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Letras de Sangue

Bruxaria

Edson Tomaz da Silva


Letras de Sangue

Bruxaria

Alexandre era conhecido na empresa por dois motivos: o primeiro, por ser um sujeito muito
criativo. Apesar de sua pouca instrução, gostava tanto de fuçar nas prensas que as conhecia
melhor do que muito engenheiro de manutenção por aí e bolava mil maneiras de fazê-las
funcionar melhor, produzir mais. Talvez não lhe dessem muita atenção numa empresa
grande, mas numa empresa média como aquela, ele acabou conquistando seu espaço.

A outra coisa que fazia o Alexandre famoso entre a turma era o medo que ele tinha da
esposa. Quando solteiro, adorava descer pro grêmio, tomar umas cervejinhas, jogar sinuca e
baralho com os colegas. Depois que conheceu Esmeralda, o homem mudou de um jeito que
ninguém conseguia entender. Ele continuava um camarada de sorriso fácil, falante e
engraçado. Mas não tocasse no assunto “esposa” perto dele: o homem travava.

Quando tocava o sinal para saída às cinco da tarde, o sujeito voava para o estacionamento;
não estava mais nem tomando banho no vestiário da empresa, ia direto pro carro e tinha vez
que chegava a cantar pneu na saída.

A galera dava risada. Se com menos de um ano de casado ele estava assim, imagina
quando fizesse bodas de ouro! Alguns apostavam que esse medo todo tinha a ver com o fato
de que Esmeralda era uma mulher muito bonita. Como diziam as más línguas, bonita demais
para um sujeito como o Alexandre, que de bonito não tinha nada. O que aquele mulherão
tinha visto nele? Se fosse rico, diziam alguns, ainda se explicava. Mas o sujeito era pobre-
pobre-pobre de marré-marré-marré. Não tinha explicação. Por isso, achavam que ele fazia
tudo que ela queria com medo de perder um mulherão lindo daqueles.

O fato é que, depois de Esmeralda, a sorte de Alexandre tinha começado a melhorar. Se


antes o chefe só se pendurava na habilidade que nosso amigo tinha para “ressuscitar” as
velhas prensas quando elas pifavam, ele finalmente tinha recebido a promoção merecida, ia
oficialmente ser responsável pela manutenção. A peãozada comentava até que tinha rolado
um aumento polpudo, mas Alexandre desconversava nessa hora. Medo de olho gordo, com
certeza.

Pois foi no meio de toda essa bonança que a notícia caiu sobre a peãozada feito uma
bomba: Alexandre anunciou que ia se separar de Esmeralda. Não deu satisfação, não
comentou motivo, só avisou. Saíra de casa, alugara um quarto numa pensão perto da fábrica
e ia seguir com a sua vida. Tirou até a aliança.

Os amigos até ficaram felizes por ele. Homem ficar se arriando com medo de mulher daquele
jeito, ficava até feio.

Mas antes de chegar a um mês de separação, aconteceu uma coisa estranha...

Seu Firmino, um velhinho aposentado que fazia às vezes de faxineiro e zelador na empresa,
foi quem viu o acontecido. Tinha saído para tomar uma pinga com uns amigos e na volta viu
uma mulher parada em frente ao muro, nos fundos da fábrica.

O que lhe chamou atenção sobre a tal mulher foi que ela era bonita e bem arrumada, e que
estava com um monte de coisas nas mãos. Antes que ela o percebesse, Firmino se
escondeu atrás de uma árvore e ficou espionando.

Sem notar que era vigiada, a mulher colocou os vários objetos que trazia na calçada e
começou a organizá-los. Firmino disse que ela tinha muitas velas grossas, dessas de sete
dias, que espalhou sobre um pano branco. Ele disse que tinha algumas coisas desenhadas
no pano, mas não sabia dizer o que era.

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Além das velas, a mulher ajeitou um boneco de plástico sobre o pano, tomando muito
cuidado para deixá-lo bem centralizado.

Em seguida, a mulher abriu uma sacola e tirou de lá de dentro um enorme sapo. Firmino
achou o sapo nojento só de olhar, ficou admirado que a mulher tivesse coragem de pegá-lo
assim, de mãos nuas. Mas ficou mais impressionado ainda quando, sem demonstrar
absolutamente nenhuma emoção, ela empunhou uma faca e rasgou a barriga do sapo,
fazendo seu sangue escorrer sobre o boneco.

Firmino até ali estava apenas achando que a mulher devia ser uma dessas malucas e
ingênuas que acreditam em qualquer picareta de plantão que se finge de guia espiritual.
Escutam um monte de bobagem e saem fazendo tudo que é presepada que os safados
inventam para tomar a grana delas. Tem muita grã-fina que faz isso e ainda indica para as
amigas irem lá depois.

Só que naquela hora em que a mulher rasgou a barriga do sapo, Firmino sentiu foi medo.
Não medo como quando a gente tem que atravessar uma rua mal iluminada; não medo como
medo de altura, medo de avião, ou medo de cena de filme de terror. Nada disso.

