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revatak see 16: H No balanco malicioso do lundu Historia DA HIRLIOTECA NACIONAL TEREZA VIRGINIA DE ALMEIDA O género musical que influenciou o samba abordou com graca e humor um tema tabu: os jogos de seducao entre 0 negro escravo e suas sinhazinhas U TENHO UMA NHANHAZINHA] De quem sou sempre moleque] Ela vé-me estar ardendo/ E nado me abana co leque.” Esta € a letra de um antigo lundu, géne- ro musical que estudiosos apontam como 0 avé do samba. Outra composi¢ao diz o seguinte: “Se sinha quer me darj eu cd estou pra apanhar| vem ferir vem matar] teu negrinho aqui est4/ mas depois de apa- nhar/ quer fadar com iai”. Os versos, como se vé, re- velam uma curiosa mistura de valores antagonicos: sadismo e amorosidade, violéncia e desejo. No segundo lundu, 0 negro propée a sua senhora um pacto através do qual sua posicao de subservién- cia e inferioridade como escravo se atenua no mo- mento em que revela seu interesse final de “fadar’, expressdo que remete a danga do fado, mas que tam- bém pode ter conotacao sexual. A violéncia da escra- vidio € ao mesmo tempo suavizada pelo discurso ANO 1 | N° 8 | FEVEREIRO|MARGO 2006 L amoroso, transformando o maltratado em camp: ce do proprio algoz 0 negro aqui ndo apanha de forma passiva, Ble provoca e, com isso, & capaz de revelar o percurso que vai da dor ao prazer, de se urido a sedutor. Esse género musical tem uma longa historia enue 6s. A primeira sica gravada no Brasil, ‘em 1902, foi o lundu [sto ébom, de autoria de Xis to Bahia (1841.94), interpretado pelo cantor Baia no (1870-1944) A essa altura, o lunda ja se havia popularizado como atracdo humoristica, executa da ao violdo pelos pathasos de circo. Na segunda metade do século XIX, ou seja, algumas décadas antes do advento da indistria fonogréfiea, o lun ‘du jf exercera, também, papel importante no tea tro de revista, genero dramatico que acabou por incorporar petsonagens, tipos e criagdes musicais relacionados as camadas populares 0 lundu 6, no entanto, mais antigo que isso. ‘Sua origem remonta ao século XVII, quando pas soua fazer sucesso tanto no Brasil quanto em Por tugil, paralelamente a difusio das modinhas. O termo lundu, entretanto, surge apenas no século ‘XIX, mais especificamente a partir de 1834, quan- do se inicia a Impressdo musical no Brasil A par- tir do comércio de partituras, surge a demanda pela diferenciacao de géneros na propria misica Drasileira, e 0 lundu aparece para designar can- ‘Goes com caracteristicas bastante definidas © re- conhecidas por compositores, editores e piblico, Além da malicia e da sensualidade, ja presen: tes em algumas modinhas, o lundu se distingue por expressarse através do ritmo sincopado, ori gindrio da cultura africana, e pelo tom humorist co das letras, Ao longo do periodo que vai da se gunda metade do séeulo XVIIL a0 inicio do séeulo ob XX, passou por transformagées significativas no Filho de um portugués com sua escrava trazi- weaoane sds que diz tespeito & tematic A principio, 0 enero da de Angola, 0 poeta, nascido em 1740, passou a ine. se distingula por unir © humor a referencias ao infancia no Rio de Janeiro como um dos intime- yo en luniverso afro-brasileiro. Nos lundus gravados no ros mesticos de uma populagio que assistia aos cwrsuomeg2%22injcio do aéculo XX, entretanto, que Se apresen- _procetsos de modemizacio e& emergéncia de no- ta sio textos humoristicos de assuntos variados. vas formas de divertimento no espago urbano. Pisia eqn. dio: Segundo 0 pesquisador José Ramos Tinhordo, Emibora tenha sido Domingos Caldas 0 divulga a n° a palavra lundu tem sua origem em calundu,dan- dor do lundu em Portugal, nio ¢ possivel afirmar Seiten eT inl cans ta 100 tamblm chamsdt de que tas an cangler qua tocara com rua vel de lundu. 