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Entre a forca e o paraíso

Ricardo de Almeida Rocha

O sol derramava-se pelas montanhas Rochosas, sobre


seus cumes brancos, imponentes. Refletia-se no lago que
devolvia o céu limpo da primavera no Colorado. um sábado
esplendoroso. Ao se instalar a manhã em Platty city, havia no
ar algo de sublime. Todavia, jamais a cidadezinha mineira
vivera um momento tão escuro, sem nenhum aroma de vida,
sem qualquer vestígio de paz, em total contraste com a
natureza exuberante. A indignação gangrenava as almas de
todos os vizinhos da pequena Diana, aquele anjo de candura.

O casal chorava em desespero a filhinha brutalmente


assassinada. Sara Green não se conformava, em pranto
convulso. Seu marido, Snyder, consolava-a embora ele mesmo
não conseguisse se conformar. Ninguém conseguia. Quem
poderia ter sido capaz de tamanha crueldade? A senhora
Green decidiu que a menina estava melhor do que se
sobrevivesse ao crime.
Ironicamente, aqueles momentos de tanta tristeza se
originaram num dia de extraordinária alegria para os Green...

Os mineiros levam uma vida mais difícil. As jazidas a céu


aberto começam a se esgotar, exigindo mais técnica e capital,
além da paciência. Depois de tantos sacrifícios ainda estão
sujeitos à exploração dos comerciantes. Pelo menos quanto a
isso, os habitantes de Platty City não têm queixa, estão
satisfeitos com o senhor Woodsrow Simon como intermediário
entre as pedras e o dinheiro, agora que os tempos das
transações em pó de ouro haviam acabado.

Sobretudo Snyder e Sarah. Mais que quaisquer outros


têm motivos gratidão a Simon.O marido voltava de um dia
exaustivo sob o sol causticante no curso d água que, vindo da
montanha, ia desembocar no rio que atravessará a capital.
Quando entra em casa, Simon o espera servido de um café.
Olá, cumprimentou o velho efusivamente, deixando a xícara
sobre a mesa rústica. Olá, senhor. Simon diz que Snyder está
cada vez mais vermelho. Parece um tomate, riu o velho. O sol
está quente demais. Snyder bem prefere as galerias.

O velho começa a falar em tom solene como principiando


um assunto grave... Mas Snyder percebe que não precisa se
preocupar ao ver a esposa sorrindo e, a seu olhar,
respondendo com outro de visível alegria. O comerciante
continua. Sua mulher estava me contando das dificuldades
que a filha de vocês está encontrando na escola. É natural
que uma menina como ela, tão viva e inteligente, não se
adapte a um ensino assim rudimentar. Pela janela, Snyder viu
a filha brincando com o cãozinho e se enterneceu como de
hábito. Continuava a ouvir a voz do velho. Não estava dizendo
absolutamente que Tonya era uma má professora. Pelo
contrário. Simon vira Tonya crescer, seus pais são meus
vizinhos. Sempre admirou a dedicação da filha deles ao
estudo e depois, quando se tornou uma moça, seu desejo de
ir para uma cidade pequena e ensinar os filhos das pessoas
carentes.
Pára e pensa que, se fosse filha dele, não permitiria.
Uma moça assim encantadora em meio a homens tão
rudes.Tinha qualquer coisa de sua própria mulher, uma
liberdade que, ele tem certeza, acabará lhe trazendo mais
problemas que soluções. Liberdade é uma arma perigosa de
ser manejada, não é para qualquer um e as mulheres são
delicadas demais para perceberem o quanto. Vê a face
erguida de Tonya desdenhando desse seu discurso, ao ir
conhecer as instalações da escola em Platty City.
Nesse ponto, ainda que goste de Simon, Snyder não
pode evitar o comentário amargo. Os mineiros não deveriam
ser gente carente. Os que vivem às nossas custas sempre
fazem fortuna. Snyder! O senhor Simon apenas quer apenas
ajudar, amor. Deixe, Sarah. Ele tem razão. O senhor tem sido
generoso, mas não podemos tratar sempre com um único
homem. Nem o senhor pode negociar com todos os mineiros
da região. Simon concorda e aproveita a oportunidade para
expor seu desejo. É verdade. Por isso tento fazer o que posso
por meus amigos mineiros como você. E no caso creio que
posso fazer isso por vocês e pela menina.

