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Alice Ruiz

Alice Ruiz nasceu em Curitiba (PR), em 22 de janeiro de 1946. Desde cedo demonstrou seu
pendor para a escrita, tendo publicado, aos 26 anos, em jornais culturais e revistas, alguns
poemas escritos em sua juventude. Seu primeiro livro, “Navalhanaliga”, foi publicado quando
tinha 34 anos. Foi casada com Paulo Leminski, já falecido, com quem teve três filhas. Foi ele

1 Alice Ruiz
quem, ao ler seus poemas, descobriu que a autora escrevia haicais. Encantada com essa
forma poética japonesa, passou a estudá-la, tendo traduzido quatro livros de autores e autoras
japonesas, nos anos 80. Compõe letras desde os 26, tendo lançado, em 2005, seu primeiro CD,
o “Paralelas”, em parceria com Alzira Espíndola. Escreveu, antes de lançar seu primeiro livro,
textos feministas, no início dos anos 1970 e editou algumas revistas, além de textos
publicitários e roteiros de histórias em quadrinhos. Participou do projeto Arte Postal, pela Arte
Pau Brasil; da Exposição Transcriar - Poemas em Vídeo Texto, no III Encontro de Semiótica,
em 1985, SP; do Poesia em Out-Door, Arte na Rua II, SP, em 1984; Poesia em Out-Door, 100
anos da Av. Paulista, em 1991; da XVII Bienal, Arte em Vídeo Texto e também integrou o júri
de 8 Encontros Nacionais de Haicai, em São Paulo.

Algumas obras da autora:

- Navalhanaliga – 1980 (Prêmio Melhor Obra publicada no Paraná – 1980)

- Paixão Xama Paixão – 1983

- Pelos Pêlos – 1984

- Hai Tropikai – 1985 (com Paulo Leminski)

- Rimagens – 1985 (com desenhos de Leila Pugnaloni)

- Nuvem Feliz – 1986 (com desenhos de Takashi Fukushima)

- Vice Versos – 1988 (Prêmio Jabuti de Poesia – 1989)

- Desorientais – 1996

- Hai Kais – 1998 (com Guilherme Mansur)

- Poesia pra tocar no rádio – 1999 (Primeiro lugar no concurso nacional de poesia da Blocos)

- Yuuka - 2004

- Dois Em Um - 2008 (Prêmio Jabuti de Poesia- 2009)

©Protegido pela Lei do Direito Autoral


LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, modificado e que as informações sejam
mantidas.

2 Alice Ruiz
Saudação sa Saudade
Alice Ruiz

minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida

aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz

ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento

aí, ainda assim


minha saudade
te saúda
e se despede
de mim

Minas

ANDAR
ANDOR
ARDOR
AR D'OURO
PRETO

há muito para subir em Ouro Preto


mesmo que o tempo tarde
andar devagar, bem devagar
escalar ruas
passo a passo
olhar para o chão
enquanto as montanhas
impassíveis
disputam nosso olhar
é no passar
que se põe o ardor
acima e abaixo
aos pés, ao céu
rochas para caminhar
mar de rochas
montanhas de pedra

há muito para descer em Ouro Preto


o frio das alturas

3 Alice Ruiz
impregnado desse spleen
que não se explica
e a cada passo
uma lição de paciência
e a cada olhar
uma lição de silêncio
e a cada casa, porta, beiral
uma lição de história
que aqui perdura
dura, dura rocha
pedra sobre pedra
tudo que aqui se passou
também ficou
e fica em nosso passo
nessa rua
a ressoar
que a história
é a pré-história
de nós mesmos

que passamos

Saciedade

Só pedaços do mesmo tamanho


ficam prontos ao mesmo tempo,
sejam nacos ou migalhas.

A força para sacudir a panela


depende do que se põe nela
às vezes ao fogo brando
às vezes na fornalha.

Os crepes pedem paciência


as panquecas agilidade.
Cada receita pede
um gesto mais suave
ou mais grosseiro
conforme seu tempero.

