Entre a forca e o paraíso
Ricardo de Almeida Rocha
O sol derramava-se pelas montanhas Rochosas, sobre seus cumes brancos, imponentes. Refletia-se no lago que devolvia o céu limpo da primavera no Colorado. um sábado esplendoroso. Ao se instalar a manhã em Platty city, havia no ar algo de sublime. Todavia, jamais a cidadezinha mineira vivera um momento tão escuro, sem nenhum aroma de vida, sem qualquer vestígio de paz, em total contraste com a natureza exuberante. A indignação gangrenava as alma
Entre a forca e o paraíso
Ricardo de Almeida Rocha
O sol derramava-se pelas montanhas Rochosas, sobre seus cumes brancos, imponentes. Refletia-se no lago que devolvia o céu limpo da primavera no Colorado. um sábado esplendoroso. Ao se instalar a manhã em Platty city, havia no ar algo de sublime. Todavia, jamais a cidadezinha mineira vivera um momento tão escuro, sem nenhum aroma de vida, sem qualquer vestígio de paz, em total contraste com a natureza exuberante. A indignação gangrenava as alma
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Entre a forca e o paraíso
Ricardo de Almeida Rocha
O sol derramava-se pelas montanhas Rochosas, sobre seus cumes brancos, imponentes. Refletia-se no lago que devolvia o céu limpo da primavera no Colorado. um sábado esplendoroso. Ao se instalar a manhã em Platty city, havia no ar algo de sublime. Todavia, jamais a cidadezinha mineira vivera um momento tão escuro, sem nenhum aroma de vida, sem qualquer vestígio de paz, em total contraste com a natureza exuberante. A indignação gangrenava as alma
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O sol derramava-se pelas montanhas Rochosas, sobre
seus cumes brancos, imponentes. Refletia-se no lago que devolvia o céu limpo da primavera no Colorado. um sábado esplendoroso. Ao se instalar a manhã em Platty city, havia no ar algo de sublime. Todavia, jamais a cidadezinha mineira vivera um momento tão escuro, sem nenhum aroma de vida, sem qualquer vestígio de paz, em total contraste com a natureza exuberante. A indignação gangrenava as almas de todos os vizinhos da pequena Diana, aquele anjo de candura.
O casal chorava em desespero a filhinha brutalmente
assassinada. Sara Green não se conformava, em pranto convulso. Seu marido, Snyder, consolava-a embora ele mesmo não conseguisse se conformar. Ninguém conseguia. Quem poderia ter sido capaz de tamanha crueldade? A senhora Green decidiu que a menina estava melhor do que se sobrevivesse ao crime. Ironicamente, aqueles momentos de tanta tristeza se originaram num dia de extraordinária alegria para os Green...
Os mineiros levam uma vida mais difícil. As jazidas a céu
aberto começam a se esgotar, exigindo mais técnica e capital, além da paciência. Depois de tantos sacrifícios ainda estão sujeitos à exploração dos comerciantes. Pelo menos quanto a isso, os habitantes de Platty City não têm queixa, estão satisfeitos com o senhor Woodsrow Simon como intermediário entre as pedras e o dinheiro, agora que os tempos das transações em pó de ouro haviam acabado.
Sobretudo Snyder e Sarah. Mais que quaisquer outros
têm motivos gratidão a Simon.O marido voltava de um dia exaustivo sob o sol causticante no curso d água que, vindo da montanha, ia desembocar no rio que atravessará a capital. Quando entra em casa, Simon o espera servido de um café. Olá, cumprimentou o velho efusivamente, deixando a xícara sobre a mesa rústica. Olá, senhor. Simon diz que Snyder está cada vez mais vermelho. Parece um tomate, riu o velho. O sol está quente demais. Snyder bem prefere as galerias.
