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Deleuze - Nietzsche e A Filosofia
Deleuze - Nietzsche e A Filosofia
Capitulo I
O trágico
1. O conceito de genealogia 3
2. O sentido 4
3. Filosofia da Vontade 4
4. Contra a dialética 5
5. O problema da tragédia 6
6. A evolução de Nietzsche 7
7. Dionísio e Cristo 8
8. A essência do Trágico 8
9. O problema da existência 9
10. Existência e inocência 9
11. O lance de dados 11
12. Conseqüências para o eterno retorno 11
13. Simbolismo de Nietzsche 12
14. Nietzsche e Mallarmé 13
15. O pensamento trágico 13
16. A pedra-de-toque 14
Capítulo II
Ativo e reativo
1. O corpo 14
2. A distinção das forças 15
3. Quantidade e qualidade 16
4. Nietzsche e a ciência 17
5. Primeiro aspecto do eterno retorno: 18
como doutrina cosmológica e física
6. O que é a vontade de poder? 19
7. A terminologia de Nietzsche 20
8. Origem e imagem invertida 21
9. Problema da medida das forças 22
10. A hierarquia 22
11. Vontade de poder e sentimento de poder 23
12. O devir-reativo das forças 23
13. Ambivalência do sentido e dos valores 23
14. O segundo aspecto do eterno retorno: 24
como pensamento ético e seletivo
15. O problema do eterno retorno 25
Capítulo III
A crítica
Capítulo IV
Do ressentimento à má-consciência
1. Reação e ressentimento 36
2. Princípio do ressentimento 36
3. Tipologia do ressentimento 38
4. Características do ressentimento 38
5. É bom? É mau? 39
6. O paralogismo 40
7. Desenvolvimento do ressentimento: o sacerdote judaico 41
8. Má consciência e interioridade 42
9. O problema da dor 42
10. Desenvolvimento da má consciência: o sacerdote cristão 43
11. A cultura encarada do ponto de vista pré-histórico 44
12. A cultura encarada do ponto de vista pós-histórico 45
13. A cultura encarada sob o ponto de vista histórico 46
14. Má consciência, responsabilidade, culpabilidade___________ 46
15. O ideal ascético e a essência da religião_ 47
16. Triunfo das forças reativas 48
Capítulo V
O super-homem: contra a dialética
1. O niilismo 48
2. Analise da piedade 49
3. Deus morreu 50
4. Contra o hegelianismo 51
5. As transformações da dialética 52
6. Nietzsche e a dialética 52
7. Teoria do homem superior 53
8. Será o homem essencialmente “reativo”? 53
9. Niilismo e transmutação: o ponto focal 54
10. A afirmação e a negação 55
11. O sentido da afirmação 56
12. A dupla afirmação: Ariadne 58
13. Dionísio e Zaratustra 58
Conclusão 59
CAPÍTULO I
O TRÁGICO (051)
1. O CONCEITO DE GENEALOGIA
01. O projeto mais geral de NIETZSCHE é introduzir na filosofia os conceitos de
sentido e valor, fazendo com isso da filosofia uma crítica. Modernamente, a teoria dos valores
engendrou um novo conformismo e novas submissões. Para NIETZSCHE, entretanto, a
filosofia dos valores é a única maneira de realizar a crítica total. A noção de valor implica uma
inversão crítica: por um lado, as avaliações supõe valores anteriores; por outro lado e mais
profundamente, são os valores que supõe avaliações, donde deriva seu próprio valor. O
problema crítico é esse: o valor dos valores, e portanto o problema da sua criação. A
avaliação, elemento diferencial, é simultaneamente crítica e criadora. As avaliações não são
valores, mas maneiras de ser que servem de princípio aos valores em relação aos quais julgam.
Eis o essencial: o elevado e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o
elemento diferencial donde deriva o próprio valor dos valores.
02. A filosofia crítica tem dois movimentos inseparáveis: referir as coisas à valores e
referir esses valores a algo que seja como a sua origem e decida sobre o seu valor.
NIETZSCHE coloca-se portanto tanto contra os que subtraem os valores à crítica (ou fazem a
crítica em nome de valores estabelecidos e ‘intocáveis’) quanto contra os que fazem a crítica
derivar de pretensos fatos objetivos (utilitaristas), ambos nadando no elemento indiferente do
que vale em si ou do que vale para todos. NIETZSCHE insurge-se contra a elevada idéia de
fundamento que deixa os valores indiferentes à sua origem e contra a idéia de uma simples
derivação causal, indiferente, dos valores a partir de sua origem. Daí o conceito novo de
genealogia, que aposta no sentimento de diferença ou distância, diferentemente do princípio
da universalidade kantiana (ou do útil).
03. Genealogia quer dizer simultaneamente valor de origem e origem dos valores. Sua
crítica é ao mesmo tempo o elemento positivo de uma criação. Por isso a crítica não é
REAÇÃO, mas AÇÃO; a crítica opõe-se à vingança, ao ressentimento. É a expressão ativa de
um modo de existência ativo, a maldade que pertence à perfeição. Essa maneira de ser é a do
filósofo. Dessa genealogia NIETZSCHE espera muitas coisas: uma nova organização das
ciências, da filosofia, dos valores.
1
Numeração original. O numero no inicio do parágrafo corresponde a paragrafação do original.
2. O SENTIDO (08)
01. Encontrar o sentido de algo é conhecer a força que desse algo se apropria, ou
explora, ou exprime-se nele. Um fenômeno é um sintoma que encontra seu sentido numa força
atual, não uma aparência ou aparição. Daí a filosofia ser uma sintomatologia e uma
semiologia. Á dualidade aparência-essência e também à relação causa-efeito NIETZSCHE
substitui a correlação do fenômeno e do sentido. Qualquer força é apropriação de uma
quantidade de realidade (mesmo a percepção). Por isso a história de algo é a sucessão das
forças que dela se apoderaram, e a coexistência das forças que lutam para dela se apoderar. O
sentido é, portanto, uma noção complexa. Existe sempre uma pluralidade de sentidos,
sucessivos e também coexistentes, o que faz da interpretação uma arte. “Qualquer subjugação,
qualquer dominação equivale a uma interpretação nova”.
02. Não se compreende NIETZSCHE sem levar em conta seu pluralismo essencial
(pluralismo, aliás, próprio da filosofia, única garantidor de liberdade no espírito concreto,
único princípio de um violento ateísmo). É por isso que NIETZSCHE não acredita em
“grandes acontecimentos” ruidosos, mas na pluralidade silenciosa de sentidos de cada
acontecimento. Vemos nessa pluralidade de sentidos a conquista mais elevada da filosofia, sua
maturidade (ao contrário de HEGEL, que via nela uma certa ingenuidade). A noção de
essência não se perde aí, mas toma uma nova significação: se a coisa tem tantos sentidos
quanto forças dela se apoderarem, por outro lado ela não é neutra, e guarda afinidade com as
forças com que se relaciona. Chamar-se-á essência pelo contrário aquele sentido que dá à
coisa a força que apresenta maiores afinidades com ela, a ponto de quase confundirem-se
ambas (não se sabe quem é a força quem é o objeto dominado).
03. A interpretação revela sua complexidade se se considerar que uma nova força só
pode aparecer se usar, desde o início, as mascaras das forças precedentes que já a ocupavam.
A máscara ou a astúcia são as leis da natureza, A vida, em seus inícios, deve mimar a matéria
para ser apenas possível2. A arte de interpretar deve ser uma arte de penetrar nas máscaras,
descobrindo quem se mascara e porque, assim como porque se conserva uma máscara
remodelando-a. A genealogia não aparece no princípio; “em qualquer coisa, só os graus
superiores importam”. A diferença na origem não aparece desde a origem, e pode mesmo ter
interesse em confundir-se com outra coisa.
2
BÉRGSON, “A Evolução Criadora”.
01. Todo objeto já é a expressão de uma força; na relação de um objeto com uma força,
são forças que se relacionam. Há relações de afinidade do objeto com a força que dele se
apodera. O ser da força é o plural: seria absurdo pensar a força no singular. Uma força é
dominação, mas é também o objeto sobre o qual essa dominação se exerce. Uma pluralidade
de forças interagindo, sendo a DISTÂNCIA o elemento diferencial compreendido em cada
força e pela qual cada uma se refere a outras: é esse o princípio da filosofia da natureza em
NIETZSCHE.. A crítica do atomismo deve ser compreendida a partir daí – o atomismo sendo
uma tentativa de emprestar à matéria uma pluralidade e uma distância essenciais que só
podem pertencer à força (os átomos são o indiviso, são seu único objeto, eles só se relacionam
consigo mesmos). O atomismo seria uma máscara para o dinamismo crescente.
