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Ford Madox Ford - O Bom Soldado
Ford Madox Ford - O Bom Soldado
O BOM SOLDADO
Uma História de Paixão
Tradução
Duda Machado
O BOM S OLDADO 3
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777
1ª Edição - 1997
ISBN 85-7326-078-5
CDD - 820
Reconhecimento e engano,
por Frank Kermode ................................ 9
Dedicatória ................................................ 23
Primeira Parte
Capítulo I .................................................. 35
Capítulo II ................................................. 51
Capítulo III ................................................ 66
Capítulo IV ................................................ 89
Capítulo V ................................................. 111
Capítulo VI ................................................ 146
Segunda Parte
Capítulo I .................................................. 163
Capítulo II ................................................. 197
Terceira Parte
Capítulo I .................................................. 207
Capítulo II ................................................. 238
Capítulo III ................................................ 256
O BOM S OLDADO 5
Capítulo IV ................................................ 283
Capítulo V ................................................. 304
Quarta Parte
Capítulo I .................................................. 335
Capítulo II ................................................. 355
Capítulo III ................................................ 388
Capítulo IV ................................................ 406
Capítulo V ................................................. 414
Capítulo VI ................................................ 431
O BOM S OLDADO 7
8 FORD MADOX FORD
RECONHECIMENTO E ENGANO1
Frank Kermode
O BOM S OLDADO 9
sui uma peculiaridade marcante. Sem ir mais longe
podemos dizer, acho, que a frase de abertura do li-
vro é enganosa. Você se pergunta por que. Ah você
diz, talvez, não nos estejam falando diretamente
sobre a história porque é mais importante saber que
tipo de sujeito é este; um pouco confuso, obviamen-
te. Ali está ele, no centro de uma teia de adultérios
e mortes, falando sobre ouvir uma história. E como
a Personagem é uma coisa importante, você pode
dizer que este livro está anunciando obliquamente
que vai ser sobre este personagem evidentemente
estranho. No entanto, nessa altura acho que seria
mais prudente se você fizesse uma afirmativa mais
modesta de que a frase de abertura é uma indica-
ção de que essa narrativa não terá a mesma preten-
são à autoridade como as de Trollope2, ou a mes-
ma constância de referência a tipos, quer narrati-
vos quer éticos, como as de Fielding3. Aquele que
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meço, talvez não o sejam. Examine a segunda fra-
se, como um exemplo do que Henry James achava
que o novo romance deveria ter, ou seja “uma re-
lação desconcertante entre o tema e sua emergên-
cia”, e também como um exemplo do que o pró-
prio Ford chamava o processo de incluir na aber-
tura “a nota que sugere todo o livro”. O verbo co-
nhecer4 em diferentes formas aparece nesta segun-
da frase, três vezes na terceira, duas na quarta. Na
segunda ele é intensificado — “de uma maneira ex-
tremamente íntima” — mas essa qualificação é logo
retirada: “ou melhor, com um tipo de relacionamen-
to...”. Esta retirada é intensificada pelo símile da
luva, que manifesta intimidade e calor mas trai a si
mesmo como o índice de um relacionamento trivial
dependente de um uso peculiar da palavra “boa”.
Que esta seja a primeira de uma série de murmúrios
textuais sobre “conhecer”, nos conduz a um terre-
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manicure”. Aqui está Dowell, numa piada complica-
da (consciente ou não?) sobre os únicos tipos de
exercício que ele fez. Quando ele diz isso, mais adian-
te no primeiro capítulo, está aparentemente falando
das conversas de Florence com um amigo culto, e
não sobre seus casos amorosos. Mas seu não-conheci-
mento de Florence (que sempre fecha o seu quarto,
embora seja capaz de um comportamento extrema-
mente faceiro nos banhos) é um complemento do
conhecimento que ela tem de Jimmie e Edward. A
ignorância dele em relação ao conhecimento dela
torna o texto uma espécie de relato de eunuco sobre
a paixão, necessariamente incorreto, parcial, fanta-
siado. Ele conhece (sabe) algo, naturalmente; assim
o romance poderia se chamar O que Dowell sabia6.
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tristeza, pode ser usado para sugerir a situação de
uma nação, a condição de uma cultura que em to-
dos os sentidos não conhece. E mais adiante o tex-
to nos permitirá, se quisermos, vê-lo como uma fi-
guração da tragédia mundial de 1914, assim como
“a morte de um rato de câncer é todo o saque de
Roma pelos Godos”. Mas naturalmente quando
Dowel reivindica que seu tema é “a derrocada de
um povo” e desenvolve isso de uma maneira retó-
rica muito apaixonada, entra uma nova voz à qual
podemos não desejar dar inequivocamente crédito
mais do que às outras.
Na quinta frase descobrimos, não só mais evi-
dência da peculiar falta de qualificações em Dowel
que favorece o engano, mas o primeiro uso de uma
outra palavra difícil e enganosa, coração. São os
corações que Dowell acha difícil conhecer. No se-
gundo e no terceiro parágrafo descobrimos que sua
esposa “sofre do coração”. Esta condição impõe
certas restrições a eles — “necessariamente... neces-
sariamente... acabamos...” e mais adiante esta con-
dição é chamada de “aprisionamento”. Na frase
final deste parágrafo o leitor é convidado a tirar uma
O BOM S OLDADO 17
pobre era ele. Sim naturalmente eles estão doentes,
e suas doenças são especificadas mais adiante; e
morrem por causa de suas condições cardíacas, co-
mo a meditação sussurrada do quarto parágrafo nos
faz saber. A palavra caso é um outra miscelânea de
murmúrios, assim como tranqüilo (a), relacionada
não só com “bem” mas com os segredos de um caso
de adultério mantido durante muitos anos entre as
formalidades insignificantes de um spa.