O velho começa a falar em tom solene como principiando
um assunto grave... Mas Snyder percebe que não precisa se preocupar ao ver a esposa sorrindo e, a seu olhar, respondendo com outro de visível alegria. O comerciante continua. Sua mulher estava me contando das dificuldades que a filha de vocês está encontrando na escola. É natural que uma menina como ela, tão viva e inteligente, não se adapte a um ensino assim rudimentar. Pela janela, Snyder viu a filha brincando com o cãozinho e se enterneceu como de hábito. Continuava a ouvir a voz do velho. Não estava dizendo absolutamente que Tonya era uma má professora. Pelo contrário. Simon vira Tonya crescer, seus pais são meus vizinhos. Sempre admirou a dedicação da filha deles ao estudo e depois, quando se tornou uma moça, seu desejo de ir para uma cidade pequena e ensinar os filhos das pessoas carentes. Pára e pensa que, se fosse filha dele, não permitiria. Uma moça assim encantadora em meio a homens tão rudes.Tinha qualquer coisa de sua própria mulher, uma liberdade que, ele tem certeza, acabará lhe trazendo mais problemas que soluções. Liberdade é uma arma perigosa de ser manejada, não é para qualquer um e as mulheres são delicadas demais para perceberem o quanto. Vê a face erguida de Tonya desdenhando desse seu discurso, ao ir conhecer as instalações da escola em Platty City. Nesse ponto, ainda que goste de Simon, Snyder não pode evitar o comentário amargo. Os mineiros não deveriam ser gente carente. Os que vivem às nossas custas sempre fazem fortuna. Snyder! O senhor Simon apenas quer apenas ajudar, amor. Deixe, Sarah. Ele tem razão. O senhor tem sido generoso, mas não podemos tratar sempre com um único homem. Nem o senhor pode negociar com todos os mineiros da região. Simon concorda e aproveita a oportunidade para expor seu desejo. É verdade. Por isso tento fazer o que posso por meus amigos mineiros como você. E no caso creio que posso fazer isso por vocês e pela menina.
Mas do que exatamente está Simon falando? Gostaria de
oferecer estudos para Diana em Denver. Senhor, vivemos aqui no flanco da montanha, entre o topo do mundo e o fundo do vale, disse Snyder. O próprio Simon fazia esse percurso uma vez por semana e sabe das dificuldades que Sarah teria para levar Diana todos os dias, conhecia todos os perigos. Sim, sabe. Ainda mais porque os sioux estão em pé de guerra por termos dado fim às fontes de subsistência deles.
Mas se ficar para jantar conosco, senhor Simon, verá que
aqui temos apenas feijão e carne de porco. Aceito, disse Simon subitamente. Porque já estava ficando mesmo com fome e porque estava decidido a ajudar aquela menininha tão linda que lembrava tanto sua netinha, morta num ataque dos índios.
Três homens cavalgam pelas ondulações da campina na
direção das montanhas de pedra, com expressões malévolas nos rostos sombreados pelas largas abas de cada chapéu. Nada falam entre si. Dispostos a cada detalhe das coisas que lhes estavam planejadas para as horas seguintes. Suas montarias, corcéis crioulos se agigantando velozes contra o horizonte próximo as pedras, marretam às ondulações da ravina, pisoteando as plantas agrestes em assustador tropel. Na cintura pendem revolveres de médio calibre com incrustações de ouro nas coronhas; nas bandoleiras das selas encaixavam-se rifles de alta precisão. Sofreiam os cavalos diante da garganta. Os animais rumam agora na direção indicada pelas rédeas dentro do apertado caminho entre os montes pétreos e ermos. Muito ao longe se ouve o rumorejar de correntes. Sobem um pouco pelo desfiladeiro transformado num forno pelo sol que insistira sobre as pedras durante todo o dia. Diante deles desvenda-se então a superfície onde Platty City foi construída e em seguida a cidade, com sua rua central fervilhante de pessoas entre carroças com utensílios, veículos maiores, com molas, puxados por parelhas de mulas, e ainda alguns outros com mantimentos sob lonas, puxados por juntas de bois.