Mas do que exatamente está Simon falando? Gostaria de


oferecer estudos para Diana em Denver. Senhor, vivemos aqui
no flanco da montanha, entre o topo do mundo e o fundo do
vale, disse Snyder. O próprio Simon fazia esse percurso uma
vez por semana e sabe das dificuldades que Sarah teria para
levar Diana todos os dias, conhecia todos os perigos.
Sim, sabe. Ainda mais porque os sioux estão em pé de
guerra por termos dado fim às fontes de subsistência deles.

Mas se ficar para jantar conosco, senhor Simon, verá que


aqui temos apenas feijão e carne de porco. Aceito, disse
Simon subitamente. Porque já estava ficando mesmo com
fome e porque estava decidido a ajudar aquela menininha tão
linda que lembrava tanto sua netinha, morta num ataque dos
índios.

Três homens cavalgam pelas ondulações da campina na


direção das montanhas de pedra, com expressões malévolas
nos rostos sombreados pelas largas abas de cada chapéu.
Nada falam entre si. Dispostos a cada detalhe das coisas que
lhes estavam planejadas para as horas seguintes. Suas
montarias, corcéis crioulos se agigantando velozes contra o
horizonte próximo as pedras, marretam às ondulações da
ravina, pisoteando as plantas agrestes em assustador tropel.
Na cintura pendem revolveres de médio calibre com
incrustações de ouro nas coronhas; nas bandoleiras das selas
encaixavam-se rifles de alta precisão.
Sofreiam os cavalos diante da garganta. Os animais
rumam agora na direção indicada pelas rédeas dentro do
apertado caminho entre os montes pétreos e ermos. Muito ao
longe se ouve o rumorejar de correntes. Sobem um pouco
pelo desfiladeiro transformado num forno pelo sol que
insistira sobre as pedras durante todo o dia. Diante deles
desvenda-se então a superfície onde Platty City foi construída
e em seguida a cidade, com sua rua central fervilhante de
pessoas entre carroças com utensílios, veículos maiores, com
molas, puxados por parelhas de mulas, e ainda alguns outros
com mantimentos sob lonas, puxados por juntas de bois.

Entram lentamente na cidade. Observam e são


observados, não tanto porém quanto o seriam em qualquer
outro tipo de cidade daquela região que não um povoado
mineiro durante as notícias do ouro. Passam pelo salão onde
a avenida central começa. Na porta estão postados
comerciantes e garimpeiros conversando sobre tudo, sobre
nada de importante. Um deles puxa a corda que corre pela
roldana. O prédio é de estuque e o vidro na fachada quase
inteira devolve o movimento da rua e os próprios Bernes,
Born e Bumbe, que se inclinam no sentido um do outro e
cochicharam entre si. Apertam levemente o trote.

Algumas das casas de madeira, assentadas diretamente


no chão, de dois andares, têm passadiças e umas poucas
mantém a cobertura de pele de antílope à janela – estamos
antes da chegada regular do vidro e do próprio
desaparecimento desse tipo de caça. Essa maneira rústica de
fechar a janela consiste num luxo na casa de Maggie Mae,
assim os quartos mantinham um adequado toque noturno
mesmo ao meio-dia.
Em frente a esses estranhos aposentos, um lampião do
lado de fora das portas ilumina um numero. Os tetos são
baixos e a iluminação tênue onde o sol falta absolutamente:
durante todo o decorrer do dia, está acesa a chama de
lamparinas e lustres de castiçais com velas vermelhas. As
garotas de Maggie tinham todas a tez muito pálida e olheiras,
correspondendo aos motivos fantasmagóricos da decoração
de suas alcovas. Durante o dia inteiro também sobe de todas
as frestas da casa a fumaça e o cheiro de ópio - ali também os
olhos das meninas, a maioria bem longe desse termo por que
eram chamadas.