Muito mais poderia ser dito, e dito de manei-
ra diferente, mas espero que você concorde que esse
texto explora características da narrativa que as
pessoas se inclinaram, e ainda se inclinam, a expul-
sar de suas mentes por causa de sua longa — mas
não necessariamente perpétua — cumplicidade com
o que afinal de contas é uma noção um tanto espe-
cial de que os textos narrativos estabelecem peremp-
toriamente um padrão único de veracidade, que os
desvios que retificam esse contrato são óbvios e po-
dem ser facilmente identificados. Termos como pon-
to de vista e seu parente, e, bem mais velho, ironia,
podem parecer úteis aqui. Mas este livro mostra
como são inadequados. Os autores podem ser des-
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O BOM SOLDADO
Uma História de Paixão
“Beati Immaculati”
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22 FORD MADOX FORD
DEDICATÓRIA
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um estranho acaso, O bom soldado é quase o úni-
co entre meus livros que não é dedicado a alguém:
o destino deve ter escolhido que esperasse os dez
anos que esperou, para esta dedicatória.
O que sou agora devo-o a você; o que era quan-
do escrevi O bom soldado eu o devi à concatenação
de circunstâncias de uma vida instável e sem obje-
tivo. Até que me sentasse para escrever este livro
— a 17 de dezembro de 1913 — jamais havia ten-
tado me estender2, para usar uma expressão do trei-
namento de cavalos de corrida. Em parte, porque
sempre entretive fixamente a idéia de que — seja lá
qual fosse o caso dos outros escritores — eu, pelo
menos, não seria capaz de escrever um romance com
o qual pudesse me firmar antes de chegar aos qua-
renta anos de idade; em parte, porque decididamente
não queria competir com outros escritores cuja ve-
leidade ou cuja necessidade de reconhecimento, ou
daquilo que o reconhecimento traz, eram maiores
do que a minha. Nunca havia tentado realmente
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o resto dos Jeunes turbulentos e revoltosos desta
jovem década. Assim via a mim mesmo como a En-
guia que, ao alcançar o alto mar, dá nascimento à
suas crias e morre — ou, como o Grande Mergu-
lhão, achava que, ao receber minha parte, tinha
posto o meu ovo e poderia muito bem morrer. Desse
modo fiz uma despedida formal da literatura nas
colunas de uma revista chamada Thrush — que por
sua vez, pobre mergulhão que ela era, morreu des-
se esforço. Então preparei-me para ficar à parte em
favor de nossos bons amigos — seus e meus — Ezra,
Eliot, Wyndham Lewis, H. D., e o resto dos jovens
escritores barulhentos que estavam batendo à porta.
Mas um clamor maior assaltou Londres e o
mundo que até então pareciam estar aos pés orgu-
lhosos desses conquistadores; Cubismo, Vorticismo,
Imagismo e o resto nunca tiveram uma oportuni-
dade decente entre as vozes do canhão, e assim eu
saí de novo de meu buraco e ao lado de suas obras
fortes, delicadas e belas, tomei coragem para mos-
trar minhas próprias obras.
O bom soldado, no entanto, permanece o meu
grande ovo de mergulhão, na medida em que per-
coeur, não foi, ao que parece, publicada até hoje. (N. do T.)
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uma década inteira. Isto se deve ao fato de que a
história é verdadeira e de que eu a ouvi do próprio
Edward Ashburnham, mas não pude escrevê-la até
que todos os outros tivessem morrido. Por isso a
carreguei comigo durante todos esses anos, pensan-
do nela de vez em quando.
Nessa época eu tinha uma ambição: fazer pelo
romance inglês o que, em Fort comme la mort, Mau-
passant fizera pelo francês. Um dia tive minha re-
compensa, pois estando na companhia de um jovem
admirador fervoroso, este exclamou: “Por Júpiter,
O bom soldado é o melhor romance da língua in-
glesa!”, ao que meu amigo John Rodker, que sem-
pre teve uma admiração adequadamente equilibra-
da por meu trabalho, observou com sua pronúncia
clara e arrastada: “Ah, sim. É, mas você se esque-
ceu de uma palavra. É o melhor romance francês
da língua inglesa!”.
Com esse tributo a meus mestres e superiores
da França, eu entregarei o livro ao leitor. Mas gos-
taria de dizer ainda uma palavra sobre o título. Dei
a este livro o título original de A história mais tris-
te, mas como não foi publicado até que os dias mais
O BOM S OLDADO 29
mamente abatido. Eu disse: “Puxa, homem, o que
é que você tem?”. Ele respondeu: “Bem, anteontem
eu fiquei noivo e hoje fiquei lendo O bom soldado”.
Em outra ocasião, eu estava de novo numa
revista de tropas, para ser examinado durante as
manobras, no Guard’s Square em Chelsea. E, como
estivesse petrificado pelo nervosismo, já que tinha
de fazê-lo diante de uma meia dúzia de cavalhei-
ros mais velhos com braçadeiras vermelhas, perfi-
lei meus homens da maneira mais desesperadora-
mente arrumada que é possível fazer com os sol-
dados rasos da Guarda Coldstream de Sua Majes-
tade. Enquanto eu ficava rigidamente perfilado, um
dos mais velhos com a braçadeira vermelha ficou
bem atrás de mim e disse claramente ao meu ouvi-
do: “Você disse O bom soldado?”. Assim, sem dú-
vida, o senhor Lane estava vingado. De qualquer
maneira eu aprendera que a ironia pode ser uma
faca de dois gumes.
Você, minha querida Stella, já me ouviu con-
tar essas histórias muitas vezes. Mas os mares ago-
ra nos separam e eu as mando nessa carta que você
lerá antes de me ver, na esperança de que elas pos-
Seu
F. M. F.
Nova York, 9 de janeiro de 1927
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32 FORD MADOX FORD
PRIMEIRA PARTE
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34 FORD MADOX FORD
I.
O BOM S OLDADO 35
do na Inglaterra, e, com certeza, nunca sondara as
profundidades de um coração inglês. Eu só conhe-
cia as superfícies.
Não quero dizer que não estivéssemos fami-
liarizados com muitos ingleses. Vivendo, como vi-
víamos necessariamente, na Europa, e sendo, como
éramos necessariamente, americanos ociosos, o que
equivale a dizer que éramos não-americanos, aca-
bamos desfrutando bastante da companhia dos me-
lhores ingleses. Paris, entenda, era nosso lar. Em
algum lugar entre Nice e Bordighera2 havia regular-
mente acomodações de inverno para nós, e Nauheim
sempre nos recebeu de julho até setembro. Você
pode inferir dessa afirmação que um de nós, como
se diz, “tinha alguma coisa no coração”, e, da afir-
mação de que minha mulher está morta, de que ela
era a paciente.