0 termo esti, portant, relacionado 20s arame eram de sua autoria, Hi a hipétese de que batuques dos negros, e & compreendido inicial- 0 poeta as tenha recolhido no Brasil nas diversas, mente como danca: uma combinacdo entre a um- — manifestagdes de cunho popula bigada africana ¢ 0 fandango europeu. Mas logo Domingos Caldas Barbosa foi um dos funda- ritmo da danca vai dar origem a0 landucangio, dores da Nova Arcidia, em Lisboa, no ano de <*_Bste género deve sua difusdo em Portugal 20 poe- 1790, No primeiro volume de sua obra Viola de Le 1g Ratbosa, que o tornou popu- — rero, 0 poeta se apresenta como o pastor Lereno ta Domingos C: lar na metropole quando foi estudar na Universi- Selinuntino, Caldas é, portanto, um dos repre: dade de Coimbra, em 1763. sentantes da estética arcade, estilo literirio pre: dominante na segunda metade do século XVIII ‘que contrasta inteiramente com os Iundus que Nos lundus, a violéncia da escravidao ¢ atenuada pela apresenta. Enquanto o arcadismo (ou neoclassi cismo) se inspira tt lendatia regido da Grécia uegro maltratado em cimplice do seu algoz, a sua Antign dosainada pelo deus Pari habitada por pastores, os lundus encenados por Domingos Cal das traziam clementas da cultura brasileira Consta que. nos préprios encontros da Nova Ar cldla, 0 tocador de viola comporava-se de forma transgressora, ao cantar o: malicio sos lundus apée a letra dae pecas com discurso amoroso e pelo bom humor, transformando o senhora branca postas dentro dos rigores neoclisticos. Em funcao disso, no segundo volume de Viola de Lereno, publicado 26 anos apos a morte do pocta, desaparece o pastor e surge a figura do negrinho ou moleque. Hi singularidades nos iundus do final do séeulo XVIIL, principalmente naqueles atri- buidos a Domingos Caldas, que merece atencio especial no que diz respeito as le tras. Estas colocam em cena aquele tipo de escrave que se dirige A sua senhora’ cha mando-a carinhosamente de “sinha”, “ab nha’ ou “aid” © primeito aspecto que pode ser perc bido diz reepeito ao carter ilicito da rela- ‘gio encenada pelo lundu, hem coma 4 de Sigualdade entre os amantes, ja que os personagens envolvidos sao cative sua ama. 0 lundu é, porvanto, uma for ma de cangio que traz para o centro da atencio da metrépole portuguesa © da Colonia 0 negro escravo, que sub- verte € desafla a tigidez dos valores i i sociais vigentes. [sso através de um discurso amo- roso que, ao desviarse do discurso presente nas modinhas, reelabora elementos advindos da pré: pria cultura escravocrata Ressalte-se. em primeiro lugar, que as rela ‘coes entre senhores ¢ escravas sio amplamente documentadas devide, sobretudo, aos inimeros nascimentos de filhos de negras oriundos desses relacionamentos, Entretanto, pouco se registra das relagGes entre as senhoras, donzelas ou casa- das, com seus escravos, E é justamente essa for- ma de contato que predomina nos lundus do sé: culo XVIM, através do discurse negro masculino. Nesse sentido, o lundu pode ser interpretado co- mo a evidencia de um aspecto censurado da cul- tura colonial Mas hié mais: em alguns casos, bastante signi ficativos, 0 Lunda coloca em cena um jogo de se ‘ducio entre negra e senhora em que a temitica da violencia surge de forma bastante marcante. No segundo volume de Viola de Lereno, de Domin- gos Caldas, apresentamse estrofes tais como “Eu tenho uma nhanhazinha/ Que eu nio a posso en. tender] Depois de me ver penar] Sé depois diz que me quer". Registra-se aqui 0 uso do diminutivo no tratamento 2 senhora, carinhosamente colo- quial © que, por si sé, demarca um campo de in timidade que subverte a relagdo de poder. Mas, 20 ‘mesmo tempo, 0 interesse da senhora & apresen- tado como algo ambivalente, do qual participam simultaneamente desejo ¢ sadisin. © lundu no século XVIIE pode, portanto, ser