, eu vos ofe- reco o mew ser, que vos me destes com todo o met coracdo; eu vo-lo consagro. 3. Ora humildemente a Dens. O° meu Deus, eu vos suplico que me conserveis, pelo vosso poder, 44 Filotéia nestas resolugdes e sentimentos. O' Virgem SS., eu vos peco que as recomendeis 20 vosso Filho divino, com todos aguéles por quem tenho obri gagdo' de rezar. Pai-Nosso, Ave-Maria Depois da meditacio, cothe dai o assim cha- mada fruto, isto ¢, uma verdade qualquer que te produziu maior impressio e comoven mais o teu coragao; durante o dia recorda-te dela de vez em quando, para te conservares mas boas reso lucdes. E’ 0 que costumo chamar de ramalhete espiritual. Compara esta pratica av costume da- quelas pessoas que tomam consigo pela manha um ramalhete de iléres € o cheira muitas vézes durante o dia, para em seu suave odor deleitar € fortificar o ‘coracio. Este aviso que te dou agui servird também pa-, ra as meditacdes seguintes. CAPITULO & Meditagdo sdbre o fim do homem PREPARAGAO 1. Poe-te na presenga de Deus 2. Pede a Deus que te inspire. CONSIDERAGAO 1. Nao foi por nenhum motivo de interésse que Deus nos criou, pois nds Ihe somos absolutanen- te intteis; foi nicamente para nos fazer bem, em nos faculiando, com sua graca, participar de sua gloria; ¢ foi por isso, Filotéia, que éle te deu tudo o que tens: 0 entendimento, para o conhe- [ Parte 1, 10 45 ceres ¢ adorares; a meméria, para te lembrares dé- Je; a vontade, para o amares! a imaginacdo, para te Tepresentares os seus beneficios; os olhos, para admirares as suas obras; a lingua, para 0 low vares, ¢ assim as demais poténcias’ ¢ faculdades. 2. Sendo esta a intencio que Deus teve, em te criando, com certeza deves abominar e evitar todas as aches que sao contrarias a éste fim; € quanto Aquelas que Ao te conduzem a éle, tu as_deves desprezar, como vas e supérfluas 3. Considera qudo grande é a infelicidade do mundo, que nunca pensa nestas coisas; a. infe- icidade, digo, dos homens que vivem por af, co- mo se ‘estivessem persuadidos de que sew’ fim neste munde, é edificar casas, construir jardir deliciosos, acumular riquezas'sébre riquezas e ocupar-se de divertimentos frivolos. APETOS E RESOLUCOES 1. Confunde-te considerando a miséria de tua alma e 0 esquecimento destas verdades. Ah! de que se tem ocupado o meu espirito, 6 meu Deus, quando nao pensei em vis? De que me lembrava, quando vos esqueci? Que amava eu, quando, vos nao amava? Ah! Eu me devia alimentar da ver- dade e fui saturar-me na vaidade. Como eseravo que eu era do mundo, ecu o servia, a ésse mundo, que foi feito-para me servir e me ensinar a vos conhecer e amar. 2. Detesta a vida passada, Eu vos renuncio € aborreco, maximas falsas, vdos pensamentos, re- flexdes iniiteis, recordacoes detestaveis. Eu’ vos abomino, amizades infiéis ¢ criminosas, vas ape- gos ao mundo, servigos perdidos, miserdveis ata EC PORHIAASAPO®I®OSIOSIIOBO NOR ECHRAARE 46 Filotéia ! bilidades, generosidade falsa que, para servir aos homens,-me levastes a uma imensa ingratidéo pa- ra com Dew eu vos detesto de toda a minha alma 3, Volta-fe para Deus. E vos, 6 meu Deus, 6 meu Salvador, vos sereis dora em diante o tinico objeto de meus pensamentos; nao darei atencdo a nada que vos possa degagradar; minha memé- tia se encherd todos os dias da grandeza e do- cura de vossa bondade para comigo; vos sereis. as delicias de meu coracio e téda a suavidade de_mew interior. Sim, assim seja; tais e tais divertimentos com que me entretinlia, éstes e aquéles exercicios vaos que ocuparam meu tempo, estas e aquelas afei- gGes que prendiam meu coracéo, tudo isso seré um objeto de horror para mim; e, para conser var-me nestas disposigses, empregarei tais e tais meios CONCLUSO 1, Agradece a Deus. Eu vos dou gracas, 6 meu Deis, porque me cestinastes para um fim to. su- blime e til, qual € o de vos amar nesta vida e gozar eternamente na outra da intensidade , de vossa gloria. Como serei digno déle? Como vos 4 g bendirei quanto mereceis? 2. Oferece-te a Deus. Eu vos ofereco, 6 meu amabilissimo Criador, todos éstes propdsitos e afetos com todo o meu coragao e com toda. a mie nha alma, 3. Ora humildemente a Deus, Eu vos suplico, 6 meu Deus, que vos agradeis de meus cese- t __ Parte I, 0 a jos e votos, de dar 4 minha alma a vossa santa béncio, para que sejam levados a efeito, pelos merecimentos de vosso Filho, que por mim der ramou todo o seu sangue na cruz. Pai-Nosso, Ave-Maria, ° CAPITULO NI Meditacao sdbre os beneficios de Deus PREPARAGAO 1. Poe-te na presenca de Deus. 2. Pede a Deus que te inspire CONSIDERAGAG 1. Considera, com respeito ao corpo, todos os dotes que tens recebido do Criador: este corpo duma conformacdo tao perfeita, esta satide, es. tas comodidades tio necessérias a. manutencao da vida, éstes prazeres se ligam naturalmente ‘ao teu estado, esta cooperacdio © assisténcia de teus inferiores, esta companhia suave e agradavel de feus amigos. Compara-te entio com outras pes- Soas que talvez merecam mais do que ta e que no entanto nao as possitem; pois quantas pessoas tém uma figura ridicula, um corpo disforme, uma satide debill Quantos nfo estao a gemer, aban- donados de seus amigos e parentes, ‘10 desprézo, no oprdbrio, em enfermidades longas ou nas an. gistias da pobreza. Deus assim quis uma sorte Para ti e outra para éles. 2. Considera tiido aquilo que se pode chamar dotes do espirito, Pensa quantos homens idiotas, insensatos, furiosos, existem, e quantos educados 48 Filotéia ciramente e na. mais completa ignordncia; por que nao és tu déste mimero? Nao foi Deus quem velou duma maneira toda especial por ti, para te dar um natural feliz e uma boa educacio? 3. Considera ainda mais, Filotéia, as gragas so- brenaturais, 0 teu nascimento no seio da Igreja, © conhecimento tao perieito que tens tido de Deus desde a tua infancia, a recepedo dos sacramen- tos to freqiiente e salutar. Quantas inspiraces da graca, quantas Inzes interiores, quantas re- preensies de tua consciéncia, por ‘causa de tua vida desregrada! Quantas vézes Deus te tem perdoado os pecados e velado sobre ti, para li vrar-te das gcasides, onde estavas prestes a per- der eternaménte a tua alma! Todos éstes anos de vida que Deus te concede nao te deram tem- po bastante para progredir no aperfeicoamento de tua aima? Examina estas gracas_minuciosa- mente e@ contempla quao bom e misericordioso Deus tem sido sempre para contigo. AFETOS E RESOLUGOES 1, Admira a bondade de Deus. Oh! guao bom tem sido o meu Deus para mim! Oh! éle é bom deveras! 0" Senhor, rico sois vis em misericér- dia e imenso em bondade! Oh! minha alma, com jubilo anuncia quantas maravilhas o teu Deus tem operado em ti! 2. Arrepende-te de tua ingratiddo. Mas quem sou eu, Senhor, para que vos lembreis assim de mim? Oh! grande ¢ a minha indignidade! Ah! Calquei aos pés as vossas gracas, abusando de- las, afrontei a vossa bondade, ‘desprezando-a, Parte I ay opus um abismo de ingratiddo ao abismo de vos- sa_misericérdia, 3. Excita em ti_um reconhecimento profundo. O” meu coracéo, ja nao sejas um intiel, um in grato, um rebelde para um benfeitor tao gran de! E como nao sera minha alma dora em dian- te sujeita a men Deus, que operon em mim e por mim tantas maravilhas e gracas? Ah! Filotéia, comecas, pois, a negar a teu corpo éstes e aquéles prazeres, para acostuma- lo a levar o jugo do servico dé Deus; e em se- guida aplica teu espirito a conhecé-lo mais ¢ mais por meio de tais ¢ tais exercicios condu- centes a éste fim. Emprega afinal os meios de salvag&a que Deus te olerece por sua santa Igre: ja. — Sim, cu o farei; exercitar-me-ei_na ora G40, freqiientarei_ os sacramentos, ouvirel a pa- lavra de Deus, obedecerci sua voz, seguindo a risca_os conselhos do Evangelho © 2s suas piragoes, CONCLUSKO 1, Agradece a Deus, que te fez conhecer tao claramente as suas gragas € 08 teus deveres, 2, Oferece-the 0 teu coragdo com todas as tuas resolugdes, 3, Pede-lhe que te conserve nestes propésitos, dando-e a fidelidade necessaria; pede-the isso pelos merecimentos la morte de Jesus Cristo; im- plora a intercessdo da SS. Virgem e¢ dos santos, Pai-Nosso, Ave-Maria. Filotéia — 4 SSSR eer aaa ~ eee nm annwnnnce « amen nnannnecasnececenese 50 Filotéia CAPITULO Xt Meditagéio sébre os pecados PREPARAGAO Poe-te na presenga de Deus. 2. Pede a Deus que te inspire. CONSIDERACKO, 1. Vai em espirito aquele tempo em que come- caste a pecar; pondera quanto tens aumentado € multiplicado 0s teus pecados de dia a dia, con- tra Deus © contra 0 préximo, por tuas obras, por tuas palavras, por teus pensamentos e por teus desejos. 2. Considera tuas mas inclinagdes e com que paixto tu as seguiste; com estas duas conside- raches, verds que teus pecados sobrepujam o ni- mero de teus cabelos e mesmo as areias do mar. 3, Presta atenedo especialmente a tua ingrati- dao para com Deus, pois éste é um pecado geral que se acha em todos os outros ¢ Ihes aumenta infinitamente a enormidade. Conta, se podes, to- dos os beneficios de Deus, dos quais a maldade de te coragdo se serviu para desonré-lo; todas as inspiracdes desprezadas, todas as mocdes da graca inutilizadas e todos os diferentes abusos dos sacramentos, Onde esto, pelo menos, 08 frutos que Deus esperava dai? Que é feito das riquezas com que o teu divino Esp6so exornou a tua alma? Tudo foi deturpado por tuas iniqiiida- des, Pensa que tua ingratidfo foi a ponto de fu- Sp “Parte 1.32 a gires da presenca de Deus, para te perderes, en- quanto éle te segitia, passo ‘por passo, para te salvar. APETOS E RESOLUGOES + Sirva aqui a tua miséria para confundir-te. O ‘met Deus, como ouso apresentar-me diante de vés? Oh! eu me acho num deploravel estado de corrupedo, impureza, ingratido e inigijidade E’ possivel que eu tenfia levado a minha insen- satez e ingratidao a ponto de j4 nao hayer um de meus sentidos que nao esteja deturpado por minhas iniqiiidades, nenhuma das poténcias de mi- nha alma que nao esteja profanada e corrompida por meus pecados, e que nao se tenha passado um sé dia de minha vida que no fosse cheio de obras_ mas? E' éste 0 fruto dos beneficios de meu Criador eo preco do sangue de meu Redentor? 2. Pede perdiio de teus pecados e langa-te aos pés do Senhor, como o fitho pridigo aos pés de seu pai; come Santa Madalena aos pés do seu amantissimo Salvador, como a_muther adilttera aos pés de Jesus, sew juiz. O' Senhor, misericér- dia para esta alma pecadora, 0’ divino Coragéo de Jesus, fonte de compaixtio e de bondade, ten- de piedade desta alma miseravel 3. Propée-te methorar de vida. Nunca mais, Se- nhor, me entregarei ao pecado, nado, jamais, com © auxilio de vossa graca. Oh! amei-o demais, mas agora detesto-o de todo o meu coragio. Eu vos abraco, 6 Pai das misericérdias! Em vés quero viver € morrer. re Filotéia Acusar-me-ei_a_um sacerdote de Jesus Cristo, com um coracio humilde ¢ sincero, de todos os meus pecados, sem especie alguma Ue reserva ou dissimulacao, Farei todo o possivel para destrué Jos em mim até raiz, especialmente estes aque Jes que mais me pesam na consciéncia, Para isso empregarei com generosidade todos os meios que @le me aconselhar e nunca pensarei ter feito bas- fante para reparar minhas enormes faltas CONCLUSAO 1, Agradece a Deus que até esta hora esperou por tua conversio e te deu estas boas posicdes 2, Oferece-the a vontade que tens de servi-lo o melitor possivel. 3. Pede-lhe que te dé a sua graca e a forca, ete. Pai-Nosso, Ave-Maria CAPITULO XIII Meditacdo sobre a morte PREPARAGAO Poe-te na presenca de Den 2. Pede a Deus a sua graca 3. linagina que te achas enférmo, no leito de morte, sem nenhuma esperanca de vida. CONSIDERACAO 1. Considera, minha alma, a incerteza do dia da morte. Um dia sairés do teu corpo. Quando se- ra? Sera no inverno ou no verao ou em alguma Parte I, 13 53 outra estagio do ano? No campo ow na cidade, de noite ou de dia? Sera dum modo stibito ou com alguma preparacdo? Sera por algum acidente violento ou por uma doenca? Terés tempo e um sacerdote para te coniessares? Tudo isto é des- conhecido, de nada sabemos, a nao ser que ha- vemos de morrer indubitavelmente e sempre mais cedd que pensamos, 2, Grava bem em teu espirito que entio para ti jA ndo haverd mundo, vé-lo-as perecer ante teus olhos; porque entdo’ os prazeres, as vaida- des, as honras, as riquezas, as amizades vas, tudo isso se te aligurard como um fantasma, que se dissiparé ante tuas vistas, Ah! Entéo haverds de dizer: por umas bagatelas, umas quimeras, ofendi a Deus, isto ¢ perdi o meu tudo por um nada. Ao contrario, grandes e doces parecer-te-Zo entio as boas obras, a devocio e as peniténcias, e ha- veras de exclaimar: Oh! Por que ndo segui eu esta senda feliz? Entao, os teus pecados, que agora tens por uns dtomos, parecer-te-Ao montanhas_¢ tudo o que crés possuir de grande em devacéo serd reduzido a um quase nada. 3. Medita @sse adeus grande e triste que tua alma diré a éste mundo, as riquezas © as vaida- des, aos amigos, a teus pais, a teus filhos, a um’ marido, a uma mulher, a teu proprio corpo, que abandonards imdvel, hediondo de ver e todo deifeito pela corrupcio dos humtores. 4, Prefigura vivamente com que pressa levaréo embora @ste corpo miserdvel, para langa-lo na terra, e considera que, passadas essas ceriménias ligubres, j4 ndo se pensard mais de todo em ti, assim como tu n&o pensas nas pessoas que j4 mor- SAA ANA ARADAARRAARARARARARAOAOOHBARS 54 ' Filotéia reram, “Deus 0 tenha em sua paz” — ha de die zer-se — ¢ com isso esta tudo acabado para ti neste mundo. O” morte, sem piedade és tu! A nin- guém poupas neste mundo. 5. Adivinhas, se podes, que rumo seguira tua alma, ao deixar o teu corpo. Ah! Para que lado se hd de voltar? Por que caminho entraré na eternidade? — E’ exatamente por aquéle que en- cetou ja nesta vida, AFETOS E RESOLUCOES 1. Ora ao Pai das misericdrdias e tanga-te em setts bracos. Ah! Tomai-me, Senor, debaixo de vossa protecdo, neste dia ‘terrivel,’ empenhai a vossa bondade ‘por mim, nesta hora suprema de minha vida, para tornd-la feliz, ainda que o res- to de minha vida seja referto de tristezas e afli- goes, 2, Despreza o mundo. JA que nao sei a hora em que hei de te deixar, 4 mundo; jA que esta hora é tao incerta, naéo'me quero’ apegar ati O' meus queridos amigos, permiti que vos ame iinicamente com uma amizade santa e que dure eternamente; pois, para que unir-nos de modo que seja preciso em breve romper ésses lagos? Quero preparar-me para esta titima hora; que- ro trangtilizar minha consciéneia; quero. dispor isso e aquilo em ordem e predispor-me do ne- cessirio para um passamento feliz. concLusso Agradece a Deus por estas boas resolucdes que te féz tomar, @ oferece-as a divina Majesta- de; suplica-Ihe que, pelos merecimentos da mor 55 te de seu Filho, te prepare uma boa morte; im- plora a protecao da SS. Virgem e dos santos. Pai-Nosso, Ave-Maria, CAPITULO XIV Meditacdo sdbre o ultimo juizo PREPARAGAO 1. Pée-te na presenca de Deus. CONSIDERACAO 1. Enfim, uma vez terminado 0 prazo prefixado pela sabedoria de Deus para a duracdo do mun- do, daqueles inimeros e varios prodigios e-pres- sdgios horriveis, que consumirdo de femor e tre- mor os homens’ ainda vivos, um diltivio de fogo se alastrara pela terra afora, destruindo tudo, sem que coisa alguma escape as suas chamas devora~ doras. 