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DESCRIMINALIZAGAO DO Uso pe Drocas: OBJECOES 1 — Preambulo Remédio que nao opera os efeitos desejados, manda a saude do paciente que se substitua; muita vez, 0 préprio médico é 0 substituido. O que em verdade importa, na cura ou erradicagio do mal, é a terapéutica eficaz. Isso, que ordinariamente passa no Ambito das ciéncias médicas, é fendmeno comum a todos os ramos da atividade humana: onde aparega o mal, ai se Ihe haverd de aplicar o corretivo ou a terapia adequada, E fora de questao que os meios legais empregados no combate ao trifico e ao uso indevido de substincias entorpe- centes nao se revelaram, quanto ao resultado, dignos de encémios, nem suscitaram, no Ppeito de vardes graves, arrou- bos sinceros de otimismo. Bem ao revés, nisto das. drogas proi- bidas, os que mourejaram em conterthes a difusio nio escon- deram seu desalento e, malcontentes, entraram a murmurar entre si aquelas palavras a um tempo fatais ¢ elegantes dos dis- cretos: “mais facil fora endireitar a sombra da vara torta!”,! Nao estranha, portanto, que alguns espiritos (de igual talento que auddcia) hajam proposto, por equacionar 0 problema das drogas, medidas extraordindrias, uma das quais sua descriminalizagéo? ou exclusdo da sangao 1 Cunhada pelo veneravel escritor seiscentista Herron Preto Umagem da Vida Cristd, 1940, vol. 1, p, 168), esta feliz e original expressio teve curso imediato e desembaracado na literatura. Dentre outros, serviram- se dela: Auapor Arnats (Didlogos, 1846, p. 335); Manvet, Beananbes (Nova Floresta, 1706, t. 1, p. 17; Luz e Calor, 1871, p. 174) © Casto Casreso Branco (Questdo da Sebenta, 1883, vol. V, p. 7); 2 Segundo Utswax, descriminalizagao é “ato ea atividade pelos quais um comportamento, em relagio ao qual o sistema punitive tem competéncia DEScRIMINALIZAGAO DO Uso De Drosas: Onregors 161 penal? Descriminalizar o teor de proceder de alguém monta o mesmo que subtrai-lo a censura do direito. Esta, a solugdo que alguns excogitaram para o desafio das dro- gas:* expungir-lhes a nota de substancia proibida. Seu uso estaria, pois, ao abrigo da severidade da lei. I — Argumentos Pré-descriminalizagéo das Drogas ¢ sua Refutagao Os que, para p6r cobro 4 desenfreada propagagio das drogas, advogam a tese de sua descriminalizagao, fazem-no arrimados aos seguintes argumentos: a) proibir o consumo de droga nao seria outra coisa que incentiva-lo, pois o proibido é sempre apetecido, b) a satide ¢ a vida, atributos personalissimos do indivi- duo, tocam-lhe exclusivamente; c) a legalizagao do consumo de drogas permitira ao po- der publico melhor controle sanitario das doengas que a elas estao associadas, e sua eficiente profilaxia. ‘ais argumentos, ainda que ao primeiro lance de olhos possam impressionar, mostram-se, porém, quando exami- nados de fito ¢ sobremao, desmerecedores de acolhimento, sendo especiosos. No que respeita 4 alegagao de que as coisas proibidas excitam geralmente a curiosidade, nao ha que opor, visto que se trata de tendéncia natural da condigao humana, que deseja romper o véu de mistério que as costuma cingir? para aplicar sangoes, & colocado fora da competéncia desse sistema” (in Revista de Direito Penal, n. 9/10, 1973, p. 7; trad, Youanpa Catac); 3. Cantos Vico Masas, O Principio da Insignificdncia como Excludente da Tipicidade no Direito Penat, 1994, p. 24; 4 Aquie noutros lugares 0 vocdbulo droga é empregado na acepcao restrita de substancia entorpecente; 3 Conforme a tradicao biblica, foi a curiosidade que levou nossos primeiros pais a gostar, no Eden, o fruto defeso pelo Criador (Gén 2,17); ela, a que 162 ‘TripuTo aos ADvOGADOs CRIMINALISTAS — Cantos Busorii Dai nao procede, contudo, mereca condescendéncia 0 inveterado sestro do homem de querer devassar todos os segre- dos, méxime os de que Ihe possam advir males e infortinios. Primeiro que encete alguma resolugio ¢ a ponha por obra, € de homem sensato avaliar ao. justo seus atos, sem fazer tdbua rasa da ligio da experiéncia vulgar; nele a razdo haverd de triun- far sempre da vontade e de suas ruins inclinagées. Aqueles que, menoscabando os conselhos da prudén- cia, intentarem afrontar o desconhecido, olhem nao thes suceda 0 mesmo que a sinistra caixa de Pandora que, aberta pela curiosidade, foi causa € origem de “males que inunda- ram a terra inteira”.