No centro dos quartos, a razão de tudo, da própria casa,


as camas de madeira escura vinda do Norte, do Wyoming e
Montana. A moldura dos grandes espelhos é dourada, as
colchas e cortinas de cetim, os tapetes de veludo, as roupas
íntimas de seda, tudo o que se podia oferecer de melhor a
homens que, tendo descoberto ouro, adentravam a região dos
ricos, dos que pagam pelo melhor que a vida tem a dar.

Embaixo, eis um salão de espera digno da capital. Ao


canto, tocado por um negro, um piano do qual sempre sai a
música triste dos noturnos de Chopin. Cobertura de pano
verde nas mesas de mármore. Atrás do balcão o barman
passará o dia entre servir os fregueses e enxugar os copos
recortado na estante espelhada onde sobressaem as bebidas
mais finas, mas a mais consumida é o velho uísque de milho.
Assim que se passa pela porta de entrada, a mesa de bilhar
ao lado da qual aquele a quem Maggie chama mon Chasseur”
permanece todo o tempo em estado de alerta.

É de tardinha quando os três passam por ele. Estão indo


na direção da mulher, que faz contas numa mesa mais ao
canto. Uma de suas faces brilha fracamente pela luz do
lampião na parede.

A habitação dos Green se destaca dentre as casas dos


moradores de Platty City, não por qualquer razão além do
carinho com que Sarah se dedica aos serviços do lar. Não
fosse isso, seria como várias outras casas erguidas em
mutirão pelos mineiros com família quando decidiram se
estabelecer ali. É casa simples, característica das planícies
entre o Missouri e as Rochosas. Feita com pedaços de terra
endurecida, à maneira dos índios. Divide-se em três peças,
separadas por cobertores. A cozinha faz também o papel de
sala. Algumas prateleiras suspensas guardam os alimentos. O
feijão ocupa um espaço maior, os vendedores garantiram ser
chileno, talvez não mentissem, pois os Green, desde que
vieram do Leste, nunca comeram na vida um feijão tão bom. A
carne. Pães e broas. O melaço substitui o açúcar e traz as
moscas. Muitas delas haviam se apaixonado pelo nariz do
senhor Simon. Bichinhos malditos! – exclamou rindo o velho.
Seus dois guarda-costas, Michael e Daniel, riram também,
como que por uma função de seu cargo. Já estavam quase no
fim da refeição e nada de Simon voltar ao assunto sobre
Diana.

É claro que Snyder quer o melhor para a filha. Não


hesitaria em dar a própria vida pelo bem dela. Arrepende-se
agora de não ter permitido que Simon dissesse logo tudo o
que tinha a dizer. Sara também, mal mastigava a carne. Uma
delícia! – deleitava-se Woodsrow Simon, lambendo os beiços e
depois passando o guardanapo na boca de modo bem
elegante, para compensar. Snyder não resistiu mais. E quanto
a Diana, senhor Simon? Com seu prato já limpo, Simon disse
estar pensando se Snyder não ia mais perguntar. Sarah
também externou seu ansioso coração materno. O que o
senhor tem em mente para nossa filha?

A menina, aparentemente alheia ao fato de ser o centro


do jantar, come num banquinho com o prato sobre o colo. Mas
também ela está excitada, desde que ouviu seu nome à mesa,
sem saber o que aquele velho de rosto bondoso representará
em sua pequena vida.

Bem...

Enfim, o comerciante volta ao assunto que ali o levara.