O capitão Ashburnham também tinha alguma
coisa no coração. Mas, enquanto apenas mais ou
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meia-idade, já que todos nós tínhamos temperamen-
tos bastante tranqüilos, os Ashburnham pertencen-
do de maneira mais particular ao que na Inglaterra
é hábito chamar de “gente de bem”.
Eles descendiam, vale a pena dizê-lo, dos Ash-
burnham que acompanharam Carlos I ao cadafalso,
e, como se deve esperar desta classe de ingleses, você
jamais iria saber disso. A senhora Ashburnham era
uma Powys; Florence era uma Hurlbird de Stamford,
Connecticut, onde, como você sabe, eles são ainda
mais antiquados do que os moradores de Cranford3,
na Inglaterra. Eu mesmo sou um Dowell de Fila-
délfia, Pensilvânia, onde, isto é uma verdade histó-
rica, há mais famílias inglesas antigas do que se pode
encontrar em seis condados ingleses reunidos. Eu
trago comigo, de fato — como se fosse a única coi-
sa que invisivelmente me sustentasse em qualquer
lugar no globo — os títulos de propriedade de mi-
nha fazenda, que já compreendeu vários quarteirões
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Alguém disse que a morte de um rato com cân-
cer é como todo o saque de Roma pelos godos, e
eu juro a você que o desmantelamento de nossa
coterie quadrangular foi um desses acontecimentos
inimagináveis. Supondo que você viesse sentar-se
conosco num das mesinhas do clube, digamos, em
Homburg7, para tomar o chá da tarde e assistir ao
jogo de golfe, você diria que, do jeito como é a vida,
nós éramos uma castelo extraordinariamente segu-
ro. Éramos, se você quiser, um desses grandes na-
vios de velas brancas sobre um mar azul, uma des-
sas coisas que parecem as mais orgulhosas e segu-
ras entre todas as coisas belas e seguras que Deus
permitiu que a mente do homem concebesse. Onde
se poderia encontrar melhor refúgio? Onde?
Permanência? Estabilidade? Nem posso acre-
ditar que tudo acabou. Não posso acreditar que esta
vida comprida, tranqüila, que dava passos de mi-
nueto, tenha desaparecido em quatro dias arrasa-
dores ao fim de nove anos e seis semanas. Sim, eu
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que não existe algum nirvana impregnado pela vi-
bração desmaiada de instrumentos que caíram na
poeira do dissabor mas que ainda tenham almas
frágeis, trêmulas e duradouras?
Não, por Deus, é falso! Não dançávamos um
minueto; era uma prisão — uma prisão cheia de gri-
tos histéricos, tão abafados que não podiam ven-
cer o som das rodas de nossa carruagem, quando
percorríamos as avenidas sombreadas da floresta
Taunus.
E no entanto juro pelo nome sagrado de meu
criador que era verdade. Era o sol verdadeiro; a mú-
sica verdadeira; o esguicho verdadeiro das fontes
pela boca dos delfins de pedra. Pois, se para mim
nós éramos quatro pessoas com os mesmos gostos,
com os mesmos desejos, agindo — ou não agindo
— sentando-se aqui e ali unanimemente, isto não é
a verdade? Se durante nove anos eu possuí uma bela
maçã que apodreceu no miolo e só descobri sua
podridão depois de nove anos e seis meses menos
quatro dias, não é verdade que posso dizer que du-
rante nove anos eu possuí uma bela maçã? Então
pode ter sido assim com Edward Ashburnham, com
O BOM S OLDADO 43
andar de baixo, conversando com um ou outro bom
camarada ou em alguma sala de espera ou na sala
para fumantes ou tirando minhas últimas bafora-
das do charuto antes de ir para a cama. Entenda,
eu não culpo Florence. Mas como ela podia fazer o
que fazia? Como ela conseguia? Fazer de maneira
tão integral. Céus! Não parecia haver tempo para
isso. Devia ser quando eu tomava meus banhos,
fazia minha ginástica sueca, estava na manicure.
Levando a vida que eu levava, de ama-seca dedicada,
esforçada, eu tinha de fazer algo para me manter
em forma. Devia ser nessas horas! Mesmo assim não
haveria tempo suficiente para ter as conversas tre-
mendamente longas, cheias de sabedoria mundana,
que Leonora me relatou depois de suas mortes. E
dá para imaginar que durante nossos passeios pres-
critos em Nauheim e pela vizinhança ela tenha en-
contrado tempo para prosseguir nas negociações
protáticas que conduzia junto a Edward Ashburn-
ham e sua esposa? E não é incrível que durante todo
esse tempo Edward e Leonora nunca tenham dito
uma só palavra um ao outro em particular? O que
se pode pensar da humanidade?
O BOM S OLDADO 45
verdade batendo todos eles juntos —, eu dizia a mim
mesma: ‘Agora eu consegui e finalmente estou me
divertindo pelo menos uma vez na minha vida —
pelo menos uma vez em minha vida!’. Foi na escu-
ridão, dentro de uma carruagem, voltando de um
baile durante a temporada de caça. Tínhamos de
viajar onze milhas! E então, de repente, a amargu-
ra da pobreza infinita, do fingimento infinito —
aquilo caiu sobre mim como uma maldição, estra-
gou tudo. Sim, eu tinha de entender que fora estra-
gada até para o tempo feliz, quando ele chegou. E
rebentei no choro e chorei e chorei durante as onze
milhas. Imagine só: eu chorando! E me imagine tam-
bém fazendo de idiota um pobre camarada queri-
do daquela maneira! Não era um procedimento cor-
reto, será que era?”.
Não sei; não sei; esse último comentário dela
era o comentário de uma prostituta, ou é isso que
toda mulher decente, de boa família ou não, pensa
no fundo de seu coração? Ou pensa nisso o tempo
todo? Quem sabe?