02. O conceito de força é o de uma força que se relaciona com uma outra força; sob esse
aspecto, a força chama-se uma vontade. A vontade (vontade de poder) é o elemento
diferencial da força. A vontade exerce-se necessariamente sobre uma outra vontade; ela é
complexa, porque é ela quem manda e é também ela quem obedece; o verdadeiro problema
não está na relação do querer com o involuntário, mas na relação de uma vontade que ordena
com uma vontade que obedece. Assim o pluralismo encontra sua confirmação imediata e seu
terreno de eleição na filosofia da vontade. Esse o ponto preciso da ruptura entre NIETZSCHE.
e SCHOPENHAUER:trata-se de saber se a vontade é uma ou múltipla. Para NIETZSCHE.,
conceber a vontade como una leva à sua negação.
03. NIETZSCHE. denuncia a alma, o eu, o egoísmo, como os últimos refúgios do
atomismo. Em qualquer querer, trata-se simplesmente de mandar e obedecer, sob a base de
uma estrutura social de muitas almas. Quando NIETZSCHE. canta o egoísmo, quer com isso
criticar a “virtude” do desinteresse. Mas o egoísmo, como o atomismo, é uma má
interpretação da vontade, pois ainda supõe um ego. E não há um ego na origem, mas a
diferença entre forças. A diferença na origem é a HIERARQUIA (que está, portanto,
inseparável da genealogia, como valor de origem e origem dos valores – a hierarquia é o
“nosso problema”, diz NIETZSCHE.). A hierarquia é o fato originário, a identidade da
diferença e da origem. Assim, o sentido de qualquer coisa é a relação dessa coisa com a força
que dela se apodera, e o valor de qualquer coisa está na hierarquia das forças que se exprimem
na coisa enquanto fenômeno complexo.
7. DIONÍSIO E CRISTO
01. Tanto em dionísio quanto em Cristo, o mártir é o mesmo, a paixão é a mesma, é o
mesmo fenômeno, mas os sentidos são opostos: por um lado, a vida que justifica o sofrimento,
que o afirma; por outro lado, o sofrimento que acusa a vida, que faz dela algo que deve ser
justificado. O fato de haver sofrimento na vida significa, para o cristão, que a vida não é justa,
que é culpada, que deve pagar pelo sofrimento – como?: com o próprio sofrimento (o que
forma a “má-consciência”). Tal define o niilismo cristão, isto é, sua maneira própria de negar
a vida. Mesmo o amor cristão não se opõe à esse ódio, como quer o dialético: a alegria cristã é
a alegria de “resolver” a dor, interiorizando-a e assim oferecendo-a à Deus.
02. Para dionísio a vida não tem de ser justificada: é ela quem se encarrega de justificar.
A vida é essencialmente justa. Ela afirma mesmo o mais amargo sofrimento, sem “resolver” a
dor ao interioriza-la, mas afirmando-a no elemento de sua exterioridade. A oposição dionísio-
Cristo é a oposição da afirmação da vida e da negação da vida. O sofrimento dionisíaco (por
superabundância de vida) é uma afirmação, sua embriaguez é uma atividade, seu
dilaceramento é a própria afirmação múltipla; o sofrimento cristão (por empobrecimento de
vida) é uma acusação à vida, sua embriaguez é um torpor ou convulsão, sua morte é a imagem
da contradição e sua solução. A oposição de dionísio à Cristo não é uma oposição dialética,
mas oposição à própria dialética: a afirmação diferencial contra a negação dialética.
8. A ESSÊNCIA DO TRÁGICO
01. A afirmação múltipla ou pluralista é a essência do trágico. É necessário encontrar,
para cada coisa, os meios particulares pela qual ela é afirmada. A tristeza e a angústia sempre
surgem em NIETZSCHE com relação à esse ponto: pode-se tornar tudo objeto de afirmação,
de alegria? O trágico não reside nesta angústia ou tristeza, nem na nostalgia da unidade
perdida. O trágico consiste na multiplicidade, na diversidade da afirmação como tal. O que
define o trágico é a alegria do múltiplo (nada de alegria como sublimação, compensação,
resignação, reconciliação). Trágico designa a forma estética da alegria, não uma forma
medicinal. Uma lógica de afirmação múltipla, da pura afirmação, e uma ética da alegria que
lhe corresponde, é esse o sonho anti-dialético e anti-religioso que perpassa toda a filosofia de
NIETZSCHE. A tragédia, franca alegria dinâmica.
02. A tarefa de dionísio é nos tornar leves, nos ensinar a dançar, nos dar o instinto do
jogo. Dionísio conduz ao céu Ariadne; as pedrarias da coroa de Ariadne são estrelas. Será esse
o segredo de Ariadne? A constelação nascerá do famoso lance de dados. É dionísio quem
lança os dados. É ele quem dança e quem se metamorfoseia, que se chama “Poligeto”, o deus
das mil alegrias. (30)
03. A dialética em geral não é uma visão trágica do mundo. Todavia, entre a ideologia
cristã (que HEGEL quis utilizar como substituto à tragédia) e o pensamento trágico existe um
problema comum: o do sentido da existência. Esta é, para NIETZSCHE, a questão suprema da
filosofia, a mais empírica e “experimental”, porque coloca simultaneamente o problema da
interpretação e da avaliação. Bem compreendida, a questão significa “o que é justiça?” Mas
desde sempre procurou-se o sentido da existência postulando-a como algo faltoso ou culpado.
9. O PROBLEMA DA EXISTÊNCIA
01. Os gregos já se perguntavam pelo sentido da existência, considerando-a como
desmesura, hybris ou crime (ANAXIMANDRO), enfim algo que merecia uma compensação
(com isso, explicavam o devir). SCHOPENHAUER é uma espécie de ANAXIMANDRO
moderno.
02. O que os faz atrativos para NIETZSCHE é sua diferença em relação ao cristianismo.
Se os gregos fazem da existência algo de criminoso, que em geral inicia já com um crime (que
deve ser expiado – o roubo do fogo por Prometeu, etc), nem por isso a existência é culpável e
responsável por isso. Esse passo só será dado com o cristianismo, o mestre do ressentimento.
Ressentimento, culpa e responsabilidade não são simples acontecimentos psicológicos, mas
categorias fundamentais do pensamento cristão, a nossa maneira de interpretar a existência.
Um novo ideal, uma outra maneira de pensar, é a tarefa que NIETZSCHE se propõe: “dar à
irresponsabilidade um sentido positivo”. Este, o mais nobre e mais belo segredo de
NIETZSCHE.
03. Os gregos são crianças perto dos cristãos, em matéria de negar a vida. Entretanto,
para ambos a vida é culpada. Em acréscimo, o cristão dirá que ela é responsável por isso. A
questão, para NIETZSCHE, não é saber se a vida é responsável ou não pela culpa (admitindo-
a, de antemão, portanto), mas saber se a existência é culpada ou inocente. Dionísio encontrou
então a sua verdade múltipla: a inocência,, a inocência da pluralidade, a inocência do devir e
de tudo o que é.
3
Zaratustra, III, “Da virtude que ameniza”
retorno: dois estômagos não são demais para pensar. A segunda dimensão do aforismo (o
valor) é o retorno da primeira.
14. NIETZSCHE E MALLARMÉ
01. Para MALLARMÉ, como para NIETZSCHE, 1) Pensar é fazer um lance de dados;
2) O homem não sabe jogar; 3) O lance de dados é irracional e trágico por excelência; 4) o
número obtido é a obra de arte como justificação do mundo.
02. Mas essas semelhanças são superficiais, porque MALLARMÉ sempre concebeu a
necessidade como a abolição do acaso. Há um dualismo em MALLARMÈ, entre o mundo do
acaso e o da necessidade, isso podendo ser fruto tanto de uma depreciação da vida ou da
exaltação do inteligível; ambos, entretanto, numa perspectiva nietzschiana, são inseparáveis e
constituintes do niilismo, isto é, da maneira pela qual a vida vem a ser acusada, julgada e
condenada. Ora, o lance de dados nada é quando separado de seu contexto afirmativo e
apreciativo, separado da inocência e da afirmação do acaso.
16. A PEDRA-DE-TOQUE
01. Não basta a palavra “trágico” para identificar NIETZSCHE com PASCAL,
KIERKGAARD, CHESTOV, por exemplo. Devemos ver quanto de ressentimento e má-
consciência perdura em seu pensamento. Se eles, por um lado, souberam, com gênio, levar a
crítica o mais longe possível, suspendendo a moral, invertendo a razão, foram, por outro lado,
apanhados pelo ressentimento, extraindo ainda as suas forças do ideal ascético. O que eles
opõe à moral e a razão é ainda um ideal, a INTERIORIDADE, este corpo místico em que a
razão se enraíza – a aranha. Falta-lhes o sentido da afirmação, o sentido da exterioridade, a
inocência e o jogo. Não se deve procurar apoio na infelicidade; é na felicidade que é preciso
começar.