Como já tinha dito, não seria louco de pensar que Sarah
poderia levar Diana a Denver diariamente. Embora pudesse
arranjar emprego para Snyder lá, sei que a terra aqui ainda
traz muita riqueza oculta. As jazidas a céu aberto estão se
esgotando, diz Snyder num pedido de socorro. Vocês poderão
com sucesso desviar o riacho e escavarem o leito. Também
existem outras possibilidades, como os flumes para fazer o
ouro descer pelas colinas. Quero que você seja meu homem
de confiança nessas empreitadas. O velho faz uma pausa
como a esperar nova interrupção de Snyder, cuja paciência
acabava quando acabava o dia de trabalho. A interrupção não
vem. Simpson sorri e continua.Vocês poderão ainda abrir
poços e galerias. Podem contar comigo. Vocês ganhando, eu
ganho também.

Então, se Diana não poderia ir e vir todos os dias, e e se


não convém que a gente vá para Denver, como ela poderá
estudar lá? Ela pode ficar na minha casa nos dias de aula,
disse Simon, e nas sextas eu a traria para passar o final de
semana com vocês. Será por um tempo pequeno, pois
sabemos como é transitório o negócio da mineração Mas o
benefício dela será para toda a vida. Na casa dele? E por que
o senhor faria isso por ela?, perguntou Snyder subitamente
desconfiado. Mas Sarah o repreendeu novamente. Cale a
boca, homem! Será que você não consegue ficar quieto e
esperar as pessoas falarem? Mas Simon entende o pai, e diz
que a preocupação dele é natural. Olhe, Snyder, disse o velho,
olhando nos olhos do mineiro, eu perdi minha neta quando ela
estava com a idade de Diana. Pode ser que seja egoísmo de
minha parte tentar transferir o amor que eu tinha por ela e
para tanto afastando uma outra menina um tempo, ainda que
pequeno, de seus pais. Mas não me restam muitos anos de
vida, e para vocês sim, e ela tem a vida inteira. Além do mais,
não ficará na verdade afastada de vocês. Muita gente vai a
Denver só para se divertir, jogar, beber e... – Simon
interrompeu-se e constrangido corrigiu o restante da frase –
estar no saloon mais famoso da região... E vocês certamente
teriam uma razão muito justa para fazerem o mesmo
percurso, durante a semana também se quiserem, para ver a
menina. O caminho não é mais perigoso do que a cidade em
que vivem.
Snyder está estupefato. Fora uma quinta-feira de
trabalho árduo. Estava pronto para chegar em casa, jantar,
fazer amor com Sarah e dormir – apenas uma noite como as
outras. E agora, nem bem anoitece, Woodsrow entra em sua
casa trazendo aquele furacão de pensamentos, projetos e
possibilidades,tanto para ele, para a exploração do ouro,
como principalmente para sua família. É demais para um
sujeito nervoso como ele. Minha mulher, continuou Simon,
deixará um dos quartos de nossa casa sempre pronto para
vocês pernoitarem. O que você diz?
Snyder diz que o senhor Simon os pegou desprevenidos,
que argumenta não haver muito o que pensar, no tocante a
Diana. Vocês sabem que os mineiros têm fama de não darem
muito valor à educação e até de serem preconceituosos com
relação às pessoas mais cultas. Mas acredita não ser o caso
do casal. Claro que não, exclamam em uníssono Snyder e
Sarah. Antes de ser mineiro, diz ele, fui filho de um professor
em Chicago. Quando eu e Sarah nos casamos, ela teve um
professor para suprir o tempo em que ela foi educada por
seus pais apenas para arranjar marido. Quando decidimos
tentar a sorte a Oeste do Mississipi, imaginava eu que aqui
fosse o Eldorado, inclusive quanto às chances de educação
para Diana, são famosas algumas conquistas das mulheres
faroeste nesse sentido. Antes que eu descobrisse que as
coisas não eram exatamente assim, Sarah já estava grávida.
Aqui não é o Eldorado, murmurou Sarah; é apenas o
Colorado...
Snyder olha meio pasmo admirado do senso de humor de
sua mulher, que ainda desconhecia. O velho Simon intervém.
Então, amigo, você me entende. Em Denver, Diana saberá
mais que ler e escrever, e fazer contas. Os professores lá
usam textos que transmitem, além do aprendizado do idioma,
uma visão humana do mundo, e da nossa própria região, diz
Simon,pensando em McGuffey e Mark Twain. Diana terá uma
escola com Biblioteca, Grêmio, conferências, onde será
recebida sem discriminação. E depois a universidade. Snyder
respirou fundo, completamente convencido.