® Outro argumento, que os partidérios da descrimina- lizagdo das drogas soem agitar, € 0 de que tem direito 0 indi- viduo a privacidade, pelo que s6 a ele cabe dar a vida 0 rumo que Ihe pareca melhor. Posto depare patrocinadores conspicuos em todas as esferas da inteligéncia,’ tal razio, com a devida vénia, nao persuade nem colhe: 4 uma, porque, ao invés do que sus- tentam, a concepcio de “ser gregdrio”, com que ArisTOTeLES definiu o homem,* veda-lhe se aparte a seu talante e discricionariamente da comunhao social; & outra, porque, vivendo em sociedade, nao pode o individuo eximir-se da observancia dos preceitos que a regem; A derradeira, por- que a afirmagao de que, senhor de si, pode o homem dispor aproximou Plinio, o Antigo, do Vestivio, que o sepultou em suas cinzas (Gf. Leorowwo Peneins, Idéias da Antiguidade, 1966, p. 124); 6 Narciso José pe Morais, Flores Hist6ricas, 1887, p. 25; 7 Passando em siléncio outros muitos, por forgada brevidade, merece registrado ¢ lido 0 artigo que, a0 propésito, escreveu o ilustre Promotor de Justica Dr. Lycurco ve Castro Sanros na Revista Brasileira de Ciéncias Criminais, n. 5, p. 120 ¢ 126; 8 “O homem é naturalmente um animal politico, destinado a viver em sociedade, € aquele que, por instinto, ¢ ndo porque qualquer circunstincia 0 inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem’” (A Politica, cap. 1, § 9°; trad, Nestor Suveina Crowes); Descrimanatizacao po Uso pe Drocas: Oxjegous 163, livremente de sua sadde e vida contravém de rosto 4 boa doutrina juridica e a respeitaveis canones da Moral. Bo parecer de Nétson Huneria, ordculo do Direito Pe- nal: “Tutelando esses bens fisicos do individuo, a lei penal esta servindo ao préprio interesse do Estado, pois este tem como elemento primacial a populagao, e 4 sua prosperida- de nao é indiferente a satde ou vitalidade de cada um dos membros do corpo social” (Comentdrios ao Cédigo Penal, 1981, vol. ¥, p. 15). Outro tanto 4 luz da Moral: “Da mesma sorte, deve o Estado intervir contra certos abusos da liberdade pelos quais ‘© interessado faz mal a si mesmo: assim no caso da liberdade de consumo do alcool ou de outros produtos nocivos...” (Unido Internacional de Estudos Sociais, de Malines, Cédi go de Moral Politica, 1959, p. 96). De tudo 0 sobredito facilmente se conclui que o direi- to 4 intimidade nao é absoluto e irrestrito, mas conhece tem- peramentos. E que “o homem, enquanto individuo que in- tegra a coletividade, precisa acatar as delimitagées que lhe $40 impostas pelas exigéncias da vida em comum”.” Anobreza de seus intuitos nao os guarda do erro em que incidem, e é que poem a mira em debelar um mal, quando na realidade esto dando origem ¢ voga a infinitos outros."* Qs discursos a favor da descriminalizagao do uso de drogas tém-se inspirado na suposicao enganosa de que, uma 9 Luz Vicente Ceaniccuaro € Pauio Jost pa Costa Jr., Direito Penal na Constituigao, 1990, p. 202; 10 “O entorpecente causa os seguintes sintomas: 1 - um estado de ebriedade; 2- leva ao habito; 3+ produz tolerancia (necessidade de aumentar a dose); 4- provoca sindrome da abstinéncia; € 5- leva, afinal, A decadéncia moral, fisica e psiquica” (Vatom Snice, Entorpecentes, 1981, p. 12); 164 TrisuTo aos ADVOGADOS CriMINaLisTas — CaRtos Busorn vez liberadas, menos drduo sera 0 combate que se Ihes deve dar, sem tréguas nem quartel. Esse argumento logo se percebe que € contraprodu- cente: nunca se viu maior ilogismo que o de emprazar 0 