Sim, se não se sabe isso até agora, a esta altu-
ra de civilização a que chegamos, depois de toda a
O BOM S OLDADO 47
era esse o sentido. Acho que suas palavras foram:
‘Cabe a ela aceitá-lo ou não...’”.
Não quero que você pense que eu estou des-
crevendo Teddy Ashburnham como um bruto. Não
acredito que ele fosse. Só Deus sabe, talvez todos
os homens sejam assim. Pois, como eu disse, o que
é que sei até mesmo da sala para fumantes? Os sujei-
tos vêm e vão, contando as histórias mais extraordi-
nariamente grosseiras — tão grosseiras que chegam
de fato a afligir. E entretanto ficam ofendidos se você
sugerir que eles não são o tipo de pessoa com quem
você não poderia deixar sua esposa a sós. E é bem
provável que ficassem corretamente ofendidos — se
é que você pode confiar em alguém a sós com ou-
tro. Mas esse tipo de sujeito obviamente tem mais
prazer em ouvir ou em contar histórias grosseiras
— mais prazer do que em qualquer outra coisa no
mundo. Eles caçam languidamente, se vestem lan-
guidamente, jantam languidamente, trabalham sem
entusiasmo e acham que é um tédio manter três mi-
nutos de conversa sobre seja lá o que for e, no en-
tanto, quando esse outro tipo de conversa começa,
eles riem, acordam e se agitam em suas cadeiras.
O BOM S OLDADO 49
fesso solenemente que não só jamais esbocei qual-
quer impropriedade em minha conversa durante
toda minha vida; e mais do que isto, comprovo-o
pela decência de meus pensamentos e pela absolu-
ta castidade de minha vida. Então, como foi que
tudo aconteceu? Será que tudo é uma loucura, uma
piada? Eu não passo de um eunuco ou o homem
correto — o homem com direito à existência — é
um garanhão furioso sempre atrás da mulher do
próximo?
Não sei. E não há nada para nos guiar. E se
tudo é tão nebuloso em relação a um assunto tão
elementar como a moralidade do sexo, o que é que
pode nos guiar diante da moralidade mais sutil de
todos os outros contatos pessoais, associações e ati-
vidades? Ou será que só agimos levados pelo im-
pulso? Tudo é uma escuridão.
O BOM S OLDADO 51
onde até as histórias mais tristes são alegres. Pense
só na história lamentável de Peire Vidal. Há dois anos
atrás Florence e eu viajamos de automóvel de Biarritz
para Las Tours, que fica nas Montanhas Negras. No
meio de um vale tortuoso se ergue um pináculo imen-
so e sobre o pináculo ficam quatro castelos — Las
Tours, as Torres. E o imenso mistral soprava naquele
vale que era o caminho da França até a Provença, de
tal modo que as folhas cinza-prateadas das oliveiras
pareciam cabelos voando ao vento, e as moitas de ale-
crim trepavam nas rochas de ferro para que não pu-
dessem ser arrancadas pelas raízes.
Naturalmente, fora a pobre Florence quem qui-
sera ir até Las Tours. Você tem que imaginar que,
embora a maior parte de sua personalidade brilhante
se originasse de Stamford, Connecticut, ela ainda
era uma aluna formada em Vassar9. Jamais pude
entender como pôde fazê-lo — ela, aquela pessoa
tão esquisita e tagarela. Com um olhar distante em
seus olhos — que não era, no entanto, nada românti-
(N. do T.)
O BOM S OLDADO 53
uma agulha e tão alta como o Flatiron13, entre a
Quinta avenida e a Broadway. Beaucaire com os
muros cinzentos no alto do pináculo em volta de
um acre e meio de iridáceas, debaixo dos altos pi-
nheiros. Que coisa bonita que é um pinheiro!...
Não, nunca mais voltamos a lugar algum. Nem
para Heildelberg, nem para Hamelin, nem para Ve-
rona, nem para Mont Majour — nem mesmo para a
própria Carcassonne. Falávamos disso, naturalmen-
te, mas acho que Florence extraía tudo que queria de
uma única visita ao lugar. Ela tinha um olhar arguto.
Infelizmente eu não sou assim, de modo que
o mundo está cheio de lugares aos quais desejo re-
tornar — cidades com um sol branco ofuscante; pi-
nheiros contra o azul do céu; cantos de frontões es-
culpidos e pintados com veados e flores escarlates
e cornijas com galos incrustrados com o pequeno
santo no alto; e palácios cinzentos e rosas, cidades
muradas a uma milha ou quase do mar, no Medi-
terrâneo, entre Leghorn e Nápoles. Não vimos ne-
O BOM S OLDADO 55
altos, de folhas delgadas — a primeira pergunta que
elas me fizeram não foi a respeito de como eu vivia,
mas sobre o que eu fazia. E eu não fazia nada. Supo-
nho que se tenha de fazer alguma coisa, mas eu não
via necessidade disso. Por que é que alguém faz coi-
sas? Eu simplesmente ficava perambulando por aí
e desejava Florence. Primeiro fui perambulando até
Florence num chá Browning14, ou algo semelhante
na rua Catorze, quando ainda era residencial. Não
sei porque eu fora até Nova York; não sei porque
fora até aquele chá Browning, não sei porque Flo-
rence deveria ir até aquele tipo de torneio de reci-
tação. Não era mesmo o tipo de lugar no qual você
podia esperar encontrar-se com alguém que se for-
mara em Vassar. Acho que Florence queria elevar
a cultura da multidão de Stuyvesant15 e fazia aqui-
lo como se fosse uma caridade. Caridade intelectual,
era isso. Ela sempre quis deixar o mundo um pou-
O BOM S OLDADO 57
de amor, pobreza, crime, religião e todo o resto.
Sim, o primeiro médico que consultamos quando
ela teve de ser retirada do navio, no Havre, asse-
gurou-me que isso tinha de ser feito. Bom Deus,
esses caras são todos idiotas monstruosos, ou há
uma franco-maçonaria entre todos eles de um can-
to a outro da terra?... É isto que me faz pensar na-
quele sujeito, Peire Vidal.