02. A aposta de PASCAL não tem nada a ver com o lance de dados nietzschiano. Nela,
não se afirma o acaso, mas, a o contrário, se o fragmenta em probabilidades; a existência ou
não de Deus não é posta em jogo; é apenas dividida em dois modos de existência do homem
(com e sem Deus), para daí decidir [já baseado em valores ascéticos]. A Hybris, o espírito de
vingança, o ressentimento, a má-consciência, o ideal ascético, o niilismo, são a pedra-de-toque
de qualquer nietzschiano. É aí que ele pode mostrar se compreendeu ou se desconhece o
verdadeiro sentido do trágico.
CAPÍTULO II
01. O CORPO
01. ESPINOSA abriu nova via às ciências e à filosofia, ao dizer que não sabemos “o que
pode um corpo”. Ainda confundimos o corpo com o espírito. NIETZSCHE sabe que é
chegada a hora da modéstia [a hora de avançar nesse conhecimento-criação da TERRA]. Para
ele, a consciência é um sintoma de uma transformação mais profunda e da atividade de forças
de uma ordem completamente diferente da espiritual. Como FREUD, NIETZSCHE pensa que
a consciência é a região do “eu” afetada pelo mundo exterior. Todavia, a consciência é
definida menos em relação à exterioridade, em termos de real, do que em relação à
SUPERIORIDADE, em termos de valor. Essa diferença é essencial numa concepção geral do
consciente e do inconsciente. Em NIETZSCHE, consciência é sempre consciência de um
inferior em relação ao superior ao qual se subordina ou “se incorpora”. A consciência nunca é
consciência de si, mas consciência de um “eu” em relação ao “eu” que não é consciente. Não é
um senhor, mas um escravo. É consciência do escravo em relação a um senhor que não tem de
ser consciente. “A consciência habitualmente só aparece quando um todo quer subordinar-se a
um todo superior... A consciência nasce em relação a um ser de que nós poderíamos ser
função4”. É assim o servilismo da consciência: testemunha apenas “a formação de um corpo
superior”.
02. Não definimos um corpo ao dizer que é um campo de forças, um meio nutritivo que
se disputa uma pluralidade de forças. De fato, não existe “meio”, campo de forças, quantidade
de realidade. Só há quantidades de força em relação de tensão umas com as outras. Qualquer
força está em relação com outras, mandando ou obedecendo. O que define um corpo é essa
relação entre forças dominantes e forças dominadas. Duas forças desiguais constituem um
corpo a partir do momento em que entrem em relação: é por isso que o corpo é sempre fruto
do acaso (em sentido nietzschiano). O acaso, relação de força com força, é além do mais a
essência da força; não nos interroguemos, portanto, como nasce um corpo vivo, já que
qualquer corpo vive como produto “arbitrário” das forças que o compõe 5. O corpo é fenômeno
múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças irredutíveis. A sua unidade é a de um
fenômeno múltiplo, “unidade de dominação”. Num corpo, as forças superiores ou dominantes
são ditas ATIVAS, as inferiores ou dominadas são dotas REATIVAS. Essas são as qualidades
originais, que exprimem a relação da força com a força. Porque, ao haver diferença de
quantidade entre as forças em relação, há também, ao mesmo tempo, diferença de qualidade,
que corresponde à sua diferença de quantidade como tal. Chamar-se-á HIERARQUIA a esta
diferença das forças qualificadas consoante a sua quantidade: forças ativas e reativas.
4
VP, II, 227
5
Sobre o falso problema de um começo da vida: VP, II, 66 e 68; sobre o papel do acaso: VP, II, 25 e 334
02. A DESTINAÇÃO DAS FORÇAS
01. Ao obedecer, as forças inferiores não deixam de ser forças. Obedecer é uma
qualidade da força, tal como ordenar. Obedecer e ordenar constituem as duas formas de um
torneio. As forças inferiores (reativas) exercem sua quantidade de força assegurando os
mecanismos e as finalidades, as funções, as tarefas de conservação, adaptação, utilidade. O
pensamento moderno detém-se apenas neste aspecto reativo da força, crê ter feito o suficiente
quando as compreende. Mas só podemos alcançar as forças reativas como forças (e não
mecanismos ou finalidades, duas macro-interpretações que valem apenas para as forças
reativas) se as referirmos às forças que as dominam, e que não são reativas. As forças de
ordem espontânea, agressiva, conquistadora, transformadora, criadora, têm proeminência
fundamental sobre as forças reativas6.
02. É difícil caracterizar essas forças ativas. Por sua natureza, elas escapam à
consciência (“a grande atividade principal é inconsciente”7). A consciência exprime apenas a
relação de certas forças reativas com as forças ativas que as dominam. A consciência é
essencialmente reativa, como também o hábito, a memória, a nutrição, a adaptação, a
reprodução, todas funções reativas, especializações, expressões de tal ou tal força reativa. É
inevitável que a consciência veja o organismo de seu ponto de vista reativo. O problema do
corpo não se dá entre mecanicismo e vitalismo (ambos apoiados apenas nas forças reativas),
mas na descoberta das forças ativas, sem as quais as próprias reações não seriam forças. A
atividade necessariamente inconsciente das forças é o que faz do corpo algo superior à toda
reação. As forças ativas são o que faz do corpo um “eu”. A verdadeira ciência é a da atividade,
mas a ciência da atividade é também a do inconsciente necessário. É absurdo a ciência seguir
os caminhos da consciência; tal idéia nos remete antes de mais nada à moral.
03. “O que é ativo? Tender para o poder8”. Apropriar-se, dominar, isto é, impor formas,
criar formas explorando as circunstâncias. NIETZSCHE critica DARWIN porque este
interpreta a evolução, e mesmo o acaso na evolução, de maneira reativa. LAMARCK, ao
considerar a existência de uma força plástica ativa, primeira em relação à adaptação, estava
mais próximo de NIETZSCHE. O poder dionisíaco de transformação é a primeira definição de
atividade. Não esqueçamos, porém, que a reação também designa um tipo de forças; elas,
entretanto, não podem ser concebidas como forças se não às referirmos às forças ativas,
superiores, que são precisamente de um outro modo.
03.QUANTIDADE E QUALIDADE
6
GM, I, §12
7
VP, II, 227
8
VP, II, 43
01. NIETZSCHE sempre acreditou que as forças deviam definir-se quantitativamente.
Entretanto, acreditava também que uma definição puramente quantitativa permanecia
incompleta, abstrata, ambígua. Ao mesmo tempo que insiste na definição quantitativa,
NIETZSCHE apresenta outras definições, como “A força reside na qualidade”.
02. Não há contradição entre estes dois posicionamentos: se uma força não é separável
de sua quantidade, também não é separável das outras forças com as quais está em relação. A
PRÓPRIA QUANTIDADE NÃO É PORTANTO SEPARÁVEL DA DIFERENÇA DE
QUANTIDADE [isto é, d a qualidade]. A diferença de quantidade é a essência da força.
Quando NIETZSCHE critica o conceito de quantidade, é a anulação das diferenças de
quantidade que ele critica aí [quando o conceito refere à uma quantificação abstrata e
genérica, por exemplo, a uma diferença puramente quantitativa9] . O que interessa à
NIETZSCHE, do ponto de vista da própria qualidade, é a irredutibilidade da diferença de
quantidade à igualdade. A QUALIDADE distingue-se da QUANTIDADE como aquilo que,
na quantidade, não pode ser igualizado, isto é, é a diferença de quantidade que é impossível
de anular.
03. Com o acaso, afirmamos a relação de todas as forças; afirmarmos todo o acaso de
uma vez no pensamento do eterno retorno. Mas o acaso é o contrário de um continuum; o
poder das forças é preenchido na relação com um pequeno número de forças. Os encontros de
forças de tal e tal quantidade são portanto partes concretas do acaso, as partes afirmativas do
acaso, como tal estranhas a qualquer lei. Nesse encontro, cada força recebe a qualidade
correspondente à sua quantidade, isto é, a afecção que preenche efetivamente seu poder. Não
se pode, portanto, calcular abstratamente as forças. Deve-se avaliar concretamente, em cada
caso, a sua quantidade respectiva e o matizado desta qualidade.
9
Comparar com o “Bergsonismo” de Deleuze.
02. Essa tendência a reduzir as diferenças de quantidade exprime a maneira pela qual a
ciência participa do niilismo do pensamento moderno, o qual, em ciência apresenta-se como
depreciação da existência, promessa de morte indiferenciada (calorífica ou outra) – como
“adiaforia”. A ciência, por vocação, compreende os fenômenos a partir das forças reativas; o
triunfo das forças reativas é o instrumento do pensamento niilista.