2, Depois déste incéndio universal, todos os homens hao de resstiscitar, ao som da trombeta do arcanjo, e comparecerao em juizo todos jun- tos, no vale de Josad. : “Mas — ah — bem diversa sera a sua situa- gio: uns teréo 0 corpo revestido de gloria e es- plendor e outros se horrorizarao de si proprios. 3. Considera a majestade com que 0 soberano Juiz ha de aparecer em seu tribunal, cercado de anjos ¢ santos e tendo diante de si, mais brilhan- te que o sol, a cruz, como sinal de graca para os bons e de vinganca para os maus 56 Fitotéia 4, A vista déste sinal_e por determinacio de Jesus Cristo, separar-se-2o os homens em duas partes: uns se acharao 4 sua direita e serdo os predestinados; outros & sua esquerda e serao. os condenados. Separacdo eterna! Jamais se encon- trarZo de novo juntos, 5. Entdo se abririo os livros misteriosos das conseiéncias: nada ficara oculto. Clara ¢ distinta: mente ha de ver-se nos coracdes duns ¢ doutros tudo o que fizeram de bom e de mau — as afron- tas a Deus e a fidelidade a suas gracas, os pe- cados ¢ a peniténcia. O' Deus, que confuséo du- ma parte € que consolagao da outra 6. Escuta atentamente a sentenca formidavel que 0 soberano Juiz pronunciar contra os maus: Ide, malditos, para o fogo eterno, que foi pre- parado para 0 diabe e seus anjos, Pondera bem estas palavras, que os hao de esmagar por com- pleto: Ide, Esta palavra ja nos esta anunciando © abandono completo em que Deus deixara a sua criatura, expulsando-a de sua presenca e néo a contando mais no nimero daqueles que Ihe per- tencem. Ide, maiditos. 0’ minha alma, que maldi- cao esta! Ela ¢ universal, pois encerra todos os males, € ela & irrevogavel, porque se estende a todos os tempos, por téda a eternidade. Ide, mal- ditos, para 0 fogo eterno. Considera, 6 minha al- ma, essa eternidade tremenda, 0’ cternidade de penas eternas, quao horrivel és tu! 7. Esettta também a sentenca que decidiré so- brea sorte feliz dos hons: Vine, dira o Juiz. Ah! esta € a doce palavra de salvacdo, pela qual © nosso divino Salvador nos hd de chamar a si, para receber-nos, bondoso, entre seus bracos. 4 Parte I, 15 Vinde, benditos de meu Pai. 0’ héngio preciosa e incomparayel, que encerra em si t0das as bén- cdos! Possui o'reino que vos esté preparaio des- de a criagéo do mundo, 0 meu Deus, que graga! possuir um reino que nunca terd fim! AFETOS E RESOLUGOES 1. Compenetra-te, minha alma, de temor, com a lembranca déste ‘dia fatal. Ah! com que segu- Tanga contas tu, quando as prdprias colunas do céutremerao de terror? 2, Detesta teus pecados. E? sé isso que te po- de levar a perdigao, Ah! julga-te a ti mesma ago- fa, para entio nao séres juigada, Sim, eu quero fazer bem o exame de consciéncia, acusar-me, julgar-me, condenar-me, corrigir-me, para que 0 Juiz no me condene naquele dia tremendo. Con- tessar-me-ei, pois, aceitarei os avisos nevessé- tios, etc. CONCLUSKO 1, Agradece a Dens, que te deu tempo ¢ meios de porte em seguranca pelo exercicio da_peni- téncia. 2. Oferece-the teu coragio, para fazer dignos frutos de peniténcia. 3. Pede-lhe a graca necessaria para isso. Pai- Nosso, Ave-Maria CAPFTULO XY Meditacao sdbre o inferno PREPARAGAO 1, Pée-te na presenga de Deus. 2, Pede a Deus humildemente a sta graca 38 Filotéia 3. Imagina uma cidade envolta em trevas, t0- da ‘ardendo em chamas de enxdfre e pez, que Jevantam uma fumaca horrivel, e t6da_ cheia de habitantes desesperados, que ‘dela nao podem sair nem morrer. CONSIDERACAO 1, Os condenados estio no abismo do inferno, como desventurados habitantes dessa cidade de horrores. Padecem dores incalculéveis em todos 08 seus sentidos e em todo 0 corpo; pois, assim como empregaram todo o seu ser para pecar, So- rerao tambem em todo éle_as penas devidas ao pecado. Déste modo, sofrerio os olhos por seus olares pecaminosos, vendo perto de si os dem6- nios em mil figuras’ hediondas e contemplando o inferno inteiro. Ai s6 se ouvirdéo lamentos, de- sesperos, blasiémias, palayras diabélicas, para pu- nir por é@stes tormentos os pecados cometidos por meio dos ouvidos, E de modo andlogo acon- teceré aos demais sentidos. 2, Além déstes tormentos, existe ainda um ou- tro muito maior. E’ a privacto e a perda da glo- ria de Deus, que jamais verao. Por mais ditosa que fésse a vida de Absalao em Jerusalém, éle nao deixava de protestar que a infelicidade de nao ver por dois anos seu pai querido lhe era mais intolerdvel que o tinham sido as penas do exilio. O' meu Deus, que sofrimento sera, pois, @ que pesar imenso ‘ser privado eternamente de vos ver e amar. 3. Considera sobretudo a eternidade, a qual por si s6 faz o inferno insuportavel. Ah! se o calor de uma febrezinha tora uma breve noite Parte 1, 16 _ 59 comprida e enfadonha, que horrenda ndo sera a noite do inferno, onde a eternidade se ajunta a abundancia dos 'tormentos? E’ desta eternidade que procedem a desesperacio eterna, as blas~ iémia execraveis e os rancéres sem fim. AFETOS E RESOLUGOES 1. Procura incutir temor em tua alma, dirigin- do-Ihe as palavras do profeia Isaias: O’ minha alma, poderds habitar com 0 jogo devorante? ha- bitards com os ardores sempiternos? Queres dei xar teu Deus para sempre? 2. Confessa que tens merecido ésses horriveis castigos; e quantas vézes? Ah! desde éste instan- te melhorarei de vida, seguirei_um caminho dife- rente do que tenlto seguido até agora. Para que precipitar-me neste abismo de misérias? coxciusso Agradece... oferece... ora, ete, Pai-Nosso, Ave-Maria. CAPITULO XVI Meditagéio sdbre o paraiso PREPARAGAO 1, Poe-te na presenca de Deus, 2. Pede a Deus que te inspire, CONSIDERAGAO 1, Representa-te uma noite serena e trangiiila e pondera quao agradavel ¢ para a alma con- templar o céu todo resplandecente ao brilho de tantas estrélas, Ajumta a éstes encantos inefa- 60. Filotéia veis as delicias dum claro dia, em que os raios mais brilhanies do sol, entretanto, ndo_encobris- sem a vista das estrélas e da lua; @, feito isso, dize a ti mesma que tudo isso nao é absoluta~ mente nada, em comparagao com a beleza e a gléria do paraiso, Oh! bem merece os nossos de- Sejos esta. mansio encantadora. O” cidade santa de Deus, quio gloriosa, quao deliciosa és tu! 2, Considera a nobreza, a formosura, as rique- zas e todas as exceléncias da companhia santa daqueles que vivem ai; ésses milhdes de anjos, serafins e querubins; ésses exéreitos inumerdveis de apéstolos, de mértires, de confessores, de vir- gens ¢ de tantos outros santos e santas. Oh! que unido bem-aventurada a dos santos na gldria de Deus. O menor de todos ¢ mil vézes mais belo que 6 mundo inteiro; que dita sera entdo vé-los todos juntos! Meu Deus, que felizes sao éles! Sem cessar e sem fim levam a cantar os doces cAnticos do eterno amor; regozijam-se num jubilo perene; ddo-se miituamente mil motivos de goza e vivem cercados das consolagdes indiziveis du ma companhia feliz ¢ indissolivel. 3. Considera muito mais ainda o auge de sua bem-aventuranga, 9 qual consiste na Telicidade de ver a Deus, que os honra e inunda de gozos pela visio beatifica, fonte de bens inumerdveis, pela qual éle emite tOdas as Iuzes da sabedoria em suas mentes e t6das as delicias do amor em seus coragdes. Que felicidade ver-se ligado tao estrei- tamente e para sempre a Deus com tacos. tao precinsos! Cercados e compenetrados de divinda- de, como os passarinhos no ar, ocupam-se, dia e noite, tinicamente de seu Criador, adorando-o con- Parte I, 16 at tinuaménte, amando ¢ louvando, sem cansago ¢ com uma alegria inefavel: — Bendito sejais pa- Fa sempre, soberano Senhor e Criador nosso aman- tissimo, que com tanta bondade manifestais em nos a'vossa gloria, pela participacdo que no: concedeis. E ao mesino tempo Deus os faz ouvir aquelas palavras ditosas: Abengoados sejais, cria~ turas minhas, com uma béncao eterna, que me servistes com fidelidade; vos. louvareis ‘perpttua- mente 0 vosso Senhor, na unio mais perfeiia do seu amor. AFETOS "EB RESOLUCOES 1. Entrega-te i admiragdo de tua patria ccles- te, Oh! quao formosa, rica e magnifica és tu, minha Jerusalém querida, ¢ quao ditosos teus ha bitantes! 2, Repreende a tua frouxiddo em progredir no caminho do céu. Por que fugi assim de minha felicidade suprema? Ah! miseravel que cu sou! Mil vézes renunciei a estas delicias infinitas ¢ eternas, para ir atras de prazeres superficiais, passageiros e misturados de muita amargura. Ont de tinha a cabeca, quando desprezei assim os bens estaveis e dignos de almejar, por causa dos prazeres vaos e despreziveis? 3, Reanima, entretanto, tua esperanga e¢ aspira com t6das as tuas forgas a esta estincia de de- licias, O' amantissimo ¢ soberano Senhor, j que Vos aprouve reconduzit-me ao caminho ‘do ecu, nunca mais me desviarei dai, nem reterei meus Passos, nem voltarei atras. Vamios, minha alma que- rida, embora custe algum cansaco; vamos a esta estancia de repouso; caminhemos sempre avante ‘ ‘ ‘ ¢ « ‘ 62 Filotéia para esta terra abencoada, que nos foi prometida; Que estamos nés a fazer no Egito? Privar-me-ei, pois, disto e daquilo, destas coi- gas que me apartam do meu caminho ou me fa- zem parat. ; Farei isto e aquilo, tudo que pode servir a me conduzir e adiantar 0 caminho do céu, CONCLUSAO .. oferece... ora, etc. Pai-Nosso, Agradec Ave-Maria. CAPITULO XYIE* Meditagio sébre uma alma que delibera a escolha entre 0 céu e o inferno PREPARAGAO 1, Poe-te na presenca de Deus. 2. Pede 2 Deus humildemente que te inspire. CONSIDERAGAO 1. No coméco desta meditagdo imagina’ que es- tas mima vasta regido com o teu anjo da guarda, mais ou menos como Tobias, 0 jovem que via~ java em companhia do arcanjo Rafael, ¢ qué éle, Abrindo o céu ante teus olhos, te mostra a be- Jeza e gliria dessa mansfo, ao mesmo tempo que jaz aparecer o inferno debaixo de teus pes, 2. Feita esta suposi¢éo, de joelhos, como em presenca do teu bom anjo, considera que na rea- lidade te achas neste caminho entre o cét € 0 Parte I, 17 63 inferno e que um ¢ outro estéo abertos para te receber, conforme a escolha que fizeres Mas pondera atentamente que a escolha que pode fazer-se agora, nesta vida, perdura eterna mente na outra, 3. Com a escolha que fizeres conformar-se-d a providéncia de Deus por ti ou usando de miseri- cérdia para te receber no céu ou de justica para te precipitar no inferno; entretanto, € mais que certo que Deus, por sua bondade, quer sincera- mente que escolhas a eternidade de delicias e que teu bom anjo.quer te conduzir para 14 com tédas as suas forcas, mostrando-te da parte de Deus os meias absolutamente necessdrios para merecé-la. 4, Escuta atentamente as vozes interiores que vem do céu convidar-te a ir para 14. Vem, alma querida — diz Jesus Cristo — que amei mais do que 0 meu sangue; estendo-te os meus bracos, para te receber no lugar das imortais delicias do meu amor. Vinde — diz-nos a SS. Virgem — ndo desprezeis a voz e o sangue de meu Filho e os desejos que tenho de vossa salvacio, e os pedidos que the faco para vos obter as gracas ne~ cessdrias, Vem ~~ dizem-te os santos, que so de- sejam a unido do teu coracio como déles, — para louvar eternamente a Deus; vem, 0 cami- nho do céu nao ¢ tao dificil como o mundo pen- sa, Nés 0 vencemos ¢ eis-nos no térmo: enceta-o, mas com coragem, e verés que, por um caminho incomparavelmente mais suave 'e feliz do que o do mundo, chegards ao auge da gidria e da fe licidade. 64 Filotéia ESCOLHA O” detestavel inferno, eu te aborreco com to- dos os teus tormentos e com tua tremenda eter- nidade. Detesto em especial essas blasfémias hor- riveis e maldigies diabélicas que vomitas eterna mente contra meu Deus. Minha alma foi criada para o céu e & para ai que me leva o anelo de meu corac&o; sim, paraiso de delicias, mansao di- vina da felicidade e da gloria eterna, 6 entre os teus taberndculos santos e ditosos que escolho hoje para sempre e irrevogavelmente a minha mo- rada, Eu vos bendigo, meu Deus, aceitando esta didiva que vos aprouve fazer-me. O' Jesus, meu Salvador, aceito com todo o reconhecimento de que sou capaz a honra e graca que me fazeis, de que- rer amar-me eternamente; reconheco que sois vos que me adquiristes éstes direitos sobre o céu; sim, fOstes vos que me preparastes um lugar na Jerusalém celeste ¢ nenhuma das felicidades des- Sa patria de gozos reputo igual Aquela de vos amar ¢ glorificar eternamente. - Coloca-te debaixo da protegéo da SS. Virgem e dos santos; promete-lhes de os servir fielmente, para que te ajudem a conseguir ésse céu, onde te esperam; estende as maos a teu bom anjo, supli= cando-Ihe que te conduza para 14; anima tua al- ma a perseverar constantemente nesta escotha Parte 1, 18 _ 65 CAPITULO Xvi Meditago para deliberar entre a vida mundana ea vida devota PRI PARAGAO, 1, Pée-te na presenca de Deus, 2. Implora com humildade 0 seu auxilio. CONSIDERAGO 1, Imagina ainda uma vez que estas numa vasta regido, que vés a tua esquerda o principe das tre- vas, assentado num trone muito alto e rodeado duma multidao de deménios, e que descobres ao redor desta’ cOrte infernal muitos pecadores e pe- €adoras, que, dominades do espirito do mundo, Ihe rendem “2s suas homenagens. Observa com atencéio todos os desventurados vassalos désse rei abominavel; considera como uns estio fora de si, levados ‘pelo espirito da célera, da raiva e da vinganca, que os. torna furfosos, e como outros, dominados do espirito da preguica, so se ocupam de frivolidades e vaidades; aquéles, em- bebidos no espirito da intemperanca, igualan-se a loucos e a brutos, éstes, empavesados no espirito do orgutho, tornam-se homens violentos ¢ insupor- taveis; alguns, possuidos do espirito de inveja, consomem-se pesarosos ¢€ tristes, muitos sio cor rompidos até 4 podridao, pelo espirito da impu reza, ¢ muitos outros, irrequietos pelo espirito da avareza, perturbam-se pela cobica de riquezas Considera como estio ai sem Tepouso € sem or- dem, ‘olha até que ponto se desprezam mitua- mente, quanto se odeiam, se perseguem, se dila- Pilotéia — 5 66 Filotéia ceram, se destroem, se matam, Eis ai, enfim, a republica do mundo, tiranizada por éste rei mal- dito: quao ‘infeliz e'digna de compaixao! . 2. Considera a tua direita a Jesus Cristo cru ficadio, que, com uma ternura inexprimivel de com- paixio e amor, apresenta a seu Pai as suas ora- cGes e 0 seu sangue, para obter a liberdade dés- tes infelizes escravos, e que os convida a romper seus Iacos e a vir para o set lado. ‘Mas, principalmente, para, ao contemplar éstes numerosos grupos de devotos e devotas que com os anjos esido em torno déle. Contempla a be- leza do reino da devocéo; admira tantas e tant: pessoas de ambos os sexos, cnjas almas sao pu- ras ¢ cindidas como lirios, fantas e tantas ou- tras a quem a morte dum marido ow duma mulher tornou de novo livres em sea amor e que se con sagram a Deus pela mortiticacdo, caridade e hu- nildade, ¢ outras tantas, por fim, que governam a sua familia no culto do verdadeiro Deus, unin do a_posse dos bens com v desprendimento do coracio, os cuidados da vida com os da alma, o amor que reciprocamente se prometeram com o amor a Deus, e 0 respeito devide com uma doce familiaridade. Presta atenc&o, nesta feliz compa nhia dos servos e das servas de Deus, a felicida- de do seu estado, a esta perfeita tranqiiilidade da alma, a esta suavidade de espirito, a esta viva- cidade de sentimentos; amam-se com tm amor pu- ro e santo; alegram-se duma alegria inalteravel, mas ao mesmo tempo caritativa ¢ regrada, Mes: mo aquéles su aquelas que sentem alguma aflicao nao se inquietam de todo com isso ou apenas de eve e nao perdem a paz do coragio. Todos éles _ Parte 1, 18 er fem assim os olhios presos em Jesus Cristo, que anseiam por ter no coraco, e ele mesmo desce Por assim dizer, com os seus proprios olhos ¢ com o seu Coracao, até ao fundo de suas almas Para as iluminar, fortitiear e consolar, . 