Mas, naturalmente, essa história é cultura, e
eu tinha que estimulá-la para a cultura, e ao mes-
mo tempo é tão engraçada mas ela não achou gra-
ça, é tão cheia de amor mas ela não podia pensar
no amor. Você conhece a história? Las Tours dos
Quatro Castelos tinha como castelã Blanche de tal,
que era chamada como expressão laudatória de La
Louve — A Loba. E Peire Vidal, o Trovador, fazia
sua corte a La Louve. E ela não queria ter nada com
ele. Assim, para homenageá-la — as coisas que as
pessoas fazem por amor! —, ele se vestiu com pe-
les de lobo e foi para as Montanhas Negras. E os
pastores do Monte Negro e seus cães tomaram-no
por um lobo e ele foi despedaçado e espancado com
os cajados. Depois levaram-no até Las Tours e La
O BOM S OLDADO 59
recida com o que a de Florence se tornaria depois.
Ele não residia em Stamford; seu lar era em Water-
bury17 de onde vêm os relógios. Ele tinha uma fá-
brica por lá que, de acordo com o nosso estranho
estilo americano, mudava de função quase de ano
em ano. Durante uns nove meses mais ou menos
fabricava botões de osso. Depois subitamente passa-
va a produzir botões de metal para os uniformes dos
cocheiros. Depois chegava a vez de fazer tampas
com relevo de lata para caixas de doces. O fato é
que o velho cavalheiro, coitado, com seu coração
fraco e oscilante, não queria mais fabricar fosse lá
o que fosse. Queria aposentar-se. E aposentou-se ao
completar setenta anos. Mas estava tão aborrecido
por causa dos moleques que o seguiam pela cidade
apontando para ele e gritando: “Lá vai o homem
mais preguiçoso de Waterbury!”, que resolveu dar
uma volta ao mundo. Florence e um jovem chamado
Jimmy foram com ele. Parece, pelo que Florence me
contou, que a tarefa de Jimmy junto ao senhor Hurl-
O BOM S OLDADO 61
sempre guardava em sua cabine. Acho que metade
da carga era de frutas.
Pois, para cada pessoa a bordo nos vários na-
vios que usaram — para cada pessoa a quem co-
nhecia apenas por cumprimentos — ele dava uma
laranja toda manhã. E elas duraram durante toda
a volta por este nosso poderoso mundo. Até mes-
mo quando chegaram ao Cabo Norte, ele, esse ve-
lho magrela coitado, viu no horizonte um farol.
“Veja só”, ele disse a si mesmo, “essas pessoas de-
vem ser muito solitárias. Vamos dar algumas laran-
jas para eles”. Então o colocaram num bote carre-
gado com as frutas e o levaram até o farol no hori-
zonte. As cadeiras de dobrar ele emprestava para a
primeira dama a bordo que aparecesse e de que
gostasse ou que parecesse cansada ou fosse inváli-
da. E assim, com seu coração protegido e, levando
sua sobrinha consigo, ele deu a volta ao mundo...
Ele não era indiscreto a respeito de seu cora-
ção. Você não ficaria sabendo que ele tinha algu-
ma coisa. Ele o legou para o laboratório médico de
Waterbury em benefício da ciência, já que o consi-
derava um tipo raro de coração. E a piada de tudo
O BOM S OLDADO 63
do a ela. Na verdade, foi assim que aconteceu, ex-
ceto pelo fato de que ele contou para a moça e a moça
contou à sua esposa. No entanto, eu cheguei tarde
demais para poder ser útil. E foi aí que provei pela
primeira vez a vida inglesa. Foi espantoso. Foi esma-
gador. Jamais esquecerei o cavalo que Edward, a meu
lado, cavalgava; o jeito do animal, seu trote miúdo,
seu pêlo que parecia de seda. E a paz! E as boche-
chas vermelhas! E a bela, a bela e velha mansão.
Ficava perto de Branshaw Teleragh e chegá-
vamos lá ao descer das terras altas, claras, ermas e
varridas pelo vento de New Forest18. Eu lhe digo
que foi estonteante chegar lá vindo de Waterbury.
E veio à minha cabeça — pois Teddy Ashburnham,
lembre-se, me telegrafara “para vir e conversar”
com ele — que era inacreditável que algo essencial-
mente desastroso pudesse acontecer naquele lugar
e com aquelas pessoas. Eu lhe digo que era o pró-
prio espírito da paz. Leonora, bela e sorridente, com
seus cachos de cabelo dourado, estava na soleira,
com um mordomo, um lacaio de libré, e uma cria-
O BOM S OLDADO 65
III.
O BOM S OLDADO 67
contrar de olhos vendados o caminho até as salas
de fornos, até as salas de ducha, até a fonte no cen-
tro do quadrado onde jorra a água enferrujada.
Sim, eu podia encontrar meu caminho de olhos
vendados. Conheço as distâncias exatas. Do Ho-
tel Regina você dá cento e oitenta e sete passos,
depois, dobrando à esquerda, mais quatrocentos e
vinte levam diretamente até a fonte. Do Englischer
Hof, a contar da calçada, eram noventa e sete pas-
sos e de novo os mesmos quatrocentos e vinte, mas
dessa vez dobrando à esquerda.
E agora veja que, não tendo nada para fazer
no mundo — nada mesmo! —, eu adquiri o hábito
de contar meus passos. Caminhava com Florence
até os banhos. E, naturalmente, ela me entretinha
com sua conversa. Como eu disse, era maravilhosa
a maneira como ela conduzia uma conversa. Ela
andava com leveza e seu cabelo era muito bonito;
ela se vestia de maneira elegante e muito cara. Na-
turalmente, tinha seu próprio dinheiro, mas eu não
me importaria com isso. E no entanto saiba que não
consigo me lembrar de nenhum de seus vestidos. Ou
só me lembro de um deles, um muito simples de seda
O BOM S OLDADO 69
Não sei. Seja como for, não podia ser para mim,
pois nunca, durante toda a sua vida, nunca, em
ocasião alguma ou em qualquer outro lugar, ela
sorriu para mim, provocante, convidativamente.
