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REVISTA DE (IN)FORMAÇÃO PARA AGENTES DE LEITURA | ANO 9 | FASCÍCULO 19 | PRINCESAS AFRICANAS | WWW.LEIABRASIL.ORG.

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PRINCESAS AFRICANAS
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Leituras Compartilhadas
Março/2009

Princesas
Diretor Responsável: Jason Prado
Editor: Ana Claudia Maia
Conselho Editorial: Ana Lúcia Silva Souza e Sueli de Oliveira Rocha

Africanas
Direção de Arte e Produção Gráfica: Suzana Lustosa da Fonseca
Ilustrações: Taisa Borges
Outras Ilustrações:
Montagens feitas por Suzana Lustosa da Fonseca a partir de ilustrações
de Taisa Borges (págs. 18, 19, 38, 39, 56, 57, 66, 71).
Banco de Imagens: Fotolia

Revisão: Sueli de Oliveira Rocha


Colaboração: Márcio Von Kriiger
Tiragem: 10.000 exemplares

Leituras Compartilhadas é uma publicação do Leia Brasil


distribuída gratuitamente às escolas conveniadas.

Todos os direitos foram cedidos pelos autores para os fins aqui descritos.
Quaisquer reproduções (parciais ou integrais) deverão ser autorizadas previamente.
Os artigos assinados refletem o pensamento de seus autores.
Leia Brasil e Leituras Compartilhadas são marcas registradas.

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esta publicação em atividades de sala de aula.
O
África dos meus sonhos

potencial de sustentabilidade A nova edição do Leituras Compartilhadas


de todo e qualquer empreendimento é um mostra o desejo constante do Programa em
dos fatores que confere excelência à inicia- atender as demandas de nossos maiores

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tiva. E, para isso, a gestão participativa – parceiros: os mais de nove mil professores
processo em que as partes envolvidas e 300 mil alunos que constroem o sucesso
expõem suas possibilidades e necessidades desta ação nas 310 escolas onde o Petrobras
– é fundamental na conquista dos bons Programa de Leitura Bacia de Campos é
resultados. Assim é o Petrobras Programa desenvolvido. As Princesas Africanas condu-
de Leitura Bacia de Campos, iniciativa zirão um estudo menos superficial da África,
social apoiada pelas unidades de Negócio continente que esconde suas riquezas na
da Bacia de Campos e do Rio de Janeiro pluralidade de tradições que remontam à
em 17 municípios da área de influência da origem da humanidade.
maior província petrolífera do país. A sustentabilidade de nossas ações
Por seu constante alinhamento às depende dessa disposição em aprofundar
demandas de seu público-alvo, alunos e os conhecimentos, tanto no passado quanto
professores da rede pública de ensino das nos desafios impostos pelas novas eras que

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cidades atendidas, o Petrobras Programa de virão. Assim a Petrobras conduz seus inves-
Leitura Bacia de Campos vem contribuindo timentos empresariais e sociais. Para que
para a melhoria dos índices que mensuram chegássemos ao imenso tesouro escondido
a educação. Exemplo disso, a pontuação na camada pré-sal, tivemos que buscar as
que as escolas e municípios atendidos con- regiões mais distantes, profundas. E para
quistaram na pesquisa que mediu o Índice que exploremos aquela riqueza, necessário
de Desenvolvimento da Educação Básica, o será aprimorar o conhecimento adquirido
IDEB, em 2007. até aqui.
Em Macaé, onde o programa é desenvol- Como o que ora é proposto pelo Leituras
vido desde 1994, todas as 37 escolas atendi- Compartilhadas. Como a ostra que guarda o
das pelo caminhão-biblioteca atingiram tesouro dentro de si, a África será aqui
pontuação acima da média nacional, tendo o revelada pelo que esconde de mais precio-
Colégio Municipal do Sana obtido média 6,5, so: sua dignidade, sua nobreza, mergulho
índice maior que a meta estipulada pelo esse conduzido pelo mais rico dos univer-
Governo Federal (6) para o ano de 2021. sos, o literário.

4 5
Princesas africanas

D
Jason Prado

uas palavras, tantos sentidos. morte, leoas no exercício da função mater-


Quando ouvi a sugestão de publicar um na, mulheres com vontades e desejos...
Caderno de Leituras Compartilhadas com Para além disso, mulheres especiais, que

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este tema, não me dei conta dos desvãos do se distinguem das outras em sua superiori-
caminho. dade, seja em graça, beleza ou astúcia.
Era uma tarde fria de junho e eu estava Guerreiras, sensíveis, capazes de perceber um
na Refinaria do Paraná, fazendo o terceiro grão de ervilha sob pilhas de colchões de plumas.
de uma série de encontros sobre a participa- Ungidas pelos deuses no nascimento e
ção africana na formação cultural brasileira. donas do direito divino de povoar as cabe-
Foi quando Analu me desafiou: por que ças dos homens.
vocês não fazem um Caderno sobre as princesas Princesas, qual promessa de flor, também
negras? à espera dos varões que as farão reinar em
Ana Lúcia1 é uma dessas pessoas de seus próprios castelos.
vontade forte, com formação e conteúdo Mas também africanas. Em sua maioria,
invejáveis, cheia de fé no que diz. É, ela negras, exuberantes e fortes como a guer-
mesma, a própria imagem da guerreira reira que projetou a atriz jamaicana de

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africana. Conan, ou como tantas outras que conhe-
Como se não bastasse, Rogério Andrade cemos no dia-a-dia. Vindas – para a maioria
Barbosa tinha passado a manhã daquele dia de nós brasileiros, seus descendentes – de
falando de suas viagens pelas nações africa- um universo desconhecido, povoado com
nas, das culturas exóticas, de ritos tribais... imagens de animais ferozes, de lanças cru-
Nos subsolos da minha mente já se agi- zando os céus e tan-tans em frenesi, de cor-
tava a figura emblemática e saltitante de pos esguios e fome. Muita fome – somali,
Grace Jones num filme trash dos anos 802, etíope, biafrense... Africanas, brancas e
como a incentivar a empreitada. Não pude negras. Submetidas e espoliadas por sécu-
evitar as armadilhas de minha própria ima- los, como seu continente, até se perderem
ginação: topei o desafio. de si mesmas.
Aos poucos, como os animais que “mas- Para esta edição de Leituras Compartilhadas
tigam” muito depois de engolir, fui me – em que o “eu” torna-se “nós”, no compar-
dando conta dos conteúdos ali envolvidos. tilhamento das minhas ponderações com a
Logo de cara, uma bifurcação: princesas; equipe da ONG Leia Brasil –, evoluímos
portanto, mulheres. para Princesas Africanas, curvando-nos não
Não apenas mulheres, em suas dimensões só à grandiosidade do continente mas tam-
humanas: heroínas na luta pelo pão-nosso e bém à Cleópatra, à Rainha de Sabá e a

6 7
pela sobrevivência diária, frágeis diante da todas as mulheres que remontam à mais
ilustre e desconhecida de todas as prince- cesas são a matéria-prima de nossa organi- frustra nossas expectativas e subverte a civi- preconceituoso e o preconceito é rasteiro,
sas: Lucy3, a africana que todos temos no zação social. lidade, nos pilhamos dizendo: “isso é coisa imprevisível, dissimulado e elitista. E quan-
sangue. Em meados do século XVI, surgiu na de preto”? do falo em elite, caio mais uma vez na pan-
Durante os meses necessários para que Inglaterra uma expressão que se atribui a Isso posto, toquemos num ponto nevrál- tanosa questão das classes sociais, dos
os artigos e textos fossem encomendados e um jurista inglês5, e que se tornou a base gico: a questão africana. dominantes e dominados, dos príncipes e
escritos, para que essas belíssimas ilustra- da Bill of Rights, expressivo nome de um Partindo de Lucy, somos todos afro-des- mendigos...
ções fossem produzidas e a edição come- capítulo da Constituição norte-americana: cendentes. Uns mais, outros menos. E o Voltando ao preconceito, o problema é
çasse a ganhar forma, muitas foram as a man’s home is his castle – a casa de um que é mais importante ainda, estamos jun- que ele dói, mas nem é crime. Embora a
dúvidas que, pouco a pouco, se materializa- homem é o seu castelo6. tos na humanidade. manifestação do preconceito seja crime
ram como bolhas que levantam da fervura. Tudo bem que essa frase tenha servido Por que é tão difícil que a descendência (tipificado pela Lei nº 7.716, de 05/01/89),
A mais inquietante delas, talvez, seja relati- para assegurar a inviolabilidade do lar, mas negra ganhe cidadania no Brasil, a ponto de seu sentimento não pode ser criminalizado.
va à questão Princesa. Dúvidas não pro- não caberia perguntar: quem mora em cas- ser necessária a criação de um movimento Ninguém pode ser punido por associar um
priamente quanto às funções tribais da filha telos? E por que pessoas de todas as classes pela consciência negra e a promulgação de negro, numa rua deserta, à noite, a uma
do chefe, mas quanto a esse conceito que sociais – inclusive nas sociedades de castas uma lei que obrigue as escolas a ensinar a situação de iminente perigo. Mas deve
permeia nossa vida e nos faz chamar nossas – se referem assim às suas herdeiras? História e a Cultura Africana7? doer (e revoltar) a qualquer jovem negro
filhas de princesas, que permite às mulheres Será demais remeter o conteúdo ideoló- Mais uma vez, volto a particularizar assistir a um estranho desviando de seu
se atribuírem esse título, sempre tão impreg- gico das princesas (e toda a sua entourage) minha fala e recorro aos significados. caminho.
nado de bondade. às questões da família, da propriedade e do Embora não tenha autoridade para falar a Do outro lado desse comportamento
No romance Peixe dourado4, um belíssi- estado? Será puro maniqueísmo? esse respeito, vou me permitir ser opiniáti- está, por exemplo, a clara leitura que
mo livro sobre princesas africanas, Jean- Por outro lado, por que valorizamos co: não creio que o movimento tenha se podemos fazer da miséria a que as elites
Marie Clézio (Prêmio Nobel de Literatura tanto esse negócio de realeza, nobreza e constituído apenas em decorrência da dor condenaram os negros no Brasil. Miseráveis
de 2008) usa o termo princesa centenas de outras iniqüidades coroadas? ainda viva de nossos avós amarrados no famintos – como os escravos “libertos”
vezes, a maior parte delas para se referir às Há 16 anos – em 1993, na reta final do pelourinho, muito menos pela imoralidade pela Lei Áurea, sem teto e sem perspectivas
moças de um prostíbulo marroquino, bus- século XX – nosso Congresso promoveu, a do tráfico, que aniquilou milhões e, pela – são marginais potenciais. Mas essa lógica
cando assim suavizar o caráter do ganha- um custo financeiro exorbitante, um plebis- escravidão, transformou outro tanto em nunca ocupou espaços na sociedade, que é
pão dessas mulheres. cito (referendo popular) sobre a forma de mortos-vivos. preconceituosa (de certa forma, o senti-
Que mágica tem essa palavra? De onde governo no Brasil. Nada menos que 6,8 Embora sejam recentes, esses fatos mento do preconceito exime e protege de
vem sua força? milhões de brasileiros votaram a favor da remontam ao já longínquo século XIX. É culpa as pessoas). O preconceito só se des-
Deixando de lado as razões teosóficas monarquia, pensando seriamente em entre- preciso falar deles porque somos um país monta com educação, com a lógica. E essa
(ou o pseudo “direito divino” de alguém ser gar a coroa (e nós, as caras) aos portugueses decorre de um pensamento arejado, da
melhor que os outros e, a partir dessa lógi- que exportaram nossas riquezas e importa- compreensão de cada componente
ca, praticar todas as vilanias possíveis con- ram da África, como mercadoria, seres do todo.
tra a humanidade), em que pensamos quan- humanos. Com essas considera-
do empregamos essa palavra? Por que, mesmo sabendo disso (da ções, retomo o propó-
Em primeira e última instância, prince- vergonha e sofrimento que nos cau- sito desta edição
sas são as herdeiras do rei. São elas que sam os que se julgam acima do bem de Leituras
viabilizam a constituição de novos reinados e do mal; da podridão que alicerça a Compartilhadas:
(famílias), garantindo a transição entre um aristocracia), quando alguém tem uma criada para ajudar
antigo e um novo regime. Se é verdade que atitude digna, elogiável, quase beata, dize- os professores a reconhecer e positivar as
as histórias tecem o terreno por onde cons- mos que foi um “gesto nobre”? E por que, diferenças, combater o racismo e o precon-
truímos nossas noções de mundo, as prin- no extremo oposto, quando algo inesperado ceito étnico-racial, ela não pode se propor
8 9
a oferecer respostas, mas a ajudar a instalar
perguntas que desconstruam comportamen-
tos e pré-julgamentos.
Sendo assim, com o excepcional conteúdo
que se segue e que é oferecido às futuras
gerações de brasileiros, deixo no ar uma

