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Memória lapidar ameaçada: obras da Casa Aloys nas necrópoles São José I e II de

Porto Alegre

Luiza Fabiana Neitzke de Carvalho – IA/UFRGS1

RESUMO: Este artigo versa sobre parte da produção da Casa Aloys, Indústria do Mármore e
Granito, situada em Porto Alegre entre os anos de 1884 e 1961. Fundada pelo imigrante teuto
Miguel Friederichs, a antiga firma conhecida como “Bins & Friederichs” transformou-se na
mais conhecida e requisitada empresa de arte funerária gaúcha do século XX, ao ser
administrada pelo irmão de Miguel, Jacob Aloys Friederichs. A Casa Aloys possui obras em
todo estado, em cemitérios distintos. Nosso objetivo é analisar o acervo escultórico colocado
nos Cemitérios São José I e II de Porto Alegre. O cemitério São José I data de 1888 e encontra-
se em processo de apagamento: os túmulos são removidos para que o terreno seja destinado a
outros usos. A cada túmulo derrubado, um testemunho da história das marmorarias no Rio
Grande do Sul desaparece e com ele, o patrimônio cultural funerário é descaracterizado. Trata-
se da perda de uma memória social que é irrecuperável, como testemunhamos com a
transformação da necrópole São José II em um estacionamento e no Crematório Metropolitano.

Palavras-chave: Cemitérios São José, Arte Funerária, Casa Aloys.

Processo de transformação:

Por volta do ano de 2003, Porto Alegre visualizou a perda gradual de um importante

conjunto histórico: o Cemitério São José II, cujas atividades iniciaram em 1913. O

Cemitério foi arrendado pela Construtora Cortel, e os monumentos tumulares do

Cemitério foram extintos, um a um, para a construção do Crematório Metropolitano e

de um estacionamento.

Personalidades importantes da história de Porto Alegre tiveram seus jazigos removidos:

o atuante líder teuto e grande Mestre da Casa Aloys, Jacob Aloys Friederichs, o Prefeito

Alberto Bins, o doador da área do Cemitério, Hugo Metzler e o Padre Aloys Kades.

Estes Senhores, por importante atuação na história da Comunidade São José tiveram sua

presença evocada em um “Memorial”, que conserva uma peça de cada um dos antigos

monumentos tumulares demolidos.

1
Doutoranda em História, Teoria e Crítica de Arte na UFRGS. Contato:
marmorabilia@gmail.com
http://www.marmorabilia.org/
Este processo de transformação, dentre outros motivos, é resultado de uma mudança de

posturas onde anteriormente, a função do jazigo era enaltecer a memória: o túmulo

funcionava como “um monumento colocado entre os limites de dois mundos”

(REVISTA MONUMENTOS SEPULCHRAES apud CATROGA, 2002, p.17) e “as

estelas desempenharam múltiplas funções de perpetuação de uma memória” (LE GOFF,

1990, p.373).

Quando um cemitério é desertificado, percebemos que em um mundo pós-moderno e

voraz, a reclusão que a morte exige não deve ser vivenciada, pois se torna um

contratempo, um imprevisto, um desvio do convite constante aos apelos do consumo, da

publicidade e do espetáculo.

A praticidade e a economia vislumbradas na oportunidade da cremação suprimiram o

jazigo e sua evocação à morte. Vivenciamos hoje a “higienização” dos cemitérios,

ironicamente: no século XIX os cemitérios higienizaram as cidades brasileiras, ao

afastar os mortos das zonas urbanas de convívio. Hoje, as zonas afastadas tornaram-se

urbanas e os mortos perderam seu espaço, portanto é preciso higienizar o próprio

cemitério.

Se outrora vivenciamos a “era de ouro dos cemitérios”, hoje vivenciamos a era de ouro

dos crematórios. O túmulo artístico foi substituído pelo columbário, pela placa

padronizada nos cemitérios parque ou pelo gesto de espargir as cinzas.

A Casa Aloys e suas obras nos Cemitérios São José

O Cemitério São José possui ainda obras muito representativas da história da Casa

Aloys, que aparecem em um documento único no Brasil: um semanário (espécie de

agenda) publicado em 1949 por ocasião do aniversário de 55 anos da empresa: Casa

Aloys, Indústria do Mármore e Granito. 1884-1949. Neste documento, o autor, Jacob


Aloys Friederichs detalha a trajetória da Casa Aloys, seus monumentos mais

representativos até aquele momento (uma interessante parcela nos cemitérios São José

I), seus monumentos premiados (um deles já extinto no Cemitério São José I) e enfatiza

seus princípios de trabalho e de vida, citando os artistas que fizeram parte de sua

próspera e respeitosa atuação. Narra também a sua história de vida e de seus familiares

e amigos que o apoiaram durante sua caminhada.