Entram lentamente na cidade. Observam e são
observados, não tanto porém quanto o seriam em qualquer outro tipo de cidade daquela região que não um povoado mineiro durante as notícias do ouro. Passam pelo salão onde a avenida central começa. Na porta estão postados comerciantes e garimpeiros conversando sobre tudo, sobre nada de importante. Um deles puxa a corda que corre pela roldana. O prédio é de estuque e o vidro na fachada quase inteira devolve o movimento da rua e os próprios Bernes, Born e Bumbe, que se inclinam no sentido um do outro e cochicharam entre si. Apertam levemente o trote.
Algumas das casas de madeira, assentadas diretamente
no chão, de dois andares, têm passadiças e umas poucas mantém a cobertura de pele de antílope à janela – estamos antes da chegada regular do vidro e do próprio desaparecimento desse tipo de caça. Essa maneira rústica de fechar a janela consiste num luxo na casa de Maggie Mae, assim os quartos mantinham um adequado toque noturno mesmo ao meio-dia. Em frente a esses estranhos aposentos, um lampião do lado de fora das portas ilumina um numero. Os tetos são baixos e a iluminação tênue onde o sol falta absolutamente: durante todo o decorrer do dia, está acesa a chama de lamparinas e lustres de castiçais com velas vermelhas. As garotas de Maggie tinham todas a tez muito pálida e olheiras, correspondendo aos motivos fantasmagóricos da decoração de suas alcovas. Durante o dia inteiro também sobe de todas as frestas da casa a fumaça e o cheiro de ópio - ali também os olhos das meninas, a maioria bem longe desse termo por que eram chamadas.
No centro dos quartos, a razão de tudo, da própria casa,
as camas de madeira escura vinda do Norte, do Wyoming e Montana. A moldura dos grandes espelhos é dourada, as colchas e cortinas de cetim, os tapetes de veludo, as roupas íntimas de seda, tudo o que se podia oferecer de melhor a homens que, tendo descoberto ouro, adentravam a região dos ricos, dos que pagam pelo melhor que a vida tem a dar.
Embaixo, eis um salão de espera digno da capital. Ao
canto, tocado por um negro, um piano do qual sempre sai a música triste dos noturnos de Chopin. Cobertura de pano verde nas mesas de mármore. Atrás do balcão o barman passará o dia entre servir os fregueses e enxugar os copos recortado na estante espelhada onde sobressaem as bebidas mais finas, mas a mais consumida é o velho uísque de milho. Assim que se passa pela porta de entrada, a mesa de bilhar ao lado da qual aquele a quem Maggie chama mon Chasseur” permanece todo o tempo em estado de alerta.
É de tardinha quando os três passam por ele. Estão indo
na direção da mulher, que faz contas numa mesa mais ao canto. Uma de suas faces brilha fracamente pela luz do lampião na parede.
A habitação dos Green se destaca dentre as casas dos
moradores de Platty City, não por qualquer razão além do carinho com que Sarah se dedica aos serviços do lar. Não fosse isso, seria como várias outras casas erguidas em mutirão pelos mineiros com família quando decidiram se estabelecer ali. É casa simples, característica das planícies entre o Missouri e as Rochosas. Feita com pedaços de terra endurecida, à maneira dos índios. Divide-se em três peças, separadas por cobertores. A cozinha faz também o papel de sala. Algumas prateleiras suspensas guardam os alimentos. O feijão ocupa um espaço maior, os vendedores garantiram ser chileno, talvez não mentissem, pois os Green, desde que vieram do Leste, nunca comeram na vida um feijão tão bom. A carne. Pães e broas. O melaço substitui o açúcar e traz as moscas. Muitas delas haviam se apaixonado pelo nariz do senhor Simon. Bichinhos malditos! – exclamou rindo o velho. Seus dois guarda-costas, Michael e Daniel, riram também, como que por uma função de seu cargo. Já estavam quase no fim da refeição e nada de Simon voltar ao assunto sobre Diana.
