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MURILO MENDES POESIA COMPLETA E PROSA. ‘Onaantzacho, PREPARAGKO Do TixTO E Notas Luciana Stegagno Picchio INOTAS PARA UMA MURILOSCOPIA José Guilherme Merguior \Vipa-POEstA DE MURILO MENDES Luciana Stegagno Picchio FORTUNA Cattica ‘Miério de Andrade, Manuel Bandeira Carlos Drionmond de Andrade, Giuseppe Ungareti, Ruggero Jacobbi, Jorge Andrade, Haroldo de Caripos HoMenaces Potricas ‘Manuel Bandeira, Alphonsus de Guimeniens Fito, Jenn Arp, Alesandre Eullio, Ald Palaczeschi, Léia Coelho Frota, Sophia de Mello Breyner-Andrese, Carlos Dramnmond de Andrade, Antonio Ramos Rosa Jodo Cabrtide'Melo Neto _ Ai A POESIA EM PANICO 1936-1937 Porsta/ A Posse an Panico 285 6 PorMa Visto Por FORA, © espirito da poesia me arrebata Para a regio sem forma onde passo longo tempo imével Num silncio de antes da criagio das coisas. Sitbito estendo o braro dieito¢ tudo se encarna: O esterco novo da volipia aquecee terra, (0s peixessobem dos pordes do oceano, ‘As massas precipitam-se na praga public, Bordéiseigrejas, maternidades ecemiterios LLevantam-se no ar para. bem e para o mal. (Qs diversas personagens que encerrei Destacam-se uns das outros, fundam uma comunidade ‘Que eu preside ora teste ora alegre. {Nao sou Deus porque party para Ble, Sou um deus porque partem para mim. ‘Somos todos deuses porque partimos para um fim tnico, AMoR~ Vipa Vivi entre os homens Que nao me viram, ndo me ouviram Nem me consolaram. Eu fai poeta que distribui seus dons 5. E que ndo recebe coisa algum Fai envolvido na teinpestade do amor, TTive que amar até antes do meu nascimento. ‘Amor, palavra que funda e que consome os seres Fogo, foxo do inferno: melhor que o cu. 286 -MuniLo MENDES fPorsik COMPLETA & PROSA ADANAcAo. Hi fortes iluminagdes sem permenéncia. parte da Graga€ tio pequena Que me veo esmagado pelo monumento do mundo. Quem me ouvira? Quem me vers? Quem me ha de tocar? CChorai sobre mim, sobre vse sobre vos flhos. A fulguragao que me cerca vem do deménio. Maldito das leis inocentes do mundo Nao reconheo a paternidade divina, Eu profanei a hostia e manchei o corpo da Igreja: (Os anjos me transportam do outro mundo para este. O Lenrrents, Quem me consolaré no mundo vao? Homens, tenho convosco a relagfo da forma, Nuvem s6lida, rosa virginal, gua branca E tu, antiga sinfonia aérea, 5. Pertenceis 20 anjo, nao a mim. ‘Bu digo 20 pecado: Tu és meu pai Bu digo & podridio: Tu és minha irma, A presenga teal do deménio E meu pio de vida cotidiano: 10 Minha alma comprime a aleluia gloriosa, Hist puras, Inutilmente vos ergueis sobre mim. OFxiapo ‘Meu corpo esti cansado de suportar a maquina do mundo. = (Os sentidos em alarme gitar: ‘© deménio tem mais poder que Deus. Preciso vomitar a vida em sangue ‘Com tudo o que amaldicoeie 0 que amei. Passam a0 largo 0s navios clestes Eos irios do campo tém veneno, Pons / A Bossa eM Panteo 287 ‘Nem Job na sua desgraga Estava despido como eu. to Buviacrianca negara graga divina Yio men retrato de condenado em todos 0s tempos Ea multidao me apontando como o falso profea Espero a tempestade de fogo Mai da ques inal de vida, A DESTRUICAO ‘Morrereiabominando o mal que cometi E sem dnimo para fazer 0 bem. ‘Amo tanto o culpado como 0 inocente. ‘© Madalena, tu que dominaste a forga da carne, Estés mais perto de nés do que a Virgem Maria, Isenta, desde a eternidade, da culpa original. ‘Meus irmaos, somos mais unidos pelo pecado do que pela Graga: Pertencemos 8 numerosa comunidade do desespero