Princesas
homenagem a todas as princesas negras
(e africanas) que nunca estiveram em nosso
imaginário e às outras tantas que não pude-
ram comparecer a esta edição.
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Africanas
Notas:
1 Ana Lúcia Silva Souza (Analu) é socióloga, dou-
toranda em Lingüística Aplicada (Unicamp - Instituto
de Estudos da Linguagem), mestre em Ciências Sociais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Parti-
cipa desta edição de Leituras Compartilhadas como
articulista e conselheira editorial.
2 Conan, o destruidor, de 1984.
3 Lucy Dinqines (que significa você é maravilhosa) –
nome do esqueleto da fêmea hominídea de 3,2 milhões
de anos encontrado na Etiópia; é a mais antiga ances-
tral da humanidade.
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4 Peixe dourado, de Jean-Marie Clézio, Companhia

das Letras, 2001.


5 Sir Edward Coke, Inglaterra, 1552-1634.
6 É curioso que esse respeito à privacidade e esse

reconhecimento à inviolabilidade do lar tenham se


consolidado duzentos anos depois, ao tempo da inde-
pendência americana, que coincide com a Revolução
Industrial e o fim do Feudalismo, no qual as pessoas
serviam à nobreza e sequer possuíam a roupa do corpo,
quanto mais uma casa.
7 Lei 10.639 / 2003 – altera a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) e estabelece a
obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-
brasileira e Africana no Brasil.

Jason Prado é jornalista, criador e Diretor Uma contribuição para o estudo da


Executivo da Leia Brasil – ONG de promoção cultura afro-brasileira nas escolas públicas.
da leitura. (De acordo com a Lei 10.639/2003)

10 11
Índice

• África dos meus sonhos - Petrobras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5


Princesas africanas - Jason Prado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7
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• O sonho de ser princesa - Andréa Bastos Tigre - Rossely Peres . . . . . . . . . . . . . . . .15


• As princesas nos contos de fadas - Sonia Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17
• São outras as nossas princesas - Sueli de Oliveira Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21
• Que fada é essa? - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25
• A donzela, o sapo e o filho do chefe - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . .27
• Rainhas negras na África e no Brasil - Luiz Geraldo Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31
• As princesas africanas - Braulio Tavares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33
• O casamento da princesa - Celso Sisto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37
• Minha princesa africana - Márcio Vassalo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41
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• Uma princesa em São Tomé e Príncipe - Ana Lúcia Silva Souza . . . . . . . . . . . . . . .43
• Princesa de África, o filme - Uma entrevista com Juan Laguna . . . . . . . . . . . . . . . .47
• Iya Ibeji, a mãe dos gêmeos - A leitura dos símbolos nagô - Marco Aurélio Luz . . . . . .51
• A lenda da princesa negra que incendiou o mar - Geraldo Maia . . . . . . . . . . . . . . .55
Taisa Borges tem formação em artes plásticas e estilis- • Nas malhas das imagens e nas trilhas da resistência: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
heroínas negras de ontem e de hoje - Andréia Lisboa de Sousa . . . . . . . . . . . . . . .59
mo. Ilustrou para a Folha de S. Paulo, Vogue, entre outros.

Uma guerreira - Julio Emilio Braz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63


É autora do livro de imagem O rouxinol e o imperador, ins-
pirado no conto de Andersen do mesmo nome, lançado

Princesa, não. Mas... - Marina Colasanti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65


em 2005, obra selecionada para o PNBE 2005 e para o
PNLD SP/2006, merecedor do prêmio de o Melhor livro de •

Os três cocos - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69


imagens de 2005 pela Fundação Nacional do Livro Infantil

Uma princesa afrodescendente - Sueli de Oliveira Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .73


e Juvenil (FNLIJ). Em 2006, publicou na mesma coleção
João e Maria, inspirado em um conto dos irmãos Grimm,

Princesa descombinada - Janaína Michalski . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77


também selecionado para o PNBE 2006 e para o PNLD
SP/2007. O livro A bela adormecida, de Charles Perrault, •

Princesas africanas e algumas histórias - Tiely Queen (Atiely Santos) . . . . . . . . . . . .79


lançado em 2007, fechou seu projeto de homenagens aos
contos de fadas. •

• Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83

12 13
O sonho de ser princesa...
Andréa Bastos Tigre - Rossely Peres

Q
Princesa Desalento
Pise macio porque você está pisando nos impotência frente aos mais fortes, da solidão
meus sonhos.1 e do isolamento, dos segredos e sobressaltos
W. B. Yeats de se ter um corpo. São legados que nos

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Minh'alma é a Princesa Desalento,
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vêm de longe, de uma tradição oral que, no

Como um Poeta lhe chamou, um dia.


ue menina não sonhou, um dia, correr do tempo, vieram a ser escritas, num

É revoltada, trágica, sombria,


em ser ou vir a ser uma princesa? O apelo encontro de papel, pluma e desejo de um

Como galopes infernais de vento!


da beleza, da riqueza, do fausto das festas e autor. Um longo caminho de “Era uma
palácios e do “viveram felizes para sempre” vez...”, “Num certo país...”, “Há muitos e

É frágil como o sonho dum momento,


traz a magia da palavra, com seus sons e muitos anos atrás...”, para tentar responder

Soturna como preces de agonia,


encantamentos, alimento da imaginação aos enigmas: que mundo é esse? Como

Vive do riso duma boca fria! infantil. viver nele? Quem sou eu?

Minh'alma é a Princesa Desalento... A linguagem fantástica - a da poesia, do As histórias e os contos tomam a angús-
conto, das fábulas, com seus ritmos e ima- tia do existir a sério, dirigem-se a ela, à
Altas horas da noite ela vagueia... gens - permite à criança “viver outras vidas” escura incerteza do que vai acontecer.
E ao luar suavíssimo, que anseia, e, assim, construir um arcabouço imaginá- Endereçam-se ao futuro guiando a criança
Põe-se a falar de tanta coisa morta! rio necessário e fundamental para “viver a através de caminhos que ela pode aceitar e
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própria vida”. Que lugar tem, na economia compreender – princesas, cavaleiros e damas,
O luar ouve a minh'alma, ajoelhado, psíquica de uma criança, histórias de prín- animais falantes, duendes e anões conduzem-
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à tua porta...
cipes e princesas? na, pela mão, a seu mundo dos sonhos.
As palavras apresentam o mundo, a coisa A fantasia e poesia da linguagem nos
não existe sem elas, elas lhe dão existência. transportam para um país onde tudo pode
Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade" acontecer. A magia da palavra lida ou ouvi-
... Digo “sol”, e a palavra brilha; da faz existir o sonho e, ao afastar-se do
Digo “pomba”, e a palavra voa; real, permite a margem do mais além, do
Digo “maçã”, e a palavra floresce.2 outro, do impossível, do espelho com suas
entradas e saídas secretas. Um texto que é
E podemos acrescentar: recebido no nível intelectual, mas que toca
Digo “princesa”, e a vida brilha, a imagi- também a sensibilidade, ganhando na escuta
nação voa, a felicidade floresce. da palavra significação afetiva e imaginativa.
São as histórias e os contos que, ao dar O próprio da linguagem poética e fan-
nome, ao pôr em palavras, permitem dar tástica é ser múltipla em sua essência. O
contorno e limite a sentimentos obscuros e convite a uma viagem ao país das palavras
angustiantes que assombram crianças – abre a porta para a criança usufruir do uso
medo da vida e da morte, do futuro incerto da linguagem e, com ela, brincar, sonhar,

14 15
do quem sou e quem serei, da raiva e da rir, acariciar, girar, ir e retornar. Lá não há
As princesas nos contos de fadas

N
uso ridículo ou absurdo da linguagem, o de sugerir o desconhecido, o imprevisível,

Sonia Rodrigues
desbloqueio do imaginário recria a fascina- implicando o ouvinte-leitor no trabalho de
ção da palavra e permite: “eu sou princesa”. preencher lacunas, absorver o intuído, asso-
A vida não pára de se escrever; e a histó- ciar som, imagem, textura, ritmo e cor. Se é
ria, em sua letra, se conserva através do uma trama proposta por um autor-narrador,
tempo. É a permanência do texto que sus- cabe a cada ouvinte-leitor torná-la sua.
tenta a imortalidade das obras, e, entre elas, Longa vida aos contos de príncipes e
os contos maravilhosos que comuns a toda humanidade e fornecem a
a de princesas que, nórdicas, africanas, asiá- princesas!
aparecem na cultura ocidental, as princesas base das religiões, dos mitos e dos contos
ticas ou indígenas permitem à criança olhar
costumam ocupar dois papéis: o do prêmio, maravilhosos.