3. Pois bem, Filotéia, j4 ha tempo que, levada pela graca, abandonaste a Satanas com os seus Sequazes, pelas tuas boas resolugies; ‘mas ainda nao tiveste dnimo de te lancar aos pés de Jesus e de te alistar no nitmero dos seus servos fiéis. Ate aqui estiveste como que no meio de dais par~ tidos; hoje, por fim, te deves decidir, 4. A SS. Virgem, S. José, 8, Luis, Santa Monica € tantos mil outros, que no meio do mundo teen Maram 0 reino de Jesus Cristo, te convidamn a see guiclos, Da ouvidos principalmente a Jesus, gee fe chamou pelo tex proprio nome e te diz: Vag minha alma querida, vem, e eu te corowre’ de SCOLHA 1, O° mu do. enganador, eu te aborreco a ti e a seus seauidores. Jamais me hio de enxergar debaixo do teu jugo; para sempre reconheco a tua insensatez © digo adeus a tuas vaidades, E a ti, Satanas, espirito infernal, abominavel ret do orgutho e da infelicidade, eu te renuncio para sem- pre, com tédas as tuas pompas fiteis, & pre, com Pompas fiteis, e detesto 2. E para vds, doce e amantissimo i da bem-aventuranea e da gloria imental Spee hoje me volvo. Eu me lanco a vossos pis os abrago com t6da a minha alma, et vos adoro de todo © meu coragio, eu vos escolho para meu Rei 5 68 Filotéia @ me submeto inteiramente a vossas santas lei Tudo aquilo que eu tenho vos ofereco em sacri- ficio universal e irrevogavel, que pretendo, median- te a vossa graca, manter toda a minha vida com uma fidelidade inviolavel 3. O' Virgem SS, permiti que vos escotha hoje por guia; ponho-me sob vossa protecio, devotan- do-vos um singular respeito e uma devocdo toda especial O' meu santo anjo, apresentai-me aos santos e as santas; nao me abandoneis antes de me fa zerdes entrar em vossa feliz companhia S6 ent&o, renovando ¢ confirmando de dia em dia esta escolha, que agora fago, exelamarei eter namente, a exemplo vosso; Viva Jesus! Viva Je- sus! CAPITULO XIX Espirito necessario para fazer bem a confissio - geral Ai temos, Filotéia, as meditagbes de maior ne- cessidade para alcancar o teu fim, Depois que as tiveres realizado, determina-te entio a fazer com coragem ¢ humildade a tua confissdo geral, mas toma sentido no meu conselho: nao deixes tua al- ma perturbar-se por alguma va apreensdo. Bem sabes que o dleo do escorpiio ¢ o melhor remé- dio contra o seu veneno; assim também a con- fissio do pecado é 0 remédio mais salutar contra © mesmo pecado; ela destrdi-Ihe tanto a confusao como a malicia. . Sim, tantos encantos tem a contissio e tantos perfumes exala para o céu © a terra, que tira e + Parte 1, 19 69 sara toda a fealdade e podridao do pecado. Si- mao, © leproso, dizia_que Madalena era uma pe- cadora; mas Nosso Senhor dizia que nao, e ja 86 falava do perfume que ela tinha espalhado por toda a sala do fariseu, e de seu imenso amor. Se somos verdadeiramente humildes, Filotéia, nos- Sos. pecados forcosamente nos desagradarao mui- tissimo, porque sio ofensas a Deus; ao contrario, a confissao de nossos pecados se tornard suave € consoladora, pela hanra que com isso damos a Deus. E’ um consdlo semelhante ao do doente que revela ao médico tudo o que sente, Estando ajoe- Inada aos pés do ten pai espiritual, pensa que es- tés no Calvario, aos pés de Jesus crucificado, e que seu sangue precioso se derrama de suas fe~ ridas e, caindo em tua alma, a lava de tuas ini- qilidades; porque é, na verdade, a aplicacéo dos merecimentos do seu sangue derramado na cruz que santifica os penitentes na confissio, Manifes- ta, pois, inteiramente o teu coracdo ao confessor, para que o alivie de teus pecados, e o encheras 20 mesmo tempo de béncdos pelos merecimentos da paixdo de Jesus Cristo Acusa-te, com a maior simplicidade e sinceri- dade e trangitiliza duma vez para sempre a tua consciéncia, de sorte que nunca mais tenhas mo- tivos para inquietacdo. Feito isso, ouve com aten- ¢&o e docilidade os conselhos salutares do minis- tro de Deus, e a peniténcia que éle achar por ber impor-te. Sim, & sem drivida a Deus que estas entio a ouvir, porque éle disse expressamente de seus ministros: Aquéle que vos ouve me ouve a mim, a a a a a rs 0 Fitotéia Depois de teres ouvido atentamente tudo o que @le te disser, toma A mo a seguinte protesta- cio que, depois de a teres lido ¢ meditado antes da confissio, servira de remate a éste exercicio de peniténcia. Recita-a com a maior atencio e compung&o_ possivel. cAPiTt LO XX. Protestacdo da alma a Des para confirmar-se numa resolugéo inabalavel de servir-lhe e para coneluir os atos de peniténcia Eu, abaixo assinado, muito indigna criatura de Deus, faco a protestaco segninte na presenca de sua divina majestade e de toda a corte celeste: Depois de ter consideraco bem a imensa bonda- de de Deus, que me criou, que me conserva e sustenta; que me livrou de tantos males e con- cedeu tantos beneficios; depois de ter meditado a sua infinita misericérdia, que com tanta brandu- ra tolerow meus pecados, que me chamou a si tantas vézes, por inspiracies tao doces e freqiien- ie5, que com tanta longanimidade esperou a mi- nha conversto até éste N... ano de minha vida, apesar das muitas oposigées que tenho feito, por minha ingratiddo, intidelidade, retardacéo da pe- niténcia ¢ desprézo de suas gracas; depois de”ter considerado bem a profanacdo, que fiz tio repe- tidas vézes de minha alma e das gracas que rece- bi no santo batismo, onde me devote! e consagrei a Deus, pelas promessas que cntio fizeram por mim; enfim, entrando em mim mesmo e com o espitito e cora¢do consternados, perante Deus, eu Ne Parte E me reconhego e confesso culpado e inteiramente convencido do crime que cometi, de lesa-Majesta- de divina ¢ da morte de Jesus, que s suspirou na cruz por causa de meus pecados; déste modo eu confesso que justamente mereci as penas eternas. Mas, depois de ter detestado os meus peca- dos dé todo 0 men coragao, ew me volto hoje para o trono do Pai das misericérdias, dizendo: Perdao, meu Deus, perd’o. Eu vos suplico a re- missio' inteira dos meus pecados, em nome de Jesus Cristo, vosso Filho, que morreu na cruz para me salvar, Pondo néle todd a minha espe- ranca, eu renovo hoje, 6 meu Deus, a profissio de fidelidade que vos prometi no batismo. Agora, como ent4o, eu renuncio ao demdénio, ao mundo 4 carne, e defesto para o resto de meus dias todas as suas obras, com suas pompas e concupis- céncias, comprometendo-me 2a vos servir e amar durante a minha vida, 6 meu Deus, infinitamente bom e misericardioso. Sim, met Deus, com esta intenco ett vos consagro a minha alma com t6- das as suas poténcias, 0 met coracio com todos 08 seus afetos, 0 met corpo com todos os seus sentidos, protestando firmemente que nao me que. ro servir de nada daquilo que tenho, contra a vontade de vossa divina majestade, e entreganto- me com téda a submissio que vos ‘deve uma cria- tura fiel. Mas — ah! — se por malicia humana eu for algum dia infiel as vossas gracas ¢ as minhas boas resolugdes, ett protesto que nada ne- gligenciarci, com a graca do Espirito Santo, para levantar-me imediatamente de minha queda, Eis ai a_minha resolucho inabalével e a mi- nha intengdo para sempre isrevogavel, sem re- 2 Filotéia servas ou excecdes de qualidade alguma, Faco esta protestacdo na divina presenca de meu Deus, em vista da Igreja triunfante e em face da Igre- ja militante, minha mae, e que a recebe agora na pessoa do seu ministro, deputado para éste fim, Dignai-vos, 6 Deus eterno de bondade e m serieérdia infinita, Pai, Filho e Espirito Santo, receber em odor de suavidade éste sacrificio, que vos faco, de tudo 0 que sou; e, como me destes a graca de vo-lo oferecer, dai-me também as gra- ¢as_necessarias para_cumprir fielmente as suas obrigacées. O' meu Deus, vos sois meu Deus, 0 Deus de mea coracao, 0 Deus de mew espirito, 0 Deus de tda a minha alma; eu vos adoro e vos amo e por toda a eternidade vos quero ado- tar © amar, Viva Jesus! CAPITULO XSI Conciusio de tudo 0 que fica dito sobre o pri- meiro grau de pureza da alma ‘Terminada esta protestagao, escufa em espirito € atentamente a sentenca que ‘no céu Jesus Cristo ha de pronunciar do seu trono de misericordia, em presen¢a dos anjos ¢ dos santos, no mesmo. instante em que o sacerdote, aqui na ‘terra, te absolver de teus pecados. Ha ‘de cumprir-se entio no cét 0 que Jesus Cristo nos predisse, porque haverd ai juibild ao verem o teu coracéo, de no- vo cheio de amor de Deus, rcentrar na compa- nhia dos anjos ¢ dos santos, que se reunirfio com tua alma no espirito de amor € paz © que entoarao na presenca de Deus os cAnticos sagrados repas- sados de alegria espiritual. — * Parte 1, 3 O' meu Deus! Filotéia, que pacto mais admiraé- vel e feliz éste, pelo qual tu te dis a Deus e Deus te da a si mesmo e te reentrega a ti pro- pria, para viveres eternamente, Nada mais te res- ta a fazer do que tomar a pena e assinar éste ato de protestacdo e depois achegar-te ao altar, onde Jesus Cristo ratificard a promessa que féz, de dar-te 0 paraiso, pondo-se a si mesmo em sett Sacramento, como wm sélo sagrado sobre 0 cora- G4o_renovado déste modo em seu amor. Eis ai, pois, a tua alina neste primeiro grau de pureza, que consiste na isen¢%o do pecado mor tal e dos afetos que te podem levar a cometé-to, Entretanto, como éstes afetos costumam renas- cer em nOs muitas vézes facilmente, devido & nos- sa fragilidade ou concupiscéncia, a qual podemos moderar e regrar, mas nunca podemos extinguir, torna-se necessdrio que eu te previna contra éste perigo ¢ desgraca, clando-te os avisos que me pa- recem mais salttares. Mas, porque éstes mesmos avisos te podem conduzir a um segundo grau de pureza de alma muito mais excelente ainda que 0 primeiro, & necessdrio que, antes de os dar, eu fale desta ‘pureza de alma mais preferida, a ‘que te desejo conduzir, capir Lo NXT Necessidade de purilicar a alma de todos os afe fos ao pecado venial A medida que 0 dia se vai clareando, nis va- mos vendo melhor num espelho as nédoas do nos- so rosto; de modo semelhante, a proporcdo que 4 Fllotéia © Espirito Santo nes comunica maiores luzes in teriores, nés vamos descobrindo mais distinta e cyidentemente os pecados, as imperieicdes, as in clinagdes que se podem opor de qualquer modo A devocto; ¢ & muito de notar que essas lu- zes que esclarecem o nosso espirito acérca. de nossas faltas excitam também no nosso coragdo um desejo ardente de corrigi-las, Déste modo, Filotéia, em tua alma, cmbora ja purificada dos pecados mortais e das atei qe levam a cometé-tos, encontrards ainda um grande mimero de disposigses mas, que a_incli- nam ao pecado venial; 1&0 digo que descobriras ai iiuitos pecados veniais, mas, sim, que a en- contraras cheia de afeigdes més, que. sio_ as fontes dos pecados veniais. Ora, isso so coisas bem diversas: mentir, por exemplo, habitualmente © com gosto € muito diferente co que mentir uma ou duas vézes por brincadeira. Nao podemos pre- setvar-nos completamente de todo pecado venial de tal sorte que nos conservemos por muito tem- po nesta perfeita pureza da alma; 0 que com a graca de Deus podemos ¢ destruir 0 afeto ao pe- ado venial, e para isso é que nos devemos es- forear. Estabelecidas estas pressuposicdes, digo que é necessario aspirar 2 éste segundo grau de pureza da alma, que consiste em ndo fomentar volunta- riamente em nés nenhuma afeiggo ma ao pecado venial, qualquer que seja; seria, pois, uma gran- de infidelidade e mui culpavel indoléncia conser- var em nos consciente e habitualmente uma_dis~ posi¢io tho mA como é a de desagradar a Deus, ' i i ' Parte 1, 22 6 Com efeito, todo_pecado venial, por menor que seja, desagrada a Deus, conquanto nao lhe desa- grade a ponto de lancar sébre quem o comete a Sua maldicdo eterna; se, pais, 0 pecado venial Ihe desagrada, certamente a afeic&o habitual que se fem 20 pecado venial vem a ser uma disposigéo habitual do nosso espirito e coragao de desagra~ dar 4 Majestade divina. E seria possivel que uma alma que se reconcilion com Deus queira nao s6 the desagradar, mas até ter gdsto nesse desagra~ do? Todos os afetos desregrados, Filoiéia, sao to diretamente opostos & devoco como a’ afei- ¢40 ao pecado mortal o & a caridade: Gles enfra- quecem © espirito, impedem as consolacies divi- nas,-abrem caminho as tentacdes e, mesmo que nao tragam a morte a alma, causam-lhe todavia graves. eniermidades As méseas que cacm mortas num bélsamo pre cioso — diz 0 sabio — deitam a@ perder toda a suavidade de seu odor e téda a sua intensidade, Quer éle dizer que as méscas que ai pousam sé de leve, e sugam apenas um pouco da superficie, no estragam todo 0 balsamo; mas que aquelas que ai morrem o corrompem inteiramente. Do mesmo modo, os pecados veniais que se cometem de tempos em tempos pouco danificam a devocio; ao contrario, destroem-na por completo, se for- mam na alma um habito vicioso. As aranhias néo matam as abelhas, mas estra- gam-lhes 0 mel e, se acham uma colmeia, de tal modo a embaracam com os fios de sua teia que tornam impossivel 4s abelhas a continuacdo de seu trabalho, Assim, os pecados veniais nao ma- 6 Filotéin tam a nossa alma, mas estorvam a devocdo e, a quem os comete ‘com uma inclinagio habitual, embaracam a alma com uma espécie de habito vicioso e de disposigdes mas, que a impedem de agir com aquela caridade ardente em que con- siste a devocdo verdadeira. Nao é uma coisa grave, Filotéia, pregar uma mentirazinha, transgredir um pouco a ordem (quer por palavras, quer por acdes), nao resguardar 03 ofhos, quanto a vistas puramente naturais € curio- sas, comprazer-se uma vex em vestidos de vaida~ de, visitar um dia uma sala de danga om de jo- gos, donde o coracko saira um tanto ferido — tudo isso, digo eu, nao sera uma coisa grave, nem de maior reparo, uma vez que se_preste atengiio a que o coragio mio se deixe dominar por certos pendores e apegos que podia tomar para estas coisas, a semelhanga das abelhas, que se esforcam por expulsar as aranhas que thes que- rem estragar 0 mel, Mas isso acontece muitas vézes ‘e se, como de costume, o corac&o se in- clina e apega a estas coisas, bem depressa ha de se perder a suavidade da devocio ¢ téda a deyocio mesmo, Ainda uma vez torno a dizer sera ditado pelo bom-senso que uma alma gene- 1 tenlia gosto em desagradar a Deus e se afeigoe a querer sempre aquilo que sabe lhe ser tio desagradavel? Papte 1, 23 4 CAPITULO XXEUL Necessidade de purifiear a alma das coisas init- teis e perigosas Os jogos, os bailes, os festins, os teatros & tudo aquilo, enfim, que se pode chamar pompa do século, de si mesmos e de sua natureza nao sio de modo algum coisas més, mas sim indife- rentes, que podem ser usadas tanto bem como mal, Contudo, sempre so coisas perigosas e¢ maig ainda o 6 afei¢oar-se a elas. E’ por este ra- zo que te digo, Filotéia, que, embora nao seja pecado um jdgo comedido, uma danga modesta, vestir-se rica e elegantemente, sem ares de sen- sualidade, um teatro honesto tanto quanto a com- posic¢Zio como quanto a representacdo, um bom jantar, sem intemperanca, contudo, a afeicéo que Se poderia adquitir a estas coisas seria ‘inteira- mente contraria & devocdo, muito nociva a alma e de grande perigo pgra’a salvacdo. Ab! que grande perda uncher 0 coragio de tantas. incli- nagdes Vas e loucas, que o tornam insensivel para as impressées da graga_e de tal modo tomam posse déle que nao Ihe deixam nem energia ne gosto para as coisas sérias e santas! Exatamente por isso no Antigo Testamento os nazarenos se abstinham nao sé de tudo o que podia embriagar, mas até das uvas e do agraco; fo € que pensassem que uma uva ou outta os pudesse embriagar, mas assim faziam porque ti- nham médo de que, se comessem 0 agrago, sen- tissem 0 desejo das uvas e, se chupassem as uvas, fdssem tentados a beber 0 vinho, Nao digo, pois, rr Filotéia que em ocasiio alguma possamos usar de coisas perigosas, mas digo somente que nunca podere- mos “apegar nessas coisas 0 coracio sem danos da devocao. Os veados, se engordam muito, reti- ram-se para as suas moitas, porque sentem que sua gordura Ihes faria perder a agilidade, que é sua defesa, quando séo perseguidos pelos caca- dores; déste modo o homem, sobrecarregando 0 Set coraco com éstes afetos intiteis, supérfluos € perigosos, perde as boas disposicées, necessé- sarias para’ correr com ardor e facilidade pelas veredas da devocio, Os meninos correm todos os dias, até nao poderem mais, atrés das borbole- tas, e ninguém acha nisso alguma coisa de incon- veniente, porque sio meninos; mas nao é uma coisa ridicula © ao mesmo tempo deploravel ver homens racionais se darem afoitamente a ba- gatelis tao intiteis como aquelas de que falamos e que, além disso, os faze correr perigo de pe- car © se perder?’ Por isso, Filotéia, e porque a tua salvacdo me € tao cara, eu te declaro a ne- cessidade de libertares 0 teu coracdo de todas es- tas inclinagdes; pois, ainda que os teus atos par- ticulares néo sejam ‘sempre contrarios & devocao, contude, o afeigoar-se € apegar-se a estas coisas Ihe causam mui grandes danvs CAPITULO XXIV Necessidade de putificar a alma mesmo das im- perleigdes naturais Possuimos ainda, Filotéia, algumas imperfeigdes naturais, que, embora se originem dos. proprios pecados, nao’ sio pecados mortais nem veniais: Parte 1, 24 7 chamam-se imperieigdes, e os atos resultantes dai tém o nome de defeitos ou faltas. Santa Paula, por exemplo, como nos conta S. Jeronimo, era de natureza tio dada 4 melancolia, que, 4 morte de seu marido ¢ seus filhos, pensava morrer de tris- teza. Era isso uma grande imperfeigdo, mas nao um pecado, porque cra contra a sua vontade. Exis- tem algumas pessoas que sio de um espirito le- viano e outras de um carater rispido; muitas ha de um animo indoci! e dificil de aceder aos con- selhos e As palavras de amigos; outras que tém a bilis faci! de inilamar-se, © mmitas outras que possuem um coracdo por demais terno e susceti- vel a amizades humanas. Numa palavra: quase que nao existe pessoa alguma em que nao se note uma imperfeigao semelhante. Ora, embora essas imperivicdes sejam naturais, podem, entretanto, ser corrigidas e moderadas, procurando-se adquirir as perieicées contrarias; podemos mesmo acabat inteiramente com elas; ¢ digo-te, Filotcia, que deves chegar a éste ponto, Achou-se meio de converter as amendoeiras azé- das em doces, simplesmenie ferando-as junto ao pé, para que Saia 0 sco amargo. Por que, portanto, ndo podemos nés nos livrar de nossas mas inclinagics, retendo imicamente o que tém de bom para as tornar disposiges fa- vorayeis 4 pratica das virtudes? Assim como nao ha uma natureza t&o boa que n&o possa ser cor- rompida por habitos viciosos, assim também ndo existe um cardter t8o mau que nao se possa do- mar e até mudar inteiramente, mediante um es- fOrco constante e pela graca de Deus, 20 Pilotéia Vou te dar, pois, os avisos e te propor 08 exer~ cicios que julgo mais necessarios para livrar a fua alma de todas as més inclinacdes ao peca~ do venial, de todos os apegos a coisas intiteis @ perigosas e de téxlas as imperieighes naturais, Com isso a tua alma estaré também mais defen dida contra o pecado mortal. Que Deus te dé a sua graca para os pores em pratica! PARTE Diversos avisos para elevar a alma a Deus por meio da oragdo e da recepgdo dos sacramentos capi ULO 1 A necessidade da oragdo ._A oracio, fazendo o nosso espirito penetrar na plena luz da divindade e expondo & nossa von- tade abertamente aos ardores lo amor divino, & o meio mais eficaz de dissipar as trevas de er- ros e ignorancia que obscurecem a nossa mente e de purificar 0 nosso coracio de todos os seus afetas desordenados. E’ ela a agua da graca, que lava a nossa alma de suas iniqiiidades, alivia os nossos coracdes, opressos pela séde das paixdes, e nutre as primeiras raizes que a virtude vai lan- cando, que s4o os bons desejos. 2, Mas o que muito em particular te aconselho é a oracdo de espirito e de coracéo e, sobretudo, a que se ocupa da vida e paixio de Nosso Se- nhor: contemplando-o, sempre de novo, pela me- ditacdo assidua, tua alma ha de por fim encher-se déle © tu conformarés a tua vida interior @ ex- terior com a sua. Ele é a luz do mundo; é néle, por éle e para éle que devemos ser iluminados. Ele ¢ @ drvore misteriosa do desejo de que fala a Espésa dos Cantares, E’ a seus pés que te- Filotéia — 82 mos que ir respirar éste ar stavissimo, quando © nosso coracdo se vai afrouxando pelo espirito do séeulo, Fle & a cisterna de Jacob, essa nas- cente de Agua viva e pura; a ela cumpre che- garmo-nos muitas vézes, para lavar nossa alma de Suas manchas. Os meninos, como é sabido, ouvem continuamente as suas maes ialarem ¢, esforcan- do-se por balbuciar com elas, aprendem a falar a mesma lingua; déste modo nés, unindo-nos com Nosso Senhor, pela meditagdo, ¢ notando as suas palavras e acdes, o8 seus sentimentos e inclina~ gdes, aprenderemos por fim, com a sua graca, a falar com éle, a agit com éle, a julgar como éle ¢ amar como éle. A éle € preciso prendermo-nos, Filotéia, e cré-me que nao podemos ir a Deus, 0 Pai, senfio por esta porta que é Jesus Cristo, co- mo éle mesmo nos disse. O vidro dum espelho ndo pode deter a nossa vista, se nao for apli- cado a um corpo sélido, como o chumbo e o esta~ nho; de modo andlogo, jamais nos seria possi- vel confemplar a divindade nesta vida mortal, se nao se unisse 2 nossa humanidade em Jesus Cris- to, cuja_vida, paixio e morte constituem para as meditacdes 6 objeto mais proporcionado a nossas luzes, mais agradavel ao nosso coracio ¢ mais {itil ao melhoramento de nossos costumes, O divino Salvador chamou-se_a si mesmo 0 pao descido do céu, por muitas razdes, entre as quais podemos aduzit a seguinte: assim como se come © pao com toda sorte de alimento, assim deve- mos tomar o espirito de Jesus Cristo na medita- cdo, ¢ éle, nutrindo-nos, influiré em tOdas as nos- sas aches. Por isso, mutitos autores repartiram em diversos pontos de meditacio o que sabemos de _ Parte IE 1 83 AS Li pat, Entre ésses autores aconse- “te especialmente S$. Boaventura, Bellinty € especialmen : 2, Bellinta Bruno, Capiglia, Granada e¢ La Prente eat antes MPTERA neste exercicio uma hora por dia, atc Go Jantar, ow de manhi, se tor possivet Tidade deep ctas 28 boas disposigses « tranqii, da spirito que dé 0 repouse a, e. Mas nao prolongues mais és; ra nde gy Mas S as este tempo, a néio s, , gues dl set © teu pai espiritual 9 tenha fixado expressamente, matoo ee for Possivel fazer ste exereicio com mralnor atdiilidade numa igreja, parece-me acre maria, Rowate, & meu ver, nem pah nem mide, hore , ulher, nem’ pessoa aleuma tend n » , SSO Iguma tera di- Teito de disputar-te esta hora de devocio; ao con “ont tats 20. odes contar com toda ela nem com tanta liberda ai n 2 dade, em raza endé cia em que ai te egede, em Tazk0 da dependéns 5 a fo, sej Comeca a tua oracio, seja mental, seia_vo- Cal, sempre pondo-te na presenga de Deus; nun. ca negligencies esta pra i ig sta prtica e verds PO OS seus resultados. AS em pouco tem noses’ 4m fnim conting, has de 1 finde, ne eae laria € 0 Credo em latin; no om. bem ae fe int de aprender estas oracées tam~- tendag sentigne ng, materna, para que The en- a et Deste modo, Conformando-te 20 deras outrossim o sentido admirével deo ee Gées e thes saboreards a suavidade, Coe oe cité-las com a maxima atengio ao sen ne igs excitando os afetos correspondentes, Nae Ga Grace Pel Presa intundada de fazer multe » Mas cuida de rezar com devocéo; um 6 ecitar o Pater an ____ Fhotéia 86 Pater, rezado com piedade e recolhimento, vale mais que muitos recitados precipitadamente. 7. O Rosario é um modo utilissimo de rezar, suposto que se saiba recité-lo hem. Para qué tuo saibas, {¢ um désses livrinhos de oracdo que contém 0 método de reza-lo. Muito recomendavel é também recitar as ladainhas de Nossa Senhora e dos santos, como outras oracdes que se acham em manuais aprovados devidamente; mas tudo is- so fica dito sob a condigio de que, se tens o dom da oragio mental, Ihe dés o tempo principal 0 melhor. Deves notar que, se depois de 0 fa~ zeres, por causa de muitas ocpagies ou por ow tro motivo, nio te sobra tempo disponivel para tuas oragies vocais, absolutamente nao te deves inquietar; € Fastante rezares antes ou depois da meditacdo simplesmente a oracio dominical, a sau dac&o angélica ¢ 0 Simbolo dos Apostolos 8. Se, ao recitares uma oragdo vocal, te sen- tires atraida 4 oracdo mental, muito longe de re- primires esta inclinacio, deves deixar-te levar sua~ vemente e nao te perturbes por nao acabar t6~- das as oragies que te tens proposto. A oracéo do espirito ‘¢ do coracto é muito mais agrada- vel a Deus e salutar a alma do que a oracao dos labios. Esté bem de ver que a esta regra has de executar 0 oficio divino e aquelas oracdes que estas obrigada a recitar. 9, Deves repelir indo que te poderia impedir @ste santo exercicio pela manha; mas, se tuas multiplas ocupagdes ou outras razdes legitimas te roubam ésie tempo, procura fazer a meditacio de tarde, a hora mais distante possivel da refeigdo, quer ‘para evitar a sonoléncia, quer para nao fa- Parte 1, 2 85 zer mal a satide. E, se prevés que em todo o dia nao acharés tempo para a oracdo, cumpre repas fares essa perda, suprindo-a por essas elevactes freqiientes de espirita © coragio a Deus, As guais chamamos jaculatérias, por uma leitura espiritual por algum ato de peniténcia, que impede as can, seqiiéncias daquela perda, e propoe-ihe lirmemente fazer a tia oracio no dia seguinte CAPiTULO 1 Breve método de_medita imei do de_ co. Primeiro ponto di Preparacio: por-se na presenea de ‘Deu Podera ser, Filotéia, que nao saibas como se faz a oracio mental; pois, infelizmente, poucos o sabem nos nossos tempos. Por isso torna-se ne- cessdrio que resuma aqui em algumas regras um metodo proveitoso, deixando para os bons livros dedicados a esta ‘matcria e principalmente para 4 pratica a tua instrucéo mais completa. A primeira regra tem em vista a preparacio, que consiste nestes tr’s pontos: pér-se na pre? senga de Deus, pedir-lhe 0 auxilio de suas luzes © inspisacoes, propor-se o mistério que se quer meditar. Quanto ao primeiro ponto, ofereco-te quatro meios principais, que podero’ ajudar tex nascen te ardor, " O primeiro consiste em atender vivamenie A imensidade de Deus, que perieta ¢ esconenlns te esté presente em todas as coisas e lugares, de manetra que, como os passarinhos, para qualquer Fegifio que voem, estio sempre envoltos no ar, 86 Pilotéia assim também nds, em t6da parte a que nos di- rigimos on em que estamos, Sempre encontramos Deus presente cm nds mesmos e em todas as coisas, Esta verdade & conhecida de todos, mas bem poucos The consagram a devida atencao. Os cegos que sabem achar-se na presenca de um prin- cipe, embora nao o vejam, conservam-se numa posicZio respeitosa; mas, porque nao o véem, {2 cilmente esquecem a sua presenca e, uma vez es- quecida, ainda com maior facilidade perdem o res peito que the & devido. Ah! Filotéia, nia pode- mos ver a Deus, que estd presente em nds; e em- bora a fé ea razao nos digam que éle esta pre- sente, bem depressa nos esquecemos disso e en- tao agimos como se éle estivesse longe de nos: pois, conguanto saibamos que éle esta presente em tédas as coisas, a falta de ateneao produz em nds os mesmos efeitos que se o ignordssemos de todo. . Eis ai a razio por que no coméco de nossas oragoes cevemos refletir intensamente sObre a pre- senga de Deus, Profundamente compenetrado des- ta verdade estava David, quando dizia: Se subir ao cét, tu ali te achas; se descer ao inferno, pre- sente néle esti Igualmente, sirvamo-nos das palavras de Jacob, que, depois de ter visto a misteriosa escada”a que jd me referi, exclamou: Qudo terrivel é éste lugar; em verdade Deus estd aqui e eu nao o sabia, Queria dizer que nao tinha refletido bas- iante, porque nao podia ignorar que Deus esti- vesse presente em toda parte. Fia, pois, Filotéial Ao te preparares para a oracio, dize de todo o Pute t. 2 87 coracao a ti mesma: Oh! minha alma, Deus esté verdadeiramente aqui presente. O segundo meio de te pores na presenca de Deus € "pensar que Deus nfo. somente esta no Ingar onde te achas, mas também que éle esta presente em ti mesma, no dmago de tua alma: que éle a vivifica, anima e sustenta por sta di- vina presenca; pois como a alma, estando pre- sente em todo 0 corpo, reside contudo dum mo- do especial _no coracao, assim Deus, estando pre- sente em tédas as coisas, o esté muito mais em nossa alma, podendo-se até dizer, em certo sen- tido, que Deus mesmo é€ a alma. Por isso Da- vid ‘chamava a Deus 0 Deus do seu coracdo. E S. Paulo, neste mesmo sentido, nos diz que em Deus vivemos, nos movemos ¢ somos. E deste modo também éste pensamento incitardé no teu coracao_ um respeito profundo por Deus, que esta em ti tao intimamente presente. © terceiro meio, que te podera ajudar, € con- siderar que o Fitho de Deus, como homem, no céu olha para tdas as pessoas do mundo, ‘mas mui particularmente para os cristdos, que so seus filhos € ainda mais para os que esto atualmente em oracao, notando se rezam bem ou mal. Nem é isso uma pura imaginacdo, mas um fato mui- tissimo_real; pois, conquanto ‘no o possamos ver, como Santo Estévio em seu martirio, Nosso Se: nhor tem, entretanto, os seus ollios ém nds, co- mo os tinha néle, e podemos dizer-Ihe alguma coisa semethante ao que a Esposa dos Cantares disse a seu Espéso: Ele estd (a, ei-lo, é@ éle mes- mo; ée esté escondido e néo 0 posso ver, mas éle’ me vé, ée me esté othando. 