Ah, ela era um enigma; mas o que fazer, todas as
mulheres são enigmas. E me ocorre que há algum
tempo atrás comecei uma frase que ainda não ter-
minei... Era sobre a sensação que eu tinha quando
ficava nos degraus do meu hotel toda manhã, para
levar Florence de volta depois do banho. Elegan-
te, bem penteado, consciente de que eu parecia ain-
da mais baixo entre os ingleses altos, os america-
nos esbeltos, os alemães gorduchos e os obesos ju-
deus russos, eu ficava ali, batendo com um cigar-
ro na minha cigarreira, observando por instantes
o mundo à luz do sol. Mas chegaria o dia em que
nunca mais faria isso sozinho. Você pode imaginar,
portanto, o que a chegada dos Ashburnham signi-
ficou para mim.
Já esqueci a aparência de muitas coisas, mas
jamais esquecerei o aspecto da sala de jantar do
Hotel Excelsior naquela noite — e depois, em mui-
tas outras noites. Castelos inteiros desapareceram
O BOM S OLDADO 71
Eu podia ver seus lábios formando uma palavra de
três sílabas — lembre-se de que eu não tinha nada
para fazer no mundo a não ser observar minúcias
— e imediatamente soube que ele devia ser Edward
Ashburnham, o capitão do Batalhão Catorze dos
Hussardos, da mansão Branshaw, em Branshaw
Teleragh. Eu sabia disso porque toda noite antes
do jantar, enquanto esperava no saguão, costu-
mava, por cortesia de monsieur Schontz, o pro-
prietário, inspecionar os pequenos relatórios poli-
ciais que cada hóspede devia assinar para ter o seu
quarto.
O mâitre conduziu-o imediatamente até uma
mesa vaga, a umas três mesas da minha — a mesa
que os Grenfalls, de Falls River, New Jersey, tinham
deixado vaga. Ocorreu-me que não era uma boa
mesa para recém-chegados, já que a luz do sol, em-
bora já estivesse baixa, batia diretamente nela, e a
mesma idéia parece ter ocorrido no mesmo momen-
to ao capitão Ashburnham. No entanto seu rosto,
naquele maravilhoso estilo inglês, não demonstrou
nada. Nada. Não havia nele nem alegria nem de-
sespero; nem esperança nem medo; nem tédio nem
O BOM S OLDADO 73
poder de disseminação do disparo do número três
antes de uma descarga da pólvora do número qua-
tro... por Deus, eu quase não o ouvia falar de ou-
tra coisa. Durante todos os anos em que o conheci,
não ouvi-o falar de outra coisa a não ser desses
assuntos. Oh, sim, uma vez ele me disse que eu podia
comprar meu tom especial de gravatas azuis por um
preço mais barato em um firma em Burlington Ar-
cade do que as de meu país, em Nova York. E des-
de então passei a comprar minhas gravatas nessa
firma. De outro modo, não me lembraria mais do
nome Burlington Arcade. Fico a imaginar como se-
rá. Eu nunca a vi. Imagino duas enormes filas de
colunas, como as do Fórum em Roma, com Edward
Ashburnham caminhando entre elas. Mas provavel-
mente não é assim — nem de longe. Uma vez ele
me aconselhou a comprar ações do Caledonian De-
ferred, já que deviam subir. Eu as comprei e elas
subiram. Mas como ele conseguiu essa informação,
não tenho a menor idéia. Parecia ter caído do céu
azul.
E isso era absolutamente tudo que eu sabia
dele até um mês atrás — isso e a profusão de suas
O BOM S OLDADO 75
paixão que era uma espécie de angústia e odiava-o
com uma angústia que era tão amarga como o mar.
Como é que ele podia despertar algo como um sen-
timento em alguém?
O que será que ele falava com elas — quando
estavam a sós? Ah, bem, de repente, como num jorro
de inspiração, eu sei. Pois todos os bons soldados
são sentimentais — todos os bons soldados desse
tipo. Sua profissão, em primeiro lugar, está cheia
de grandes palavras, coragem, lealdade, honra, cons-
tância. E dei uma impressão errada de Edward Ash-
burnham se fiz com que você pensasse que literal-
mente nunca ao longo de nove anos de intimidade
ele tenha discutido o que nós poderíamos chamar
de “coisas mais sérias”. Mesmo antes de sua reve-
lação final comigo, às vezes, já bem tarde da noite,
digamos, ele deixava escapar algo que dava uma
mostra de sua visão sentimental do cosmos. Ele di-
ria o quanto a companhia de boas mulheres podia
ter importância para redimir alguém, diria que a
constância era a maior das virtudes. Diria isso de
maneira muito rígida, naturalmente, como se a de-
claração não comportasse nenhuma dúvida.
O BOM S OLDADO 77
mido. E fiquei inteiramente surpreendido, durante
sua revelação comigo — já bem no fim das coisas,
quando a pobre moça estava a caminho daquela
Brindisi fatal e ele estava tentando persuadir a si
mesmo e a mim de que jamais ligara para ela —,
fiquei inteiramente surpreendido ao observar como
sua expressões eram literárias e corretas. Ele fala-
va como um bom livro — um livro sem qualquer
sentimentalismo barato. Você entende, eu suponho,
que ele não me via como um homem. Eu tinha de
ser visto como uma mulher ou um procurador. De
qualquer modo, algo explodiu nele naquela noite
horrível. E então na manhã seguinte ele me levou
até os assizes23 e eu vi como, perfeitamente calmo
e à maneira de um homem prático, esforçou-se para
assegurar um veredito de não-culpada para uma
pobre moça, filha de um de seus arrendatários, que
fora acusada de ter matado a própria filha. Gastou
duzentas libras para defendê-la... Bem, este era Ed-
ward Ashburnham.