visto como uma cantotia que permite vir & tona atematica da violdncia da escravidio escamoten- da pela superficie do discurso amoroso, da lin ‘guagem dengosa e da leveza marcada por uma forma de humor acentuada pelas rimas. Ha uma constante ambivaléncia entre um sofrimento vi venciado em funcio da falta de reciprocidade amorosa ¢ a dor causada pela propria condi¢ao de escravo. Ambivaléncia que vai sendo subli- hada ao fim de cada estrofe em que 0 negro re pete © refiio: “Ai céul/ Ela é minha iaijf 0 seu moleque sou eu” (© lun nao coloca em cena apenas relacdes entre negros e senhoras, mas estabelece um jogo de sedusdo com os piblicos portugués braslel ro que tém no humor, na jocosidade, de lidar com a peoblemética da es lo vigs da temitica amorosa, ja familiar através da modinna, a qual se acrescenta o humor como ingrediente, que a platéia pode entrar em conta 19 Ne Saiba Mois Basha NL 20 © Lis e201, vevnanneas 20 to com uma ambivaléncia que reside tanto na amorosidade encenada quanto em sua prépria re- lagdo com a realidade escravocrata. [Na coletanea As modinhas do Brasil ~ pertencen- te a0 acervo da Biblioteca da Ajuda, de Lisboa, ¢ revelada 20 plblico em 1968 pelo pesquisador Géhard Behigue ~ encontra-se outra cancio em que a unido entre seducio e violencia adquire no- vas nuancas. Trata-se de 0s me detsas que tu dis, em_ que o negro diz a seahora: “Muito gosto nhanha- 0 sucesso do lundu levou para o centro da Colénia ¢ para Portugal o negro esrravo que subvertia ¢ desafiava a rigide2 dos valores soctats vigentes, através de um discurso amoreso marcado pelo humor Capa de prtucas ce eStodas etre 1837 © sb zinta kde andar bulindo contigo) quando vejo que comigo/ tu estés enfadadinha/ feas to. mugan- sgucitinha/ que muito me satis ve mando que te vis) depois te torno a prender|é somente para ver os me deivas que tu dis” ste hundu parece colocar no centro da atea- io a fragilidade feminina da sennora, de forma que sedi uma total inversio na relacio de poder E 0 desejo do negro que se sobrepde a0 de “nha- nnhazinha’. O negro explcita a rejeigdo da sinh, eM ‘mas, 20 mesmo tempo, se sente atraido por esta rejeicio, pela insatisfacio da senhora diante de sew assédio. Por outro lado. os diminutivos “enfadadinha” e “mugangueicinha” (aquela que faz “mugangas’, ou caretas) permitem perceber ‘que 0 escravo interpreta a negativa como parte deum jogo de seducio. Além disso, 0 negro de- monstra lancar mio nao $6 do assédio, de quem “anda bulindo”, mas de forga fisica, ao “pren- der”. 0 escravo exerce forya sobre a senhora, de ‘quem dispie como de um objeto, em um jogo sé dico sublinhado pela circularidade do lundu, que comeca ¢ termina com o mesmo verso, como a reproduzir a forma repetitiva com que se da a tortura a sinha. sas formas de lundu permitem falar, através do discurso do negro, de outro tabu. Tornase te ma a propria sexualidade da mulher branca, que, de uma forma ou de outra, € representada como participante de jogos de sedugao com seus escra ‘vos. Esti em jogo, dessa forma, um desatio & pro pria moral vigente na época, prineipalmente no {que diz respeito 20 papel da mulher na socieda. de. 0 humor dos lundus advém, em parte. das ce nas transgressoras ¢ maliciosas que apresentam, fem estrofes sempre marcadas pela leveza ¢ pela ‘graciosidade. 0 surpreendente ¢ curioso é que es tas formas consigam trarer 3 tona questdes com: sie Hai: ee cet or ee ‘Aigine geet mie Popul no 5,8 dies & scompsnfad pelo cate Rasil pmeenta tera forte reagio de um colita spends pea msi ‘como corpaie'vom a daa gnc de. te do grupo, trans de umn te. fom marcinie a cratwidademusca a Aa longo oi stra is gers ieroutidade-F'p que ocortee hrc oe erga vio vers axes @ “¢no saa site ctino.gneo que, lands

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