88 Filetéia O quarto meio consiste em nog representarmos Jesus Cristo neste mesmo lugar onde estamos, mais ou menos como costumamios representar-nos os nossos amigos, e dizer: estow imaginando ve- Jo fazendo isso ow aquilo; parece-me vé-lo, ouvi- lo. Estando, porém, na.igreja, ante o altar do SS Sacramento, esta presenta de Jesus Cristo, Filo- téia, nfo sera meramente imaginaria, mas muitis- simo real; as espécies ou aparéncias do pao sao como um véu que o esconde a nossos olhos; Ele nes vé e considera realmente, embora a nds 0 nao vejamos em sua propria forma. Dum déstes quatro meios, pois, te poderds ser- vir para te pores na presenca de Deus ¢ néo dos quatro duma ‘vez, e isso mesmo deves fazer bre- vemente e com simplicidade CAPITCLE 1 Seguado ponto da preparacdo: a invocacéio A invoeacdo se faz do modo seguinte: tua ale ma, sentindo a Deus presente, deve compenetrar- se ‘de um profundo respeito'e reputar-se_abso- lutamente indigna de sua presenca; todavia, sa- bendo que éle te vé, deves pedir-lhe a graca de © glorificar nesta meditacéo. Se quiseres, pode- ras servir-te de algumas palavras, breves mas. ar- dentes, como estas, que sio do profeta-rei: Nun- ca me arremesses de tua presenca, 6 meu Deus, @ nao tires de mim o tew Espirito Santo. Escla- rece tua face sdbre a terra, Dé-me entendimento € observarei a tua lei ¢ a guardare’ de todo 0 meu coragao. Parte 11, 4 _ 8 Muito itil € invocares também © teu anjo da guarda e os santos que participaram do mistério que meditas; como, per exemplo, na meditacdo so- bre a morte de Nosso Senhor,'a SS, Virgem, S. Joo, S. Madalena e os ovtros Santos & santas e 0 Bom’ Ladrao, implorando-Ihes que_te emprestem 0g sentimentos que tinham ou, ento, na medita- co sobre a ita prdpria morte, a teu anjo da guarda, que estard ld presente, O mesmo deve di- zer-se de todos os outros mistérios ow verdades que meditas. CAPITULO IN Terceiro ponto da preparagéo: propor-se um mistério Existe ainda um terceiro prefvidio da oracao mental, 0 qual, ao entanto, nao é comm a tda espécie de meditagies e ‘se chama geralmente “composic&o” ou representacio do lugar. Con- siste numa ceria atividade da fantasia, pela qual nos representamios o mistério ou fata que que- remos meditar, como se os acoatecimentos se es- tivessem sticedendo realmente ante os nossos olhos. Por exemplo, se queres meditar sObre a morte de Jesus crucifieada no Calvario, fards ma idéia ‘de iddas as circunstancias, como os evangelistas no-las descrevem, quanto aos luga- Tes, pessoas, acies e palayras; 0 mesmo te pro- porei acérea des outros objetos gne os sentidos percebem, conio-a morte € 0 interno, como ja vimos; tratando-se, porém, de objetos inteiramen- te espirituais, como a grandeza de Deus, a exce- lencia das virtudes, o fim da nossa criagao, essa me nm nnn nnn cena ner nmr ercaeanana 0 pratica ndo € t&0 conveniente. E’ verdade que mesmo aqui se poderia usar de alguma analogia ‘ow comparacio, como vemos nas belas parabolas do Filho de Deus; mas isso tem sua dificuldade e eu quisera que te ocupasses com exercicios simples ¢ nao cansasses 0 tet espirito procuran- do semelhantes pensamentos. A utilidade déste exercicio de imaginacdo consiste em ater a nos- sa fantasia ao objeto que meditamos, receando que, to irrequieta como ¢, nos escape para ir ccupar-se doutros objetos; estava quase a dizer te que deves proceder com ela, como com um passarinho que se fecha na gaiola ou com um faledio que se acorrenta ao poleiro, para que fi- que al. Dirdo alguns que na representacio dos misté- rios & melhor usar simplesmente de pensamentos da fé © dos altos do espirito ou, entao, conside- ra-los como se sucedessem em nossa mente: mas tudo isso é por demais sutil para o coméco, e, considerando tudo aquilo que pertence a uma per- feiggio mais adiantada, aconselho-te, Filotéia, a conservar-te humildemente no sopé da montana, até que Deus se digne de elevar-te mais alto. capiruLo v Segunda parte da meditacio: As consideracées A esta atividade da fantasia deve seguir-se a do entendimento, que se chama meditacéo e que consiste em aplicd-lo as consideragGes capazes de elevar a nossa vontade a Deus e de afeigo: a coisas santas e divinas. Esta é a grande dife- | | | | | Parte TL, 6 ot renga entre a meditacéo e o estudo, porque o fim -do estudo é a ciéncia, e 0 da meditagio é o amor a Deus ¢ a pratica das virtudes. Assim, tendo prendido a tua fantasia ao objeto da medi taco, procura aplicar 0 entendimento as con: deracdes que Ihe sio como que a substancia e a exposigio; ¢, se achares gosto, luzes e utilida- de numa’ das consideracdes, demora-te nela, imi- tando as abelhas, que nao largam a flor em que pousaram, enquanto acham ai mel que ajuntar. Mas, se uma consideracao causa dificuldades & tua mente e nao tem atrativos para o teu cora- co, depois de ter-lhe aplicado por algum tempo © teu coracao e a tua mente, poces passar adian- te, a outra_consideragio, precavendo-te somente para que ndo te deixes levar por curiosidade ow precipitacao. CAPITULO YI Terceira parte da meditacdo: os aietos e as resolucdes Por esta viva atengdo de sua mente, a medita- cio excita na vontade intumeras mogies boas e santas, como o amor de Deus e ao proximo, o desejo da gloria celeste, 0 zéo pela salvacdo das almas, o ardor para imitar a vida de Jesus Cris- to, a ‘compaixto, a admiracio, a alegria e 0 te- mor de desagradar a Deus, 0’ édio ao_pecado, 0 temor do juizo ou do inferno, a coniusdo dos pe- cados, 0 amor a peniténcia, a confianca na mise- ricérdia de Deus e tantas outras em que te de- ves exercer ¢ comover, quanto puderes, a tua 2 Piloté alma, Se quiseres usar de algum livro, para te instrujres mais sobre éste ponto, aconselho-te o primeiro tomo das “Meditagies", de D. André Capiglia, em cujo preidcio dle expe a arte de exercitar-se nesta pratica, cu entao o Pe. Arias, que o faz ainda mais difusamente no seu “Tra tado de Oragao” Entretanto, Filotéia, nao te deves restringir a éstes afetos gerais, sem que fagas resalucées es- peciais ¢ particularizadas para o aperfeicoamento de tuas agies. A primeira palavra de Nosso Se- nhor na cruz, por exemplo, produziré em tua ale ma 0 desejo de imita-lo em perdoando e amando os inimigos; mas isto € muito pouco, se nao fi- zeres a resolugio seguinte: Pois hem, ja nao me ofenderei mais com tais palavras injitriosas da parte destas ¢ daquelas pessoas, nem com o desprézo com que éstes e aquéles me costumam tratar; pelo contrario, direi ow farei isto ou aquilo, Para acalmar o génio de um e atrair 0 coracio de outro, Ai tens, Filotéia, o verdadeiro meio de corrigir depressa ‘as tuas faitas, a0 passo que si com afetos gerais 0 conseguirds com di iculdade, muito tarde e talvez nunca CAPITE LG Vil A conclusio e o ramathete espiritual Afinal, deve-se terminar a meditacio por trés atos gue requerem uma profunda humildade. O primeiro & agradecer a Deus por nos ter dado profundo conhecimento de sua misericérdia ou de outra de suas perfeictes, assim como pelos san- Parte U7 tos afetos e propisito em _nés. © segundo consiste em oferever a sua divina majestade toda a gloria que pode provir de sua misericordia ou duma de suas perfeicies, ofer- tando-lhe também todos os nossos afetos € reso- lugées, em unido com as virtudes de Jesus Cris to, sen Filho, e dos merecimentos de ‘sua morte. O terceiro deve ser uma oragio humilde, pela qual pedimos a Deus a graca de participar dos merecimentos de sett Filho, a esséncia de suas vir- tudes, e principalmente a fidelidade a nossas re- solugdes, que sé podemos conseguir com a graca divina, Reza ao mesmo tempo pela Igreja, pelos superiores eclesiasticos, por teus pais e amigos e outras pessoas, implorando a intercessio de Nossa Senhora, dos anjos e dos santos, e acaba recitando o Pater e Ave, que sio as oractes mais vulgares e necessdrias aos figis, Quanto ao restante, ainda te lembras do que disse acérca do ramalhete espiritzal da medita- go; vou repetir quase em poucas palavras 0 que penso sObre isso: quem passeia pela manha num amino jardim nao sai satisfeito sem colhér algu- mas fléres, pelo prazer de lhes sentir o perfume pelo dia adiante; assim também deves colhér o fruto da tua meditacdio, gravando no pensamen- to duas ou trés coisas que mais te impressiona- ram e comoveram, para as considerar de novo de vez em quando, durante o dia, e para te conser- vares em teus bons propésitos. Faze isso no mes- mo lugar onde meditas, passeando um pouco ow dum outro modo, com ‘soss¢go ¢ atencao. que su 1 graca incutin Hs Fitotsia CAPITULO VII Avisos utilissimos acérca da meditacao Cumpre, Filotéia, que no correr do dia tenhas to presente no espirite e no coracdo as tuas re- solugdes, que, sobrevindo a ocasido, as ponhas efetivamente em pratica. Este é 0 fruto da medi- tacdo, sem 0 qual ela, além de nao servir para nada, pode ser até prejudicial. E’ certo que a meditagdo assidua sobre as virtudes, sem que as pratiquemos, ensoberbece o espirito e 0 coragao e nos faz pensar insensivelmente que somos de fato aquilo que resolvemos ser. De certo que_as- sim 0 ‘seria, se nos propdsitos tivéssemos forca e solidez; mas, porque thes faltam essas qualida- des, permanecem vaos e, porgue nao produzem eieita algum, sfo até perigosos. Convém servir- se de todos’ os meios para os por em pratica; deve-se mesmo ir em busca de ocasides, tanto pe- quenas como grandes. Por exemplo: resolvi atrair pela brandura certas pessoas que costumam me ofender; hei de as procurar hoje, para _as saudar com ares de estima e amizade; ¢, se no as pos- so achar, ao menos falarei bem’ delas ¢ rezarei a Deus em sua intencao. Mas, terminando a orac&o, cuida bem de evitar as agitages violentas, porque essas emogées Ihe neutralizam 0 balsamo celeste que recebeu na me- ditacdo: quero dizer que, se te fr possivel, per- manecas algum tempo em siléncio e, conservan- do sempre os pensamentos e 0 gésto ‘de teus ate- tos, vis passando assim suavemente da oracdo ao trabalho. Imagina um homem que recebeu num precioso vaso de porcelana um licor de grande Parte I, 9% valor, a fim de o levar para sua casa. Bi-lo ca- minhando passo a passo, sem olhar para tras nem para os lados, mas sempre para frente, com receio de por o pé em falso ow tropecar numa pedra; ¢, se para algumas vézes, é 36 para ver se, com 9 movimento, no se derramow alguma parte do precioso licor. Faze também assim com a meditagao; nao te distraias e dissipes imediata- mente, mas considera com uma atencdo simples e trangilila 0 caminho que tens que andar, Se en- contras alguém com quem deves falar, é preciso que te conformes a isso, mas toma sentido ao teu coragio, para que nada se perca daquela sua~ vidade preciosissima de que o Espirito Santo o enchen na oracao. E’ necessario que te acostumes a passar da ora cao as outras ocupacées de tua profissio, por mais contrérias que te parecam aos sentimentos € resolugies da meditagdo. Assim, um advogado deve saber passar da meditacéo ao escritério, um negociante ao comércio, uma dona de casa aos cuidados do lar doméstico, com tanta suavidade e calma, que seu espirito em nada se perturhe; pois, querendo Deus igualmente uma e outra coi sa, & necessario passar duma a outra com uma devocao inteiramente igual e com uma submissio completa 4 vontade de Deus Ha de acontecer algumas vézes que, mal aca- baste a preparacio para a meditacio, ja tua al- ma se sente tao comovida que de reperite se ele va_a Deus. Entio, Pilotéia, abandona todo 0 mé- todo que até aqui te expus, porque, embora o exercicio do entendimento deva precedér 0 da von tade, se 0 Espirito Santo opera em ti por estas 98 Filotéia santas impressbes de tua vontade, ndo vas pro- curar excitar no espirito, pelas consideragoes da meditacdo, aquéles santos afetos que jé possuis no_coracao, Enfim, € oma regra geral que se deve dar larga expansio aos afetos que nascem nunca os reprimir e deter cativos em tempo al- gum que se facam sentir, seja antes, seja depois das reflexdes, A mesma regra has de seguir a res- peito daqueles outros atos de piedade que iazem Parte da meditacdo, como a acho de gracas, a oblagio de si mesmo e a oragio, uma vez que a conserves em seu lugar determinado no fim da meditacéio. Quanto As resolucées, que se conformam aos afetos, naturaimente so’ devem ser tomadas de- pois dos atetos, ao terminar a meditacdo, por- que, tendo que’ nos representar muitos objetos particulares e familiares, podia isso produzir dis- tragdes, se as ajuntéssemos aos afetos. Muito util é enfim, usar de alguns coléquios neste exercicio da vontade, dirigindo-nos ora a Nosso Senhor, ora aos anjos ¢ aos santos, ma- xime aqueles ‘que tomam parte no mistério que se medita, a si mesmo, ao seu coracdo, aos peca- dores e até as criaturas irracionais, como féz Da- vid nos salmos e outros santos em suas medita- Ges € oracdes. CAPITULO 1S A aridex espititual na meditagao _Se acontecer que nao aches prazer na medita- cdo, nem sintas ai consdlo algum para a tua al- ma, eu te conjuro, Filotéia, a nao te perturhares Parte 1, 9 com isso, mas procura remediar 0 mal com os alvitres seguintes: Recita algumas das oracdes vocais em que teu coragio se. compraz de preferéncia; queixa-te amorosamente a Jesus Cristo; chama-o em teu socorro; beija respeitosamente a sua imagem, se fa tens A mo, confessa-lhe a tua indignidade; di- ze-Ihe com Jacob: De modo aigum, Senkor, me afastarei, se nio me abencoardes ou entao como a mulher cananéia: Assim é, Senhor, mas tam- bém os cachorrinkos comem’ das migalhas que caem da mesa de seus donos As vézes podes tomar um livro e ler devota- mente, até que teu espirito esteja mais concen- jrado'e disposto. Excita 0 coratao o mais viva- mente possivel, por algum ato exterior de devo- cdo, prostrando-te por terra, cruzando os bracos Ao peito, conservando um erucifixo entre as maos: tudo isso, naturalmente, sO se estiveres sbzinha. Se, apés tudo isso, a tua secura espiritual n&o se atenuar, ainda nao desanimes, Filotéia, mas conserva-te sempre na presenca de Deus com todo © respeito. Bem sabes quantos cortestios ha que cem vézes por ano vio a corte sem esperanca al- guma de falar com o principe, mas somente para serem vistos déle, Ihe prestarem homenagem ou, como se costuma dizer, Ihe fazerem corte ‘Assim, Filotéia, entremos em oragdo com sim- plicidade, tendo tinicamente em vista 0 nosso de- ver. Se a divina Majestade se dignar de nos falar por suas inspiragdes ou de dar-nos a graca de Ihe falar, serd certamente uma honra imensa e um prazer delicioso, Mas se nos recusa esta gra- ga € mos deixa sozinhos, sem corresponder-nos, Filotéia — 98 Filotéia como se n&o nos visse de todo ou nao estivés- semos em sua presenca, néo saiamos logo dali; ao contrario, ai devemos permanecer com resig- nagéo, com ‘profundo respeito e com o espirito tranqiilo. Mais cedo ou mais tarde a nossa paciéncia e perseveranga nos faré achar graca diante de seus olhos ¢, & primeira vez que voltarmos a sua pre- senga, éle nos receberé com olhares favoraveis € falara conosco no santo comércio da _meditagdo vem suas consolagdes nos fara saborear a sua vidade inefével do seu espirito. Mas, mesmo que até isso nos falte, contentemo-nos, Filotéia, com a honra de estar a seu lado, presentes aos olhos de sua. adordvel majestade. - CAPITULO X A oragao da manha Além da oracéo mental e vocal, hd ainda ou- tros tempos ¢ modos de rezar; e o primeiro exer- cicio de todos € a oragzo da manha, que deve ser uma preparacéo geral para as agdes de todo © dia, Ai tens um método de fazé-la bem: 1, Adora a Deus com uma veneragao profun- da e agradece-Ihe de te ter conservado durante a noite; e, se a tua consciéncia te acusa de al- ima coisa desde o tiltimo exame, pede-he perdao. 2. Considera que o dia presente te é dado para mereceres a bem-aventuranca eterna e propoe-te firmemente empregé-lo todo nesta intencao. 