Quando os passos dos três homens se fazem ouvir no


interior da casa de Maggie,os que jogavam pôquer voltam-se
e vêem os vultos no miasma que pairam no ar viciado da casa
de tolerância, a dúbia face de homens jovens bem apessoados
carregando na fronte o signo do Mal. O vento sopra e abre e
fecha, batendo, uma janela no final do corredor lá em cima.
Três moças que olhavam do alto das escadas tentam se
recolher, temendo que escolhessem uma delas. A maioria das
meninas de Maggie sentem-se à vontade naquele antro.
Sabem-se marginais, abandonadas, residentes no inferno,mas
têm também consciência de que são livres, livres como por
exemplo a mulher do banqueiro jamais poderia ser. São mães
solteiras que ali encontram um lar que a sociedade lhes
negou, mulheres que ali atrairiam os mais gentis homens da
cidade, que de outra forma só poderiam ter caso se casassem
com eles, o que mudariam naturalmente a questão da
liberdade dentre outras.
Você é a Maggie?, perguntou um dos homens. Para bem
servi-los, disse a mulher. Queremos três quartos e uma de
suas garotas nos esperando em cada um com uma garrafa de
absinto à cabeceira. E vocês tem alguma preferência? Tenho
brancas, amarelas, vermelhas, negras... Eu tenho apenas uma
preferência, disse Bernie, o mais jovem dos três, uns vinte
anos. Seu hálito recendia a álcool digerido. Que a minha seja
bonita. Tão assustadora é a aparência do Mal no rosto dele
que mesmo a calejada Maggie se furtou de fazer algum
comentário espirituoso sobre a beleza de todas as suas
meninas.
Agora os três estão subindo as escadas, guiados pela
cafetã. Passam pelo quarto de Aglaé e a porta é aberta para
Matt. Diante do 7 de Octavie, Ben é deixado. Maggie pára com
Bernie enfim diante da porta de Priscila, de cuja aparência ele
não poderá reclamar, pois é a mais pura encarnação da
beleza. Seus olhos, evoca Maggie, são lagos de luz; seus
cabelos, muito lisos e loiros, são raios de sol que lhe descem
pela cabeça; seu sorriso mostra dentes de brancura incomum,
e em nenhum lugar há falha. Seus lábios fechados parecem o
desenho de uma carinha de gato feita por uma criança e o
colorido de magnífica intensidade; suas faces, maças róseas a
que se deseja morder mesmo sem fome.Seu colo como as
planícies do Colorado vistas das Rochosas, de onde subiam as
colinas gêmeas, nenhum homem poderia deixar de regozijar
com a visão delas, e descer ao vale do rio que corre naquele
vale fechado, a não ser para o privilégio de ns poucos. Nunca
Maggie iria entender por que acreditou que Bernie deveria ser
um desses.
Agora estava feito.
No interior do aposento, Priscila vira e depara com os
olhos flamejantes que a devoram. Faz meia hora que jantou,
uma substanciosa sopa de feijão, ervilha e batata. Está
sonolenta e mole, sente-se gostosamente adormecer quando
a porta abre. Pensara em recolher-se um pouco antes de se
preparar para o final do dia de trabalho dos mineiros, quando
o seu na prática começaria.
Sentindo o desejo quase insensato e quase doloroso de
possuir aquele anjo, não apenas pelo prazer mas também por
uma estranha necessidade,, uma compulsão em nada relativa
a sexo, Bernie avança a passos lentos mas determinados.
Priscila, por repugnância ou medo, não esboça reação. Está
simplesmente paralisada.

