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D.

José Não Era (Murilo Rubião)

Vinde todos, ajuntai-vos povos indignos


de ser amados. (Sofonias2,1)

Uma explosão violenta sacudiu a cidade. Seguiram-se outras - menores


e maiores. Desnorteado, o povo corria de um lado para o outro. Alguém que se
conservava calmo no meio de tanta desordem, gritou:
_ Não é o fim do mundo!
Eliminada a pior hipótese, surgiram novas conjeturas:
Para um bombardeio faltavam os aviões.
_ Exercícios de artilharia?
_ Muito provável, apoiaram alguns, apressados em explicar o mistério.
_Eos canhões? _ Indagaram os mais lúcidos.
Houve quem falasse de uma invasão misteriosa, para em seguida
concordarem todos: D. José estava matando a esposa a dinamite.
Os populares hesitaram em aproximar-se do prédio. Após curto silêncio,
vários estampidos foram ouvidos. Um vagabundo, que ainda não se emocionara
com os acontecimentos, comentou:
_ Será que a dinamite foi insuficiente e ele resolveu recorrer ao revólver?
Tornaram-se pálidos os rostos e, ansiosos, aguardaram o final do drama.

1 - Tragédia?
Não. D. José estava experimentando fogos de artifício.
Ninguém quis confessar o desapontamento nem o gasto inútil de
imaginação que, naquela meia hora de terror, foi exagerado nos espectadores.
- Não a matou desta vez, mas ela não escapará de outra. Seu ódio por
D. Sofia é incontrolável.
2 - D. José odiava alguém?
Calúnia! Amava a mulher, os pássaros e as árvores. Ela sim detestava-o,
irritava-se com os animais.
Infelicidade conjugal?
Nunca! Os esposos combinavam admiravelmente bem.
Mas entre os habitantes do lugar, não havia quem acreditasse nisso:
- Ela finge amá-lo somente pelo seu dinheiro.
Estúpidos! D. José era o homem mais pobre da cidade e tinha uma
úlcera no estômago.
3 - À mais leve contestação, contrapunham-se novas acusações:
- E os meninos, que choram noite adentro, famintos, espancados?
Falso! D. José perdera os filhos (cinco), vítimas da tuberculose. Agora
recordava-se deles manipulando um aparelho que imitava o pranto infantil. E
comovia muito mais que qualquer choro de criança.
4 - D. José falava sempre de um livro que estava escrevendo. Um livro
sobre duendes.
Era um fabulista?
Não. Os duendes habitavam a sua própria casa, ao alcance dos seus
olhos.
Seria a mulher um deles?
5 - Um dia encontraram-no enforcado. Disseram imediatamente:
- É só fingimento. O nó está pouco apertado.
- Vejam que cara matreira! Está zombando de nós.
Infâmia! D. José suicidara-se mesmo.
Por quê?
Todo o mundo fingiu não saber.
6 - Aos que lhe tomaram a defesa, anos após a sua morte, perguntavam:
- Afinal, o que fazia esse D. José? Se não fumava, não bebia, não tinha
amantes?
- Amava o povo.
- E o povo?
- Observava-o com ferocidade.
7 - Mais tarde erigiram-lhe uma estátua. Com um dístico: "D. José, nobre
espanhol e benfeitor da cidade".
Derradeira mentira. D. José era um pobre diabo e não possuía nenhum
título de nobreza. Chamava-se Danilo José Rodrigues.

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