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Fichamento “Estado de Direito, direitos coletivos e presença indígena” – Bartolomé

Clavero
O Estado de Direito é uma construção cultural, não um produto natural e, além disso, é
uma invenção europeia. Esse conceito foi criado por uma parte da humanidade caracterizada
pela convicção de representar integralmente a humanidade e pela consequente intenção de se
impor sobre ela valendo-se juntamente com outros mecanismos, da instituição política do
Estado. A partir do século XVIII, as variantes jurídicas dessa atitude alternaram-se assumindo
as formas da imposição, fora da Europa, de uma presença e de uma cultura européias. Por
conseguinte, o Estado de Direito, o Estado constitucional, o Estado dos direitos, o Estado dos
diversos direitos de liberdade ou fórmulas similares que visavam a subordinação das instituições
políticas ao ordenamento jurídico, podem encerrar um significado muito diverso para a Europa
ou para o resto da humanidade (p. 649).
1. A exclusão constitucional: EUA e Canadá
Os Estados Unidos inauguraram a história constitucional do continente americano com
uma posição intransigente em relação às populações indígenas que mantiveram uma própria
cultura: trata-se, em uma palavra, da exclusão. Para efeitos especificamente jurídicos não se
concebe nenhuma comunicação com a população estranha à cultura de origem europeia (p.
650).
A monarquia inglesa não tinha dominado de forma direta nenhum povo nativo e os
Estados Unidos não tinham precedentes jurídicos desse tipo no seu interior. Antes da
independência, de 1763, tinha sido emanada uma proclamação solene nesse sentido. Ela
reconhecia o território como ordenamento indígena, porém não com base em um direito da
população, mas ao contrário, como expressão da monarquia, da sua “sovereignty, protection and
dominion”, como objeto submetido à sua soberania e proteção. Todo o território habitado pelos
índios da América do Norte era declarado “reserved”, reserva, para aqueles povos, como
graciosa concessão por parte da Grã-Bretanha. E esta se atribuía poderes em nome da própria
proteção. A declaração de 1763, considerando os índios incapazes por princípio de alienar
as suas terras, permite-lhes fazê-lo somente em benefício desta monarquia e desta
soberania, que deste modo se estende e se aplica para além das suas próprias colônias,
para além da faixa atlântica que até então elas ocupavam, traçando assim uma fronteira
(p. 651).
A Constituição federal definitiva, a de 1787, tornará manifesta esta intenção atribuindo
ao Congresso uma competência “para regular o comércio com as nações estrangeiras, entre os
vários Estados e com as tribos indígenas” (art. 1, seção 8, parágrafo 3); o que será interpretado
amplamente, na linha de uma substituição na soberania, no que se refere àquela espécie de
“terceiro gênero”, as tribos indígenas, que não são nem nação estrangeira nem parte integrante
do Estado (p. 652).
A jurisprudência constitucional da Corte Suprema Federal formulará, daqui a algumas
décadas, essa posição sustentando que esses povos constituem “domestic dependent nations”:
ou seja, eles são nações, mas internas e dependentes, colocadas “in a state of pupilage”, posta
sob uma tutela em certo sentido “familiar” enquanto colocados em um estado permanente de
“menoridade” em relação aos Estados Unidos (p. 652).
O procedimento normativo para a concretização de tais relações será, portanto,
internacional, a dos tratados no sentido estrito do termo (p. 652).
A situação não muda durante décadas. A prática dos tratados se conserva até 1871,
dando lugar a acordos menos formais e mais diretamente sujeitos à decisão dos governos
federais (p. 653).
As relações são estabelecidas em termos internacionais, o que implica um princípio de
reconhecimento jurídico não demasiado degradante, embora sempre baseado em pressupostos
de tipo colonial. Mediante essas relações estabelecidas por meio de tratados, a parte indígena
pode manter a própria ideia de direito começando por atribuir sentido diverso às palavras (p.
654).
É um direito que não prevalece sobre aquele dos Estados Unidos nem se compõe de
modo paritário com ele. As reservas permanecem sob dependência e tutela sem ter contribuído
ou dado consenso ao constitucionalismo estadunidense e sem se integrar nele. Entre os dois
séculos, aproximadamente entre o fim do período dos tratados e o nascimento do Estado de
Oklahoma, os povos indígenas das reservas continuam a ser nações mesmo excluídos da Nação.