Um encontro inesperado. Jamais vira olhar tão


apavorante nem em seus constantes pesadelos.É bem
verdade que os olhos do xerife Ian Blake possuíam brilho
semelhante, quase tão assustador, mas aqui esse tom de
pavor está em forma mais, se é possível dizer isso, inocente.
Não, não será possível dize-lo. E Blake, apesar disso, é tão
gentil. E gentilezas são algo que definitivamente o rapaz à
frente dela não está disposto a se dar. Mas Priscila com alívio
percebe que se enganou.
Está vestida com um chambre aberto até os joelhos. Tem
nas mãos e presas junto aos seios no corpete de abotoamento
frontal flores do campo que um cliente da noite anterior
trouxera. Segura o buquê, afagando a corola das sépalas, ao
ajeita-lo num vaso no toucador. Ah, um pouco de beleza basta
para suportar a tristeza. Ninguém deixa de passar o que
precisa passar nesta vida. E teria amigos tão verdadeiros se
fosse uma mulher respeitável? Olhe essa pétala... que
sensível ele foi ao se lembrar dela. Quanto às crianças
correndo pela casa, bem, não se pode ter tudo, pensa,
olhando o pente de estimação de empunhadura finamente
ornamentada. Destaca-se o entalhe. PW. De seu nome,
Walker.
Não vá deixar cair uma flor tão linda como essa e pisa-la,
diz Bernie e afunda um pouco mais a haste na seda. Veja, a
antera sujou sua pele de amarelo. Uma cor inadequada para
tamanha beleza... Deixe-me limpar... assim... Levou os dedos
dos seios à boca. Que delícia. Que garota. Mas não zombará
dele. Esse tipo de sensação desde sempre o perseguiu, como
um murmúrio de janelas ao vento em noite de tempestade.
Mas agora está livre. Acalmarei esse incômodo. Olhando as
flores, olha todas as aves perversas dos céus sombrios sobre
ele, revoando e descendo. Chupa as pontas dos dedos. Hun...
Não sabia que pólen pode ser assim tão gostoso...
Priscila sorriu um triste sorriso meigo que desencadeou
a crise. Subitamente ele rapou a mecha que lhe caía na testa.
Seus cabelos são lindos... De uma cor inacreditável, parece
que têm brilho próprio. Ela conseguiu balbuciar. Você é
louco... E olhava seus cabelos no chão como se pudesse
reavê-los só de olhar, como se traz alguém de novo para
perto através da saudade. Louco? Você ainda não viu nada,
diz Bernie soletrando. Entra na abertura do vestido,
erguendo-o com o antebraço até a altura do pequeno monte
sagrado em Platty City,enche as mãos com as carnes da parte
posterior da coxa esquerda, aperta-a até cravar as unhas.
As lagrimas começando a escorrer pelo seu rosto,
Priscila apenas consegue balbuciar. Por quê? Ela até pensa
em detê-lo de alguma forma mas a faca na mão direita do
rapaz, devolvendo todas as sombrias luzes do quarto, cala
qualquer reação. As unhas se cravam mais, nascem cinco
filetes, ela cerra os olhos, grita, ele traz a mão para fora da
roupa da moça, rasgando a perna por onde sai, e, onde o grito
se prolonga, o braço ganha impulso para cima, descendo num
tapa que estala e a joga na cama. Por quê? É tudo o que
consegue dizer. Por quê? – repete, o corpo inteiro chorando.
Por quê? Bernie leva à boca a garrafa de absinto. Sua
voz ecoa a de Priscila. Por quê? – disse, arrastando as
palavras. Ora, porque você é muito feia!...
Lá fora, o sol se esconde. Um tom róseo magnífico na
paisagem crepuscular.

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