O BOM S OLDADO 79
faziam aquilo, aqueles olhos inabaláveis com o olhar
direto? Pois os olhos não se mexeram, fitando o
biombo por cima de meus ombros. E o olhar era
perfeitamente neutro, direto e perfeitamente imó-
vel. Suponho que as pálpebras devem ter se arquea-
do um pouco e talvez os lábios tenham se mexido
um pouco, como se estivessem dizendo: “Aqui está
você, meu caro”. De qualquer modo, a expressão
era de orgulho, de satisfação, de domínio. Eu o vi
uma vez, tempos depois, olhar por um instante os
campos ensolarados de Branshaw e exclamar: “Tu-
do isto aqui é terra minha!”.
E então, de novo, o olhar se tornou talvez mais
direto, mais duro se possível — mais ousado tam-
bém. Era um olhar de avaliação: um olhar desafian-
te. Uma vez quando estávamos em Wiesbaden e o
assistíamos a jogar uma partida de pólo contra a
equipe do Hussardos de Bonn, vi o mesmo olhar
despontar em seus olhos, a examinar as possibili-
dades, a inspecionar o terreno. O capitão alemão,
barão Idigon von Lelöffel, estava bem perto de sua
meta, vindo com a bola a meio galope com aquele
jeito manhoso dos alemães. O resto dos jogadores
O BOM S OLDADO 81
ticos que já passaram por muitos spas, que pare-
cem fazer questão de ser mais animados do que o
normal quando são apresentados a meus compatrio-
tas. Observei isso com freqüência. Claro, antes de
tudo eles têm de aceitar os americanos. Mas, isso
posto, parecem estar dizendo a si mesmos: “Olá,
estas mulheres são tão radiosas. Não vamos ficar
ofuscados”. E durante certo tempo não ficam mes-
mo. Mas isso logo passa. Foi assim com Leonora
— pelo menos até que ela me viu. Ela começou, foi
assim que Leonora fez — e talvez tenha sido isso
que me deu a idéia de um toque de insolência em
sua personalidade, pois nunca mais fez qualquer
coisa como aquela — ela começou dizendo em voz
alta e de uma certa distância:
— Não fique aí nessa mesa mal-ventilada,
Teddy. Venha e sente-se ao lado dessas pessoas
simpáticas!
Dizer aquilo era algo extraordinário. Extraor-
dinário mesmo. Em toda minha vida jamais conse-
gui referir-me a pessoas totalmente estranhas como
pessoas simpáticas. Mas, naturalmente, ela estava
calculando que eu de algum modo — e mais nin-
O BOM S OLDADO 83
servar a mesa para os Guggenheimer de Chicago.
Por fim Florence disse:
— Por que não comemos todos juntos? — esta
é uma horrível expressão nova-iorquina. — Estou
certa de que somos pessoas pacíficas e há quatro
lugares em nossas mesas. É o numero certo.
Então irrompeu, por assim dizer, um murmú-
rio de assentimento do capitão e percebi perfeita-
mente uma leve hesitação — um rápido e nítido
movimento na senhora Ashburnham, como se seu
cavalo estivesse estancado. Mas logo ela o impulsio-
nou, levantando-se da cadeira onde estava e sentan-
do-se bem à minha frente, num movimento só, por
assim dizer.
Nunca achei que Leonora ficasse bem em ves-
tidos de noite. Eles pareciam bem cortados demais,
sem qualquer franzido. Ela sempre se vestia de pre-
to e seus ombros também eram clássicos. Ela pa-
recia transbordar de seu corpete como um busto de
mármore branco de um vaso Wedgwood preto26.
Não sei.
O BOM S OLDADO 85
sobrancelhas, lábios, seios. Mas Leonora parecia
conduzir o olhar sempre para seu pulso. E seu pul-
so ficava melhor com uma luva preta ou marrom e
havia sempre uma argola dourada com uma corren-
te em que ficava presa uma pequena chave doura-
da para a caixa de documentos. Talvez ela a usasse
para trancar seu coração e sentimentos.
Seja como for, ela se sentou à minha frente e
aí, pela primeira vez, prestou alguma atenção em
minha existência. De repente, de modo deliberado,
fixou-me demoradamente. Seus olhos eram azuis e
escuros; suas pálpebras eram tão arqueadas que
acentuavam a redondez da íris. Foi um olhar ad-
mirável, tocante, como se por um instante um fa-
rol tivesse olhado para mim. Era como se eu perce-
besse as perguntas rápidas procurando umas às ou-
tras através do cérebro que ficava por trás delas. Era
como se eu ouvisse o cérebro perguntar e os olhos
responderem com toda a simplicidade de uma mu-
lher que era perita em avaliar as qualidades de um
cavalo — como de fato ela era. “Vale a pena: tem
bastante espaço para sua aveia atrás da cilha. Mas
quanto ao lombo não”, e assim por diante. Da mes-
O BOM S OLDADO 87
peito; mas Leonora estremeceu um pouco, como se
um ganso caminhasse sobre seu túmulo. E eu esta-
va passando para ela a cesta de pães. Avanti!
O BOM S OLDADO 89
para que pudéssemos ter de maneira razoável to-
dos os divertimentos que se ajustassem à nossa tem-
porada — que podíamos pegar carros e carruagens
de dia; que podíamos oferecer jantares uns aos ou-
tros e a nossos amigos e podíamos ser indulgentes,
se desejássemos, quanto à economia. Assim, Flo-
rence tinha o hábito de receber o Daily Telegraph
diariamente de Londres. Ela sempre foi uma anglo-
maníaca; a edição parisiense do New York Herald
me bastava. Mas quando descobrimos que o exem-
plar do jornal londrino dos Ashburnham vinha da
Inglaterra, Leonora e Florence decidiram que uma
delas suspenderia uma das assinaturas num ano e
a outra no seguinte. Também era costume do grão-
duque Schwerin de Nassau, que todos os anos vi-
nha aos banhos, jantar com cada uma das dezoito
famílias de hóspede habituais do Kur. Em troca ele
oferecia um jantar para todas as dezoito famílias
reunidas. E já que esses jantares eram bastante ca-
ros (você tinha que chamar o grão-duque e uma
grande parte de sua comitiva e os membros do cor-
po diplomático que estivessem por ali), Florence e
Leonora, botando suas cabeças para funcionar jun-
O BOM S OLDADO 91
Mas eu lhe dou minha palavra, não sei o que
fazíamos com nosso tempo. O que é que cada um faz
com seu tempo? Como é possível ter passado nove
anos e não se ter seja lá o que for para mostrar? Nada
mesmo, entenda. Nada a não ser um tinteiro de osso,
esculpido para se assemelhar a uma peça de xadrez
com um buraco no alto através do qual você pode
espiar quatro panoramas de Nauheim. E, no que diz
respeito à experiência, no que diz respeito ao conhe-
cimento de nossos semelhantes — nada também. Eu
lhe dou minha palavra, não poderia dizer ao certo
se a mulher que me vendeu as violetas tão caras, no
fim da estrada que leva até a estação, estava me en-
ganando ou não; não posso dizer se o porteiro que
carregou nossas bagagens até a estação em Leghorn
era um ladrão ou não quando disse que a tarifa nor-
mal era uma lira por volume. Os exemplos de hones-
tidade com que nos deparamos neste mundo são tão
espantosos quanto os exemplos de desonestidade.