Os seus membros não são cidadãos e cidadãs desta Nação. Continua a valer o requisito da
conversão não só a uma ordem pública, mas também à ordem privada da propriedade e da
família (p. 654-655).
Os habitantes das reservas indígenas recebem a cidadania estadunidense em 1924,
não a pedido deles, mas por decisão dos próprios Estados Unidos, fato este que não pode
senão gerar resistências (p. 655).
Quando, enfim, os povos indígenas recebem cidadania e alguns direitos, eles já
constituem uma minoria absoluta e definitiva no interior dos Estados Unidos. E os seus
territórios, que esses povos governam internamente, são reservas, não Estados. Há nações
internas dependentes, nações sujeitas a poderes federais, nações que todavia não fazem parte do
sistema federal organizado por uma outra nação, a Nação com maiúscula. E a Constituição
permanece em silêncio, com exceção da enigmática referência ao “terceiro gênero”, as Indian
tribes, as tribos indígenas, que não formam, como sabemos, Estados próprios nem são Estados
estrangeiros. Nenhuma emenda federal estadunidense faz referência a esse fato (p. 656).
O caso constitucional do vizinho Canadá é mais claro. Trata-se, originariamente, de
colônias que não se agregaram ao processo de independência e que, portanto, não reagiram
contra a proclamação inglesa de 1763 (p. 656).
A atual norma constitucional, de 1982, contém claramente, a favor dos “aboriginal
peoples os Canada”, “peuples autochtones du Canada”, os povos indígenas do Canadá, aqueles
“direitos ou liberdades reconhecidos pela proclamação de 7 de outubro de 1763” (parte I, seção
25; parte II, seção 35), e esse reconhecimento é extensivo também a outros tratados e acordos
(p. 656).
A declaração partia de uma explícita afirmação de soberania que colocava o direito
colonial acima daquele indígena, válido enquanto reconhecido pelo primeiro [..] (p. 656-657).
2. A inclusão constitucional: América Latina
Já afirmei que o ponto de partida latino-americano parece diverso ou também
aparentemente contrário em relação àquele norte-americano: está em jogo a inclusão. Os
Estados que se tornaram independentes da monarquia espanhola o fizeram em nome de toda a
população, e não apenas daquela de proveniência europeia. Eles têm sua origem em um regime
colonial que já estabelecera um domínio direto sobre a população nativa, instaurando expressa e
eficazmente um mecanismo de tutela. Ora, algumas Constituições nascem sobre o
pressuposto de uma única Nação, sobre o fundamento implícito ou também explícito de
uma nacionalidade e também de uma cidadania compartilhada com a população indígena.
Porém, a incorporação não ocorre (p. 657-658).
O ponto de partida do esquema da inclusão está expresso de modo bastante claro em
uma das primeiras Constituições dessa região, a da Venezuela de 1811. Ela se desenvolve sobre
o pressuposto de uma cidadania comem e produz o efeito da anulação explícita do status de
tutela dos indígenas [..] (p. 658).
Essa anulação é preparada por um longo artigo, que lhe oferece motivação, dedicada
àquela “parte de cidadãos até então denominados índios”. A anulação perseguida é de alcance
ainda maior: emerge um programa de conversão, primeiro religiosa e depois cultural, dos
índios. É sublinhada a exigência de “fazer-lhes compreender a íntima ligação com todos os
demais cidadãos” e a necessidade de compartilhar os direitos “pelo único fato de serem pessoas
iguais a todas as outras da própria espécie”. O programa de uma “desculturação” indígena por
meio da aculturação constitucional é aplicado pela própria Constituição em vista da distribuição
da propriedade das terras que tinham sido concedidas. Fica assim entendido que não existe
domínio territorial que não provenha da propriedade privada. Não há possibilidade de uma
comunidade própria nem de nenhum direito próprio. A negação da cultura indígena é o efeito
produzido sobre os nativos pela prática da “inclusão” (p. 659).

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