3. Muito util é preveres as ocupacdes déste dia, as tuas ocasides provaveis de glorificar a Deus, Parte TI, 10 99 as tentacies que te proporcionar a cdlera, a vai- dade ou uma outra paixao. Feito isto, prepara-te Por uma santa resolucéo a aproveitar bem de to- dos os meios que teras para servir melhor a Deus e progredir na perfei¢io; ao contrdrio, arma-te com t6da a firmeza de espirito para evitar ou para combater e vencer tudo o que Ihe servir de obsta- culo, Esta simples resalucdo, porém, nao € bastan- te; € preciso tirma-la em prevendo os meios que te’ serao disponiveis para pd-las em pratica. Por exemplo: se prevejo que irei tratar com uma pes- Soa facilmente’ irascivel, sdbre um negdcio, nao 86 me hei de precaver dos meios que me estaréo 4 disposicao, para nao ofendé-la, mas também, para que Ao se ire, verei como Ihe falar branda € gentilmente ou, se for necessario para conté-la, pedirei_a outras’ pessoas que o facam junto co” migo. Se prevejo que tenho de visitar alguns doen- tes, disporei tudo & hora, todas as circunstancias, as maneiras mais proprias de consold-los ¢ 0s $o- corros que thes poderei levar. 4. Reconhece diante de Deus, com humildade, a tua completa impoténcia de fazer qualquer coin sa dessas, tanto praticar 0 bem como evitar o mal, e, fazendo assim como se tivesses 0 coracéo entre as maos, oferece-o com as tuas boas reso- lugées A divina Majestade, suplicando-Ihe que o tome debaixo de sua protecdo e o fortifigue em seu servigo. Dize-Ihe: “O’ Senhor, eis aqui éste pobre e miserdvel coragio, a quem por vossa bon- dade infinita dais hoje estas boas resolugdes; mas, ah! éle é fraco e inconstante demais para’ fazer © bem que deseja, sem que Ihe deis a vossa san- ta béngao. Nesta’ intencao vos invoco, 6 Pai de ™ 100 misericérdia, pelos merecimentos da paixio de vosso Fillto, a cuja gloria eu o consagro neste dia e para ‘todo o resto da minha vida”, ‘A esta breve oragao acrescenta a invocagdo da SS. Virgem, do anjo da guarda e dos santos, a fim de que com sua proteco te ajudem, Demais, esta ordgao que faras pela manhd e, se puder ser, antes de Saires do quarto, deve ser fervorosa e ardente, para que a béngao ‘de Deus que ai ob- tiveres se estenda sobre todo o dia; peco-te en- carecidamente, Filotéia, que nunca a’ omitas. CAPITULO XI A oragio da noite e 0 exame de consciéneia Como antes da refeigio corporal, tiveste o ali- mento espiritual pela meditacdo, sera de grande proveito tomares também déste alimento espiritual antes do chi A noite. Escolhe alguns minutos antes desta refcicio e prostra-te diante de teu Deus aos pés do crucifixo, lembrando-te contigo mesmo da dissipagao do dia. Reacende em teu coracio 0 fogo da meditagio da manha por atos de projunda humilhacdo, por suspiros de ardente amor a Deus, e aprofunda-te, abrasada deste amor, nas chagas do amantissimo Salvador, ou ent&o vai repassando em teu espirito e no fundo do teu coracio tudo quanto saboreaste na ora- cdo, a nao ser que prefiras ocupar-te de um novo objeto Quanto ao exame de consciéncia, que devemos fazer antes de nos deitarmos, nio ha ninguém que ignore. Parte IT, 12 wi 1. Devemos agradecer a Deus de nos ter con- servado durante o dia. 2, Examinam-se todas as agGes, uma a uma, € as suas circunstancias. 3. Achando-se alguma coisa de bom, ieita nesse dia, da-se_gracas a Deus; se, 20 contrario, se Ihe’ tem ofendido por palavras, por pensamentos € por obras, pede-se-lhe perdao por um ato de contricao, que deve abranger a dor dos pecados cometidos, 0 bom propésito de corrigi-los e boa vontade de confessd-los na primeira ocasifo. 4. Depois disso, recomenda-se 4 divina Provi- déncia seu corpo ¢ sua alma, a Igreja, seus paren- tes e amigos, invoca-se a SS. Virgem, os santos ees anjos da guarda, pedindo-lhes de velar sd- bre nos, Feito isso, com a béngio de Deus, va~ mos tomar o repowso que éle quer que tomemes. Nunca se deve omitir esta oracio da noite, as- sim como a da manhé; pois como, pela oragao da manha se abrem as janelas da alma para o Sol da justica, assim pela oracio da noite elas se fecham para as trevas do inferno. CAPITULO XIL Do recothimento Neste ponto, Filotéia, désejo que sejas mais dé- cil ainda em ‘seguir os meus conselhos; porque penso que dai muito depende para o teu adian- tamento. Lembra-te, as mais vézes que puderdes duran- te o dia, da presenca de Deus, servindo-te de um 102 Filotéia dos quatro meios de que tenho falado. Consider © que Deus fé e 0 que tu fazes, e verds que Deus tem continuamente os olhos pregados em ti com um amor inefavel. 0” mew Deus, has de ex- clamar, por que nao emprego sempre os meus olhos para contemplar-vos, assim como vés esiais sempre olhando para mim com tanta bondade? Por que pensais tanto em mim, Senhor? E por que eu penso tio raras vézes em vos? Onde é que estamos nés, minha alma? A nossa verdadei- ra habitacdo é em Deus, e onde é que nos acha- mos? Os passarinhos tém seus ninhos, onde se yefugiam; os veados tém os matos e moitas para se_esconderem ao abrigo dos cacadores e dos raios ardentes do sol; nosso coracdo deve esco- ther para si também,- todos os dias, um lugar ou no Calvario ow nas chagas de Jesus Cristo ou em algum outro Ingar perto déle, para se retirar, de tempos em tempos, para repousar do bulicio’ e calor dos negécios’ exteriores e para se defender dos ataques do inimigo, Sim, tres vézes feliz ¢ a alma que em verdade pode’ dizer a Nosso Senhor: Vos sois o meu lugar de refi- gio, a minha fortaleza contra os inimigos, & som- bra de vossas asas respiro um ar dulcissimo e esto seguro, ao abrigo dias intempéries do tempo. Lembra-te, Filotéia, de retirar-te muitas vézes A soliddo do teu coracdo, ao passo que as tuas tarefas e conversas 0 ocupam_exteriormente, para estares a sis com teu Deus. Tudo o que te’ cerca nao the pode fechar a entrada, porque tudo isso esté fora de si mesma, Este cra o exercicio or- dinario de David no meio de suas miltiplas e Impostantes ocupagdes, como vemos muitas ve- Parte IL, 12 103 zes nos salmos: O° Senhor, estou sempre convos- co; sempre vos estou vendo, mea Deus, diante de mim; levantarei os meus oihos para vds, 6 meu Deus, qite habitais no céa; meus olhos’ estardo sempre em Deus. Com efeito, tio sérias ndo so de ordindrio as nossas conversas, nem exigem tanta aplicagio as nossas ocuipacdes, que n4o possamos subtrair-Ihe um pouco de atencdo para nos retirarmos & que- rida solidao, Como os pais de Santa Catarina de Sena nao Ihe deixassem tempo nem lugar algum para suas oragées e meditacdes, Nosso Senhor inspirou-lhe 0 pensamento de erigir um oratdrio no tundo do coragéo, onde pudesse refugiar-se em espirito, no meio das ocupacées penosas que seus pais Ihe impunham, Ela assim f@z e com facilidade pode suportar todas as contrariedades do mundo, por- que, como costumava dizer, se encerrava neste aposento interior, onde se consolava com seu Es- pdso celeste. Tornou-se esta a sua pratica ordinad- ria e desde ent&o muito a recomendava aos outros. Recolhe-te, as vézes, A solidao interior do teu coracao, e ai, num completo desapégo das criatu- ras, trata dos negécios de salvacao e perfeicio com Deus, como dois amigos que cuidam fami- liarmente de seus negécios; dize-lhe como David Ternei-me semethante ao pelicano do deserto, che- guei a ser como a coruja no seu albergue. Vigiei @ estou como péssaro solitério no telhado. To- mando estas palavras no sentido literal, elas que- rem dizer que ste grande rei acostumara sew coragio A solidao e passava cada dia _algumas horas entregue a contemplacdo das coisas espi- 104 Filotéia rituais; interpretando-as, porém, num sentido mis tico, elas nos descerram trés belissimas solidées, para onde nos podemos retirar com 0 nosso aman- tissimo Jesus. A comparagéo da coruja escondida nas ruinas mostra-nos o estado brilhante do di- vino Salvador, deitado sobre as palhas da man- jedoura, num estabulo, escondido e desconheci- do de todo o mundo, de que deplorava os peca- dos. A comparacdo do pelicano, que tira 0 san- gue de suas veias para alimentar os seus filho- tes, ou, melhor, para thes dar a vida, nos lem- bra o estado do Salvador no Calvario, onde o seu amor 0 levou a derramar todo o set sangue para nossa salvagéo. A terceira comparacéo nos aponta o estado do Salvador em sua gloriosa ascensao, quando, tendo aparecido no mundo tao pequenino e desprezivel, se elevou ao céu dum modo tao brilhante. Retiremo-nos muitas véz Para perto de Jesus, num déstes trés estados, Estando o bem-aventurado Elzedrio, conde de Ariano, na Provenca, ausente desde muito, a sua espdsa, a piedosa e casta Delfina, enviou-lhe um mensageiro expressamente para informar-se do estado de sua satide e éle respondeu do modo seguinte: “Vou indo bem, minha querida espésa, € se me queres ver, procura-me na chaga do Jado do nosso amantissimo Jesus; é 1d que eu moro e ai me acharés; querer procurar-me now tra parte é um trabalho perdido”. Isso é na ver dade, ser um cavalheiro cristio as direitas. 105; CAPITULO NI As aspiragdes ou oragées jaculatorias e os bons pensamentos Recothemo-nos em Dens, porque o anelamos e © anelamos para recolhermo-nes néle. Déste mo- do, 0 recolhimento espiritual e 0 anelo ow aspi ragdo por Deus ddo-se as maos um ao outro ¢ ambos provém dos bons pensamentos. Eleva muitas vézes o teu espirito e coracio a Deus, Filotéia, por jaculatorias breves © ardentes. Admira a exceléncia infinita de suas perfeigves, implora o auxilio de seu poder, adora a sua di- yina majestade, oferece-Ihe tua alma mil vézes por dia, louva ‘sua infinita bondade, lanca-te em espirito aos pés de Jesus crucificado, interroga-o muitas vézes sObre ‘tudo aquilo que concerne & tua salvacao, saboreia interiormente a dogura do seu espirito, estende-Ihe a mio, como uma crian- cinha a seu pai, pedindo-lhe que te guie e con duza; poe a sua cruz no teu peito, como um delicioso ramalhete, pde-na em teu coragio, co- mo uma bandeira debaixo da qual tens que ‘com- vater o inimigo; numa palayra, volve teu coracéo para todos os lados ¢ da-the todos os movimen- tos que puderes, para excité-lo a um amor terno e ardoroso ao teu Espéso divino. Muito aconselhava Santo Agostinha a virtuosa senhiora, por nome Proba, a recitacio das ora- goes jaculatérias, porque, Se nossa alma se acos- tuma a tratar tdo familiarmente com Deus, aos poucos copiard em si as perfeigdes divinas. E é de notar bem que ¢ste exercicio nada tem de dificil e n&o é incompativel com tuas ocupagies; 108 Filotéia 86 0 que & necessario séo alguns momentos de atencio, o que, longe de perturbar ou diminuir a atencdo do espirito aos negocios, a torna mais eficaz e suave. O viajante que toma um pouco de vinho, para refrescar a boca e alegrar 0 co- racio, nfo perde o seu tempo, porque renova as fOrcas e se detém apenas para depois andar mais depressa e percorrer um caminho maior. Com éste intento compuseram-se diversas co- leches de oracdes jaculatérias, que tenho por muito titeis; entretanto, nao aconselho que te cin- jas a isso; contenta-te em dizer com o coracéo ou com os labios tudo quanto o amor te inspira no momento, pois éle te inspiraré tudo o que po- des desejar. verdade que existem certas palavras que nos dio uma alegria_téda particular, como as dos salmos, que sao tao ardentes, ou antes certas in- vocacies do santo nome de Jesus ou, ent&o, aque- las setas inflamadas no amor divino, que se nos deparam no livro dos Cantares. Concedo mesmo que os cantos espirituais possam servir a éste fim, quando so cantados com atengio e seriedade. Cabe aqui o exemplo de pessoas que se amam com um amor humano e natural; tudo nelas se acupa désse amor — 0 espirito, a’ memoria, 0 co- racko e a lingua. Quantas lembrancas ¢’ recor- dagies! Quantas reflexes! Quantos enlevos! Quantos louvores e protestos! Quantas conver- sas ¢ cartas! Esté-se sempre querendo pensar e falar disso e até nas cascas das arvores, nos pas- seios, ha de se inscrever uma qualquer coisa. Assim, aquéles que estio possuidos do amor a Deus.'s6 respiram por Ge © so aspiram ao pra- | | | | Parte 11, 13 107 zer de amé-lo; nunca deixam de falar e pensar néle e, se fssem sentores dos coragdes de to- dos o$ homens, quereriam gravar néles o nome sacrossanto de Jesus. Nada ha neste mundo que nao Ihes fale dos atrativos do divino amor e nfo thes anuncie os louvores do seu Dileto, Sim — diz Santo Agostino, depois de Santo Antéo — tudo o que existe neste mundo thes fala de Deus na clogiiéncia duma linguagem muda, mas muito. compreensivel a inteligéncia déles, e seu coragdo transforma estas palavras e pensamentos em aspitagdes amorosas e em doces surtos, que os elevam até a Deus. Eis aqui alguns exemplos: 8. Gregorio, bispo de Nazianzo, passeando um dia na praia do mar, como éle contou a seu po- vo, considerava atentamente as intimeras e varia- das conchas que as ondas arremessavam a praia e depois restituiam ao mar, e ao mesmo tempo contemplava, admirado, a solidez dos rochedos vi- zinhos, contra os quais o mar se arrojava impe- tuosamente, Diante desta vista Ge pensava que isto represeniava exatamente o cardter das almas fracas e superficiais, que se deixam tevar jd @ alegria, jd a tristeza, cedendo indiferentemente a tédas as vicissitudes da vida, e o cardter das al- mas generosas e constantes, que nada pode aba- lar. E ent&o 0° seu coragao, aproveitando-se déste pensamento, elevara-se a Deus, dizendo-Ihe com © proieta-rei: Salva-me, Senkor, porque as dguas tém enirado até & minha alma: livra-me, Senkor, déste abismo; porque cheguei ao alto mar e a tempestade me submergit. E é de notar que estas palavras quadravam-se muito com a situa go em que se achava, soirendo com admiravel 108. mansidao a usu de seu bispado S. Fulgéncio, bispo de Ruspa, achando-se em Roma, por ocasiéo do triunfo de Teodorico, rei dos Godos, que presidiu em pessoa a uma assem- biéia geral da nobri ntado com a vista de um espetaculo tio magnifico, exclamo Ah! se a Roma terrestre é tdo rica e tao brilhan- te, gudo bela hi de ser entéo a Jerusalém ce- leste! E, seo Senhor de fodos os bens dew tanta magnificéneia aos amantes da vaidade, que nao reservaré entdo aos que contemplam cternamente as suas verdades? Diz-se_que Santo Anselmo, que nossos _mon- ies se wfanam de ter visto nascer, e que foi bis- po de Cantudria, era muito habil nesta arte de espiritualizar os’ pensamentos mais comuns. Es- tando um dia em viagem bre, persegu io que Maximo queria fazer dor, ndo ousaram violar a im Muita graca acharam os culo tao raro; mas o santo prel feiramente do’ espirito de Deus, disse-Ihes, entre solugos e lagrimas: Ah! vos estais rindo, mas 0 pobre animal néo tem vontade de rir. Pensai bem que infelicidade é a de uma alma que até d hora da morte é arrastada pelo deménio, de érro em érro e de pecado em pecado. Entao,’ cheia de ter ror, ela procura um asilo; e, se ndo o encontra, os Seis inimigos se escarnecem dela e eternamen- te @ conservardo como sua présa. Recebendo Santo Antio uma carta muito hon- rosa do imperador Constantino Magno, e cau- sando isso muita admiragio aos religiosos, seus Companheiros, o santo thes disse: Por que vos adntirais que um rei escreva a im homem? Ad- mirai antes a bondade infinita do Deus eterno pelos homens moriais, tendo-lhes escrito éle mes- mo a sta lei e falado a éles pela bdéca de sew proprio Fitho, $. Francisco, notando num rebanho de bodes e cabras uma tinica ovelha, ponderou a seu com- panheiro: Olha como ela é mansa e bela! ass Pra também a brandura e mansiddo do humilde Jesus no meio dos escribas e fariseus E outra vez, vendo um cordeirinho comido por um porco, exclamou, chorando: Ak! que repre- sentagao viva da