Firmino sentiu foi MEDO. Assim, com todas as letras maiúsculas. Firmino sentiu pavor. Ele
sentiu naquela hora que um mal tão forte fora acionado ali, naquela hora, que poderia não
apenas atingir seu corpo, mas rasgar sua alma em pedaços. Para sua sorte, o medo que
sentiu o paralisou completamente. Por isso a mulher jamais percebeu sua presença ali.

Quando o sangue do sapo parou de escorrer sobre o boneco de plástico, a mulher o atirou
longe sem a menor cerimônia. Fez um movimento preciso com a faca e cortou um pedaço
do boneco. Firmino, de onde estava, não soube dizer que parte do boneco ela atingira, só viu
o fragmento pulando longe.

A mulher levantou-se, enrolou a faca que usara numa sacola plástica e guardou-a na bolsa.
Saiu andando apressada e virou a esquina. Alguns minutos depois, Firmino ouviu um carro
sendo ligado e indo embora. Só quando deixou de ouvir o barulho do carro foi que o velhinho
teve coragem de se mexer outra vez. Saiu no passo mais apressado que pôde. Queria sair
dali o quanto antes.

Firmino não era besta nem nada. Não falou o que viu para ninguém. Com certeza, além de
não acreditarem nele, iam dizer que estava ficando gagá.

No dia seguinte, na hora de bater o cartão, Firmino passou por Alexandre no corredor que ia
do vestiário masculino ao refeitório. Trocaram um bom-dia rápido, e Firmino sentiu uma
tristeza inexplicável nessa hora.

Sem saber dos pensamentos e sentimentos que atormentavam o velho colega de fábrica,
Alexandre passou direto pelo refeitório, não fez questão de café da manhã. Tinha uma
prensa grande parada que precisava ser posta para funcionar antes da hora do almoço, sob
pena de atrasar um pedido de um cliente muito importante.

Sacando uma chave da caixa de ferramentas, desatarraxou os parafusos da grade de


proteção. Em seguida, num gesto por demais absurdo, tomou um rolo de fita adesiva e
travou os botões de segurança da prensa. Ligou a chave geral e a prensa começou a bater.

Acostumados a ver Alexandre ajustando e consertando prensas todos os dias, ninguém deu
atenção até que foi tarde demais: como se fosse a coisa mais natural do mundo, Alexandre
enfiou o braço esquerdo para dentro da prensa. Imediatamente, sua mão foi esmagada pela
pancada da ferramenta. Sem se deter, continuou enfiando o braço para dentro da
ferramenta. Apesar da dor lancinante, não gritava, sua face não se alterava, não
demonstrava absolutamente nenhuma dor. Continuou enfiando o braço para dentro da
prensa o quanto pôde, até que um colega correu e desligou a chave geral.

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A ferramenta se abriu e Alexandre caiu para trás. O sangue jorrava do cotoco que sobrara de
seu braço esmigalhado. Os colegas ainda tentaram socorrê-lo, mas foi inútil. Não deu nem
tempo de chegar à enfermaria da empresa. Morreu no caminho, por causa da perda de
sangue.

Muita gente correu para o setor de Estamparia para ver o que tinha acontecido. Quando a
notícia do acidente chegou até Seu Firmino, ele correu para o lado contrário. Saiu pela
portaria numa desabalada carreira e contornou o terreno até chegar ao muro nos fundos da
fábrica.

Na calçada, sobre o pano branco manchado de sangue, lá estava o boneco, com o braço
esquerdo cortado.

----xxxx----

Um mês depois do acidente, Firmino estava limpando o posto bancário quando viu a gerente
conversando com alguém que lhe pareceu familiar. Ao olhar discretamente por sobre a
divisória, viu a mesma mulher que fizera o estranho ritual na noite anterior ao acidente. Era
Esmeralda, a agora viúva de Alexandre. Estava ali para receber a apólice do seguro.

Indignado, mas sem poder fazer nada, Firmino viu a mulher ir embora. Ela não esboçava
nenhuma tristeza pelo acontecido. Apenas pegou o dinheiro e partiu.

Firmino lamentou pela má sorte do amigo. Se pudesse, levantaria a voz e testemunharia,


apesar do medo, sobre o que realmente causara a sua morte. Mas hoje em dia, nenhum
tribunal iria condenar alguém por bruxaria.

----FIM----

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Sobre o Autor

Edson Tomaz da Silva nasceu em São Paulo, capital, em 26 de abril de 1971. A paixão pelos
gêneros de terror e suspense é antiga, mas o autor só começou a publicar seus textos em
2009.

Em 2010, criou o site Letras de Sangue, onde publica seus textos, na companhia de outros
escritores amadores, também apaixonados por terror e suspense.

Para ajudar na divulgação do site, passou a publicar seus textos também no Scribd, criando
a Coleção Letras de Sangue.

Sobre a Obra

O conto “Bruxaria” foi escrito em novembro de 2009 e publicado pela primeira vez no site do
“Recanto das Letras” e hoje faz também parte do acervo do Letras de Sangue.

Licenciamento da Obra

A presente obra encontra-se licenciada sob a licença Creative Commons Attribution-


NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported. Para visualizar uma cópia da licença, visite
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