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o cotidiano da vida de um jeito diferente Notas:
ou, mais raramente, o de herói. São contos Monteiro Lobato, fundador da literatura
àquilo que se apresenta como igual, pois a 1W. B. Yeats: He wishes for the cloths of heaven in de fantasia, freqüentemente chamados con- para crianças no Brasil, teve em relação
própria repetição num vir a ser inaugural The Collected Poems. Nova York, Macmillan, 1956.
tos de fadas, em geral passados na Idade aos contos de fadas, basicamente, três
ganha novos sentidos. Não serão as lem- 2 Alain Bosquet: Quatre testaments et autres poèmes.
Média européia. atitudes estéticas em seus livros: a crítica
branças das histórias que nos permitem Paris, Gallimard.
Autores importantes na nossa cultura aos contos embolorados da Carochinha
uma leitura singular de nosso mundo?
leram esses contos com visões diferentes ou ao que Emília classificava como boba-
As palavras de todos os dias quando reu- Andréa Bastos Tigre e Rossely Peres são que podem contribuir para que nossa leitu- gens do folclore; a admiração à produção
nidas numa bela história adquirem o poder psicanalistas da Escola Letra Freudiana - RJ. ra se enriqueça na concordância ou amplia- literária a partir deles feita pelos irmãos
ção de suas opiniões. Grimm, Perrault, Andersen; e a incorpora-
Freud entendia o conto de fadas como ção das princesas ao seu próprio universo
uma forma atenuada dos mitos e esses ficcional.
como deformações das fantasias de desejo Vladimir Propp definiu como conto
das nações, da espécie humana como um maravilhoso ou de magia toda narrativa

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todo. O conto estaria ligado à socialização, que, partindo de uma carência ou dano e
à aquisição pela criança das normas morais, passando por um desenvolvimento interme-
representadas pelo superego. diário, termina com casamento, recompen-
Para os freudianos, Bettelheim inclusive, sa, obtenção do objeto procurado, repara-
as pulsões criam os contos populares por ção ou salvamento de uma perseguição
transformações análogas às do trabalho do (Propp: 85).
sonho. Propp está mais voltado para entender
Para Jung e os junguianos, os contos de como se estruturam os contos de fadas do
fadas representam, além do material que para interpretá-los. Em Morfologia do
inconsciente recalcado que mantém rela- conto maravilhoso, descreve como, no decor-
ções com os sonhos e as fantasias, fenôme- rer da narrativa, o herói torna-se o possui-
nos arquetípicos e sugerem simbolicamente dor de um objeto ou auxiliar mágico “que o
a necessidade de uma renovação interior utiliza ou que se serve dele.” A magia em si
pela integração do inconsciente pessoal e pode estar no auxiliar ou no objeto mágico
do inconsciente coletivo à personalidade do que é doado ao herói; nas características do
indivíduo. próprio; no antagonista-agressor que pode
De acordo com esse ponto de vista, os ser um dragão, um bruxo, um ogre ou
arquétipos são dinamismos inconscientes outras criaturas fantásticas na função de

16 17
ligados a imagens primordiais ou símbolos “antagonista”.
Aplicando os conceitos de Propp, consi- histórias que defendem a moral e os bons Propp enumera os papéis distribuídos e. Percurso do herói até sua desti-
dero que um personagem é sempre um per- costumes, histórias nas quais o mal é puni- entre as personagens concretas dos con- nação, vitória do herói. Aqui pode
sonagem, mas os papéis variam segundo a do e o bem triunfa, histórias, enfim, que tos maravilhosos como: o herói, o antago- ocorrer um desdobramento que pro-
interação do personagem com a trama. Uma enganariam seus pequenos leitores levan- nista (ou agressor), o doador, o auxiliar, a longue a narrativa: perseguição ao
princesa pode ser afilhada de fadas, como do-os a acreditar em um mundo irreal. princesa ou seu pai, o mandante e o falso herói, aparecimento do falso herói,
em A Bela Adormecida ou Pele de Asno. O Contos de fadas são contos épicos, con- herói. retorno do herói;
papel a ser desempenhado dependerá de tos que tratam da jornada do herói, na qual Os contos poderiam ser chamados tam- f. A seqüência f, é lógico, depende
como o enredo se articula. este repara a perda ou dano ocorrido no bém de “contos dos sete personagens”, ape- do prolongamento da narrativa. O
No conto A Bela Adormecida, a princesa início da narrativa. Esta reparação é que sar de nem todos aparecerem em todos os herói chega incógnito, encontra as
se limita a furar o dedo – inadvertidamente, distingue o conto de fadas da tragédia, na contos, claro. Porque existem contos mais pretensões infundadas do falso herói,
estimulada por uma fada rancorosa – numa qual o herói é levado, por suas próprias simples, como o da Menina da Capinha é submetido a uma tarefa difícil para
roca. Em seguida, ela dorme – graças à características, a cometer uma falha irreme- Vermelha, e mais extensos, como o Veado ser distinguido do falso herói, realiza a
intervenção de uma fada boa – junto com diável que o faz ultrapassar a medida e ser encantado. tarefa, é reconhecido e desmascara o
todo o reino, até que um príncipe a salve. arrastado para uma situação sem saída. A trama dos contos de fadas, de uma outro, que é castigado. O herói casa ou
Em Pele de Asno, a princesa é desejada No conto de fadas, o final é feliz porque maneira geral, é enxuta, utilizando o míni- é entronizado.
pelo pai enlouquecido, resiste ao incestuoso aquela ou aquele que está envolvido na mo de idas e vindas, ao contrário de narra- É interessante notar que o estudo de
pedido de casamento e, com o auxílio da reparação da perda (a princesa, em muitos tivas como a Odisséia. Propp se refere ao herói como aquele que
fada madrinha, foge para uma trajetória de exemplos) se submete, temporariamente, às Os enredos dos contos, ainda segundo repara o dano. Nos exemplos citados por
agruras até conquistar o coração de um intempéries. Em Os três cães, ela, por medo Propp, não fogem muito da seguinte dispo- ele, o herói é um rapaz de origem simples
príncipe. de morrer, aceita dizer ao rei, seu pai, que sição dos acontecimentos: ou príncipe, e a princesa é, quase sempre,
No primeiro, o protagonista é o príncipe foi o cocheiro desonesto que a salvou do a. Situação inicial, que define espa- prêmio. Quando a figura feminina ocupa
e, no segundo, a princesa é herói, e o prín- dragão. Aceita ser prometida em casamento ço, tempo, personagens principais um papel mais ativo, ela costuma não ser da
cipe, prêmio. ao impostor. O que ela faz é estabelecer (fora o antagonista), seus atributos e realeza ou é da realeza, mas está disfarçada.
No conto maravilhoso, nem sempre apa- uma resistência passiva, pela tristeza, para antecedentes; É filha de mercador, em A Bela e a Fera,
rece o elemento mágico, mesmo quando adiar o casamento durante três anos. b. Parte preparatória, onde aparece órfã pobre em O Veado Encantado, de ori-
estão articulados princesa, prêmio e recom- Tempo suficiente para o verdadeiro salva- algum tipo de proibição e a transgres- gem desconhecida e beleza estonteante em
pensas variadas. É o caso de A princesa e o dor voltar, com seus cães mágicos, para des- são da proibição, o dano ou carência e A Moura Torta ou uma princesa em trajes
grão de ervilha, no qual não existe magia e, mascarar o falso pretendente. E casar com a o antagonista com seus embustes. Em pobres, como em A princesa e o grão de ervilha.
sim, reconhecimento da princesa como princesa, claro. Rapunzel fica muito claro este par de Apesar das críticas da boneca Emília,
herói de si mesma, porque ela, apesar dos Pelo parentesco com a epopéia e não elementos: proibição e transgressão. nos contos folclóricos narrados por Tia
farrapos, é uma princesa real cuja pele se por moralismo ou irrealidade, o conto Em A Moura Torta, o dano ou carência Nastácia, aparecem várias princesas em
ressente de um grão de ervilha sob 12 col- maravilhoso termina na reparação da perda, está no feitiço colocado pela usurpa- papel de herói ou auxiliar de herói. É o
chões. culmina no triunfo do herói. Odisséia, de dora. caso do Bicho Manjaléu. Aparecem também
A articulação entre os papéis de herói e Homero, é a matriz ocidental (ou o mais c. O nó da intriga: uma personagem princesas no papel de adversário, como no
prêmio está presente nos contos de fadas abrangente exemplo da cultura ocidental) se revela como herói ao reagir à ação conto A Princesa Ladrona.
em que a princesa faz parte do conjunto de desse triunfo. Na Odisséia, a princesa (rainha) do antagonista que provocou o dano. A princesa como adversário do herói
personagens que assumem o papel de está no papel de prêmio. Penélope faz a d. Aparece(m) o(s) auxiliar(es) do também aparece em A Pequena Sereia, de
representar o Bem. Vale a pena pensar um mesma coisa que a princesa sem nome do herói, com todas as particularidades Andersen, conto no qual a princesa é a
pouco sobre o significado de “Bem”, por- conto Os três cães. Protela a escolha de um dele(s) e do(s) objeto(s) mágico(s), usurpadora, inventa que salvou o príncipe
que, às vezes, acontece dos contos de fadas pretendente usurpador até o retorno de incluindo aí as provas necessárias ao para casar com ele e derrota, assim, a
serem lidos como histórias de final feliz, Ulisses. herói; pequena sereia.
18 19
São outras as nossas princesas

S
Não conheço, no entanto, nenhuma lei- CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1988.