morte de meu Salvador! S. Francisco de Borja, duque de Candia, éste vario ilustre de nossos tempos, servia-se de to- dos os acontecimentos da caca para fazer pias tellexdes, Admirava-me, dizia ee um dia, depois dda caca, @ docilidade dos jaledes, que tornam a mdo dos cacadores, se deixam velar os olhos e prender @ percha, ¢ espanta-me q indocilidade ce- ga dos homens, sempre rebeldes & voz de Deus. Basilio diz que a rosa cercada_de espinhos dé aos homens esta instrutiva licdo: Tudo 0 que hd de mais agraddvel neste mundo, 6 ho- mens mortais, & permcado de tristeza. Nenhum bem vos é& completamente puro; por téda parte © mal se mescla com o bem, o arrependimento com o prazer, a viuver com o casamento, o tra- batho e o cuidado com a fertilidade, temor da queda com a elevasdo da gloria, muitas despe- Sas com as honras, 0 desgasto com. as delicta: eas doengas com a saide, E’ verdade, acrescen- 10 Filotéia ja ¢ste santo padre, a resa é¢ wma flor encan- fadora; mas enguanto a sua vista me regozija, ela me atormenta, em me lembrando meus peca~ dos, pelos quais'a terra foi condenada a pro- duzir ‘espinkos. Uma pessoa piedosa, considerando com indizi- vel prazer, ao luar, um regato em que o céu s: picado de’ estrélas se refletia como num espelho, exclamou, cheia de alegria: O' meu Deus, na rea lidade tédas estas estrélas estardo debaixo de meus pés, quando me receberdes nos vossos san- tos taberndculos. E, como as estrélas do céui se representam na terra, assim os homens da terra hao de ser re- presentados em Deus, que é a fonte viva do amor divino, Uma outra pessoa, contemplando a velocidade com que um rio corria para lancar-se ao mar, disse: Assint serd minka alma em seus movimen: tos, nem teré descanso até se abismar na divin- dade, donde tirow a sua origem Santa Francisca, olhando para um ameno ri- beiro, em cujas margens estava de joelhos, fazen- do a'sua oragao, clevada em éxtase, repetia mui- tas vézes estas palavras: Assim, com esta suavi- dade corre a graca de Deus para a minha alma. Jma pessoa, que ndo posso nomear, vendo um jardim todo em flor, exclamou: Af! ‘hei de ser ea 0 tinico arbusto sem fldres, no jardim delicio~ soda Igreja? Uma outra, ao ver os pintainhos debaixo das asas da galinka, diz: O’ Senhor, conservai-me @ sombra de vossas asas. Uma terceira, contem- pl um girassol, exclamou: Quando serd, 6 | arte 1h 18 fn | meu Deus, que minha alma seguiré sempre os | atrativos de vossa hondade? E, olhando para es- sas florezinhas formosas, mas sem perfume, que se chamam amores-perieitos (pensées, em ‘fran- cés): Ah! semethanies sto os meus pensamentos, belos de proferir-se, mas initeis para tudo. Filotéia, como de tudo que acontece nesta vida mortal se podem deduzir pensamentos salutares e santas aspiracdes. Oh! infelizes da- queles que usam das criaturas dum modo con~ trario & intencio do Criador. Bem-aventurados aquéles que procuram em tudo a gloria do Cria~ dor e que usam da vaidade das criaturas para gloriticar a verdade incriada. Quanto a mim, diz S. Gregorio Nazianzeno, estou acostiumado a apro- veitar de todas as coisas para o progress espi- ritual de minha alma, Aconselho-te também a ler © epitétio de Santa Paula, escrito por S. Jer6- nimo; com prazer has de encontrar ai as muitas aspiragoes he eram habituais em todos os acontecimentos da_ vida. Grava_bem profundamente em tua mente que a devocao consiste principalmente neste exerci- cio de recolhimento espiritual e de oragées ja~ culatorias, A sua utilidade é t20 grande que po- de suprir a falta de todos os modos de rezar; e, ao contrario, se se & negligente neste ponto, dificilmente se encontra um meio de ressarcir a perda, Sem éste exer os deveres da vida da vida ativa, sé com muita dificuldade. O des canso seria sem @e um meio dcio e 0 trabalho nao passaria dum estérvo e dissipacao. Por estas ug. Filotéia, razbes eu te exorto ¢ conjuro a adquirir com todo o teu coracio esta pratica e a jamais a abandonar. CAPITULO XIV A santa Missa e como se deve ouvi-la 1, Até agui ainda nao falei do SS, Sactificio e Sacramento do altar, que € para os exercicios de piedade o que o sol ¢ para os outros astros. A Eucaristia é, na verdade, a alma da piedade e 0 centro da religido cristé, 4 gual se referem todos os seus mistérios e leis, E’ 0 mistério da caridade, pelo qual Jesus Cristo, dando-se a nds, nos enche de gracas dum modo to amoroso quao sublime. 2. A oracdo feita em unido com éste sacrificio divino recebe_uma fOrca maravilhosa, de sorte que a alma, Filotéia, cheia das gracas de Deus, da suavidade de seu espirito e da influéncia de Jesus Cristo, se acha naquele estado de que fala a Escritura quando diz que a Espésa dos Canta- res estaya reclinada sébre o seu Dileto, inundada de delicias e semelhante a uma nuvem ‘de fumaca que o incenso mais precioso levanta para o céu, aromatizando o ar. 3, Faze o possivel para arranjar o tempo_ne- cessdrio de ouvir todos os dias a santa Missa, a fim de oferecer juntamente com o sacerdote 0 sactificio do teu divino Redentor a Deus, seu Pai, por ti mesma e por toda a Igreja. S. Joao Cri: sdstomo nos alirma que os anjos a élé assistem em grande nimero, para honrar com sua presen- ga éste m Parte II, 14 us Nao devemos duvidar- que, unindo-nos com éle num mesmo espirito, tornemos 0 céu propicio a ngs, enquanto a Igreja triunfante e militante se ajunta com Jesus neste ato divino, para ganhar- nos néle e por ée o Coragéo de Deus, seu Pai, € merecer-nos todas as suas misericérdias. Que dita para uma aima poder, concorrer para isso algum tanto, por uma devocao sincera ¢ afe- tuosal 4, Se absolutamente néo podes ir a igreja necessario entio suprires a falta da presenca cor- poral pela espiritual; nunca omitas, numa hora da manha, ir_em espirito aos pés do altar, iden- tificar a tua intencio com a do padre e dos fitis € ocupar-te com éste santo sacrificio, em qual- quer parte que estiveres, como 0 farias, se es- tivesses na igreja. Proponho-te em seguida um método de ouvir a Missa devotamente. a) Desde 0 coméco da Missa até o padre subir ao altar, faze com ele a preparacao, que consiste em te apresentares a Deus, em confessares a tua indignidade e em pedires perdio de teus pecatos. b) Depois de subir 0 padre ao altar, até ao Evangelho, considera a vinda ea vida de Nosso Senhor neste mundo, lembrando-te delas com uma representagao simples e geral, c) Do Evangelho até depois do Credo conside- ra a pregacdo de Nosso Senhor; protesta-Ihe sin- ceramente que queres viver e morrer_aa fé na pratica de sua palavra divina e na unido da san- ta Igreja Catolica 4) Do Credo ao Pater noster aplica teu espi- rito & meditacdo da paixao e morte de Jesus Pilotéia — 8 nt Filotéia _ Cristo, as quais se representam atual e essen- ciaimente neste santo sactificio, que ofereceras em unig com o padre e com todo 0 povo a Deus, o Pai de misericordia, para sua gldria e nossa _salvacdo. e) Do Pater noster A comunhao, excita teu co- racdo, por todos os modos possiveis,"a querer ardentemente unir-se a Jesus Cristo pelos lagos mais fortes do eterno amor, f) Da comunhao ao fim, agradece & sua divi- na majestade, por sua encarnacdo, vida, paixéo € morte e também pelo amor que nos testema- nhow neste santo sacrificio, conjurando-o por tudo isso a ser propicio a fi, a'teus parentes e amigos © a téda a Tgreja ec, ajocthando-te em seguida com profunda. lumildade, recebe devotamente a béncéo que Nosso Senhor te dé na pessoa de seu ministro. , Querendo, ro entanto, fazer no tempo da santa Missa a tua meditacdo habitual, escusa-te seguir éste método, Serd suficiente fazer no coméco a iniencdo de assistir a éste santo sacrificio, tanto mais que quase tOdas as praticas déste método se acham sintetizadas numa meditacio bem feita. CAPITULO XV Outros exercicios publicos e comuns de devocao Nos domingos e dias de festa, que sto, dias consagrados a Deus por um culto mais particular e mais amplo, pensas muito bem, Filotéia, que te deves ocupar mais que de ordinario dos de- veres de religiao, e que, fora os outros exerci a ne Parte 1115 15 cios, deves assistir ao oficio de manhd e A tarde, se o podes comodamente. Sentirés com muita do- cura a piedade e podes crer a Santo Agostinho, que afirma em suas “Confissdes” que, quando, no coméco de sua conversao, assistia ‘a0 oficio divino, o seu coracao se inundava de suavidade e seus olhos se arrasavam de lagrimas. Demais (direi_ uma vez por todas), tudo o que se faz na Igreja, pitblicamente, tem sempre maior valor e consolacéies do que o' que se faz privadamente; porque Deus quer que no tocante a seu culto demos sempre a primazia & comunhio dos fiéis, de preferéncia a tddas as devogdes particulares. Entra de bom grado nas confrarias do Ingar onde moras ¢ principalmente naquelas cujos exer- cicios te prometem maior utilidade e edificacdo; tens ai uma espécie de obediéncia muito agra- davel_ a Deus; pois, conquanto nao exista um preceito sobre éste ‘ponto, é, contudo, facil de ver que a Igreja_no-los ‘recemenda muito, ma- nifestando suas intencoes com as indulgéncias e outros privilégios que concede a estas pias asso- ciagdes, Além disso, é uma obra de caridade cris- ta aceder as boas intengdes dos outros e con- tribuir para os seus bons propdsitos e, conquan- to em particular pudesses fazer alguma coisa tao boa e com maior gosto do que nas confrarias se faz, Deus receberia, no entanto, maior gloria aqui, pela unido de tantos coragies e ofertas, ‘O mesmo digo de todas as oracgdes e devocies piiblicas, as quais devemos concorrer, quanto esta em nossas forcas, com nosso bom exemplo, para a gloria de Deus, a edificacio do proximo e o fim especial que ai se tem em mira, 8 16 Filotéia, CAPITULO XVI Devemos honrar e invocar os santos Sendo pelo ministério dos anjos que muitas vé- zes recebemos as inspiracdes de Deus, 6 também por meio déles que Ihe devemos apresentar as Nossas aspiragdes, nao menos que por meio de santos e santas, que, como Nosso Senhor disse, sendo agora semelhantes aos anjos na gloria de Deus, the apresentam de continuo as suas ora- ges & desejos em nosso favor. Aliemos os nossos coracgées, Filotéia, a éstes espiritos celestes, a estas almas bem-aventuradas; assim como 03 filhotes dos rouxindis aprendem a cantar com os grandes, nés aprenderemos tam- bém, por esta uniao, a honrar a Deus e a rezar condignamente, Eu cantarei, Senhor, 08 vossos touvores, dizi David, na presenca dé vossos anjos. Honra, venera e respeita dum modo especialis- simo a santissima e excelsa Virgem Maria, que, como Mae de Jesus Cristo, nosso irmao, € tam bém indubitavelmente a nossa Mae. Recorramos a ela ¢, como seus filhinhos, lancemo-nos a seus péS @ aos seus bragos com wma perfeita confian- a, em todos os momentos e em todos os aconte- cimentos. Invoquemos a esta Mae tao santa e ‘boa; imploremos o seu amor materno; tenhamos para com essa Mae um coracdo de filho e esfor- cemo-nos por imitar as suas virtudes, Procura uma familiar convivencia de tua alma com os anjos, lembrando-te muitas vézes de sua > Parte II, 16 ut presenca; ama e venera, sobretudo, o anjo da diocese onde estas, os das pessoas com quem vi- ves e em especial 0 teu proprio, Reza a éles de vez em quando, bendize a Deus por éles, implo- raclhes a protecio em todos os -negdcios espi- rituais e temporais, para que auxiliem as tuas intengdes. © grande Pedro Faber, primeiro padre, pri- meiro pregador, primeiro ‘professor de tedlogia da Companhia de Jesus e primeiro companheiro de Santo Inacio, seu fundador, regressando um dia da Alemanha, onde tinha ‘trabalhado muito para a gidria de Deus, e passando por esta dio- cese, onde nascera, contava que a sua devogio de saudar os anjos das paréquias de sew itine- rario the tinha valido muitas consolacdes interio- res de sua alma e uma especial protecic em suas viagens; assegurava éle que sensivelmente co- nhecera’ quanto Ihe tinha sido propicio, ou salva~ guardando-o das ciladas dos hereges, ou prepa- Tando numerosas almas para receberem mais do- cilmente a doutrina da salvacao. E com tal de- sejo de espalhar esta devocdo dizia isto, que uma senhora, estando af presente nos anos de sua ju- ventude, 0 contava ainda, hd quatro anos. passa- dos, isto é, mais de sessenta anos depois, com sentimentos’ de muita piedade. Quanto a’ mim, grande consolacio tive no ano passado, quando consagrei um altar na aldeia de Villaret, entre as nossas montanhas mais inacessiveis, no mes- mo lugar onde vira a luz o hem-aventurado servo de Deus. Escole um santo em ctija intercessio depo- nhas especial confianca e cuja vida possas ler com maior gdsto para ihe imitar as virtudes, Sem 4 vida, 0 santo cujo nome recebeste no batismo deve ter entre todos o primeiro lugar, cal u o xvi Como se deve ouvir ¢ ler a palavra de Deus Deves ter am gosto especial em ouvir a pala- vra de Deus, mas ouve-a sémpre com ‘atencao to, quer no serm&o, quer em conversas teus amigos ‘que gostam de falar a boa semente, que nao se deve ar cair em terra. Aproveita-te bem dela; re- ‘no teu coracdo como um balsamo_ pre- . & imitagio da SS. Virgem, que conser- peito, cuidadosamente, tudo o que er de seu divina Filho, ¢ fembra-te sem- pre que Deus nao ouvira favoravelmente as nos- sas palavras na oragdo, se nao tirarmos proveito § suas nos sermées Tem sempre contigo um bom como os de S. Boaventura, de Gerson, de. Dioni , de Luis de Blois, de_ Granada stella, de Arias, de Pinelli, de’ La Puente, de é la, 0 ‘Combate es| as “Confissdes” de Santo Agostinho, as “Epistolas” de S. Jerdnimo e outros semelhantes. L@-o por _algum tempo. todos os dias, mas com tanta atenc’o como se um san- to to enviasse expressamente para te ensinar o camino do céu e encorajar-te a tril ha-lo. Lé também as vidas dos santos, onde verés como em um espelho, o verdadeiro retrato da vida devota, acomodando os seus exemplos aos vro de devocgao, - Parte II, 18 no deveres do teu estado. Pois, embora muitas acSes dos santos nfo possam ser imitadas por pessoas que vive no século, contudo, de perto ou de longe, todas elas podem ser seguidas. Imita a grande soliddo de S. Paulo, o primeiro eremita, pela solidéo espiritual do teu coraco ¢ pelo re- Colhimento assiduo, segundo as tuas forcas; ou, entio, a pobreza extrema de S. Francisco, por certag praticas de pobreza de que ainda hei de falar, Entre as vidas dos santos @ santas hd algue mas gue espalham luz em nossa mente para a recdio de nossa vida, come a da bem-aventurada madre Teresa, 0 gue torna a sua leitura admiré- vel as dos primeiros Jesuitas, a do cardeal S. Catlos Borromeu, de S. Luis, de S. Bernardo, as de S. Francisco € outros livres seme- © nos So propostas mais para a admiracdo, do que para a imitacdo, como as de Santa Maria Egipciaca, de S. Simao Estilita, de Santa Catarina de Sena, de Santa Catarina de Génova, de Santa Angela, as quais, em todo caso, muito nos afervoram em geral no santo amor de Deus. cap Como se devem receber as inspiracdes jiracdes compreendemos todos os atra- tivos da graca, 0s bons movimentos do coracdo, os remorsos de consciéncia, as luzes sobrenatu- rais e-em geral todas as béncaos com que Deus visita 0 nosso coracao, por sua misericérdia amo- Tosa e paternal, para acordar-nos da nossa So- 120 Filotéia noléncia ou para nos incitar A pratica das vir- tudes ou para aumentar em nés o amor a éle; numa palavra: para nos