Você está na página 1de 6

_____________________________________________________Laér

cio Gazinhato

D e todas as tropas
internacionais da
atualidade, certamente uma
das menos mencionadas é
aquela dos soldados
gurcas, verdadeiros
samurais de nossos dias,
secularmente aliados dos
ingleses, a quem tratam
como verdadeiros amos.

Estes pequenos guerreiros


de pele marrom
notabilizaram-se como uma
das mais temidas tropas de
assalto do exército britânico
muito mais por sua
tenacidade nata do que por eventuais equipamentos que empreguem. Na
formação de um combatente gurca o primeiro princípio a ser incutido em sua
mente é a total e irrestrita fidelidade a seu chefe militar: como no Bushido (o
código de honra dos samurais), sem um comandante não podem existir
soldados!

Detalhe de antigo desenho mostrando um soldado gurca


brandindo sua faca numa das batalhas da Guerra Afegã.

Entretanto, o mais fascinante de tudo isto é que – não obstante uma aliança
quase centenária entre os gurcas e os ingleses e também uma crescente
sofisticação nos equipamentos de guerra moderna que fazem o embate corpo
a corpo cada vez menos possível – ainda recentemente na Guerra das
Malvinas a simples menção do nome desses pequeninos guerreiros levou
terror e pânico aos soldados argentinos.

Mais conhecidos pela estranha faca que portam, os pequenos e bronzeados


gurcas são também temidos pelos soldados modernos dada sua filosofia
guerreira, a qual abomina completamente qualquer medo relativo ao combate
ou a própria morte, desde a mais tenra idade, também como ocorria na
formação dos samurais.

Embora sejam soldados de infantaria, normalmente lotados em regimentos de


fuzileiros dentro do exército inglês, esses soldados de verdadeira elite militar
odeiam essa definição: eles apreciam mesmo é serem chamados
simplesmente de gurcas, entendendo que este têrmo já os defina
completamente.

AS ORIGENS

Os gurcas são de descendência hindu-mongol e vivem nos sopés das


montanhas do Himalaia, no Nepal. Seus ancestrais foram as tribos Raijput e
Brahmin, as quais dirigiram-se para fora da Índia no século 16.

Ainda vivendo como tribos, miscigenaram-se com os mongóis dando início a


dos Gorhalis, que terminou por conquistar as demais, unindo-as e entrando
numa guerra contra pequenos bandos das colinas da área.

Em 1776, Prithwui Narayan, então rei dos gurcas, investiu contra os


nepalenses e – após dois anos de guerra – terminou por conquistá-los,
iniciando-se aí uma paulatina expansão de domínios. Quando beiraram as
fronteiras da Índia, fatalmente defrontaram-se com a possessão britânica e,
após diversas escaramuças, uma
guerra oficial foi declarada em
1814.

Após dois anos de brutais


combates corpo a corpo, a
tenacidade e a galanteria gurca
terminaram por contagiar
elementos da tropa inglesa. Uma
das muitas histórias dessa época
conta que, estando ferido por
uma bala no queixo, um valente
gurca deixado para trás levantou
a bandeira branca; após os
devidos cuidados médicos e a
recuperação, o comandante
inglês o deixou retornar às suas
linhas, pois isso já havia ocorrido
de forma contrária recentemente!

Finalmente, com a recuperação de parte do território conquistado, os ingleses


sentiram-se à vontade para um acordo de paz com os gurcas, já notórios por
terem lutado bravamente embora em inferioridade numérica e de armamento.
Entretanto, o Nepal permaneceria como um reino independente apenas até
1823.

Soldado gurca atual, com seu uniforme de passeio,


o chapéu de abas retas e a característica kukri

Aquela guerra de gurcas contra ingleses produziu uma estranha relação em


ambos os lados da contenda, algo tremendamente mais importante do que o
simples domínio de terras: revelou uma mútua admiração militar. Os gurcas
apaixonaram-se pelos vistosos uniformes britânicos do período, pelas armas
sofisticadas e pela organização em combate; os inglese tinham em alta conta a
bravura e galanteria dos pequenos soldados de tez marrom.

A CORAGEM E A FACA

A política expansionista inglesa do século 19 previa o uso de tropas nativas dos


domínios britânicos como uma forma de integração militar e, assim,
inicialmente guerreiros gurcas selecionados passaram a atuar como
mercenários junto a tropas na Índia.

Particularmente, um soberano gurca, Bahadur Shah, como grande admirador


dos britânicos, encorajou seus soldados a treinarem (e até atuarem) junto às
tropas inglesas. Durante o motim de Sepoy, em 1857, quando tropas rebeldes
do exército da Índia quase expulsaram os ingleses, esse rei enviou 10.000
homens excepcionalmente treinados em auxílio dos soldados de sua
majestade.

Unidades gurcas atreladas ao exército britânico muitas vezes significaram a


diferença entre a derrota e a vitória nos campos de batalha da 1a. e 2a.
Guerras Mundiais. A famosa coragem gurca fez com que – quando a Índia
tornou-se independente em 1948 – o alto comando militar inglês fizesse
questão de manter diversos regimentos desses combatentes estacionados em
Hong-Kong, lotando-os nos corpos de fuzileiros. Uma dessas tropas, em
contra-partida, decidiu integrar-se definitivamente ao exército da Índia, onde
ainda é extremamente respeitada.

Embora atualmente dotados de moderníssimas armas de fogo, os soldados


gurcas, quer lotados no exército inglês ou no da Índia, não dispensam o
treinamento no manuseio das facas "kukri", o qual lhes é ministrado por
instrutores habitualmente de idade avançada, cuja técnica foi obtida de
ancestrais.