03. Tanto a afirmação mecanicista do eterno retorno quanto sua negação termodinâmica
[as duas apreensões “científicas” do eterno retorno] tratam da conservação da energia,
interpretada de tal maneira que se anulam as diferenças de quantidade de energia [o que é
fundamental para a hipótese nietzschiana do eterno retorno]. Ambas as hipóteses culminam
num estado final ou terminal, indiferenciado, idêntico a si mesmo – o que é completamente
diferente do eterno retorno.
04. O eterno retorno não é um pensamento do idêntico, mas um pensamento do
absolutamente diverso, que reclama para si, fora da ciência, um princípio novo, que explique a
repetição da diferença enquanto tal. No eterno retorno não é o mesmo ou o uno que regressam,
mas o eterno retorno é ele próprio o uno que se diz apenas do diverso e do que difere.
10
Comparar com “Bergsonismo”
11
VP, II, 374
a VP é o princípio., Note-se que a VP é um princípio essencialmente plástico, que não é maior
do que aquilo que condiciona; ele se metamorfoseia com o condicionado, ele se determina em
cada caso com o condicionado; a VP não é separável de tais e tais forças.
02. Inseparável, entretanto, não quer dizer idêntico. Separar a VP da força é cair na
abstração metafísica; confundi-las é recair no mecanicismo [esquecer que a diferença e a
relação é que são essenciais na força]. As relações da força com a força são relações de
dominação; mas essas relações permanecem indeterminadas enquanto não se acrescenta à
força um elemento que as determine sob o duplo aspecto da gênese recíproca das diferenças
de quantidade e da gênese absoluta de sua qualidade respectiva. A VP é o elemento
genealógico da força e das forças. É pela VP que uma força se abate sobre outra, que uma
força comanda outra, e é ainda por ela que uma força obedece outra.
03. O conceito de síntese está no centro do kantismo. Os pós-kantianos censuravam a
KANT por 1) não ter apresentado um princípio que regesse a síntese sem ser apenas
condicionante em relação aos objetos, mas verdadeiramente genético e produtor (princípio de
diferença ou determinação interna), e 2) do ponto de vista da reprodução dos objetos na
própria síntese, pedia-se ao princípio uma razão não só para a síntese, mas para a reprodução
do diverso na síntese enquanto tal. NIETZSCHE parece ter levado a crítica kantiana adiante,
em novas base e direção, com os conceitos de eterno retorno e VP.
CAPÍTULO III
A CRÍTICA
13
Ver capítulo sobre o Nascimento da Tragédia, no início deste resumo
CRIAR, e VONTADE = ALEGRIA. Esses dois princípios, a primeira vista vagos e
indeterminados, tornam-se precisos quando se compreende seu caráter crítico, isto é, a
maneira como eles se relacionam com as anteriores concepções de vontade (como VP que
quer a representação e a atribuição dos valores correntes através de uma disputa, o que resulta
numa noção necessariamente aprisionante, ilusória e sofrida do querer). Contra esse
aprisionamento da vontade, NIETZSCHE anuncia que o querer liberta; contra a dor da
contradição da vontade, NIETZSCHE anuncia que a vontade é alegre. Contra a imagem de
uma vontade que aspira a fazer-se atribuir valores estabelecidos, NIETZSCHE anuncia que
querer é criar novos valores.
02. VP não quer dizer vontade que quer o poder; significa, ao contrário, que o poder é
aquilo que quer na vontade. O poder é na vontade o elemento genético e diferencial. É por
isso que a VP é essencialmente criadora. O que o poder quer é a relação de forças, as
qualidades das forças. Ele não pode ser representado, interpretado ou avaliado porque é “o
que” interpreta, avalia e quer. A VP é essencialmente criadora e doadora: não aspira, procura
ou deseja, mas DÁ. O elemento criador de sentido e dos valores é também necessariamente
um elemento crítico. Assim como o nobre “vale mais “ que o vil apenas porque passa pela
prova do ER, pelo qual o vil retorna como nobre, a crítica é a negação sobre uma forma
nova>: destruição tornada ativa, agressividade profundamente ligada à afirmação. A crítica é a
destruição como alegria, a agressividade do criador. O criador de valores não é separável de
um destruidor, de um criminoso e de um crítico.
14
Genealogia da Moral, III, §27
ainda do ideal ascético. Pelo contrário, a vontade de verdade, expressando-se como a pergunta
pelo significado e pelo valor da própria vontade de verdade, quebra a série do ideal ascético,
quebra seu último esconderijo, quebra a si própria. Essa quebra, esse questionamento, é o
instante que antecede e preside a elevação. [o niilismo como conseqüência extrema do ideal
ascético, mas também como começo de uma outra maneira de sentir]
14. A ARTE
01. A concepção nietzschiana de arte, concepção trágica, repousa sobre dois princípios:
o primeiro diz que a arte é um estimulante da VP, um excitante do querer, e não algo
desinteressado, que sublima, suspende o desejo; tal princípio denuncia qualquer concepção
reativa da arte.
02. O segundo princípio diz que a arte é o mais alto poder do falso; ela santifica a
mentira, magnífica o mundo enquanto erro, faz da vontade de enganar um ideal superior,
único capaz de rivalizar com o ideal ascético e de se opor a ele com sucesso. A arte inventa
precisamente mentiras que elevam o falso ao mais alto poder afirmativo. Aparência, para o
artista, não significa a negação do real, mas uma seleção, uma correção, um desdobramento,
uma afirmação. Verdade significa então efetivação do poder, [grau de intensidade]. Em
NIETZSCHE, o artista = aquele que procura a verdade = inventor de novas possibilidades de
vida.
03. Uma nova imagem do pensamento significa em primeiro lugar que o verdadeiro não
é mais o elemento do pensamento, mas o sentido e o valor. As categorias do pensamento não
são mais o verdadeiro e o falso, mas o elevado e o baixo. Do verdadeiro e do falso, temos
sempre a parte que merecemos: existem verdades da baixeza; nossos pensamento mais
elevados, pelo contrário, constituem a parte do falso, não renunciam nunca a fazer do falso um
elevado poder. Daí resulta que o estado negativo do pensamento não é o erro. A inflação do
conceito de erro em filosofia testemunha a persistência da imagem dogmática. Na verdade
como no erro, o pensamento baixo só descobre aquilo que traduz o triunfo do escravo; o
disparate é sintoma de uma maneira baixa de pensar, que em tudo faz reinar valores
mesquinhos ou a ordem estabelecida, não é um erro; ele tem uma estrutura própria de
funcionamento.
04. O conceito de verdade determina-se apenas em função de uma tipologia pluralista,
sendo que esta inicia numa topologia. Deve-se submeter o verdadeiro a prova do baixo, e o
falso a prova do elevado; eis a tarefa realmente crítica. A filosofia, como crítica, não serve a
ninguém; serve para afligir. Ela ataca o disparate, denuncia a baixeza do pensamento,
denuncia as mistificações sob as quais triunfam as forças reativas. É certo que existe uma
mistificação propriamente filosófica: a imagem dogmática do pensamento e a caricatura da
crítica testemunham-no. Mas tal ocorre apenas quando ela renuncia ao seu papel
desmistificador.
05. A tarefa crítica de filosofia deve ser constantemente retomada, a cada época, pois,
diferentemente do conceito intemporal de erro, a baixeza não se separa do tempo, da
atualidade; cada época tem a sua. É por isso que a filosofia tem com o tempo uma relação
essencial: sempre contra seu tempo, crítica do mundo atual, sempre intempestiva.
06. Pensar não é o exercício natural de uma faculdade: pensar depende de forças que se
apoderem do pensamento. Enquanto nosso pensamento estiver ocupado e somente encontrar
seu sentido nas forças reativas, ainda não pensamos. As ficções pelas quais as forças reativas
triunfam formam o mais baixo do pensamento. Pensar, como atividade, é um acontecimento
extraordinário no próprio pensamento, significa uma elevação, é necessário que o pensamento
seja elevado até o pensar por uma força que dele se apodere violentamente 15 – e esse é, para
NIETZSCHE, o papel da cultura, em oposição ao método. A cultura é adestramento e seleção,
formação do pensamento por uma seleção de forças, adestramento que põe em jogo todo o
inconsciente do pensador. Os gregos não falavam em método, mas em paidéia; sabiam que o
pensamento não pensa a partir da boa vontade, como no método, mas em virtude de forças que
o obrigam a pensar. Tudo o que existe de liberdade e dança sobre a terra floriu sempre sobre a
tirania de certas leis, sobre esse adestramento e seleção; inclusive o pensamento.