fazer procurar o que é de nosso interésse eterno. E’ exatamente isso que o Espdso dos Cantares chama em térmos misticos procurar a Espdsa, ba~ ter-Ihe & porta, falar-Ihe ao Coragdo, acorda-ta, fazé-la chamar ‘por éle em sta auséncia, convida- la a comer o seu mel, a colhér irutos @ flores ea the falar. Sirvo-me também desta comparacéo para maior clareza. Trés coisas sio necessarias para con~ trair-se um desponsério: primeiro hd de ser pro- posto a pessoa de que se deseja o coracho 2 a fidelidade; segundo, esta ha de anuir a proposta; e, terceiro, hd de dar 0 consentimento. Assim, Deus, quando quer operar em nds, por nés ¢ conosco alguma coisa para sua gliria, primeiro no-la propce por suas inspiragdes; nés a rece- bemos com uma suave complacéncia € damos o consentimento. Pois, como ha trés degraus pelos quais se cai no pecado — a tentacdo, o deleite € 0 consentimento — assim também ha trés de- graus pelos quais nos elevamos 4 pratica das virtudes: a inspiracdo, que ¢ contraria a tenta~ sao; a complacéncia na inspiragdo, que € oposta ao Ueleite da tentagdo, e 0 consentimento a ins- piragdo, que se opde ao que se da A tentacao. Caso a’ inspiracio durasse todo o tempo de nossa vida, nem por isso seriamos mais agradd- veis a Deus, se nao a recebéssemos com agrado. Ao contrério, ofenderiamos a Deus, como os is- raelitas, que, como éle mesmo disse, abusaram por quarenta anos da graca que Ihes deu para Ne Parte II, 18 wa se converterem, aos quais, por isso, foi proibido por um juramento de entrarem na ‘terra do seu Fepouso. Esta complacéncia as inspiragdes muito adianta a obra de Deus em nos ¢ nos atrai a complacén- cia de seus olhos, Pois, conquanto ainda nao seja um consentimento perteito, em todo caso Ihe é uma disposi nuito favordvel; e, se j4 0 gosto que se tem de ouvir a palavra de Deus, que & quase uma disposicao externa, € muito agrada vel a Deus e um sinal de salvagao, muito’ mais o sera, sem diivida, a complacencia as inspira- goes. F’ desta deleitacdo que nos fala a Espasa dos Cantares, dizendo: A minha alma se desfez em alegria quando meu Dileto me falou. Mas, enfim, € do consentimento que tudo de- pende; pois, tendo revebido uma inspiracdo com complacéncia, mas sem dar 0 nosso aprazimento, tornamo-nos ‘réus duma extrema ingratidao para com a divina Majestade e quase a tratamos com maior desprézo do que se a tivéssemos rejeitado imediatamente. Foi esta a falta e a desgraca da Espdsa dos Cantares, que, sensibilizada com mui- ta alegria, ao ouvir a voz do seu Dileto, contudo nao lhe abriu a porta e se escusou duma maneira frivola, de sorte que o Espdso* se fai embora, deixando-a com. indignasio, Cumpre, Filotéia, resolveres-te a receber dora em diante tédas as inspiragdes do céu, como haverias de receber a anjos que Deus te enviasse para tra- tar contigo dum negécio importante. Escuta com calma 0 que a inspiragdo te propée; presta aten- co ao amor de quem a da, recebe-a com -alegria e dé o teu consentimento dum modo terno e amo- yaa Filotéia roso; e Deus, que nunca nos poderd dever alguma obrigacdo, nao deixara de ter gosto em tua do- cilidade e’ fidelidade. Mas, se a inspiracdo exige de ti alguma coisa de maior e extraordinario, de- ves suspender 0 consentimento até consultar “o teu diretor espiritual, que a examinard para ver se vem de Detis ou nao; porque acontece muitas vézes que o inimigo, vendo uma alma décil em seguir as inspiracies, Ihe insinua falsas, pata a cnyanar, mas debalde, se ela obedecer com hu- mildade’ ao seu diretor. Uma vez dado 0 consentimento & inspiracdo, cumpre executar cuidadosamente o que ela exigit de nds, 0 que completa a obra da graca, porque reter 0 consentimento no interior, sem levd-lo a etcito, seria imitar a um homem que, tendo plan- tando uma vinha, nao a quer cultivar, com médo de que nao produza frutos. Considera de quanta utilidade seré a tudo isso a devocio da manha eo referido recolhimento do coracdo, conquanto nos disponhamos a fazé- los bem, com wma preparacio ndo so geral, mas também’ particular. caPiTUt.e xix A santa confissao Nosso Senhor instituiu na sua Igreja o sacra- mento da peniténcia ou confissio para putificar s nossas almas das suas culpas, t6das as vézes que se acharem manchadas. Nunca permitas, Fi- lotéia, que feu coracéo permaneca ninito tempo contaminado do pecado, tendo um remédio tao clicaz e simples contra’ a sua corrupgdo. Uma > Parte IT, 19 8 alma subjugada por um pecado devia ter horror de si mesma; e 0 respeito devido aos olhos da divina Majestade a obriga a purificar-se déle o mais cedo possivel. Ah! por que havemos de mor- rer desta morte espiritual, tendo nas maos um remédio to .eficaz para nos curar? Confessa-te com humildade e devogao todos os oito dias ¢, se for possivel, sempre que comunga- res, conquanto {tia consciéncia ndo te acuse de algum pecado mortal. Ai receberds nfo sda remissio dos pecados veniais que contessares, mas também muitas luzes para os discernir me- thor, muita forea para os evitar e uma maravi- Thosa abundancia de gracas para reparar as per- das que te tenham causado, E além disso prati- cards nesse ato a humildade, a obediéncia, a sim- plicidade e 0 amor a Deus — numa palavta, mais virtudes que em nenhum outro ato de religido. Conserva sempre uma verdadeira dor dos pe- cados confessacos, por menores que sejam, e uma firme resolucao de corrigires-te. Pessoas ha que se confessam dos pecados veniais sé por um certo habito que Ihes agrada e sem pensar em corri- gir-se e por isso ndo se livram déles e se privam de muitas gracas necessarias para o seu pro- gresso espiritual, Se te acusas duma ligeira men- tira, duma palavra um pouco desregrada, de al- guma circunstancia menos boa do jogo, tem um verdadeiro arrependimento e uma firme vontade de prestar atencio a isso, porque é um abuso do sacramento confessares-te dum pecado mortal ou venial, sem quereres puriticar déle a alma, sendo éste o fim pelo qual a confisséo foi instituida. *) Ver nota depois do Cap. 20, wa Filotéia Omite aquelas acusacdes supérfluas, que mu tos dizem por rotina. Nao amei tanto a Deus, como devia, néo rezei com tanta devocdo, como devia, nZo recebi os sacramentos com tanto res peito, como devia, ¢ owtras coisas semelhantes. A razao esta bem de ver-se; dizendo isso, de nada te acusas, em particular, que possa manifestar do confessor o estado da tua consciéncia e dizer o mesmo que os homens mais perfeitos déste mundo poderiam dizer e até mesmo os santos do céu, se ainda se pudessem coniessar. Procura a razdo particular por que te tens acusado dum modo téo geral e, assim que a acha- res, expde teus pecados dum modo simples e na- tural. Por exemplo: acusas-te de nao fer amado © préximo como devias; foi talvez porgue, saben- do da indigéncia de um pobre que facilmente po- dias socorrer e consolar, omitiste éste dever de caridade; pois bem, acusa-te desta particularida- de e dize que nao o socorreste, como podias, ou por negligéncia ou por dureza de coracao ou’ por desprézo. Do mesmo modo nao te deves acusar de nao ter rezado com toda a devocéo que devias ter; mas, pondo de parte esta acusacdo geral, que de nada serve para a confissio, declara simples- mente que fens tido distragdes voluntarias e que tens prevaricado quanto ao lugar, tempo, a po- sicio exterior do corpo c outras circunstincias necessarias para fazer bem a oracao. Na expo- sigdo dos pecados veniais nio te dés por satis- feita em referir o fato; acusa-te também do mo- tivo por que te deixaste levar. Assim, dizer que pregaste uma mentira que nao prejudica a nin- guém ainda ndo é bastante; deves acrescentar Parte II, 19 135, se o fizeste por vangloria, para te louvar ou te escusar Qu por gracejo ow por pertinacia. Se co- meteste uma falta no jogo, dé explicacoes sobre isso, dizendo se foi pelo desejo de ganhar ou pelo prazer de conversa; e assim por diante, quanto aos outros pecados. Nao deixes de determinar o tempo que durow © pecado, porque, de ordinario, o tempo Ihe au- menta notavelmente a malicia. De fato, muita di- ferenca passa entre uma vaidade passageira, que se demorou em nossa alma af por um quarto de hora, ¢ uma va complacéncia que o orgulho se- creto do coracéo fomentou por um ou mais dias. Na acusaco dum pecado torna-se necessario de- terminar o fato, 0 motivo e a duracdo, E’ verdade que, quanto aos pecados veniais, em geral nao se esté obrigado a uma exatidao escrupulosa & que a propria acusagdo nao é de necessidade abso- luta; contudo, quem quer purificar a sua alma, para atingir a perfeicio da devocio, deve ter um grande cuidado de por o médico espiritual bem ao fato de todos aquéles males dos quais se deseja a cura, por menores que parecam. Por fim, ndo cales nada que ¢ necessério para fazer compreender todo o teu pecado e nota ainda éste cxemplo: um homem, que naturalmente me desagrada, diz-me por ai uma palavrinha & toa e 86 por gracejo; mas eu a interpreto mal e me encoleriza; ao contrario, se uma pessoa de quem gosto me disser uma palavra muito mais violenta eu a levo a bem, Que devo fazer, pois, na contissio? Direi que me desmandei com palavras de enfado por ter levado a mal o que certa pessoa me disse, nao 126 Filotéia _ ____ Parte 1, 20 127 em razio da qualidade das palavras, mas tinica- mente em razio da aversio que tenho a essa pessoa Juigo até muito particularizar estas pala- vras de enfado. Manifestando assim, ao confes- sor, no sé os pecados cometidos, mas também as mas inclinagdes, os habitos e outras raizes do pecado, éle conheceré mais a fundo o coracio os remédios necessdrios a suas enfermidades. EF preciso, no entanto, encobrir, quanto possivel ior, aS pessoas que concorreram para o teu pecado. Presta atencéo a muitos pecados que substi- tuem e dominam as vézes por muito tempo no co- racio, sem que éste o note, para os confessares © purificares déste modo o teu, Para éste fim, podes ler atentamente os capitulos 7, 27, 28, 33 ¢ 36 da terceira parte e o capitulo 7 da quarta. Nao mudes facilmente de confessor e da-lhe conta de twa consciéneia nos dias mareados, di zendo-lhe singela e francamente todas as tuas fal- tase, de tempos em tempos, seja mensalmente ou seja cada dois meses, manifesta-Ihe 0 estado de thas inclinagdes, embora nao te tenham levado ao pecado: seo espirito de tristeza ou pesar te acabrunha, se ten coragdo pende muito a alegria ou se sentiste um vivo desejo de possuir maiores bens. E assim por diante CAPITULO XX A comunhio freqiiente FE conhecido o que se diz de Mitridates, rei do Ponto, na Asia, o qual inventou um alimento preservativo de todo veneno, Nutrindo-se déle, éste rei tornou o seu temperamento tAo robusto que, estando a ponto de ser préso pelos romanos e querendo evitar o cativeiro, por mais que fizesse, néo consegui. envenenar-se. Nao foi isso mesmo que féz nosso divino Sal- vador dum modo verdadeiro e real, no augustis- simo Sacramento do altar, onde éle nos dé-o seu corpo e sangue, como um’alimento, que confere a imortalidade? por isso que quem se aproxima muitas vézes e com devocao desta sagrada mesa recebé tanta forca e vigor, que & quase impossivel que o ve- neno mortifero das mds inclinacdes faca alguma impressiio em sta alma, Nao, no se pode viver desta carne de via ¢ morrer da morte do pecado. Se os homens no paraiso terrestre podiam pre- servar-se da morte corporal, comendo do fruto da Arvore da. vida, por que nao poderio agora preservar-se da morte espiritual, pela virtude dés- te sacramento da vida? Na verdade, se os frutos mais tenros e expos- tos A corrupgao, como as cerejas, mlorangos e damascos, se conservam facilmente misturados com aciicar ot! mel, nio ha que admirar-se que nossas almas, por mais fracas que sejam, se preservem da corrupcdo do pecado, se se deixam penetrar da forga e suavidade do’ sangue incorruptivel de Jesus Cristo. 0’ Filotéia, os cristéos que se condenam estaréo ante o Juiz justo, sem saber 0 que responder-the, quando éle thes fizer ver que sem razdo alguma € por propria culpa morreram espiritualmente, po- dendo téo facilmente preservar-se da morte, em se alimentando do seu corpo, 128 loteia Miserdveis, éle ha de dizer-lhes, por que estais mortos, se tinheis entre as maos o fruto da vida? Comungar todos os dias é uma coisa que nao louvo nem censuro; mas comungar todos os do- mingos é uma prdtica que aconselho e exorto a todos os fidis, contanto que néo tenham nenhuma vontade de pecar, Estas sao as proprias palavras de Santo Agostinito, de acérdo com o qual eu nao Jouvo nem censuro' a comunhdo cotidiana, reme- tendo os figis a decisio do seu diretor espiritual, porque isto exige uma disposicio tio extraor- dindria, que ndo a podemos recomendar a todos indiscriminadamente, e, porque esta disposicéo se pode achar em muitas’ almas piedosas, nao ‘a_po- demos proibir a todos em geral. Um juizo sobre éste ponto pertence a discri¢ao do confessor, que conhece 0 estado habitual e atual do penitente Grande imprudéncia seria tanto aconselhar_ indi- ferentemente a t6das as pessoas a pratica da co- munhao freqiiente, como vituperar alguém que, por conselho dum sabio diretor, comunga assidua- mente. E’ porque muito aprovo a resposta judi- ciosa e delicada que Santa Catarina de Sena dew a certa pessoa que, nda aprovando que ela co- mungasse diariamente, Ihe disse que Santo Agos- tinho no o louvava nem censurava. Pois bem — respondeu ela com espirito — se Santo Agostinho n&o 0 censura, nio 0 facais vés tio pouco e me contentarei do vosso siléncio. Estés vendo, porém, Filotéia, que Santo Agos- tinho encarecidamente recomenda aos {igis, por seus conselhos © exortagoes, comungarem em to- dos os domingos. Faze-o, pois, quanto esté em tuas forcas, desde que, tendo purificado teu co- Parte II, 20 129 rago, como presumo, de todos os aletos av pe cado mortal e venial, tens a alma mais bem dis. posta do que Santo Agostinho exige, porque, além de nao teres vontade de pecar, nem mesnio tens afeto ao pecado. Poderds até comungar mais vézes que s6 aos domingos, se alcancares licenca de teu diretor espiritual Bem sei que podes estar legitimamente impe- dida por motivos que podem provir tanto de tua parte como da parte daqueles com quem vives. Se alguma dependéncia, pois, te obriga a obede- cer-thes © respeité-los ¢ éles'entendam téo pouco de sua réligido ou tenham um carater to bizarro que se inguietem © perturbem por ver-te comun- gar todos os domingos, sera talvez melhor, con- siderando todas as circunstancias, condescender as Sas fraquezas e comungar todos os yrinze dias, uma vez que nfo podes superar éste obstaculo. Como nao se pode formular uma regra verai sobre éste ponto, estamos constrangidos a deixar a decisio ao confessor; contudo, podemos dizer com t6da a verdade que as pessoas que querem levar uma vida devota devem comungar ao me- nos uma vez por més, Se souberes proceder com prudéncia, nem pai, nem me, nem marido, nem mulher impedirao tus comunhdo freqiiente; ‘pois, se a comunhdo em ponto algum te fara descuidar dos deveres do teu estado se, nos dias em que comungares, tive- res mais brandura € complacéncia com os outros, nfo ¢ verossimil que te queiram demover dui exercicio, que absolutamente nao os incomoda, a nao ser que sejam de tio mau humor ou tio desarrazoados que assim mesmo o facam. Neste Filotéia — 9

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