Sueli de Oliveira Rocha


tura criativa mais audaciosa do papel da
princesa nos contos de fadas do que a COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São
Paulo: Ática. Série Princípios. 1987.
empreendida pelo autor inglês Neil Gaiman,
FRANZ, Marie Louise von. A interpretação dos
no seu conto Neve. Neste, Branca de Neve
contos de fadas. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
deixa de ser herói de si mesma, de ser prê-
FREUD, Sigmund. Delírios e sonho na Gradiva de
mio do príncipe que, ao final, a resgata.
Jensen. Rio de Janeiro: Imago (Coleção Standard, v. ão lindas, geralmente de pele do Atlântico, muitas famílias reais africanas
Não, a princesa é antagonista cruel da mãe, IV), 1968. muito clara e de cabelos loiros. Algumas foram escravizadas e enviadas para outros
do pai e da madrasta.
GAIMAN, Neil. Fumaça e espelhos. São Paulo: ainda crianças, outras mal entradas na ado- lugares do mundo, em especial para as

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Seria possível passar horas e horas ao
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Conrad. 2000. lescência. Têm uma vida tranqüila e feliz, Américas. No mapa da diáspora africana1,
redor da fogueira, dias e dias numa biblio- JUNG, Carl G. et alli. O homem e seus símbolos. Rio até que, em determinado momento, passam o Brasil figura no primeiro lugar do mundo.
teca, muito tempo frente a um computador de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. por provas e provações, mas são salvas por Nosso país tem a maior população de ori-
ouvindo, lendo, pensando e recriando a LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: jovens príncipes, belos, educados e ricos, gem africana fora da África, ou seja, tem
partir das princesas dos contos de fadas. Brasiliense, s/d. Histórias de Tia Nastácia.
que por elas arriscam a própria vida e com 85.783.143 afrodescendentes. Esse número
Porque a princesa é a jovem mulher PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. os quais elas se casam, sendo, então, “feli- representa 44,7%2 da nossa população. Ou
convivendo com o mundo, com o inevitável, Trad. Jasna Paravich Sarhan. Org. Boris Schnaider-
zes para sempre”. Pertencem aos contos de seja, quase metade da população brasileira
com o transcendente. Lidando, portanto, man. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.
fadas, são européias e suas histórias aconte- é formada por descendentes dos negros
com a vida e com todos nós.
ceram há muito e muitos anos. africanos que para cá vieram e trabalharam
Sonia Rodrigues, doutora em literatura e Mas nem todas as princesas são as dos sob péssimas condições, formando a mão-
Bibliografia: autora da Coleção Reconstruir, Formato Edito- contos de fadas da Europa, a bela, gloriosa de-obra escrava nos engenhos de açúcar e
BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos contos de rial. Para mais informações sobre a autora, e deslumbrante irmã. A África, por exemplo, nas minas de ouro, durante o período que
fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. consulte: www.autoria.com.br deu ao mundo princesas famosas, como foi de 1530 a 1888. É aqui, portanto, em
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Nefertiti, célebre por sua beleza, e Cleópa- nosso país, que está a maioria dos descen-
tra, imortalizada nas telas do cinema por dentes das famílias africanas (da realeza ou
Elizabeth Taylor, dona de lindos e famosos não) trazidas como escravas na época do
olhos de cor azul-violeta. Brasil Colônia. Seus filhos - juntamente
Na África de nosso imaginário, fundem- com indígenas, europeus e asiáticos - com-
se dois mundos. De um lado, a África da põem a população brasileira e fazem parte
ciência, do nascimento da geometria às de diversas estatísticas.
margens do Nilo, da biblioteca de Alexan- As crianças e adolescentes com ascen-
dria, da opulência dos tesouros dos faraós, dência africana - príncipes e princesas ou
da imponência das pirâmides e do exotismo não - aparecem no Censo Escolar, uma pes-
dos safáris. De outro lado, a África da misé- quisa que abrange as diferentes etapas e
ria, do fornecimento de mão-de-obra escra- modalidades da Educação Básica no Brasil.
va, da fome e desnutrição das crianças de Realizado anualmente pelo Instituto Nacio-
Biafra, a África da diáspora, a África, irmã nal de Estudos e Pesquisas Educacionais
pobre. Anísio Teixeira (Inep/MEC), o Censo Esco-
Cleópatra e Nefertiti estão longe no lar pesquisa escolas públicas e privadas de
tempo. Na história mais recente, para onde todo o país, trazendo à tona alguns dados
foram e onde estão as princesas africanas? interessantes, merecedores de uma leitura

20 21
No período em que durou o tráfico negreiro mais atenta.
Desde 2005, o Censo Escolar vem incluin- e, para que fossem impedidos de fugir, No Brasil: 10.661.197 = 51,2% Notas:

do em seu questionário o quesito cor/raça3. eram acorrentados. Nas reminiscências Na Educação Infantil: 1.900.436 = 49,6% 1 Publicado em 1990, de autoria de Joseph Harris,

Em 2007, na modalidade ensino regular, o dessas humilhações pode estar embutido No Ensino Fundamental: 6.108.266 = 50,9% um historiador norte-americano.

Censo Escolar revelou os seguintes núme- o desconforto do adolescente do Ensino No Ensino Médio: 1.278.241 = 47,6% 2 Esse número aumenta quando os critérios são as
ros de alunos, para esse quesito: Médio, que prefere não declarar a própria Ou seja, no total do ensino regular da pesquisas genéticas, segundo as quais 86% dos brasilei-
ros têm algum grau de ascendência africana. De acordo
Educação Básica Brasileira, a distribuição
com esses estudos, os genes africanos variam de 10 a
NÚMERO DE ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL, POR RAÇA/COR EM 30/5/2007 cor/raça está equilibrada entre a branca, 100% de ancestralidade no brasileiro, que pode ou não
com 46,9%, e a negra/parda, com 51,2%. apresentar traços de fisionomia negra, devido ao alto
ENSINO REGULAR A maioria dos alunos brasileiros é de des- grau de miscigenação ocorrida em nosso país.

Total da Educação Total do Ensino Total do Ensino cendência africana e se declara de cor/raça 3 As variáveis branca, preta, parda, amarela e indíge-
Total do Brasil
Infantil Fundamental Médio negra ou parda. Nesse contingente estão as na, para aferir o quesito cor/raça, foram definidas pelo

52.179.530 6.417.502 31.733.198 8.264.816


Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Total de matrículas princesas afrodescendentes que, do Infantil
As respostas ao questionário para aferição desse item
ao Ensino Médio, recebem uma educação
8.264.816 2.549.841 19.801.732 5.583.355
Não declarada
são obtidas por documento comprobatório, por auto-
15,8% 39,7% 62.4% 67,5% baseada em pressupostos europocêntricos declaração do aluno quando maior de 18 anos, ou por

20.773.976 3.867.661 11.971.466 2.681.461


Declarada
que reproduzem relações sociais marcadas declaração do responsável.
84,2% 60,3% 37,6% 32,5% por uma suposta superioridade branca.
9.761.190 1.913.831 5.602.236 1.360.620
Branca Entretanto, mesmo com a tradição
46,9% 49,4% 46,7% 50,7%
represada, a influência africana no Brasil se Sueli de Oliveira Rocha é coordenadora, na
1.244.319 200.247 688.129 153.031
Preta
Raça/cor
5,9% 5,7% 5,7% 5,7%
faz presente na música (o ritmo), na dança Baixada Santista, do Programa de Leitura da
9.416.878 1.700.189 5.420.137 1.125.210
(os movimentos assimétricos), na culinária Petrobras-RPBC pela Leia Brasil, ONG de pro-
Parda
45,3% 43,9% 45,2% 41,9% (o vatapá), na medicina popular (as ervas, moção da leitura. Foi também membro da equi-
179.082 31.801 105.125 25.195
Amarela
as simpatias, as benzeduras), na religião pe pedagógica do Gruhbas Projetos Educacio-
0,8% 0,8% 0,8% 0,9%
(umbanda e candomblé), na língua (angu, nais e Culturais e do conselho editorial dos jor-
172.507 21.593 115.839 17.405
Indígena
0,8% 0,5% 0,9% 0,6%
batuque, cachaça, fubá, miçanga, quitute, nais “Bolando Aula”, “Bolando Aula de Histó-
samba), na formação de população, apenas ria” e “Subsídio”.
Fonte. http://inep.gov.br. Censo Escolar 2007, tabelas 1.2; 1.7; 1.19; e 1.31.
Observação: Para efeito deste texto, apenas o ensino regular foi considerado. Ficaram, pois, fora dele a Educação de
para lembrar alguns exemplos.
Jovens e Adultos, a Educação Especial e a Educação Profissionalizante. Um caminho para mudar essa escola
que desconsidera a presença africana em
Entre as várias ponderações que podem cor/raça no questionário do censo Escolar, nossa cultura é dotar os conteúdos por ela
ser desenvolvidas a partir da análise das evitando qualquer possibilidade de discri- oferecidos de referenciais africanos positi-
informações produzidas pelo Censo Esco- minação. vos; é trabalhar com os alunos a valorização
lar, alguns dados chamam a atenção. Um Outra constatação é que, no Ensino de protagonistas negros, buscando produzir
deles é que, à medida que a escolaridade Médio, enquanto a população branca um efeito positivo na construção da identi-
avança, aumenta o número dos que não aumenta (50,7%), diminui a presença dade desses príncipes e princesas brasilei-
desejam declarar sua cor/raça. É preciso negra/parda (47,6%). A pergunta que não ros afrodescendentes. Esse é um caminho
lembrar que durante o período da escravi- cala é: quantos conseguirão chegar ao Ensi- para podermos contar outras histórias,
dão, os negros escravizados trabalhavam no Superior? essas também com final feliz. E delas um
de sol a sol, recebendo uma alimentação Outro fato importante é que, somando dia se poderá dizer:
de péssima qualidade, não podiam prati- os resultados referentes à raça/cor preta e São lindas, geralmente de pele negra.
car a própria religião nem a própria lín- parda, indicativa da afrodescendência, Algumas ainda crianças, outras mal entradas
gua; suas festas e rituais eram proibidos; encontramos: na adolescência...
22 23
Que fada é essa?