07. A atividade genérica da cultura visa formar o artista, o filósofo. Mas as forças
reativas, a igreja ou o estado podem utilizar essa violência necessária da cultura para seus
próprios fins, embrutecendo o pensamento ao invés de formá-lo (degenerescência da cultura).
Há uma certa ambivalência na cultura, para NIETZSCHE
08. A nova imagem de pensamento implica relações de força complexas. Pensar depende
de certas coordenadas. É falso dizer que a verdade sai de um poço: só encontramos verdades
onde elas estão, à sua hora e no seu elemento. O método em geral nos afasta de tais lugares,
15
Comparar com a intuição bergsoniana, essa também elevação do pensamento.
ou evita que deles saiamos. Cabe a nós ir até os lugares extremos, às horas extremas onde
vivem e se erguem as verdades mais elevadas, mais profundas.
CAPÍTULO IV
DO RESSENTIMENTO À MÁ-CONSCIÊNCIA
16
Notar a semelhança dessa estrutura psíquica com a sugerida por Bergson em “Matéria e Memória”.
17
Em Ecce Homo, 1, 6, NIETZSCHE diz que estar doente é já uma forma de ressentimento.
03. TIPOLOGIA DO RESSENTIMENTO.
(Nota sobre NIETZSCHE e FREUD - NIETZSCHE não estava em confluência com
FREUD. As coincidências entre ambos se explicam por suas preocupações “energéticas”.
NIETZSCHE teria denunciado em FREUD a sua concepção reativa de vida psíquica, seu
desconhecimento das forças ativas, como já o fez, à seu modo, OTTO RANK)
01. O primeiro aspecto do ressentimento é, portanto, topológico: é a mudança de meio, o
deslocamento das forças reativas que constitui o ressentimento, sendo a invasão das marcas na
consciência o que identifica o homem do ressentimento. Em N., como em FREUD, há duas
memórias (a memória das marcas, reativa, e a memória da vontade, ativa, expressa na
faculdade de prometer; em FREUD haveria, distintamente da memória das marcas, uma
memória das “marcas verbais”). A primeira memória é a da reação às marcas, que jcomo
tipologia, forma o sintoma principal do tipo ressentido: sua prodigiosa memória.
02. O ressentimento é o espírito de vingança porque toda sua reação se efetua
imaginariamente; não é que, por um excesso de excitação (FREUD) ele queira reagir
representando (para conter o excessos, o que ultrapassa a capacidade de ser agido) pensar
assim seria desconsiderar as qualidades das forças, levando em conta somente suas
quantidades. Qualquer excitação, grande, pequena, boa ou má, é sentida como culpada pelo
ressentido na medida em que remete à sua impotência para reagir frente à excitação – ele
somente reage às marcas da excitação. O homem do ressentimento experimenta qualquer
objeto como uma ofensa na medida em que lhe sofre o efeito (e não poder reagir) 18. A
memória das marcas é odiosa em si mesma e por si mesma. É venenosa e depreciativa, porque
se liga ao objeto para compensar a sua impotência para se subtrair às marcas da excitação
correspondente. O que NIETZSCHE quer é fazer uma psicologia que seja uma tipologia,
fundar a psicologia “no plano do sujeito” (expressão familiar à Jung).
4. CARACTERÍSTICAS DO RESSENTIMENTO
01. “Espírito de vingança” não quer dizer que o espírito quer a vingança, mas que a
vingança usa o espírito como meio. O ressentimento fornece à vingança um meio (invertendo
a relação normal de forças ativas e reativas ). Por isso o próprio ressentimento é já o triunfo de
uma revolta. O tipo do senhor (ativo) será definido pela faculdade de esquecer, como pelo
poder de agir as reações; o tipo escravo (reativo) será definido pela prodigiosa memória e pelo
poder do ressentimento.
02. A impotência para admirar, para respeitar, para amar: o mais espantoso no homem
do ressentimento não é sua maldade, mas a sua deprimente malquerença, a sua capacidade
18
Veja-se “Memórias do Subterrâneo”, de Dostoiévski
depreciativa. Ele odeia tudo, não respeita amigos (menos ainda inimigos), a felicidade ou a
infelicidade. Faz da própria infelicidade algo medíocre, que recrimina e distribui danos; não
respeita a própria infelicidade. Pelo contrário, o respeito aristocrático pelas causas da
infelicidade e a incapacidade de tomar a serio as próprias infelicidades constituem uma
unidade. A seriedade com que o escravo encara as suas infelicidades testemunham uma
digestão difícil.
03. A passividade: No ressentimento, a felicidade aparece como torpor, embriaguez, paz
– sob forma passiva. Essa passividade (que não é o oposto de atividade, já que o oposto de
ação é reação) designa a não-ação, o momento em que a reação, deixando de ser agida, se
torna ressentimento. O homem do ressentimento não sabe e não quer amar, mas quer ser
amado. É o homem do benefício e do lucro. O ressentimento só se impôs fazendo do lucro um
sistema econômico, social, teológico. É nesse sentido que os escravos possuem uma moral da
utilidade. Todas as qualidades morais escondem as exigências de um terceiro passivo, que
reclama o interessa de ações que não executa, gabando-se entretanto de seu desinteresse (fazer
tal coisa “pelo bem da sociedade”, por exemplo. Mas o próximo louva o desinteresse porque
dele se beneficia; se raciocinasse, ele próprio, de modo desinteressado, não quereria o
desinteresse do outro...)
04. A imputação dos danos, a distribuição das responsabilidades, a acusação perpétua:
Tudo isso toma o lugar da agressividade. Considerando o benefício um direito, considerando
um direito lucrar com ações que não executa, o homem do ressentimento enche-se de censuras
quando seu anseio não se realiza; mas a não-ação é ´re-condição de seu tipo...como poderia
realizar-se? Então ele distribui culpas e responsabilidades, tem necessidade de que os outros
sejam maus para que ele próprio sinta-se “bom”. Tu és mau, portanto eu sou bom: essa é a
fórmula fundamental do escravo, a fórmula que o resume.
6. O PARALOGISMO
01. Há um paralogismo na formulação escrava. Supõe-se ao mesmo tempo que o “mau “
é uma força ativa, que não se separa daquilo que pode (isto é, que age, e por isso mesmo é
mau) e é também uma força reativa(ou deveria ser), que não age (separada, portanto, daquilo
que pode, de sua agressividade). Porque o forte poderia impedir-se de agir, o fraco poderia
agir se não o impedissem.
02. Assim, o paralogismo do ressentimento repousa na ficção de uma força separada
daquilo que pode, o que permite o triunfo das forças reativas 19. 1° desdobra-se a força (é o
momento da causalidade). Separa-se a força da manifestação da força (como o raio e o
trovão); 2º projeta-se a força assim desdobrada num substrato, um sujeito que seria livre de a
manifestar ou não (momento da substância). Faz-se da força o ato de um sujeito que poderia
do mesmo modo não agir. NIETZSCHE não cessa de denunciar no “sujeito” uma ficção
gramatical. 3º moraliza-se a força assim neutralizada (momento da determinação recíproca).
Porque se supõe que uma força poderia não manifestar a força que “possui”, supõe-se que
uma força poderia manifestar a força que “não possui”. Porque se projeta a força num sujeito,
se supõe esse sujeito culpado ou meritório, culpado se a força exerça a ação que possui,
meritório se não exerce a ação que... não possui.
19
Antes que eu me esqueça: não parece que este Deleuze, se disse antes que a reatividade é tbém uma qualidade
da força, que as coisas só funcionam com as duas forças, etc, agora está moralizando demais a força reativa? Ele
está esculachadno a pobre coitada
07. O DESENVOLVIMENTO DO RESSENTIMENTO
O SACERDOTE JUDAICO
01. NIETZSCHE distingue dois aspectos da má-consciência: um em que ela está no
“estado bruto”, pura matéria, “questão de psicologia animal”, e outro em que ela está
desenvolvida, toma forma, tal como nós a conhecemos. Essa distinção corresponde à
topologia e à tipologia. Tudo indica que vale também para o ressentimento. Num primeiro
caso, topológico, há o deslocamento das forças reativas, com a invasão da consciência pelas
marcas; num segundo momento, tipológico, a memória das marcas torna-se um caráter típico,
encarnando o espírito de vingança, e conduzindo à acusação perpétua, separando as forças de
sua ação por uma mistificação, pela projeção de uma imagem reativa20.
02. As forças não são separáveis do elemento diferencial de onde deriva sua qualidade.
Mas as forças reativas dão deste elemento uma imagem invertida. Projetando essas imagens
elas conseguem inverter as relações de forças e os valores correspondentes. A ocasião dessa
projeção dá-se ao mesmo tempo em que elas encontram o meio para se furtar à atividade.