toque de rebate para depois que o adversério se tornou for- te, poderoso e, de conseguinte, invencivel. Estratégia é esta que jamais deu lustre a nenhum capitéo de boa milicial Ao inimigo (e que outro nome convém ao pernicioso mal das drogas?!) a0 inimigo, se 0 queremos deveras ven- cer, cumpre mover-lhe guerra perpétua de exterminio, sem dé nem complacéncia. Iludem-se redondamente aqueles que defendem se the deva conceder algum respiraculo (que a tal equivaleria a li- beragio do uso dos téxicos) para, ao depois, empenhar-se na campanha de sua erradicagao. Mais assentado foi Ovinio, que de tema semelhante poetou: “No principio é que se devem atalhar os grandes males; tardio sera o remédio, depois que o mal houver cria- do raizes”.! II - Razées para a Criminalizacéo do Uso de Drogas Nenhuma pessoa medianamente esclarecida (e que nao coxeie do intelecto) poderd divergir, no atual est4gio dos pro- gressos cientificos, deste voto abalizado dos que professam com retidéo a Medicina: usar drogas é arruinar a sade.” 11 Apud Antaur Rezenpe, Frases ¢ Curiosidade Latinas, 1955, p. 605; 12 Nao 86 a toxicomania, também 0 alcoolismo ¢ 0 fumo est4 comprovado que sio dois agentes mortais da satide. Hoje, a ninguém é licito “ignorar as evidéncias relacionadas mortalidade e ao uso de cigarro”, bradla o médico Roxaioo Lananseina (of O Estado de $. Paulo, 10.11.94, p. 2). O proprio Governo parece interessado na cruzada antitabagistica, a0 obrigar que a propaganda veiculada pela televisdo traga a adverténcia “fumar é Prejudicial A satide”. Trata-se, no entanto, de pregio hipécrita. © ponto estava em proibir o antincio comercial, ndo em embargar-Ihe os efeitos Mais auténtico, embora de mau exemplo, o refrio popular, que soa: “Quem nao bebe, nao fuma e nao mente nao € filho de boa gente"! Descriminatizacao po Uso ng Drogas: OpjegOEs 165 Retrato fiel dos maleficios que ao individuo e€ A socie- dade causa a disseminacéo dos entorpecentes, debuxou com pincel de artista 0 saudoso e emérito ex-Ministro da Justica Avrrebo Buzaiw: “A predisposigéo a estados neurdticos e psicéticos ¢ a criminalidade, a aniquilagdo da vontade, a de- Sagregacdo da familia, a corrupgdo dos costumes, 0 abando- no dos principios éticos de convivéncia social e a desinte- gragao da unidade nacional, sao alguns dos efeitos pernicio- sos da utilizacio indevida dessas substancias”.3 Daqui veio o discordarem autores de muito nome do estribilho da liberagio das drogas, da maconha inclusive." Mas, a consciéncia dos juizes nao poderia ficar indife- rente 4 crueza da lei que, sem atender a circunstincia de tratar-se de mero experimentador ou neofito (que pela pri- meira vez se envolvera em drogas), comina pena dspera a quem dela faz uso indevido. Por isso, a despeito das vozes que se ergueram, conclamando 4 fiel observancia da Lei dos Téxicos,® pouco € pouco um fino senso de equidade foi prevalecendo no julgamento de certas hipéteses de violacao de seu art, 16 (que define e pune o crime de posse, para uso préprio, de substancia entorpecente). 13 Apud Joio Craupixo pe Ouverra Cruz, Trdfico e Uso de Entorpecentes, 1973, p. 55 14 “Nao se pode legalizar ou liberac ou liberalizar a maconha, reconheci- damente nociva ao individuo e 4 sociedade” (Grnaivo Gomes, in Revista dos Tribunais, vol. 694, p. 436). Desta opinido, é certo, discrepam vultos supereminentes da reptiblica das letras juridico-penais, como Pauto José pa Costa Jr.: “Nunca me convenci de que o simples uso devesse ser punido, O crime de uso de drogas é um crime sem vitima, Ou methor, € um detito em que o proprio agente € a grande vitima do seu comportamento delituoso” (iz O Estado de S. Paulo, 11.5.93); 15 “Exempli gratia", © ex-Ministro Auosak Banteio, que, da alta curul do Supremo Tribunal Federal, pontificou solenemente nao ser ficito sublevar-se alguém “contra a lei expressa, ainda que a repute iniqua e inepta, quando pune brutalmente