A
Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque

costumados à imagem européia de sua raça e capaz de sentimentos menos


das fadas que ilustram os contos desde o nobres, fosse uma espécie de traição a uma
início da literatura infantil, fica difícil nos concepção há muito enraizada em nosso

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descolarmos da figura da fada sempre tão imaginário.
loura, tão esguia e tão doce que nos foi No entanto, as histórias clássicas, os
imposta, e conseguirmos contextualizá-la mitos gregos, as lendas dos mais variados
nos contos das diferentes culturas. países nos falam o tempo todo das altera-
Nas diferentes cidades em que dou ofici- ções físicas e de humor dessa figura atem-
nas de contadores de histórias, costumo poral que habita nossa imaginação.
contar uma história escrita por Gail Harley, Não podemos nos esquecer que, no clás-
chamada O Baú das Histórias. Trata-se de sico A Bela Adormecida, foi uma fada, e não
uma antiga história da cultura yorubá, que uma bruxa, que lançou sobre uma recém-
nos conta como Ananse, o homem aranha, nascida uma sentença de morte por não ter
conseguiu comprar de Nyame, o Deus do sido convidada para o banquete de seu
Céu, histórias que ficavam encerradas den- batizado; que na história As fadas, recolhida
tro de um baú, para espalhá-las pelo mundo. por Perrault, a mesma fada que deu a uma

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Para tanto, o Deus lhe impõs três tarefas, menina o dom de, ao falar, verter pela boca
entre elas, que ele lhe trouxesse Moatia, “a rosas e pérolas, condenou outra a cuspir
fada que nenhum homem viu”. sapos, escorpiões e toda sorte de animais
Após contá-la, costumo passar o vídeo da peçonhentos a cada vez que pronunciasse
história. A reação invariavelmente é a mesma: uma palavra. Melusina, que se transformava
como, uma fada negra? “Como, uma fada em serpente a cada sábado, Morgana, ora
tão diferente?...uma fada que se irrita?... jovem, ora velha, as Moiras, implacáveis
que ameaça bater numa boneca de piche?” donas do destino temidas até por Zeus, são
Embora eu enfatize a procedência afri- apenas alguns exemplos das oscilações de
cana da história enquanto a narro, embora humor e das transformações das quais essas
a narrativa esteja pontuada por palavras criaturas mágicas são capazes.
estranhas e conserve as onomatopéias Antero de Quental, em seu poema As
características dos contos yorubá, a apari- fadas, nos fala sobre elas e nos adverte:
ção de Moatia - trajada com uma saia de
palha, com um turbante na cabeça e desa- (...) Quem as ofende...cautela!
fiando uma boneca de piche que não res- A mais risonha, a mais bela,
ponde suas perguntas - sempre causa estra- Torna-se logo tão má,
nhamento. É como que se a imagem de Tão cruel, tão vingativa!

24 25
uma fada humanizada, com características É inimiga agressiva,
A donzela, o sapo e o filho do chefe

H
É serpente que ali está! Nesta revista, temos uma excelente opor-

Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque


E têm vinganças terríveis! tunidade de refletir não só sobre a natureza
Semeiam coisas horríveis, das fadas, mas também sobre o que faz com
Que nascem logo do chão... que essas histórias se espalhem, quase que
Línguas de fogo que estalam! por magia, por todos os cantos do mundo,
Sapos com asas, que falam! ganhando em cada canto um novo colorido,
Um anão preto! Um dragão! uma nova roupagem, um novo cenário, mas
avia uma vez um chefe africano pegou água no poço, nem lenha na floresta.
falando sempre, embora com os sotaques
que tinha duas mulheres e com cada uma Então ela voltou para fazer esses traba-
Ou deitam sortes na gente... mais variados, das necessidades e sentimen-
delas tinha uma filha. lhos e o sapo passou o dia inteiro esperan-

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O nariz faz-se serpente, tos mais básicos do ser humano.
Aconteceu que, um dia, a primeira do por ela.
A dar pulos, a crescer...
mulher morreu, e sua filha teve de ir morar Ao entardecer, assim que acabou todo o
É-se morcego ou veado... Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque é
com a segunda mulher, que não gostava serviço, ela correu para o poço e lá estava o
E anda-se assim encantado, psicóloga, especialista em Literatura Infanto-
nem um pouquinho dela e logo passou a velho sapo, que foi logo dizendo:
Enquanto a fada quiser! (...) juvenil (UFF) e Leitura (PUC-Rio) e contadora
maltratá-la de todas as maneiras. – Tsc, tsc. Esperei por você desde de
de histórias do Confabulando.
Era ela quem cuidava dos animais, tirava manhã e você não veio.
água do poço, cortava lenha, e como se – Velho amigo – respondeu a menina -
tudo isso não bastasse, ainda tinha de moer eu sou uma escrava. Minha mãe morreu e
o tuwo1 e o fura2, e dar de comer a toda a eu me mudei para a cabana da outra mulher
família. O pior, é que depois de todo o tra- de meu pai. Ela me faz trabalhar sem parar
balho feito, a madrasta só permitia que ela e só me dá restos de comida para comer.
comesse as raspas queimadas que sobravam O sapo, então, disse:
no fundo da panela. – Menina, dê-me sua mão.

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Sem nada poder fazer, a menina sentava- Ela estendeu-lhe a mão e pularam jun-
se perto de um poço e comia o que conse- tos para dentro d’água.
guia. O resto, jogava para os sapos que Aí, ele a levantou, engoliu-a e depois a
moravam dentro d’água. vomitou.
E assim aconteceu dia após dia, até que – Boa gente – disse ele para os outros
ao lugar chegaram mensageiros de uma sapos - Olhem e digam-me. Ela está reta ou
aldeia vizinha, anunciando que haveria uma torta?
grande festa no dia do Festival da Colheita. Os sapos se entreolharam e responde-
Nesta tarde, quando ela foi para o poço ram: “Ela está torta para a esquerda”.
comer as raspas que a madrasta lhe dera, Então ele novamente a levantou, engo-
ela encontrou um enorme sapo, que foi liu-a, vomitou-a e novamente perguntou
logo dizendo: aos outros sapos:
– Donzela, amanhã é o dia do Festival. – Boa gente. Olhem e digam-me. Ela
Venha até aqui assim que o sol raiar e nós a está reta ou torta?
ajudaremos. – Ela está bem reta agora – coaxaram os
Na manhã seguinte, porém, quando ela sapos.
estava indo para o poço, a meia irmã lhe disse: Então ele vomitou roupas, pulseiras,
– Volte aqui, sua menina inútil! Você anéis e um par de sapatos, um de prata e

26 27
não mexeu o tuwo, nem moeu o fura, nem outro de ouro, e disse:
– Tome. Vista-se e vá ao Festival. Mas Buscaram então a moça. Assim que o do chefe, diga-lhe: “Viver na cabana do mil cowries para comprar flores de tabaco.
preste atenção. Quando a dança estiver filho do rei a viu, correu em direção a ela, chefe é muito difícil, porque eles medem o Depois dava a cada uma de nós uma cabaça
quase no fim e os dançarinos já estiverem calçou o sapato de ouro em seu pé e levou- milho com uma concha de Bambara4”. de nozes, cinco mil cowries para comprar flo-
se dispersando, deixe seu sapato de ouro lá a com ele para sua cabana. Um dia, a madrasta foi com a filha visitar a res de tabaco, e um saco cheio de milho para
e volte para casa. Assim que ela partiu, o sapo chamou menina e perguntou-lhe como era a sua vida. fazer tuwo. Agora ela grita “Bah!” e nos cospe.
A menina vestiu as lindas roupas, enfei- todos os outros sapos, tanto os grandes Lembrando-se dos conselhos do sapo, – Vê - disse ele. Antes, quando ia vê-la,
tou-se com as lindas jóias que o sapo lhe quanto os pequenos, e lhes disse: ela respondeu: eu sempre a encontrava ajoelhada e ela
dera e correu para o Festival. – Minha filha está se casando. Quero – Oh! É muito difícil. Eles usam uma se deitava comigo na cama de ouro, agora
Quando o filho do chefe a viu chegando, que cada um de vocês dê a ela um presente. concha de Bambara para medir o milho. ela grita comigo. Acho que trocaram a