Deixando de ser agidas, as forças reativas projetam a imagem invertida. É a essa projeção
reativa que NIETZSCHE chama ficção (‘mundo supra-sensível’ ou “Deus”).
03. A passagem de um momento a outro do ressentimento não é um simples
encadeamento mecânico. É necessária a intervenção de um genial artista do ressentimento,
capaz de aproveitar a ocasião e dirigir a projeção, a acusação, a inversão: o sacerdote. Sem ele
jamais o escravo teria podido elevar-se acima do estado bruto do ressentimento. O sacerdote é
cúmplice das forças reativas, mas não se confunde com elas; persegue outro fim que não o
delas. Sua vontade é VP, e sua VP é niilismo. O niilismo necessita das forças reativas, mas
estas necessitam do niilismo para triunfar.
04. O sacerdote, especialmente o sacerdote judeu – o tipo do sacerdote, eis o que
interessa à NIETZSCHE(para além de considerações rasteiras sobre raça, pureza da raça, etc).
O povo judeu, de onde brotou o sacerdote, é hoje o mais apto a salvar a Europa de si mesma,
ao inventar novas condições de vida.
20
Como é essa relação entre a imagem que a força “tem” – um conhecimento? – e o seu desempenho? Em
Nietzsche parece que nunca temos, enquanto consciência, um conhecimento que não PODEMOS ter, tendo em
vista nossa hierarquia de forças, etc; e inconscientemente, isto é, no nível das forças? Um conhecimento, uma
“imagem”, é sempre uma perspectiva da força, tomada de seu ponto de vista; essas perspectivas lutam entre si, e
se apresentam, como resultado, na consciência; o erro, o engano, são aí outras forças que se apresentam na
consciência, outras perspectivas, que parecem “erradas” somente do ponto de vista majoritário – não há erro em
si, ilusão em si, verdade em si; mas entre as forças, poderia haver um “engano” desse gênero, as forças perdendo
seu ponto de vista e atuando (ou, antes, deixando de atuar) por uma imagem invertida que as forças reativas lhe
emprestam??? Talvez considerando o corpo como organização complexa, em que algumas forças já não “vêem”
diretamente sua perspectiva, mas devem toma-la a partir do que outras forças apresentam, numa cadeia de visões
parciais que resultaria numa perspectiva geral...
08. MÁ-CONSCIÊNCIA E INTERIORIDADE (192)
01. Eis o objetivo do ressentimento: privar as forças ativas de suas condições materiais
de exercício; separa-las formalmente daquilo que podem. Isso se dá através de uma ficção
(projeção da imagem invertida), mas tem como resultado qualquer coisa de real. O que
acontece à força ativa quando se separa do que pode? VIRA-SE CONTRA SI MESMO.
Interiorizar-se, virar-se contra si, é este o modo pelo qual uma força ativa se torna realmente
reativa21. É aí que reside a origem da má-consciência. O ressentimento triunfa quando o forte
passa a acusar-se, a “reconhecer seus danos” contra o fraco, a virar-se para o interior. A
introjeção da força ativa é a conseqüência da projeção reativa, não seu contrário. A má-
consciência leva adiante o ressentimento.
02. A força ativa, ao virar-se contra si, PRODUZ DOR. Não mais o fruir de si, mas a
produção da dor, antes regulada pela força reativa. Resulta daí um curioso fenômeno,
insondável: uma multiplicação, uma auto-fecundação, uma hiper-produção de dor. A má-
consciência é uma CONSCIÊNCIA QUE MULTIPLICA SUA DOR PELA
INTERIORIZAÇÃO DA FORÇA: é esta a primeira definição da má-consciência.
21
ATENÇÃO – Nietzsche diz que o pensador, a crueldade do pensador, ao querer ver tudo “verdadeiramente”,
isto é, desconsiderando seu próprio proveito (por isso crueldade) é essa mesma má-consciência, essa mesma
vontade de maltratar-se – o conhecedor é um artista da má-consciência, ele transforma essa vontade de fazer-se
mal num meio de ultrapassar-se, isto é, num meio de inventar mais vida. Zaratustra diz: amo os que não se
querem preservar...
22
Os deuses gregos justificavam toda dor como uma festa... nós, hoje, olhando com os olhos da vida,
externamente a nós, portanto, entendendo a dor como ultrapassamento de si, talvez também possamos justifica-la
com alegria...
03. Mas quando não se age a dor nem se a contempla ativamente, o que se faz? Essa é a
invenção da segunda má-consciência: dar um SENTIDO INTERNO à dor [uma lembrança
qualquer, no passado, um ato, um querer], procurando assim livrar-se de uma dor presente
através da produção de outra dor (a culpa) interiorizando a dor ainda mais23. Já na ORIGEM
DA TRAGÉDIA NIETZSCHE indicava que a tragédia morre ao mesmo tempo em que o
drama se torna um conflito interno.
24
Nietzsche, Genealogia da Moral, 2ª dissertação
25
Existe a dor como introjeção da força ativa (dor reativa) e a dor como precaução, aviso (dor ativa); parece-me
que a cultura se utiliza das duas espécies de dores, e que Deleuze privilegia uma só? Pois a cultura dá uma forma
ao homem, organiza suas forças, hierarquiza as forças ativas e reativas; mas não posso dizer também que as
forças só podem ser ditas ativas ou reativas em relação, isto é, nunca a priori? Se é verdade que nossa cultura
privilegia certas forças reativas, ela por outro lado mantém o trabalho de hierarquização das forças, e se as forças
não são nunca, em si mesmas, aprioristicamente, determináveis em sua qualidade, não há em que se basear para
fazer uma crítica das forças a partir da hierarquia; a não ser que as forças sejam determináveis a priori, a partir do
“elemento diferencial de onde emanam”, seja lá o que isso quer dizer – mas não há aí um cheiro metafísico? Eu
não veria problema em nossa cultura quanto ao adestramento, isto é, à organização das forças (há, me parece,
nesse ponto e em outros de Deleuze, um certo romance “romântico” demais). Diria antes que tal organização
DEU CERTO DEMAIS, isto é, que nós demos certo demais como organização – a questão é que não sabemos
ainda utilizar esse resultado; somos já, ou podemos ser, do ponto de vista do adestramento (da hierarquia das
forças), o homem livre, o homem que pode prometer; nossa cultura é que não sabe (não quer) utilizar esse
potencial – seus valores são outros. Aí reside o problema (se é que se pode falar assim). Mas ao seria desse
conflito que surgiria a auto-finalização da justiça? Seria esperar demais, e aliás reativamente, que os juízes
saíssem todos a dizer: sim, é verdade, NÓS SOMOS INJUSTOS DO PONTO DE VISTA DAS FORÇAS
ATIVAS... esse é o jogo do escravo, que quer que coisas melhorem lá fora para depois começar a agir...
26
Crédito de quê? Seria o da responsabilidade como BEM que se pressupõe alcançado antes de se o ter adquirido
de fato - pois só o que se tem, no início do processo, é o seu equivalente, a saber, a DOR ????
12. A CULTURA ENCARADA DO PONTO DE VISTA PÓS-HISTÓRICO
01. Conclui-se que nem a má-consciência nem o ressentimento intervém no processo da
cultura e da justiça: nem a cultura nem a justiça são vingança ou reação 27, mas atividade. A
dor, o equivalente da responsabilidade, causa prazer à força ativa que comanda esse processo;
falta a maior parte das teorias explicar porque a dor causa prazer: ora, é porque as forças
ativas se dão como tarefa adestrar as forças reativas, sendo a justiça e a cultura os meios para
tanto28.
02. O ressentimento é, na verdade, o último terreno conquistado pela justiça: conseguir
ser justo até mesmo com o que se odeia é uma conclusão, não um princípio. Assim, também, o
castigo não têm como produto a culpa – pelo contrário, por muito tempo ele retardou o
aparecimento desse sentimento, ao igualar no plano dos fatos o acusado e os juízes, pois com
o castigo os juízes praticavam o mesmo ato que culpavam no réu. Opõe-se ponto por ponto o
estado da cultura em que o homem, ao preço da sua dor, se sente responsável por suas forças
reativas, e o estado da má-consciência em que o homem se sente culpado pelas suas forças
ativas.
03. A cultura é o elemento pré-histórico do homem, mas seu produto é o elemento pós-
histórico do homem. Não se deve confundir o produto da cultura com seu meio: o meio é a
responsabilidade-dívida, meio de adestramento e seleção para tornar as forças reativas agidas;
o fim é o homem autônomo, senhor de suas forças reativas [de suas forças] responsável
somente perante si mesmo [pois se tem sob domínio, independentemente do que aconteça],
nesse sentido um irresponsável [pois está livre diante de qualquer lei que não a sua]. A
responsabilidade-dívida desaparece no movimento pelo qual o homem se liberta; na cultura, o
meio desaparece no produto. A moralidade dos costumes produz o homem liberto da
moralidade dos costumes, a atividade genérica produz como objeto final um indivíduo no qual
o elemento genérico é ele mesmo suprimido.