No Cemitério São José I encontramos também obras da fase mais antiga da Casa da

Aloys, quando ela era ainda a razão social Bins & Friederichs. Existe um túmulo que

carrega esta rubrica em sua base, o que nos faz acreditar que este monumento seja

anterior a 1891, quando a razão muda para Casa Aloys. Este monumento é um forte

atestado da historicidade do acervo: uma obra que possui cerca de 120 anos.

O Cemitério São José II, que data de 1913, possuía também obras importantes da Casa

Aloys (incluindo o mausoléu de sua família, hoje não mais existente).

Podemos inferir que se Jacob Aloys Friederichs preocupou-se em publicar a sua história

familiar e pessoal, a atuação de sua empresa e o registro de seus monumentos mais

importantes, pouco antes de seu falecimento, é porque não somente o capricho e o

orgulho que tanto ressaltara em seu último e talvez mais completo escrito, uma espécie

de autobiografia2, o mobilizara a fazer isto, mas também o desejo de registrar, de entrar

para a história e de ser lembrado, reconhecido em sua atuação e a partir deste feito

(dentre tantos outros que realizou para o desenvolvimento social de Porto Alegre)

manter viva e acessível a sua memória.

No momento em que praticamente 90% do acervo tumular do Cemitério São José II foi

retirado, e que o do Cemitério São José I já perdeu cerca de 30% do seu conjunto, temos

um dano irreparável e uma situação delicada referente ao que persiste nestes cemitérios:

2
Para saber mais sobre Jacob Aloys Friederichs ver a biografia escrita por SILVA, 2006.
túmulos, esculturas, história da arte funerária, memória social de Porto Alegre e

patrimônio.

Obras da Casa Aloys no Cemitério São José I:

Figura 1: Monumento Família Kraemer.

Monumento Família Kraemer. Monumento tumular colocado pela Bins &

Friederichs. Uma das únicas obras encontrada nos Cemitérios de Porto Alegre que

evidencia sua atuação. O monumento possui uma rubrica que autentica a sua colocação

pela firma e traz a bela figura de um anjo como alegoria da melancolia.

Figura 2: Monumento Miguel Friederichs.


Monumento Miguel Friederichs. Monumento erigido pela Casa Aloys, em

homenagem ao fundador da empresa: Miguel Friederichs. Constituído em pedra grês, a

cabeceira do túmulo apresenta uma pequena escultura de Cristo em cerâmica branca. A

peça provavelmente foi importada da Villeroy e Boch (FRIEDERICHS, 1949), grande

empresa de produtos cerâmicos localizada na Alemanha. O túmulo já se encontra

bastante danificado: perdeu os corruchéis que compunham a cabeceira e os vasos que

ornavam as laterais. A escultura está sem a cabeça e as grossas correntes em ferro que

cerceavam o terreno do jazigo estão rompidas. Representa uma tipologia característica

de antigos cemitérios alemães.

Figura 3: Monumento Mestre João Grünewald.

Monumento Mestre João Grünewald. Lápide em mármore, ricamente trabalhada

identificada em letras góticas. João Grünewald foi um respeitado construtor e sogro de

Jacob Aloys Friederichs. Trabalhou nas obras da Cúria Metropolitana de Porto Alegre,

no Seminário Episcopal e na antiga Igreja Menino Deus, dentre muitas outras. O jazigo

ainda apresenta o gradil original que delimita seu terreno, acompanhado de dois

pequenos monumentos bastante comprometidos em seu desgaste.


Figura 4: Monumento Família Armand Schramm.

Monumento Família Armand Schramm. Construção vertical em mármore, tipológica

característica de uma série de monumentos colocados pela Casa Aloys no Cemitério

São José I. Possui base em pedra grês e acompanha o gradil. Este monumento

participou da Grande Exposição Estadual do Rio Grande do Sul – 19013. Jabob Aloys

inscreveu na exposição, dentre outras obras da Casa Aloys: “uma cruz em mármore com

o crucificado” (monumento Família A. Schramm) e “uma cruz em mármore ricamente

ornamentada com flores” (monumento Franz Behrensdof). Consta ainda no Semanário

da Casa Aloys: “As cruzes destes dois Monumentos foram também expostas e

premiadas na Exposição Estadual de 1901” (FRIEDERICHS, 1949). Este monumento é

significativamente importante na história da marmoraria Casa Aloys, por ser justamente

um de seus trabalhos premiados publicamente em uma importante exposição, onde

foram classificados como Belas Artes. A premiação foi reconhecedora e meritória: a

cruz do monumento é finamente trabalhada, a figura de Cristo foi dignamente esculpida

com perfeição. Assinado com a rubrica “J.A. Fr.”