É claro que Snyder quer o melhor para a filha. Não
hesitaria em dar a própria vida pelo bem dela. Arrepende-se agora de não ter permitido que Simon dissesse logo tudo o que tinha a dizer. Sara também, mal mastigava a carne. Uma delícia! – deleitava-se Woodsrow Simon, lambendo os beiços e depois passando o guardanapo na boca de modo bem elegante, para compensar. Snyder não resistiu mais. E quanto a Diana, senhor Simon? Com seu prato já limpo, Simon disse estar pensando se Snyder não ia mais perguntar. Sarah também externou seu ansioso coração materno. O que o senhor tem em mente para nossa filha?
A menina, aparentemente alheia ao fato de ser o centro
do jantar, come num banquinho com o prato sobre o colo. Mas também ela está excitada, desde que ouviu seu nome à mesa, sem saber o que aquele velho de rosto bondoso representará em sua pequena vida.
Bem...
Enfim, o comerciante volta ao assunto que ali o levara.
Como já tinha dito, não seria louco de pensar que Sarah poderia levar Diana a Denver diariamente. Embora pudesse arranjar emprego para Snyder lá, sei que a terra aqui ainda traz muita riqueza oculta. As jazidas a céu aberto estão se esgotando, diz Snyder num pedido de socorro. Vocês poderão com sucesso desviar o riacho e escavarem o leito. Também existem outras possibilidades, como os flumes para fazer o ouro descer pelas colinas. Quero que você seja meu homem de confiança nessas empreitadas. O velho faz uma pausa como a esperar nova interrupção de Snyder, cuja paciência acabava quando acabava o dia de trabalho. A interrupção não vem. Simpson sorri e continua.Vocês poderão ainda abrir poços e galerias. Podem contar comigo. Vocês ganhando, eu ganho também.
Então, se Diana não poderia ir e vir todos os dias, e e se
não convém que a gente vá para Denver, como ela poderá estudar lá? Ela pode ficar na minha casa nos dias de aula, disse Simon, e nas sextas eu a traria para passar o final de semana com vocês. Será por um tempo pequeno, pois sabemos como é transitório o negócio da mineração Mas o benefício dela será para toda a vida. Na casa dele? E por que o senhor faria isso por ela?, perguntou Snyder subitamente desconfiado. Mas Sarah o repreendeu novamente. Cale a boca, homem! Será que você não consegue ficar quieto e esperar as pessoas falarem? Mas Simon entende o pai, e diz que a preocupação dele é natural. Olhe, Snyder, disse o velho, olhando nos olhos do mineiro, eu perdi minha neta quando ela estava com a idade de Diana. Pode ser que seja egoísmo de minha parte tentar transferir o amor que eu tinha por ela e para tanto afastando uma outra menina um tempo, ainda que pequeno, de seus pais. Mas não me restam muitos anos de vida, e para vocês sim, e ela tem a vida inteira. Além do mais, não ficará na verdade afastada de vocês. Muita gente vai a Denver só para se divertir, jogar, beber e... – Simon interrompeu-se e constrangido corrigiu o restante da frase – estar no saloon mais famoso da região... E vocês certamente teriam uma razão muito justa para fazerem o mesmo percurso, durante a semana também se quiserem, para ver a menina. O caminho não é mais perigoso do que a cidade em que vivem. Snyder está estupefato. Fora uma quinta-feira de trabalho árduo. Estava pronto para chegar em casa, jantar, fazer amor com Sarah e dormir – apenas uma noite como as outras. E agora, nem bem anoitece, Woodsrow entra em sua casa trazendo aquele furacão de pensamentos, projetos e possibilidades,tanto para ele, para a exploração do ouro, como principalmente para sua família. É demais para um sujeito nervoso como ele. Minha mulher, continuou Simon, deixará um dos quartos de nossa casa sempre pronto para vocês pernoitarem. O que você diz? Snyder diz que o senhor Simon os pegou desprevenidos, que argumenta não haver muito o que pensar, no tocante a Diana. Vocês sabem que os mineiros têm fama de não darem muito valor à educação e até de serem preconceituosos com relação às pessoas mais cultas. Mas acredita não ser o caso do casal. Claro que não, exclamam em uníssono Snyder e Sarah. Antes de ser mineiro, diz ele, fui filho de um professor em Chicago. Quando eu e Sarah nos casamos, ela teve um professor para suprir o tempo em que ela foi educada por seus pais apenas para arranjar marido. Quando decidimos tentar a sorte a Oeste do Mississipi, imaginava eu que aqui fosse o Eldorado, inclusive quanto às chances de educação para Diana, são famosas algumas conquistas das mulheres faroeste nesse sentido. Antes que eu descobrisse que as coisas não eram exatamente assim, Sarah já estava grávida. Aqui não é o Eldorado, murmurou Sarah; é apenas o Colorado... Snyder olha meio pasmo admirado do senso de humor de sua mulher, que ainda desconhecia. O velho Simon intervém. Então, amigo, você me entende. Em Denver, Diana saberá mais que ler e escrever, e fazer contas. Os professores lá usam textos que transmitem, além do aprendizado do idioma, uma visão humana do mundo, e da nossa própria região, diz Simon,pensando em McGuffey e Mark Twain. Diana terá uma escola com Biblioteca, Grêmio, conferências, onde será recebida sem discriminação. E depois a universidade. Snyder respirou fundo, completamente convencido.