Depois de lidar quarenta e cinco anos com nossa pró-
pria espécie, deveríamos ter adquirido o hábito de
sermos capazes de saber alguma coisa sobre nossos
semelhantes. Mas ninguém sabe.
O BOM S OLDADO 93
palista quando de fato você é um antiquado quaker
da Filadélfia.
Mas essas coisas têm de ser feitas; é o galo que
essa sociedade como um todo deve a Esculápio.
E a coisa estranha, esquisita, é que toda essa
coleção de regras se aplica a qualquer um — a to-
dos aqueles, a qualquer um que você encontra em
hotéis, estações de trens e, num grau menor, talvez,
nos navios. Você encontra um homem ou uma mu-
lher, e a partir dos mínimos e íntimos sons, do me-
nor dos movimentos, você já sabe se está lidando
com gente de bem ou não. Você sabe, isto deve ser
dito, se eles irão cumprir o programa integral des-
de o bife ao ponto até o anglicanismo. Não impor-
ta se são altos ou baixos; se a voz guincha como a
de uma marionete ou estronda como a de um tou-
ro; não importa se são alemães, austríacos, france-
ses, espanhóis, ou até mesmo brasileiros — serão
alemães ou brasileiros que tomam banho frio todas
as manhãs e que se movimentam, falando a grosso
modo, em círculos diplomáticos.
Mas o inconveniente — bem, dane-se, vou di-
zê-lo —, o terrível incômodo da coisa toda é que,
O BOM S OLDADO 95
que ela gostasse tanto quanto levar as pessoas para
visitar ruínas e lhes mostrar a janela da qual fulano
assistira o assassinato de um outro fulano. Ela só
fez isso uma vez; mas o fez de maneira magnífica.
Ela podia localizar, apenas com a ajuda do Baede-
ker, um velho monumento com tanta facilidade co-
mo se estivesse em qualquer cidade americana onde
os quarteirões são todos quadrados e as ruas nu-
meradas, de maneira que você pode ir tranqüilamen-
te da Vinte e Quatro até a Trinta.
Acontece que a cinqüenta minutos de Nau-
heim, num bom trem, fica a antiga cidade de M29,
no alto de um grande pico de basalto, provido de
uma estrada tripla que se estira até a encosta como
uma estola. E lá no alto há um castelo — não um
simples castelo como o de Windsor, mas um caste-
lo com arestas de ardósia e altos cimos com ca-
taventos dourados reluzindo ousadamente —, o cas-
telo de Santa Isabel da Hungria. Tem a desvanta-
O BOM S OLDADO 97
se afirmar que Leonora conhecia tudo, mas se Flo-
rence começava a nos dizer que Luís, o Corajoso31,
queria ter três esposas ao mesmo tempo — no que
se distinguia de Henrique VIII, que queria ter uma
após a outra, o que criava muitos problemas —, se
Florence começava a nos falar disso, Leonora fazia
um gesto de assentimento com a cabeça que agra-
davelmente arrasava minha pobre esposa.
Ela exclamava sempre: “Bem, se você sabia, por
que não contou para o capitão Ashburnham? Tenho
certeza de que ele iria achar interessante!”. E Leonora
olharia com ar pensativo para seu marido e diria:
“Acho que talvez pudesse prejudicar sua mão — você
sabe, a mão que se usa para controlar os cavalos...”.
E o pobre Ashburnham ficava ruborizado, resmun-
gava e dizia: “Está bem. Não se preocupem comigo”.
Imagino que a ironia de sua esposa alarmava
o pobre Teddy; porque numa noite ele me pergun-
tou seriamente na sala de fumar se eu pensava que
O BOM S OLDADO 99
ou então fazia uma pequena palestra sobre a história
dos Estados Unidos. E isso era feito de uma maneira
calculada para atrair uma atenção jovem. Você já
leu a senhora Markham?33 Bem, era daquele jeito...
Mas nossa excursão para M foi um aconteci-
mento de vulto muito maior. Veja, nos arquivos do
Schloss34 daquela cidade havia um documento com
o qual Florence pensava que finalmente teria a chan-
ce de educar todo nosso grupo. A pobre Florence
ficava aborrecida porque não podia, em assuntos
de cultura, se mostrar melhor do que Leonora. Não
sei o que Leonora sabia ou deixava de saber, mas
com certeza ela sempre parecia estar a par de tudo,
toda vez que Florence trazia alguma informação. E
dava, de certo modo, a impressão de saber de fato
aquilo que a pobre Florence dava a impressão de
ter apenas transmitido. Não posso defini-lo exata-
mente. Era algo quase físico. Você já viu um cão
de caça brincando de correr atrás de um galgo? Você
50
Uma cidade portuária no rio Hudson, defronte de
Manhattan. (N. do T.)
T.)
do T.)
72 “Thou art to all lost loves the best,/ The only true plant
75
“Thou hast conquered, O pale Galilean”. Verso do
poema “Hymn to Proserpine”, de Swinburne (1873-1909). (N.
do T.)
Marcel Schwob
Vidas imaginárias
A sair:
Arthur Schopenhauer
O valor da existência: ensaios de Parerga e Paralipomena