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disse: E cada um deles vomitou coisas para ela: Quando as outras mulheres do chefe vêm menina.
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– Aí está uma donzela para mim. Não cobertores coloridos, tapetes, esteiras, teci- me cumprimentar, eu respondo com um O filho do chefe, então, chamou seus
me interessa de que casa ela vem. Tragam- dos, vasilhas, e o sapo velho, depois de ”BAH!” de desprezo. Se as concubinas vêm guerreiros. Eles entraram na cabana da
na aqui! muito esforço, vomitou uma cama de prata, me cumprimentar, eu cuspo nelas. E quan- moça e a cortaram em pedacinhos.
Então os servos levaram a menina até uma cama de cobre e uma cama de ferro. do meu marido chega na cabana, eu grito Depois, foram à casa da madrasta e lá
onde ele estava e juntos eles passaram a Na manhã seguinte, quando a menina com ele. encontraram a pobre órfã deitada nas cin-
noite toda conversando. Mas quando os bai- acordou, viu na soleira da porta o velho A madrasta, na mesma hora, colocou a zas da fogueira. Na mesma hora a levaram
larinos começaram a se dispersar, ela se amigo e os presentes. Ela ajoelhou-se res- própria filha na cabana e obrigou a órfã a de volta para o marido.
levantou e, antes que o filho do chefe peitosamente e ele lhe disse: voltar para casa com ela. Na manhã seguinte, ela contou ao mari-
pudesse impedi-la, saiu correndo, deixando – Isto tudo é para você. Mas preste aten- Na manhã seguinte quando as mulheres do como o sapo a havia ajudado e pediu
o sapato de ouro para trás. ção. Quando seu coração estiver triste, vieram cumprimentá-la, a filha da madrasta que ele mandasse construir um poço próxi-
Na beira do poço, já esperando por ela, deite-se na cama de bronze. Quando seu gritou-lhes: “BAH!”. Quando as concubinas mo à sua cabana para que o velho sapo e
estava o sapo. Mais do que depressa, eles coração estiver tranqüilo, deite-se vieram visitá-la, ela cuspiu nelas. E quando todos outros sapos, grandes ou pequenos,
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pularam dentro d’água, ele a engoliu e na cama de prata e quando o filho caiu a noite e o filho do chefe foi vê-la, ela passassem a morar ali. E assim foi.
vomitou-a: e lá estava ela, exatamente como do chefe vier visitá-la, deite-se com gritou com ele.
era antes, vestida com andrajos. ele na cama de ouro. Quando as O filho do chefe achou aquilo muito Notas:
Enquanto isto, o filho do chefe dizia ao outras mulheres de seu esposo vierem estranho. 1 Tuwo – uma espécie de mingau.
pai: cumprimentá-la, dê-lhes duas cabaças Saiu da
2 Fura – uma espécie de mistura de cereais.
– Pai, hoje conheci uma jovem que usava de nozes e dez mil conchas de molusco3 cabana e
3 Conchas usadas como dinheiro em várias tribos
um par de sapatos, um de ouro e outro de para comprarem flores de tabaco. Quando por dois dias
africanas.
prata. Aqui está o de ouro, ela o esqueceu as concubinas vierem pegar milho para pensou no
4 Expressão que significa “como as pessoas aqui são
aqui. Ela é a menina com quem eu quero fazer o tuwo, deixem que se sirvam à vonta- assunto.
‘pão-duras’, há pouco para comer”.
me casar. Faça com que se reúnam todas as de. Mas, se a mulher de seu pai Depois,
jovens, moças ou velhas dessa aldeia e da vier com sua filha e lhe per- reuniu suas
aldeia vizinha, para descobrir quem tem o guntar como é mulheres e concubi- Tradução e adaptação de Maria Clara
de prata. viver na nas e disse para elas: Cavalcanti de “The maiden, the frog & the
O chefe na mesma hora ordenou que se cabana – Olhem! Chamei vocês chief’s son”, de William Bascom, e que faz
reunissem todas as donzelas e cada uma para perguntar-lhes: Como minha nova parte do livro CINDERELLA, A Folklore
experimentou o sapato, mas em nenhuma esposa trata vocês? Casebook, de Alan Dundes Garland, da editora
ele serviu. Foi quando alguém disse: – Como nos trata?! exclamaram elas. - Publishing, Inc. New York & London. 1982
– Espere um minuto! Ainda há aquela Cada manhã, quando íamos cumprimentá- p.148. Este conto foi publicado no “Journal of
moça órfã, que mora naquela casa. la, ela nos dava duas cabaças de nozes e dez the Folklore Institute”, em 1972.
28 29
Conta a Lenda que Dormia
Rainhas negras na África e no Brasil

A
Conta a lenda que dormia Luiz Geraldo Silva
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada. história africana e a história do Seu longo reinado durou até 1663, e tanto

Ele tinha que, tentado,


Brasil estão repletas de histórias de rainhas portugueses como, depois, holandeses

Vencer o mal e o bem,


negras. Talvez a mais célebre delas seja a tiveram que negociar com ela, ou enfrentar

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Antes que, já libertado,
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de Jinga, ou Nzinga, como se sua resistência à penetração européia em

Deixasse o caminho errado


pronunciava em mbundu. Nas- alguns territórios de Ndongo. Os por-

Por o que à Princesa vem.


cida por volta de 1581, viveu tugueses, particularmente, reconhe-
num dos territórios tributários ciam-lhe a autoridade política, pois

A Princesa Adormecida,
do antigo reino do Congo, em outubro de 1641 uma ordem do

Se espera, dormindo espera.


Ndongo. Sua trajetória é sur- Conselho Ultramarino criticava Fernão

Sonha em morte a sua vida,


preendente e fabulosa. Por volta de Souza, então governador em Angola,

E orna-lhe a fronte esquecida,


de 1622, Jinga fora enviada a por este “ter tirado a realeza de Jinga”,

Verde, uma grinalda de hera. Luanda, cidade que sediava a reiterando que a ela, e só a ela,
administração portuguesa em “assistia o direito e a justiça” em
Longe o Infante, esforçado, Angola. Ela se apresentou em Ndongo.
Sem saber que intuito tem, Luanda como uma espécie de Ao longo de seu reinado,
Rompe o caminho fadado. embaixadora de Ndongo, reino Jinga enfrentou várias guerras
Ele dela é ignorado.
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para o qual os portugueses queriam contra outros reis africanos ou
Ela para ele é ninguém. expandir seu comércio de escravos. contra autoridades européias.

Mas cada um cumpre o Destino —


Nessa circunstância, foi batizada com Numa guerra travada em 1629

Ela dormindo encantada,


o nome católico de Ana. pelo controle de Matamba, suas

Ele buscando-a sem tino


Em 1624, o reino de Ndongo viveu irmãs, Kambo e Funji, caíram

Pelo processo divino


uma crise de sucessão. Como não nas mãos dos portugueses, aca-

Que faz existir a estrada.


havia sistemas baseados na primoge- bando presas em Luanda. Anos
nitura, como na Europa, as regras depois, Jinga fez acordos com os

E, se bem que seja obscuro


de sucessão na África previam a holandeses, que ocuparam Luanda

Tudo pela estrada fora,


eleição de um rei entre membros em agosto de 1641. Daí até 1643 viveu

E falso, ele vem seguro,


da nobreza e a conseqüente for- uma guerra dramática contra os

E, vencendo estrada e muro,


mação de partidos. Naquela cir- Imbagalas de Kassanji, que

Chega onde em sono ela mora.


cunstância, estavam de lados opostos resistiam à presença batava. A

E, inda tonto do que houvera,


Jinga e Ngola-a-Ari, o qual saiu vito- partir de 1644, os portugueses foram

A cabeça, em maresia,
rioso. Jinga retirou-se com seu povo para seus principais inimigos em sucessivas

Ergue a mão, e encontra hera,


as regiões de Matamba, tornando-se rainha batalhas que duraram até 1648. Em 1651,

E vê que ele mesmo era


desde então. Ngola-a-Ari, contudo, morreu porém, a rainha Jinga e o governador de

A Princesa que dormia. Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


envenenado em 1627, permitindo o regres- Angola, Salvador Correia de Sá e Benevides

30 31
so de Jinga, que passou a governar Ndongo. – que governara o Rio de Janeiro entre
As princesas africanas

R
1637 e 1642 – firmaram a paz, bem como presa. Tereza perdera, assim, dois antebra-

Braulio Tavares
acordos comerciais. Naquela ocasião, ços, amputados antes que gangrena a con-
Salvador de Sá afirmara a Jinga que era sumisse. “Vi a pobre Tereza neste lamentá-
“maior honra poder cooperar pelo aumen- vel estado”, diz Tollenare em dezembro de
to de sua grandeza, que ser servido por 1816. “Hoje não pode mais trabalhar”,
todos os escravos não da Matamba, mas de continua o francês; “empregaram-na,
toda a África”. Em 1656, aos 75 anos de porém, utilmente para vigiar as compa-
ainhas e princesas da África são Reza a lenda, no entanto, que os dois
idade, Jinga permitiu a entrada de capu- nheiras, e sabe fazer-se temer e obedecer”.
uma fonte de mitos e de fantasias para a cultura foram amantes. A rainha teria pedido ao
chinhos em seu território, casou-se pelo Uma vez rainha, sempre rainha.
ocidental. Elas reúnem poder e exotismo, atra- rei, quando este a hospedou no palácio,

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ritual católico e manifestou clara vontade Jinga e Tereza não apenas foram rai-
ção sexual e mistério histórico. que não a possuísse sem o seu consenti-
de praticar o catolicismo. Tudo isso fazia nhas. Também possuem destinos entrela-

A Rainha de Sabá
mento. Salomão acedeu, pedindo apenas
parte da política de alianças com os portu- çados. Uma favoreceu enormemente o trá-
que ela não se apoderasse, sem o consenti-
gueses. Esses, graças a ela e aos acordos fico de escravos, o que permitiu a outra ter
Talvez a soberana africana cuja lenda é a mento dele, de nenhuma riqueza que visse
comerciais antes firmados, incrementaram vindo parar deste lado do Atlântico, e no
mais remota seja a Rainha de Sabá. Sua à sua volta. Tendo assim combinado, os
o tráfico de escravos a partir da África cativeiro. Uma realizou um governo longo
visita ao rei Salomão é descrita no I Livro dois foram jantar e o rei deu instruções
Centro-Ocidental, o qual atingiu volume e bem sucedido, marcado por guerras e
dos Reis, no Antigo Testamento. Além de veladas aos criados para que servissem
sem precedente. Em troca, Jinga controla- crises, mas também por acordos de paz. A
bela e riquíssima, era uma mulher de gran- comida com muito sal e tempero. Durante
va na década de 1660 “o mais importante outra também guerreou a princípio contra
de sabedoria. A Bíblia não indica que tenha a noite, a rainha acordou com sede e levan-
espaço econômico da África Central Oci- seu senhor, mas acabou se submetendo a
ocorrido nenhum caso amoroso entre os tou-se para beber água. Salomão surgiu
dental alguma vez submetido a uma só ele, ao mesmo tempo em que viu seu
dois, mas dá a entender que eles travaram diante dela e disse que a maior riqueza do
autoridade”, como afirma o africanista poder reconhecido no engenho onde vivia.
um desafio de inteligência e de adivinha- povo de Israel era a água; se ela quebrasse
português Adriano Parreira. São histórias de mulheres que ligam a
ções. Propor enigmas durante festas era um a palavra dada, ele se sentiria no direito de