A "kukri" é uma faca de


desenho fora do
convencional (com o
formato derivado da
espada grega "kopis"),
normalmente de grandes
dimensões (cerca de 25 a
40 cm de lâmina), a
lâmina curvada para
dentro, muito robusta e
habitualmente forjada a
mão. Na maioria dos exemplares militares, uma sólida empunhadura de densa
madeira nativa da Índia e mais o fato de que o fio é também curvo, são os
principais fatores que intensificam a energia aplicada aos golpes com essas
facas.
Uma famosa (e temida) faca militar gurca acompanhada
de sua bainha

A bainha de uma faca "kukri", habitualmente de madeira revestida em couro,


comporta – na parte traseira – duas (ou eventualmente mais) outras
pequeninas facas, normalmente usadas para tarefas diárias, onde lâminas de
maior tamanho não seriam adequadas. Eventualmente, em exemplares muito
antigos, no mesmo compartimento encontra-se também uma pequenina barra
de aço, temperado e com empunhadura, que é usada para, no atrito com
pedras, produzir fagulhas e assim gerar fogo.

Atualmente considerada pelos próprios gurcas apenas como arma de última


chance, a faca "kukri" foi no passado o principal instrumento pelo qual essas
tropas adquiriram uma aura de terror: esses soldados as utilizavam para,
aproximando-se silenciosamente de seus inimigos, deceparem-lhes a veia
jugular, causando morte quase imediata; em combate aproximado, a "kukri"
normalmente era empunhada com a ponta para cima, possibilitando, assim,
assestar terríveis (e, na maioria das vezes, mortais) golpes na fronte dos
inimigos.

A simples título de curiosidade, mais para acabar com infundados boatos


brasileiros, convém esclarecer que os simétricos entalhes constantes ao início
do fio de uma "kukri" não servem – como se propaga – para romper, logo de
início, a jugular do inimigo, mas sim - de forma prática - para evitar que sangue
(ou outro líquido) penetre na empunhadura, aumentando a possibilidade de
comprometer o "espigão" da faca. Na tradição ancestral, esses entalhes teriam
também conotações religiosas, representanto entidades divinas do Nepal.

INICIAÇÃO E MALVINAS

Todos os anos, quer nas unidades gurcas ou no próprio Nepal, ocorre o


Festival Dasheera, cerimônia onde são ordenados novos combatentes. O ponto
alto dessa festa é o momento em que cada aspirante a soldado gurca deve
decepar, de um só golpe, a cabeça de um touro. Para tanto, é usada uma
versão ampliada da faca "kukri", em realidade uma pequena espada, com
lâmina de cerca de 75 cm e no mesmo formato.

Quando, por idade ou incapacidade física, um oficial gurca de alta patente é


desligado de sua unidade, ou um herói é homenageado, é costume na
cerimônia receberem a "kotimora", que é uma versão de luxo, ricamente
adornada, da famosa "kukri".

Uma empreitada guerreira digna de nota, onde sobressaiu-se muito a


participação dos soldados gurcas, ocorreu no vilarejo de Tavoleto, sul da Itália,
durante a 2a. Guerra Mundial.
A pequena
localidade, de
importância
estratégica no
avanço aliado na
Itália, era protegida
por um forte
contingente militar
germânico e
também por franco-
atiradores. Ao
menor sinal de
aproximação de
comandos ingleses,
estes certeiramente
os aniquilavam. A situação, assim configurada de forma dramática, perdurou
por alguns dias até a chegada do 7º Regimento Gurca.

No alvorecer de 3 de setembro de 1944,


remanescentes do 7º Regimento Gurca preparam-se
para tomar Tavoleto, na Itália.

O 9º pelotão desse regimento, comandado pelo bravo capitão (Rai) Jitbahader,


na madrugada de 2 para 3 de setembro de 1944, conseguiu infiltrar toda uma
patrulha dentro de Tavoleto. Em algumas horas e ocultos pelas sombras da
noite, os soldados gurcas fizeram seu trabalho: a maioria dos franco-atiradores
mais estrategicamente bem postados, e as principais sentinelas, foram
degolados. Por volta das 6:00 horas do dia 3 de setembro de 1944 o moral dos
soldados nazistas em Tavoleto era péssimo e, com os primeiros raios de sol e
o ataque de tropas inglesas, os aliados tomaram o lugarejo, obtendo posição
de importância capital junto a Linha Gótica. Nos anais militares germânicos da
2a. Guerra Mundial, esse episódio ficou conhecido como " A Noite do Horror".

Mais recentemente, em 1982, o 7º Regimento Gurca voltou a entrar em ação,


novamente auxiliando os ingleses. Essa unidade foi anexada a força-tarefa
britânica encarregada de retomar as ilhas Malvinas, então em poder dos
argentinos, prioritariamente para as missões de remoção de despojos das
tropas inimigas, embora capturassem o monte Williams na batalha final para
manter Port Stanley.

É dito que nas geladas noites da Guerra das Malvinas, o terror instalava-se
imediatamente nos combatentes argentinos quando – tal como ferozes
samurais – os gurcas davam seu brado guerreiro: "Aio Gurcali"...
"Kukri" moderna fabricada pela empresa norte-americana Cold Steel, uma excelente
opção para quem quer tecnologia e robustez num modelo testado pelo tempo.

(Artigo originalmente publicado na extinta revista "COMMANDO", edição


nº 05, de julho/agosto de 1990, às páginas 50, 51, 52 e 53, aqui
reproduzido com a autorização de Laércio Gazinhato, seu diretor técnico).

Nota Importante: 1) o "olho" foi mudado para melhor adaptar-se a este


"site"; 2) neste artigo foi incluída a faca gurca da Cold Steel, que não
constava do original.

Você também pode gostar