27
Aqui se está no extremo oposto de FREUD.
28
Nietzsche comenta que o homem aristocrático sente prazer na educação, na compostura, no mandar em si
mesmo, porque identifica-se com as forças que aí comandam, não com o que em si obedece. Ver também o
aforismo 19 do Além do Bem e do Mal, sobre o querer como hierarquia de forças e a questão da identificação.
“degenerescência da cultura”. Em vez de atividade genérica, a história nos apresenta raças,
povos, igrejas, estados rebanhos, no lugar da justiça e sua auto-destruição final aparecem
sociedades que não querem perecer29, no lugar do indivíduo soberano produz-se o indivíduo
domesticado. Toda a violência da cultura é-nos apresentada como a propriedade legítima dos
povos, estados e igrejas. Obedece-se ainda, seleciona-se ainda, mas de que forma? Para fazer
do homem um animal gregário, para destruir os fortes. A seleção e a hierarquia são postos do
avesso.
29
“Só pra incomodar”: nenhuma organização quer perecer; se há uma morte afirmativa, que significa um canto à
vida, isso não quer dizer que se deve sempre querer morrer – deve-se morrer por amor à vida, como uma
suprema afirmação da vida. De qualquer forma, sempre se morre por suicídio, diz Nietzsche, a consciência é que
não sabe disso... Mesmo ao procurar se manter, algo que já não “se sustenta” vai invariavelmente escolher os
meios de sua auto-destruição... nada há de criticável, portanto, em que uma organização queira se manter: é
justamente querendo se manter e crescer que ela vai morrer, se for o caso.
15. O IDEAL ASCÉTICO E A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO
01. NIETZSCHE procede como se lhe fosse possível distinguir vários tipos de religiões,
conforme as diversas forças que podem imperar, não estando a religião essencialmente ligada
ao ressentimento. Existiriam religiões afirmativas, de sentido profundamente seletivo e
educativo. Toda seleção implica uma religião.
02. Mas com essa tipologia das forças podemos perder o essencial: a afinidade entre as
forças e sua expressão (“só os graus superiores importam”). Ora, sempre que NIETZSCHE
fala de uma religião ativa, trata-se de uma religião subjugada por forças de outra natureza
diferente da sua30, como por exemplo “religião como processo de seleção e educação nas mãos
dos filósofos”. Mas quando a religião impera por si mesma, e cabe a outras forças pedir
emprestado uma máscara para sobreviver, a religião encontra sua própria essência, e aí vê-se a
vinculação necessária entre ela e o ressentimento: ressentimento e má-consciência são os
graus superiores da religião [é a religião que interioriza o ressentimento ainda mais, etc].
03 A religião é animada por uma vontade, o ideal ascético, que faz triunfar as forças
reativas e uma forma da Vontade de Poder. A ficção de um outro-mundo no ideal ascético, a
vontade de nada, isso é ao mesmo tempo o que preside a ascensão do ressentimento e o que, a
partir do ressentimento, cresce e domina. O sentido do ideal ascético é exprimir a afinidade
das forças reativas com o niilismo, exprimir o niilismo como “motor” das forças reativas.
CAPÍTULO V
30
O problema é definir a priori uma afinidade (a priori de forças) sem, com isso, pressupor um a priori de
expressão (a priori de formas); afinal, as forças são só fortes e fracas (na vida real há apenas vontades fortes e
fracas – ABM, §21), ativas e reativas conforme uma medida sempre por fazer e que se define a cada caso, no
confronto atual das forças em relação. Pressupor que a religião, por ser SEMPRE, supostamente, animada por
uma vontade – o ideal ascético – é fazer mais ou menos o que fez FREUD com suas pulsões de vida e de morte:
haveria uma Vontade de Poder e uma Vontade niilista em eterno confronto; mas uma das grandes contribuições
de Nietzsche não foi pensar para além das oposições, inserindo essa vontade ascética numa vontade de poder e
colocando a vontade ascética como patamar de estabilização-realização da vontade de poder (o estado de direito,
por exemplo, como um estado de exceção, uma restrição parcial da VP como um meio para criação de maiores
unidades de poder)?
O SUPER-HOMEM
CONTRA A DIALÉTICA
01. O NIILISMO
01. “Nihil” significa valor da nada; não é o “não-ser”. A vida toma um valor de nada na
medida em que é negada, depreciada, e isso supõe sempre uma ficção, pela qual se opõe algo
à vida31. A idéia de um outro mundo, de valores superiores à vida, é o elemento constitutivo de
qualquer ficção. Tais valores referem sempre a uma vontade de negar – que é ainda uma
vontade, Nihil no niilismo significa a negação como qualidade da Vontade de Poder. No seu
primeiro sentido, niilismo significa, portanto, vontade de nada que se exprime em valores
superiores.
02. O niilismo possui um segundo sentido, significando reação, e não mais vontade,
quando reage-se conta os valores superiores que denigrem a vida, mantendo, entretanto, essa
vida denegrida. Há um nada de vontade, que não é sintoma de uma vontade de nada, mas, no
limite, uma negação de qualquer vontade. Esse segundo sentido deva do primeiro: se no
primeiro se negava a vida em prol de valores superiores, agora se nega também os valores
superiores, mas sem afirmar a vida; se no primeiro se opunha essência (val. Superiores) e
aparência (vida), nega-se agora a essência mas mantém-se a aparência. O segundo sentido é o
“pessimismo da fraqueza”. O primeiro sentido é o niilismo negativo; o segundo, um niilismo
reativo.
31
Ver “O Anti-cristo”, §15 – oposição do sonho e da ficção)
resultado extremo do niilismo reativo: extinguir-se passivamente de preferência a ser
conduzido do exterior, pela vontade de nada.
02. ZARATUSTRA diz que Deus morreu sufocado por sua piedade pelo homem. – O
que é piedade? É essa tolerância para com os estados da vida vizinhos do zero. Aquele que
tem necessidade dessa vida reativa é que será piedoso. A piedade, no simbolismo de
NIETZSCHE, designa sempre esse complexo da vontade de nada e das forças reativas, “a
piedade constitui a prática do niilismo... a piedade convence do nada”.
03. O homem condena Deus à morte, porque não suporta já sua piedade. O homem
reativo põe-se no lugar de Deus, volta o ressentimento, a má-consciência, contra Deus, e diz-
se ateísta: é o ateísmo do ressentimento. O homem reage contra a piedade de Deus, contra os
valores superiores e contra a vida, até que não exista mais nada, não tendo nem sequer, diante
desse nada,a a vontade de desaparecer. O último dos homens é o descendente do assassino de
Deus. Nenhum pastor e um só rebanho...
04. De Deus ao último dos homens, quantas transformações do niilismo; durante muito
tempo a vida reativa esforçou-se por segregar seus próprios valores, o homem reativo toma o
lugar de Deus: adaptação, evolução, progresso, felicidade para todos, o bem da comunidade, o
homem-Deus, o homem-moral, o homem-verídico, o homem-social, são estes os valores
novos propostos no lugar dos valores superiores. Em toda essa mudança, entretanto, é sempre
a vida reativa, a perspectiva niilista que preside esta história. Por isso NIETZSCHE diz que o
niilismo não é um acontecimento na história, mas o motor da história do homem como história
universal.
32
Vontade de Poder, III, 87
tem em si, que lhes fornecem uma essência determinada com o esplêndido presente da
exterioridade.
02. A dialética não aflora sequer à interpretação, confunde-a com o desenvolvimento do
sintoma; ali onde ela vê oposições, há apenas sintomas. Considerando os sintomas
abstratamente, fazendo do movimento aparente (tese > antítese > síntese) a lei genética das
coisas (e assim não vendo que a diferença é o único princípio de gênese, que produz ela
própria a oposição como simples aparência), retendo do princípio apenas uma imagem
invertida, toda dialética se move no elemento da ficção. Para NIETZSCHE 1) a dialética
desconhece o sentido porque ignora a natureza das forças que se apropriam concretamente dos
fenômenos; 2) desconhece a essência, porque ignora o elemento real de onde derivam as
forças; 3) desconhece a mudança, porque se contenta em operar permutações abstratas entre
termos abstratos.
03. Todas essas insuficiência possuem uma mesma origem: a ignorância da questão
“quem?”. O homem que se reconcilia com Deus em HEGEL, o homem que toma o lugar de
Deus em FEUERBACH, - quem são esse homem e esse Deus? Seguem sendo, antes como
depois da “síntese”, o homem escravo, o Deus supremo; apenas “invertem” posições; há aí
apenas uma mudança abstrata, uma aparência de mudança.