Quando os passos dos três homens se fazem ouvir no
interior da casa de Maggie,os que jogavam pôquer voltam-se e vêem os vultos no miasma que pairam no ar viciado da casa de tolerância, a dúbia face de homens jovens bem apessoados carregando na fronte o signo do Mal. O vento sopra e abre e fecha, batendo, uma janela no final do corredor lá em cima. Três moças que olhavam do alto das escadas tentam se recolher, temendo que escolhessem uma delas. A maioria das meninas de Maggie sentem-se à vontade naquele antro. Sabem-se marginais, abandonadas, residentes no inferno,mas têm também consciência de que são livres, livres como por exemplo a mulher do banqueiro jamais poderia ser. São mães solteiras que ali encontram um lar que a sociedade lhes negou, mulheres que ali atrairiam os mais gentis homens da cidade, que de outra forma só poderiam ter caso se casassem com eles, o que mudariam naturalmente a questão da liberdade dentre outras. Você é a Maggie?, perguntou um dos homens. Para bem servi-los, disse a mulher. Queremos três quartos e uma de suas garotas nos esperando em cada um com uma garrafa de absinto à cabeceira. E vocês tem alguma preferência? Tenho brancas, amarelas, vermelhas, negras... Eu tenho apenas uma preferência, disse Bernie, o mais jovem dos três, uns vinte anos. Seu hálito recendia a álcool digerido. Que a minha seja bonita. Tão assustadora é a aparência do Mal no rosto dele que mesmo a calejada Maggie se furtou de fazer algum comentário espirituoso sobre a beleza de todas as suas meninas. Agora os três estão subindo as escadas, guiados pela cafetã. Passam pelo quarto de Aglaé e a porta é aberta para Matt. Diante do 7 de Octavie, Ben é deixado. Maggie pára com Bernie enfim diante da porta de Priscila, de cuja aparência ele não poderá reclamar, pois é a mais pura encarnação da beleza. Seus olhos, evoca Maggie, são lagos de luz; seus cabelos, muito lisos e loiros, são raios de sol que lhe descem pela cabeça; seu sorriso mostra dentes de brancura incomum, e em nenhum lugar há falha. Seus lábios fechados parecem o desenho de uma carinha de gato feita por uma criança e o colorido de magnífica intensidade; suas faces, maças róseas a que se deseja morder mesmo sem fome.Seu colo como as planícies do Colorado vistas das Rochosas, de onde subiam as colinas gêmeas, nenhum homem poderia deixar de regozijar com a visão delas, e descer ao vale do rio que corre naquele vale fechado, a não ser para o privilégio de ns poucos. Nunca Maggie iria entender por que acreditou que Bernie deveria ser um desses. Agora estava feito. No interior do aposento, Priscila vira e depara com os olhos flamejantes que a devoram. Faz meia hora que jantou, uma substanciosa sopa de feijão, ervilha e batata. Está sonolenta e mole, sente-se gostosamente adormecer quando a porta abre. Pensara em recolher-se um pouco antes de se preparar para o final do dia de trabalho dos mineiros, quando o seu na prática começaria. Sentindo o desejo quase insensato e quase doloroso de possuir aquele anjo, não apenas pelo prazer mas também por uma estranha necessidade,, uma compulsão em nada relativa a sexo, Bernie avança a passos lentos mas determinados. Priscila, por repugnância ou medo, não esboça reação. Está simplesmente paralisada.