Que exstrd até a consumacio do mundo. (Os TREs CiRcULOS [Nao encontro minha paz na Igceja Tu, monge, nfo podes me dizer 0 que o Cristo me did: Recolhested'Ele a menor parte. E 0 Seu corpo e o Seu sangue [Nito farem circular a vida no meu corpo e no meu sangue. ‘Tu, mulher, cratura limitada como eu, Recebes a melhor parte do meu culto. Eu te amo pela tua elegincia, pela tua mentira, pela tua vida teatra, Enem 20 menos posso repousar a cabeca na pedra do teu corpo. $6 tu, demonio, nunca me faltas nem um instante, O Saque Eu sou 0 meu préprio exetndalo continuo, ‘Eu mesmo destruo minhas imagens e me atiro pedas. 208 Mono Menoes / Poesis Conuara & Puasa ‘Que ha entre tie mim, Filho do Altissimo? (© mundo inteiro 6 tua arena Eu tenho s6 uma vida que se repete d-toa. Quebrei a comunhao dos santos. Que me trazem os homens? screvern apenas 0 mal eo terror no livro da vida. Poeta, recorda-tes 0 espirito imundo que anda nos higaresdridos. (E-vés me dizeis que virgens calmas Balangam-se nos jardin celeste.) dos ateus Ai dos filhos de Deus Ai dos que vo nascer, A CONDENAGAO Todos os frutos que minha alma apetecia Seafastam de mim pouco a pouco, Serei precipitado a0 mar com uma bruta pecra, (Os navios ¢a bela passageira no me verdo, ‘Deus precisa da minha vida eda minha morte, Deu se reserva o esplendor do diadeana. Ai de mim! ai de mim! que vi sempre as constelagbes em maid, Que nunca vi Maria na sua gloria de imaculada, ‘Que vi toda a verdade por imagens, Minha alma seré lancada no tangue de fogo, le me comtnicar enfim com os outros Na coletividade do inferno, OHomem Vistvar, (s fantasmas renascem estétuas de metal ede peda Eu sou meu companheiro no deserto, ‘Trago o capuz de grande Inquisidor Eamatraca — minha conscigncia que veste os jive 5 Edeixa os que tém frio mais friorentos. Do alto parapeito incandescente ‘Vomnitarei o mundo posterior 20 pecado, Posse / A Passa EM Panico 289 ‘Tragam o microfone e minha tinica branca, ‘Antes que amordacem os 6rfios da consola¢io. Atravessareio fogo a cabeleira de Berenice a muralha do tempo Dita a palavra essencial Amanhecerei drvere, ORENEGADO Cortina que velaa face de Deus, (0 céu fecha-se violentamente sobre mim. ‘Miisica, mésica da tempestade. s sentidos irrompem clamando “Titai-me tudo, ou dai-me tudo." (Que tenho eu com a sociedade dos meus irmios? ‘caso serei responsive pela sua vida? Sou o membro destacado de umn vasto corpo. Sou um na confusto da massa insacidvel: Entretanto vejo por todos, penso por todos, sofro por todos. Fui destinado desde o principio a expiacio. Quis salvar a todas — nem pude me salvar, EVOCAGAO Aparece no céu uma mulher cometa Olhai orabo de prata que ela tem Semeai as criangas para vé-la Preparai as misicas inocentes de outrors.. 5 Ah, quem me dera ir na vertigem da mulher-cometa, Nao és tu que solugas no corredor escuro Porque abafaram tua alma, ea noite inteira rezas? ‘Tu mesma que vais consolar a nudez das estatuas, Foste a musa do rio, cantas cangdes para os peixes 10 Busaste pela primeira ver na cidade um gramofone, Que me importam os sinais da comunidade Se possoenlagar obusto da mulher-cometat 5 ‘Muro Manes /Porsia Constr Be Pose Corro a0 teu encontro na areia branca do mar Ex sou teu anunciador desde 0s tempos remoto. 