04. A oposição apenas é o elemento genético das forças do ponto de vista das forças
reativas; elas é que projetam uma ficção (Deus) como oposição ao mundo, como gênese das
forças. A dialética é a ideologia natural do ressentimento, o pensamento na perspectiva do
niilismo.
6. NIETZSCHE E A DIALÉTICA
01. Os temas hegelianos estão presentes em NIETZSCHE como o inimigo que ele
combate. Ele não cessa de denunciar o caráter teológico da filosofia alemã, a impotência
dessa filosofia para sair da perspectiva niilista, a incapacidade dessa filosofia para alcançar
outra coisa que não o eu, o homem ou os fantasmas do humano, o caráter mistificador das
ditas transformações dialéticas. STIRNER não é diferente: se revelou a verdade da dialética,
não escapou a essa verdade; foi incapaz de por a questão “quem” noutra perspectiva que não a
do humano.
02. A tarefa positiva de NIETZSCHE é dupla: o super-homem e a transvaloração. Não a
questão “quem é o homem?”, mas “quem é que supera o homem?”. O super-homem não tem
nada em comum com o ser genérico dos dialéticos, a espécie ou o “eu”, não é uma oferta
maior: difere em natureza do homem. O super-homem define-se por uma nova maneira de
sentir (outro sujeito que não o homem), uma nova maneira de pensar (outros predicados que
não o divino), outra maneira de avaliar (mudança no elemento do qual deriva o valor dos
valores).
03. Do ponto de vista desta tarefa positiva todas as intenções críticas de NIETZSCHE
encontram a sua unidade; numa mesma polêmica ele engloba o cristianismo, o humanismo, o
egoísmo, o socialismo, o niilismo, as teorias da história e da cultura, a dialética. Tudo isso
forma a teoria do homem superior, objeto da crítica de N..
7. TEORIA DO HOMEM-SUPERIOR
01. A teoria do homem superior, o essencial de Z., está no livro IV desse texto. O
homem superior tem sua ambivalência constituída pelo ser reativo do homem e pela atividade
genérica do homem. O homem superior é a imagem pela qual o homem reativo se apresenta
como “superior”; ao mesmo tempo, é a imagem na qual aparece o produto da cultura.
02. Os dois reis são os guardas da atividade genérica, o homem das sanguessugas é o
produto dessa atividade como ciência, o último para é o produto dessa atividade como
religião, o mendigo voluntário quer saber qual o produto adequado dessa atividade (e o
descobre na ruminação), a sombra é esta própria atividade enquanto perde seu objetivo e
procura seu princípio.
03. Todos esses personagens representam simultaneamente as forças reativas e seu
triunfo, a atividade genérica e seu produto. Por isso Z. os trata de duas maneiras: ora como
inimigo infame, ora como hóspede, quase companheiro de empresa.
33
Algo como “SIM” em alemão; ver Zaratustra, livro IV.
niilismo, é a forma acabada de niilismo? Uma primeira razão para isso é que, mudando o
elemento dos valores, destrói-se todos os valores que dependem do velho elemento; a
transvaloração é um niilismo acabado porque dá à crítica uma forma acabada, “totalizante”.
04. Os valores que dependem desse velho elemento ao todos os valores conhecidos até o
momento da transvaloração. Porquê? Porque a Vontade de Poder aparece no homem e dá-se a
conhecer como vontade de nada. A vontade de nada não é apenas uma qualidade da VP, mas a
RATIO COGNOSCENDI34 da VP em geral. “Pensamos” a VP sob uma forma distinta daquela
pela qual a conhecemos35. Longínqua sobrevivência de KANT e SCHOPENHAUER: o que
nós conhecemos da VP e dor e suplício, mas a VP é ainda a alegria desconhecida, sendo que
essa face desconhecida, essa outra qualidade da VP é a afirmação. E a afirmação não é apenas
uma outra qualidade da VP, é a RATIO ESSENDI36 da VP em geral. Da afirmação derivam os
valores novos, pois trata-se de criar o próprio conhecimento, afirmação de todas as negações
conhecidas. Assim, o niilismo não se completa sem se transmutar na afirmação.
05. O último dos homens, o do niilismo passivo, é um resultado das forças reativas, não
da Vontade de Nada; é fruto da separação destes últimos. Mas a VN prossegue o seu trabalho,
para além do homem reativo, criando o “homem que quer perecer”. Este homem da destruição
ativa é cantado por NIETZSCHE quer ser superado, ir para além do homem, já a caminho do
super-homem. “Amo aquele que vive para conhecer e que quer conhecer, para que um dia o
super-homem exista. Do mesmo modo, quer seu próprio declínio”37. Isso quer dizer: amo
aquele que se serve do niilismo como da ratio cognoscendi da VP, mas que encontra na VP
uma ratio essendi na qual o niilismo é vencido.
06. A destruição ativa significa o momento de transvaloração na vontade de nada. A
destruição torna-se ativa, na medida em que o negativo (a vontade de nada, separada das
forças reativas) é transvalorado, convertido em poder afirmativo [de destruição] É este o
ponto “decisivo” da filosofia dionisíaca: o ponto em que a negação exprime uma afirmação da
vida. Esse ponto, a meia-noite, é a conversão da ratio cognoscendi na ratio essendi da VP.
Passando pelo último dos homem, mas indo além, o niilismo encontra sua realização: o
homem que quer perecer.
38
“Conheço a alegria do destruir num grau conforme a minha força de destruição”, diz Nietzsche – EH, IV, 2.
39
Ver EH, III, “Além do Bem e do Mal”, e Zaratustra, 8, e IV, 2, 4
40
Não seria “maneira de ser ativa de um poder de NEGAR?” O resumo segue o original.
06. NIETZSCHE se opõe a toda forma de pensamento que se mova no elemento do
negativo. A um tal pensamento negativo são necessárias duas negações para fazer uma
(aparência) de afirmação; a atividade é aí apenas uma reação. Z. opõe-lhe a afirmação pura,
para a qual é necessária e suficiente a afirmação para fazer duas negações, que são as
maneiras de ser da afirmação como tal. Á famosa positividade do negativo, NIETZSCHE
opõe sua negatividade do positivo.
41
VP, IV, 8
42
“Afirmar não é o real, mas a avaliação”; mais adiante ele dirá que afirmar é o ser como diferença (isto é, não o
real, mas a diferença, o retorno da diferença; posso dizer então que diferença e avaliação (isto é, ilusão), estão
próximas, participam do mesmo jogo – isto é, o SER verdadeiro é a criação...
43
Espinosa e sua “causa sui”?
44
Uma tentativa – leiga, é claro - de desenlear essa parte, um tanto complicada, e a seguinte, seria fazer notar que
o ser “em si” é a diferença pura; o devir é apenas uma expressão do ser, uma forma de apreensão dessa diferença,
uma conseqüência necessária de sua constituição como diferença; diríamos: o ser (ou um lado do ser) da
diferença é o devir; a VP “cria” a diferença, afirmando-se a si mesma; assim, é próprio da diferença reproduzir-
se, como afirmação e devir, e vice-versa; o ser ou a essência da afirmação é, portanto, ao mesmo tempo a
diferença, o devir e a afirmação de ambos (o que podemos condensar na idéia do eterno retorno). Enfim, acho.
afirmada, eleva-se a diferença à sua mais alta potencia, e diz-se do devir o ser, do múltiplo o
uno, do acaso a necessidade. Assim, é próprio da afirmação o retornar [isto é, o ser do devir, o
uno do múltiplo, a necessidade do acaso], o que é o mesmo que dizer que é próprio da
diferença reproduzir-se; tudo isso é o eterno retorno. São dois, portanto, os poderes de
afirmar> o devir e o ser são uma mesma afirmação, duplicada no segundo caso (Ariadne); mas
a afirmação primeira (Dionísio) é o eterno retorno. É A VP COMO ELEMENTO
DIFERENCIAL QUE PRODUZ E DESENVOLVE A DIFERENÇA NA AFIRMAÇÃO.
CONCLUSÃO (289)
01. A filosofia moderna apresenta amalgamas que testemunham sua vitalidade, mas
comportam também perigos para o espírito. Um pouco de ontologia e antropologia, ateísmo e
teologia, espiritualismo cristão, dialética hegeliana, fenomenologia (escolástica moderna),
fulgurações nietzschianas – estranhas combinações. Mistura que celebra a ultrapassagem da
metafísica e mesmo a morte da filosofia. Tentamos, neste livro, romper alianças perigosas.
Imaginamos NIETZSCHE retirando as fichas de um jogo que não é o seu.