3
Para saber mais ver o artigo de CARVALHO, 2008.
Figura 5: Monumento Daudt.

Monumento Família Daudt. Construção vertical em mármore, possui ornamentos

florais em relevo. Assim como outros monumentos Casa Aloys neste cemitério, é

acompanhado do gradil em ferro. Foi “um dos primeiros Monumentos em Depósito” da

Casa Aloys e o “primeiro êxito do jovem mestre com um monumento em maior escala

naquela época”. Assinado com a rubrica “J.A. Friederichs”. Em seu topo a inscrição

“Familien Grab” (Túmulo da Família).

Figura 6: Monumento Teixeira.

Monumento Teixeira. Construção vertical em mármore. Ostenta uma imponente cruz

com “ramos de carvalho abaixo dos braços”. Segundo o Mestre Aloys em seu
Semanário, foi esculpida em uma chapa de mármore de 16 cm. Era também um

monumento em depósito que foi comprado depois de pronto pela viúva do Sr. José

Rodrigues Teixeira, a Sra. Maria Antonia Teixeira. Destaque para o sensível epitáfio:

“Tributo de amor conjugal”. Em seu texto, o próprio Mestre Aloys é quem nos lembra

da importância deste monumento: “uma obra de arte, a qual hoje, na época de granito,

não se conhece mais.” Assinado com a rubrica “J.A. Friederichs”. Conserva o gradil

em ferro original.

Figura 7: Monumento Schneiders.

Monumento Schneiders: conjunto em mármore que possui um elegante relevo floral

esculpido na parte frontal. Ostenta a figura de um Anjo da Melancolia, que pesaroso

guarda uma urna a simbolizar os restos mortais dos falecidos e a eternidade da morte. O

túmulo já foi reformado, pois ao redor do monumento escultórico estão construídas

carneiras em granito, mais modernas. O mármore já se encontra bastante desgastado

pelo efeito do tempo, e as informações inscritas no monumento, evanescentes. Para a

legibilidade da memória lapidar, os nomes dos falecidos foram destacados com uma

tinta preta. Assinado com a rubrica “J.A. Fr.”


Figura 8: Monumento Becker. Fonte: FRIEDERICHS, 1949.

Monumento Becker: Premiado com medalha de ouro na Grande Exposição Estadual

do Rio Grande do Sul – 1901. Infelizmente este monumento não existe mais.

Significava uma obra muito importante no histórico da Casa Aloys, devido a sua

participação na Exposição – tal como o Monumento Schramm – e também ao mérito de

ter sido agraciado com medalha de ouro. Todo em mármore.

Figura 9: Monumento Diehl. Fonte: FRIEDERICHS, 1949.

Monumento Diehl: Outro monumento perdido. Executado em mármore feito sob

encomenda para o “comandante de vapor fluvial” Sr. João Diehl. A figura, de uma

orante, também em mármore, teria sido executada pelo próprio Mestre Aloys, que “não
ficou pouco orgulhoso em verificar o fato de poder executar até figuras de mármore em

sua oficina” (FRIEDERICHS, 1949).

Conclusão:

Elencamos aqui algumas das mais importantes obras executadas pela Casa Aloys em

sua história. Os Monumentos Friederichs, Shramm, Daudt, Teixeira, Becker e Diehl são

mencionados no Semanário escrito por Friederichs, o que historicamente atesta sua

relevância. A arte funerária, com dificuldade é investigada – as evidências da história

das marmorarias e firmas de colocação de túmulos são escassas, e somente os

cemitérios podem prover a fonte mais autêntica deste estudo. O Cemitério São José I

possui inestimável importância para o levantamento das obras das marmorarias gaúchas.

Bibliografia:

CARVALHO, Luiza Fabiana Neitzke de. A palavra para o historiador da arte – a palavra como
história da arte: O Noticiário Semanal da Casa Aloys e algumas considerações a partir dos
escritos de Jacob Aloys Friederichs. Disponível em:
http://ppgav.ceart.udesc.br/ciclo3/anais.htm 2008.

CATROGA, Fernando. Recordar e comemorar: A raiz tanatológica dos ritos


comemorativos. In: Mímesis v.23, n° 2, p 13-47. Bauru, 2002.

FRIEDERICHS, J. A. Noticiário Semanal. Histórico da Casa Aloys Ltda. Indústria do mármore,


granito e bronze. Oferecido aos seus amigos e fornecedores em comemoração aos 65 anos de
sua fundação e atividade: 1884-1949. Para o ano de 1950. Porto Alegre: Sul Impressora, 1950.

LE GOFF. Jacques. História e Memória. São Paulo: Editora Unicamp, 1990.

SILVA, Haike Roselane Kleber. Entre o amor ao Brasil e ao modo de ser alemão - A história de
uma liderança étnica (1868-1950). Porto Alegre: Oikos, 2006.

SILVEIRA, Gicelda Weber. Estruturas de luz e sombra: o caso do Cemitério São Miguel e
Almas de Porto Alegre. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Porto Alegre:
PROPAR/UFRGS, 2000.

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