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Foi graças a rainhas como Jinga que o África e o Brasil. Mulheres rainhas que,
costume em Israel (veja-se o enigma pro- fazer o mesmo. E (diz a lenda) ambos acha-
comerciante francês Louis-François de mesmo em desgraça, jamais perderam a
posto por Sansão aos filisteus, em Juízes, ram mais sensato liberar-se mutuamente
Tollenare conheceu, em dezembro de realeza.
14: 14: Do comedor saiu comida, e do forte saiu das promessas feitas e aproveitar a compa-
1816, outra rainha, chamada Tereza, uma
doçura). nhia um do outro.
escrava do engenho Sibiró, província de Bibliografia recomendada: A Rainha de Sabá foi tema de dezenas
Pernambuco. “Era uma bela mulher, de 27
PARREIRA, Adriano. Economia e sociedade em E até a rainha de Sabá, ouvida a de livros, poemas, filmes (foi interpretada
a 28 anos, muito alegre e faladeira”, escre- Angola na época da rainha Jinga, século XVII. Lisboa: fama de Salomão no nome do Senhor, no cinema, entre outras atrizes, por Gina
veu. Tereza fora rainha em Cabinda, na Editorial Estampa, 1990.
veio fazer experiência nele por enigmas. Lollobrigida em 1959 e Halle Berry em
região de Loango, também situada na Áfri- THORNTON, John. A África e os africanos na for- E tendo entrado em Jerusalém com gran- 1994). William Butler Yeats dedicou a ela e
ca Centro-Ocidental. Pega em adultério, mação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro:
Editora Campus, 2004.
de comitiva, e rica equipagem, com Salomão um poema famoso, em que o Rei
acabou convertida ao cativeiro. Ao chegar
camelos que traziam aromas, e infinita diz: “Não há homem ou mulher nascidos
ao Brasil, trazia anelões de cobre dourado FAGE, J. D. História da África. Lisboa: Edições 70,
1997. quantidade de ouro, e pedras preciosas, sob o céu cujo saber se compare ao nosso,
nas pernas e nos braços, e era altiva, recu-
se apresentou diante do rei Salomão, e e durante este dia inteiro descobrimos que
sando-se a trabalhar. Por volta de 1814,
lhe descobriu tudo quanto trazia no seu não há nada como o amor para fazer o resto
uma negra da moenda adoeceu. Tereza a Luiz Geraldo Silva - Professor do Departa- peito. E Salomão a instruiu em todas as do mundo parecer um curral estreito”. O
substituiu. Pouco afeita àquele trabalho, mento de História da Universidade Federal do coisas, que ela lhe tinha proposto: não romancista H. Rider Haggard, em As Minas
teve uma das mãos presa ao cilindro que Paraná (UFPR); Bolsista-Pesquisador do Con- houve nenhuma que o rei ignorasse, e de Salomão, criou a famosa imagem dos
esmagava cana de açúcar. Tentou livrar-se selho Nacional de Desenvolvimento Científico e sobre a qual ele não lhe respondesse. “Seios da Rainha de Sabá”, dois montes
com a outra mão, mas esta também ficou Tecnológico (CNPq).
32 33
(I Reis, 10: 1-3) gêmeos que, num mapa do tesouro, indicam
a direção das famosas minas e do tesouro ela se suicidou porque temeu ser levada mais equilibrado da rainha, mostrando que enrolar num tapete e entrou assim no palá-
fabuloso que lá se oculta. como prisioneira para Roma: “matou-a o sua força não residia apenas na beleza: cio, surgindo aos pés de César quando o
Outra lenda sobre a rainha conta que, medo de ser feia”. O carnavalesco Joãosinho tapete foi desenrolado diante do seu trono.

Ayesha
passeando por Jerusalém, ela teria se recu- Trinta costumava afirmar que Hollywood Sua formosura, assim nos disseram,
sado um dia a atravessar uma ponte de distorceu a verdade histórica ao escalar a não era de modo algum incomparável,
madeira, sem dizer no entanto a razão. A branquíssima (e de olhos violeta) Elizabeth nem de molde a impressionar os que a Na literatura, há uma princesa africana
lenda explica dizendo que ela percebeu, Taylor para o papel da rainha egípcia, pois, viam. Mas sua conversação tinha um que reúne em si toda a mística de Cleópatra
com sua clarividência, que da madeira segundo ele, “ela era uma neguinha”, como encanto irresistível, e sua presença, combi- e da Rainha de Sabá, numa obra-prima
daquela ponte seria feita a cruz em que a maioria dos egípcios de sua época. nada com o tom persuasivo de sua fala, e obscura escrita pelo mesmo autor de As

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Jesus Cristo viria a ser crucificado. Na verdade Cleópatra pertencia ao ramo a personalidade que se imprimia em seu minas de Salomão, H. Rider Haggard: Ela
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Cleópatra
macedônio (descendente de Alexandre, o relacionamento com os demais, tinha algo (Editora Record), um romance de 1887 em
Grande) que governou o Egito por várias de estimulante. Também havia uma doçu- que um grupo de exploradores encontra
Cleópatra é a rainha africana mais famo- dinastias e, se não era alva como Liz Taylor, ra no seu tom de voz, e sua língua, como num recanto perdido da África um reino
sa. Sendo uma governante poderosa, e que também não seria propriamente uma núbia. um instrumento com muitas cordas, se negro governado por uma rainha branca
se envolveu numa relação política e amoro- Celebrada pela literatura, pela poesia, pelo amoldava a qualquer idioma da forma que se diz ter mil anos de idade. Sua beleza
sa com dois generais romanos, ela passou cinema e teatro e, principalmente, pela tra- que melhor lhe convinha. é tal que ela precisa aparecer velada diante
para a História como uma típica mulher dição oral, Cleópatra entrou para a cultura dos seus súditos, para que não enlouque-
fatal, aquela pela qual os homens estão dis- de massas como a mulher mais bela do Cleópatra tinha cerca de vinte anos quan- çam de paixão. Seu nome é Ayesha; seu
postos a sacrificar um império inteiro. mundo em sua época. Plutarco, em sua bio- do conheceu Júlio César, que tinha mais de povo a chama “Aquela-que-deve-ser-obede-
Olavo Bilac, num soneto famoso, disse que grafia de Marco Antônio, nos dá um retrato cinqüenta. Era provavelmente de pequena cida”. Ayesha julga reencontrar no explora-
estatura, a julgar pelo episódio de seu pri- dor inglês a reencarnação do seu amor per-
meiro encontro com César, em que ela se fez dido, que ela esperava há séculos.
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A princesa africana é um desses mitos
necessários, que parecem preencher uma
necessidade coletiva de acreditar na possi-
bilidade de existência de mulheres belas,
irresistivelmente sedutoras, poderosas,
capazes de mudar o curso da História com
seus caprichos.

Bráulio Tavares é escritor, compositor, estu-


dou cinema na Escola Superior de Cinema da
Universidade Católica de Minas Gerais. Tam-
bém é pesquisador de literatura fantástica,
compilou a primeira bibliografia do gênero na
literatura brasileira, o “Fantastic, Fantasy and
Science Fiction Literature Catalog” (Fundação
Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou “A
máquina voadora”, “A espinha dorsal da
memória” e “Os martelos de Trupizupe”, entre
outros.
34 35
O casamento da princesa1

A
Celso Sisto

beleza andava de mãos dadas Nem é preciso dizer que Abena encan-
com a princesa Abena, pois tinha reunido tou-se logo com os modos de seu primeiro
numa só pessoa um harmonioso pescoço pretendente. O olhar molhado, o corpo

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alongado, um rosto arredondado e seios luzidio, as palavras que rolavam feito água
grandes. cantante, ficaram ainda mais bonitas nos
O rei, seu pai, sorria para si e para o versos que ele chuviscou nos seus ouvidos:
mundo, cada vez que constatava, com os - O olhar do amor fez passear o passari-
próprios olhos, a formosura da filha. E por nho que assim baixinho, trouxe água do seu
isso acreditava que seria fácil casá-la, quan- bico até seu ninho...
do chegasse a hora. E o pretendente ofereceu ainda mais:
A sucessão dos anos só aumentava a - Linda Abena, olhe para adiante, olhe.
perfeição dos traços de Abena. Além de Daqui até as savanas de Burkina Fasso, até
tudo, ela tinha ainda a ajuda dos magnífi- as areias do Golfo da Guiné, até as planta-
cos trajes que usava: sempre envolta nos ções do Togo, até as florestas da Costa do
mais belos tecidos e vestimentas; sempre Marfim, você não encontrará ninguém que
adornada com os mais fulgurantes colares seja mais poderoso que a Chuva. Com um

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e brincos; sempre emergindo do colorido simples aceno das mãos, faço crescer as
das roupas, como a mais nobre visão da plantações e multiplico as colheitas e as
beleza. ervas para os rebanhos. Graças a mim, tere-
A notícia da suprema graça de Abena mos sempre água pura para beber e rios e
circulou pelas tribos, atravessou os mares, lagos cristalinos, cheinhos de peixes, onde
subiu aos céus, correu por toda a África se pode nadar e pescar.
tropical. Mas foi só quando os habitantes E as palavras da Chuva soaram tão musi-
dos mais distantes povoados começaram a cais aos ouvidos de Abena, e seu coração
chegar para ver com seus próprios olhos a solitário ficou tão refrescado, que ela aca-
princesa mais linda do mundo, é que che- bou prometendo-lhe casamento. E pediu-
garam também os pedidos de casamento. lhe que voltasse no outro dia para acertar
Os primeiros pretendentes à mão da os detalhes com o Rei.
princesa foram o Fogo e a Chuva. Acontece que enquanto Abena se
A Chuva surgiu de repente, meio às comprometia com a Chuva, o Rei, na
escondidas, usando um kente2 único, feito mesma hora, logo ali, em outro aposento,
da mais pura seda, especialmente para firmava acordo com o Fogo. Este segundo
aquela ocasião. Pedir a mão daquela prince- pretendente tinha também ido pedir a
sa exigia roupa adequada e padronagem mão da princesa. E da mesma forma que a