15 Seeunio te vir ninguém te verd — eu te aponte Ao lavrador dos astros, galera dos anjs, © mulher-cometa, que nto sabes que existes, Distingo a sinfonia eo coro que sobe do mar, ‘jo as Madalenas germinando em torno de mim, 20, Ovabeleies, mates do su, ulus opauos, Hembarquel. Larguem 0 pano! Aaventtra comesa. ‘SEGUNDA NATUREZA. A figura estril voa carregada de fratos ‘A Vitoria de Samotracia abre os bracos na amplidéo (Os navios confabulam soltando a cabeeira ao vento Anmiitipasinfonia avanca para mim ‘Com os quadris em sinos e vieloncelos ‘A mulher de ago me interroga nas alta seas, Deverei decifraro seu enigma Hé uma conspiragio nas ondas, nas plantas e nas pedas, Fu dei a mia os dais muindae Aponto para a estrela Venus desde o principio do séeulo Eecebo um sacramento de poesia 2 Minha alma ¢ um globo de fogo Que se consome sem acabar. ‘Meu corpo & um estrangeiro ‘A quem levo pao e égua diariamente, Da penitencidria dos homens me fazem sinais, Quase ninguém existe! MULHER Mulher, 0 mais terrivel e vivo dos espectros, Por que te alimentas de mim desde o principio? Em ti encontro as imagens da criasio: Poss A Posste ext Pavico 2 2s plsaroe flr, pera e onda varivel.. 5 Mais que tudo, a nuvern que voltae se consome, Dorm, sonbar — que adianta sew existe Se fosses forma somentel Is idéia também. ‘Ab, quando desceré sobze mim a paz antiga. (© PRIMEIRO PORTA Carne cansada! eu com os ohos desmedidamente abertos, (© coragdo aberto desde o amanhecer da vida. Antes eu tvesse dormido um sono fundo Eo Criadorfizesse nascer uma mulher do meu flanco, Apresentando-me essa mulher filha da noite. Ado 6 fos 20 mesmo tempo pa, mis, mio, eps « amante, AESHINGE ODeus Eu nasci para ser decifrado por ti ‘Com um pé no limbo, 0 coragao na estrela Venus e a cabega na Igreja Espero tua resposta desde o principio do mundo. ‘Também tu nasceste para mim: ‘Com tua medalhsa ao peito, para nto esquecer minha origem, Percorro arfando este deserto. ‘Appalavra definitiva deverd surdir de teus labios ‘Ao menos no instante da minha morte. Horoscoro Femina Cristina 5 Gravel teu nome no meu peito No sol na ua nas nuvens Interroguei Vénus ¢ Marte em conjun¢ic. 6 5 ‘Musto Manas / Porsia Conusra & Prosi ‘Meu amor vai comesar Desdobrado em todos os que te amam Depois que te apontei ao mundo. Nossas bocas Noss coragées [Nossosenigmas slo teus. Dopois que te rexpiramn ‘Todos se sentem mal Diante de suas esposas de suas amantes de suas noivas Porque as comparam contigo. Serdscelebrada em prosa e verso Fotografada pintada esculpidafilmada Provacaris a desproporgao ¢0 desespero CContribuindo para maior angustia do mundo ‘Afim de que sea servida a voracidade de Deus. ‘METAPISICA DA MODA FEMININA. Todo o que te rodeia ete serve ‘Aumenta a fascinacto e o enigma. ‘Teu véu se interpoe entre tie meu corpo, Ba grade do meu circere. ‘Tuas luvas macias a0 tato Fazem crescer a nostalgia das mos Que nfo receberam meu anel no alta, Tua maquilagem Buuma desforra sobre a natureza, ‘Tuas joias e teus perfumes Sio necessirinsa tie &ordem do mundo ‘Como 0 pio ao faminto, Eu me enrolo nas tuas eles nos teus bos, Rasgo teu peitilho de seda Para beijar teus seis brancos Que alimentam os poemas Entreabro a tinica fosforescente Para me abrigar no teu ventre glorioso Que ampliou mundo ao the dar um home ¢ mais, ‘Teus vestidos obedecem a um plano Inspirado Corresponder-se com o céu com o mar as estrelas ‘Com tcus pensamentosteus desejos tuas sensagbes, Posts / A Bossa iv Phsncn 5 30 Anaturerainteiza BE retalhada para mss eu corpo Oshomens derrabam loess Descem até ofndo das minas e dos mares Mover méuinas tates Stam os aides nos ares TLatam pela pose da terra maton eam pla tex corpo. O mundo sai de ti, vem desembocar em ti, E te