Um encontro inesperado. Jamais vira olhar tão
apavorante nem em seus constantes pesadelos.É bem verdade que os olhos do xerife Ian Blake possuíam brilho semelhante, quase tão assustador, mas aqui esse tom de pavor está em forma mais, se é possível dizer isso, inocente. Não, não será possível dize-lo. E Blake, apesar disso, é tão gentil. E gentilezas são algo que definitivamente o rapaz à frente dela não está disposto a se dar. Mas Priscila com alívio percebe que se enganou. Está vestida com um chambre aberto até os joelhos. Tem nas mãos e presas junto aos seios no corpete de abotoamento frontal flores do campo que um cliente da noite anterior trouxera. Segura o buquê, afagando a corola das sépalas, ao ajeita-lo num vaso no toucador. Ah, um pouco de beleza basta para suportar a tristeza. Ninguém deixa de passar o que precisa passar nesta vida. E teria amigos tão verdadeiros se fosse uma mulher respeitável? Olhe essa pétala... que sensível ele foi ao se lembrar dela. Quanto às crianças correndo pela casa, bem, não se pode ter tudo, pensa, olhando o pente de estimação de empunhadura finamente ornamentada. Destaca-se o entalhe. PW. De seu nome, Walker. Não vá deixar cair uma flor tão linda como essa e pisa-la, diz Bernie e afunda um pouco mais a haste na seda. Veja, a antera sujou sua pele de amarelo. Uma cor inadequada para tamanha beleza... Deixe-me limpar... assim... Levou os dedos dos seios à boca. Que delícia. Que garota. Mas não zombará dele. Esse tipo de sensação desde sempre o perseguiu, como um murmúrio de janelas ao vento em noite de tempestade. Mas agora está livre. Acalmarei esse incômodo. Olhando as flores, olha todas as aves perversas dos céus sombrios sobre ele, revoando e descendo. Chupa as pontas dos dedos. Hun... Não sabia que pólen pode ser assim tão gostoso... Priscila sorriu um triste sorriso meigo que desencadeou a crise. Subitamente ele rapou a mecha que lhe caía na testa. Seus cabelos são lindos... De uma cor inacreditável, parece que têm brilho próprio. Ela conseguiu balbuciar. Você é louco... E olhava seus cabelos no chão como se pudesse reavê-los só de olhar, como se traz alguém de novo para perto através da saudade. Louco? Você ainda não viu nada, diz Bernie soletrando. Entra na abertura do vestido, erguendo-o com o antebraço até a altura do pequeno monte sagrado em Platty City,enche as mãos com as carnes da parte posterior da coxa esquerda, aperta-a até cravar as unhas. As lagrimas começando a escorrer pelo seu rosto, Priscila apenas consegue balbuciar. Por quê? Ela até pensa em detê-lo de alguma forma mas a faca na mão direita do rapaz, devolvendo todas as sombrias luzes do quarto, cala qualquer reação. As unhas se cravam mais, nascem cinco filetes, ela cerra os olhos, grita, ele traz a mão para fora da roupa da moça, rasgando a perna por onde sai, e, onde o grito se prolonga, o braço ganha impulso para cima, descendo num tapa que estala e a joga na cama. Por quê? É tudo o que consegue dizer. Por quê? – repete, o corpo inteiro chorando. Por quê? Bernie leva à boca a garrafa de absinto. Sua voz ecoa a de Priscila. Por quê? – disse, arrastando as palavras. Ora, porque você é muito feia!... Lá fora, o sol se esconde. Um tom róseo magnífico na paisagem crepuscular.