a posse da maconha para uso proprio” (in Revista de Direito Penal, n. 13/14, 1974, p. 28); 166 ‘TrisuTo aos ADVoGabos CrmtNatistas ~ Carros Brasortt Para nao imprimir o estigma da punicio na fronte do jovem que, ocasional e esporadicamente, usou droga {o que Ihe poderia comprometer sem remédio o futuro), a aplicadores da lei nao tem repugnado alvitrar algumas solu- c6es benignas; que nem sempre serd o juiz escravo da lei," Nesse pressuposto, nao sera muito realmente que a Justiga Criminal, tratando-se de réu primdrio, acusado de trazer consigo, para seu uso, infima quantidade de maco- nha, opte pelo desfecho absolutério, ou lhe decrete o per- dao, qual sugere a Doutrina” e vém praticando, com a tuz da experiéncia e o ardor do zelo, insignes Magistrados."* Ao demais, como forma de atenuar a rigidez, da lei, nao raro tem sido convolada para multa a pena privativa de liber- dade imposta ao usuario de téxico. A medida é de boa poli- tica criminal e atende ao fim precipuo da pena: reeducar o delinquente para a sociedade. 16 E tema fecundo em controvérsia esse da obediéncia do juiza lei, Querem uns, imolando na ara da tradicéo, que “deverd o juiz obedecer a lei, ainda que dela discorde, ainda que Ihe pareca injusta” (Minto Gumanaes, Ojuizea FungitoJurisdicional, 1958, p. 330). Sentem outros 0 contririo, € no se thes podem recusar justos aplausos. Desse ntimero, como de grao-sacerdotes do templo da Justiga, folgamos em referir as palavras de dois preclarissimos autores: “Note-se bem ¢ note-se muito: 0 que importa nao € a lei mas o direito, que vive e vibra na consciéncia do povo. Fazer justica nao é, em muitos casos, obedecer A lei e, sim, obedecer ao direito que € a fonte da tei” (Euiézer Ross, A Voz da Toga, 2% ed., p. 49); “A lei é escrava do juiz, que a manipula ¢ interpreta visando a fazer justica. O juiz nao pode prestar-se a ser instrumento dos cddigos Ao revés, estes sd sua ferramenta para atingir 0 grande ideal humano de justica” (AurneDo Traian, A Beca Surrada, 1994, p. 146); 17 Gf Geratno Gomes, op. cit., p. 435; 18 Os que vio adiantados na vida forense terdo conhecido mais de um caso de absolvicao de réu primdrio, menor ¢ nedfito (experimentador de droga). A causa de decidir entendeu, pelo comum, com 0 ideal de ressocializagio do individuo: “Nao seria justo obstar o caminho do acusado, dificultar sua vida neste mundo, que j4 é tao duro para os jovens pobres” (Jloio Barnst Herkentione, Uma Porta para o Homem no Direito Criminal, 1988, p. 133) Descriminatizacko po Uso pz Drogas Opegors 167 A dar-se 0 caso que se tornara viciado em drogas ¢ de las dependente, nao ficaré entio o usudrio sujeito a pena detentiva, sendo a tratamento adequado, até se restabelega da toxicomania, doente que é, nao s6 infrator, IV - Conclusao De par com a repressao (imprescindivel ao combate as drogas), urge promover campanhas educacionais permanen- tes sobre seus maleficios, que se inscrevem entre os piores de que hi memdria nos fastos da Humanidade: Aos que, enfraquecida a vontade, acederam a atrativos ilusdrios e abismaram-se no vicio, nao Ihes falte a beneficén- cia comunitiria com os cuidados médicos ¢ com o conforto do espirito, de que andam carecidos. A Justiga, considerando mais na recuperagao do infra- tor do que na satisfagdo do crime, abrande, quanto em si caiba, o rigor da clava penal. O jovem, esse que reflita nas exceléncias da pessoa hu- mana, chamada a participar utilmente do convivio social ¢ a obrar segundo os ditames de sua origem divina, e pratique sem quebra nem desmaios aquele dureo principio de que se jactava a antiguidade classica: “Mens sana in corpore sano". 19 “Um espirito so num corpo sao” (Juvenat, Rezenve, op. cét., p. 410). ditira X, ¥. 336; apud Anriun (Do livto Tributo aos Advogados Criminalistas, 2005, pp. 160-167; autor: Carlos Biasotti; Millennium Editora Ltda),

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