contempla espantado e apaixonado, Acoviisterreste, Fonte da nossa angiistia ¢ da nossa alegria. “Tudo o que faz parte de ti — desde teus sapatos — std unido ao pecado e ao praze, ‘A teologa, a sobrenatural PorstA Do CIUME ‘Bu nunca poderia aplacar esta dnsia absoluta, Esta gana que tenho de ti —Mesmo se te possufsse. Du tenho citime do teu pai e da tua mae, 5 Futenho citime daquele que te desvirginow, Eu tenho citime de Deus Que fundiu o molde da tua alma rebelada, De Deus que me matando poderia Extinguir enfim meu citime 10 Na noite total sem pensamento e sem sexo. ECCLESIA Berenice, Berenice, ‘Uma Grande mulher se apresentou ¢ mim Etefarsombra, Hla exige de mim, 5 Odque tu no podes exigir. Bla quer a mintia enteega total me oferece viver em corpo e alma ‘A encarnagio, a paixio, o sacrficio ea vitéria, 294 5 ‘Muno Manes /Porsia Conca & Puasa, Desenrola diante de mim a liturgia do mundo, 10 Querendo que eu tome parte nela contra mim mesmo, Berenice, Berenice, ua rival me chama, ‘Auaca-me pelos cinco sentidos, Desdobrando diante de mim a toalha da comunhio, Pu recuo aterrado 15 Porque no me permites. Berenice, ‘Comungar no teu corpo e no teu sangue. PORMA DO FANATICO ‘Nao bebo dlcool, nao tomo dpio nem éter, Sou o embriagado de tie por ti. ‘Mil dedos me apontam na rua: Eis o homem que é fandtico por ama mulher. ‘Tus ternura¢ tua crueldade sto iguais diante de mim Porque eu amo tudo 0 que ver de ti ‘Amo-te na tua misériae na tua gléria E te amasia mais ainda se sofresses muito mais, Cafste ein fogo na minha vida de rebelado. Sou insensfvel ao tempo — porque tu existes. Bu sou fanatico da tua pessoa, Da tua grasa, do teu espirito, do aparelhamento da tua vida, Eu quisera formar uma unidade contigo, E me extinguir violentamente contigo na febre da minha, da tua, da {nossa poesia, © Awor sem Consoxo Nao quero me livrar de t 86 ndo te perdéo porque nio me das a amargura absoluta Nio tens o poder de me extinguis com uin gesto, win har Ea minha esperanga eo meu desespero 5) Nao estio fundades em ti Possta/ A Poss EM Panico 295 © 5 25 Antes de eu teconhecer Deus jd me havia marcado ‘Nao és meu punhal nem meu bilsamo ‘Nao sou mais que um reeitad de Deus, de ti—e de mim, ‘Talvez ewame em tio que tens parecido comigo. Berenice, Berenice, Existes realmente? fs uma criagfo da minha insOnis, da minha febre, Qua criadora da minha insOnia, da minha febre? Berenice, Berenice, Por que nio terminas tua crueldade, dando-me a palavra de vida, ‘Ou por que nao comesas tua ternura, impelindo-me ao suicidio? 3 ‘Minha amiga cruel e necesséria, Berenice, Deixa-me descansar a cabeca no teu seio 'Esonhar um instante que nao existo, ‘Que nao existes, que nfo existe Deus, ‘Nem o mundo, nem o demdnio, nem a vida, nem a morte 4 Eu te acompanho em teus anseios ¢ em teu tédio. Bu te olho com o olhar de quem herdou a solidao Porque nunca estés em mim e comigo. ‘A natureza nos separou Somente o sobrenatural poderd nos unit ACASA Dos ATRIDAS Levem-me da casa dos Atrdas, levem-me desta varanda De onde vejo rir o mar limitado e cruel Levem-me desta casa de prazer e de angistia. ‘Onde os filhos se levantam contra os pais 5 Onde os irmaos ardem em febre pelas irmas Bos pais suicidam-se por causa das has. Levem-me desta selas coloniais,espagosas ¢ brancas, Onde os espiritos do mal confabulam atrés das cortinas, 298 10 ‘Munito MENDES / Possth CoMRLETA & Prose Sendo me despencarei das cortinas, me enforcarei como meu tio,

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