Assim também se prepara


o gosto dos dias
o sabor das noites
até a saciedade.

Um olhar

o poeta me viu

bastou um olhar
e pode ver
a mola mestra
da aprendiz
que sou

4 Alice Ruiz
a escolha que fiz
no avesso e apesar
da sorte adversa
de não pesar
de ser feliz

poeta é quem vê
o que não é de dizer
e ainda assim

diz

Questões III

Se a preguiça é pecado,
o que Deus estará fazendo agora?
Em que se ocupa aquele que tudo pode?
Terá restado algo por fazer
depois que o mundo foi criado?

Se o desejo é fraqueza,
Deus nunca deseja?
Mas se é verdade que nos criou,
algo nele desejou.

Se a vaidade é um erro,
por que nos fez
À sua imagem e semelhança?
Ou terá sido o contrário?

Por que criar alguém


capaz de duvidar da criação?
Por que nós e ele não?

Baú de guardados
Alice Ruiz
musicado por Ná Ozzetti

Trago, fechado no peito,


um baú de guardados.

Jóias, gemas e pérolas


que podem
ofuscar meus olhos.

Pedras, perdas, penas


que conseguem
represar meu rio.

Mas basta um som de flauta,


um dedilhar de piano,
o acorde de um violão,
o cristal de uma voz
e todas as comportas
se abrem
e me descobrem
levando de roldão

5 Alice Ruiz
tudo que cabe
nesse cofre desvendado,
o coração.

Jóias, gemas, pérolas,


pedras, perdas, penas.
Brilhos que se confundem
no que sou.
Rolam nas águas e me levam
para perto, bem mais perto
de onde estou.

Primeiro, lenta e precisamente,


arranca-se a pele
esse limite da matéria.
Mas a das asas melhor deixar
pois se agarra à carne
como se ainda fossem voar.

As coxas, soltas e firmes,


devem ser abertas
e abertas vão estar
e o peito nu
com sua carne branca
nem deve lembrar
a proximidade do coração.
Esse não.
Quem pode saber
como se tempera um coração?

Limpa-se as vísceras,
reserva-se os miúdos
para acompanhar.
Escolhe-se as ervas,
espalha-se o sal,
acende-se o fogo,
marca-se o tempo
e, por fim, de recheio,
a inocente maçã,
que tão doce, úmida e eleita
nos tirou do paraíso
e nos fez assim:

sem receita

músicada por Zé Miguel Wisnik, gravada no CD "Pérolas aos Poucos" e interpretada por ele e Ná Ozzetti.

Se

se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra

eu ia tirar de ouvido

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todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto

ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio

daí vá ficando por aí


eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se cruzasse...

Pássaros Para Patrícia Palumbo

revoada no jardim
o sabiá sabe a hora
Vozes do Brasil
-x-
rádio ligado
o sanhaço se assanha
Vozes do Brasil
-x-
Vozes do Brasil
o bem-te-vi avisa o bando
para vir ouvir

Equívoco?

tudo
que
está
vivo
parece
parado


a
folha
morta
ao
cair
parece
viva

Drumundana
Alice Ruiz

7 Alice Ruiz
e agora maria?

o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria

Nota: Paródia do poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade.

É DURO TER CORAÇÃO MOLE

por favor
não me aperte tanto assim
tenha cuidado, pega leve
olha onde pisa
isso é meu coração
meu ganha-pão
instrumento de trabalho,
meio de vida, profissão
meu arroz com feijão
meu passaporte
para qualquer parte
para qualquer arte
não machuque esse meu coração
preciso dele
para me levar a Marte
sem sair do chão
não me aperte
não machuque
tome cuidado
eu vivo disso
poesia, sonhos
e outras canções
sem emoção
morro de fome
sinto muito
mas não há nada
que eu possa fazer
sem coração

Alice Ruiz
Música: Itamar Assumpção

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