36 37
nunca antes vista! Chuva, mostrou-se em trajes suntuosos e,
com finíssimos modos, apregoou seu O Rei veio recebê-los, e, sem rodeios, faziam vibrar a pele do antílope negro que O Fogo que avançava destemido apagou-
poder: disse que já havia decidido a data para o recobria cada tambor, os chifres e as trom- se a poucos metros da linha de chegada. E
- Meu Rei, veja por si mesmo. Daqui até casamento com sua filha. betas espalhavam no ar seus sons, ora esti- a Chuva enfim foi declarada vencedora!
as savanas de Burkina Fasso, até as areias - O meu casamento com ela? – pergun- mulando as torcidas, ora impulsionando os A princesa Abena, mais feliz do que
do Golfo da Guiné, até as plantações do taram o Fogo e a Chuva ao mesmo tempo! concorrentes. Tudo ao redor nunca, atirou-se de braços abertos sob a
Togo, até as florestas da Costa do Marfim, Só então se deram conta de que alguma parecia cantar: água celeste e bailou como nunca ninguém
não haverá ninguém com maior vigor que o coisa estava errada. Mas o Rei apressou-se “Quero ouvir os tam- vira. Seu corpo inteiro comemorava a vitó-
Fogo. Minhas chamas mantêm os animais em dizer: bores a tocar. ria da Chuva, inclusive seus olhos. O ritmo
perigosos ao longe, cozinham a comida dia- - A princesa Abena se casará Quero sentir os pés dos tantãs, que então batiam mais forte,

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riamente, iluminam as intermináveis noites com o vencedor da corrida que dos que dançam. obrigou todos que ali estavam a entrar na
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escuras e aquecem o corpo durante a rigo- organizei para o dia do casamento! Quero sentir os tambo- dança, que se estendeu por incontáveis
rosa estação do frio. Que mais alguém A notícia espalhou-se res a tocar. noites.
poderia oferecer à sua bela filha? Consinta como chuva miúda. A notícia Quero ouvir os pés dos Daquele dia em diante, o Fogo e a
que eu me case com ela! correu como um rastro de fogo. que dançam...” Chuva tornaram-se inimigos mortais. Só
O Rei ficou tão impressionado com tal Em toda a África Ocidental não O Fogo estava ganhando. Havia no uma coisa não teve mais jeito: toda vez que
pretendente, e casar a filha durante a se falava em outra coisa a não ser na tal ar um vento que o ajudava a multipli- chove forte, as pessoas param o que estão
colheita do cacau era decisão tão antiga, disputa pela mão da princesa! Havia os car as chamas e a alastrar-se rapida- fazendo e põem-se a bailar debaixo da água
que acabou por aceitar a proposta! Disse que apostavam no mente. Por mais esforço que fizesse a que cai do Céu, tudo, tudo ainda para
que ia comunicar o trato à princesa e man- Fogo. Era grande o Chuva, suas gotas eram insuficientes comemorar o casamento da princesa.
dou que o Fogo voltasse no dia seguinte, número dos que para colocá-la na frente. Ao contrá-
para acertarem os detalhes. torciam pela Chuva. rio, quanto mais vertia água, mais Notas:
Mais tarde o Rei chamou a filha e comu- Só a princesa pesada ficava, e mais terreno perdia! 1 Conto popular de Gana e países da África Oci-
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nicou-lhe a decisão que havia tomado: Abena conhecia de O Fogo foi avançando, deixando dental, recontado pelo autor.
- Encontrei teu futuro marido! antemão o resultado, pois para trás apenas as cinzas do que 2 Traje típico do povo ashanti.
- Como assim, meu pai? dizia para si mesma que fosse tocava com todo o seu calor e potência. Já
- Prometi ao Fogo que te casarás com ele! quem fosse o ganhador da corrida, era quase o vencedor...
- Com o Fogo? Mas eu prometi à Chuva ela só se casaria com a Chuva. Assim Mas no momento da chegada, ali onde já Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador
que me casaria com ela! ela havia prometido desde o início, evoluíam as máscaras rituais e o povo se de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator,
Estava armada a confusão! O Rei, preo- assim queria o seu enredado coração. aglomerava, eis que o Céu lançou um imen- arte-educador, especialista em literatura
cupado, pôs-se a pensar numa solução para Mas esse segredo, que não podia ser so rugido. Um trovão, que foi ouvido desde infantil e juvenil, pela UFRJ, Mestre em Lite-
não ter que faltar com sua palavra. A prince- compartilhado com ninguém, fazia-a as águas do golfo até as paredes das monta- ratura Brasileira pela UFSC, Doutorando em
sa, por sua vez, não queria trair seu coração. sofrer, deixava-a triste, murchava sua nhas, ecoou no ar. E foi o suficiente para, Teoria da Literatura pela PUC-RS e responsá-
- Não podemos quebrar nossas promes- beleza. Afinal, como ir contra a deci- em seguida, desabar o maior aguaceiro de vel pela formação de inúmeros grupos de con-
sas! Sempre foi assim com nosso povo! E são soberana do próprio pai? que já se teve notícia. Uma cortina de tadores de histórias espalhados pelo país. Tem
assim será! – sentenciou o Rei. Chegou finalmente o dia marcado. chuva despencou com a força de uma imen- 36 livros publicados para crianças e jovens e
Na manhã seguinte, mal a claridade do Era dia de festa e toda a aldeia estava sa manada de elefantes correndo pelas recebeu os prêmios de autor revelação do ano
dia luziu no horizonte, lá estavam o Fogo e enfeitada para a corrida e para a ceri- savanas, impedindo qualquer um de ver um de 1994 (com o livro “Ver-de-ver-meu-pai”,
a Chuva nas terras do Rei. Vinham certos mônia do casamento. Todos esperavam palmo diante do nariz. Chuva da espessura Editora Nova Fronteira) e ilustrador revelação
de que em breve também fariam parte o resultado final. do mundo, rápida, brilhante, quebrando-se do ano de 1999 (com o livro “Francisco Gabi-
daquilo tudo ali, casando-se com a princesa O rei deu a partida e a Chuva e o nas folhas, fustigando as pedras, martelan- roba Tabajara Tupã”, da editora EDC) pela
Abena. Mas um não sabia ainda do outro. Fogo começaram a correr. Os tantãs do o chão. FNLIJ.
38 39
Minha princesa africana

O
Márcio Vassallo

nome dela era Marinela. se ouvindo eram maiores que todas as sel-
Ninguém acreditava que eu namorava vas da África.

Versos de Orgulho
uma princesa africana. Eu passava o dia escrevendo para ela,

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Algumas pessoas nem sabiam que existia mesmo quando nem me sentava para escre-
princesa na África. ver, mesmo quando escrevia só na minha

O mundo quer-me mal porque ninguém


Mas a minha era de lá mesmo, de Luanda. idéia, sem passar para o papel.

Tem asas como eu tenho! Porque Deus


A Marinela era branquela e tinha mais E quando eu entrava na agência dos cor-

Me fez nascer Princesa entre plebeus


sardas do que o céu de Angola. Quando ela reios, perto da minha casa, as moças do

Numa torre de orgulho e de desdém!


pegava sol, era o sol que pegava a Marinela. balcão ficavam de riso exibido para mim.
E a princesa ficava com a pele vermelha Afinal, tinha tardes que eu chegava lá

Porque o meu Reino fica para Além!


que nem a areia do deserto de Kalahari. com mais que um bocado de envelopes de

Porque trago no olhar os vastos céus, Na realidade, a gente só tinha se visto cartas, todos endereçados para a mesma
E os oiros e os clarões são todos meus! uma vez na vida e todos os dias esperava dona.
Porque Eu sou Eu e porque Eu sou Alguém! pelo dia de se ver de novo. E se me desse naquela hora uma vonta-
Enquanto esse dia não chegava, a Mari- de de dizer para a Marinela a mesma coisa
O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?! nela me telefonava todas as noites e nós que eu dizia sempre, mas de uma forma
O jardim dos meus versos todo em flor,
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conversávamos até ela dormir. diferente, eu escrevia telegramas que não
A seara dos teus beijos, pão bendito, Botar uma princesa para dormir, pelo acabavam nunca, sem nenhuma abreviatura

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...


telefone, e escutar a voz dela se desmachan- e cheios de repetições.

São os teus braços dentro dos meus braços:


do, no meio do escuro, me tirava o sono. Porque tem sentimento que não dá para

Via Láctea fechando o Infinito!...


Com o seu sotaque português, a prince- abreviar e quem ama é repetitivo mesmo.
sa me dizia que só conseguia dormir depois Muitas cartas e muitos telefonemas

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"


de me ouvir. Ou será que era eu que só depois, para amansar o coração da filha e
conseguia dormir depois de falar no ouvido passear de carruagem nova, a rainha e o rei
dela? saíram do castelo com ela, lá do outro lado
Sem nem saber dessa dúvida, no final da lonjura, e chegaram à minha cidade.
do mês, a rainha e o rei ficavam desespera- Então, a Marinela e eu nos reencontra-
dos com a paixão da filha e suas interminá- mos.
veis contas de telefone, mais altas que as A primeira vez que a gente se viu de
torres do castelo, mais esticadas que beijo a novo foi no calçadão de Ipanema.
distância. Todos os dias eu escrevia cartas Foi um susto ver que a minha princesa
de amor para a Marinela. africana existia mesmo.
As minhas cartas eram ainda mais com- E foi uma delícia ver que ela também
pridas do que as horas que a gente passava não acreditava que eu existia.

40 41
se ouvindo. E as horas que a gente passava Depois, a gente continuou a se olhar
Uma princesa em São Tomé e Príncipe

E
com olho de primeira vez, durante uma durante tanto tempo, assim, por carta e

Ana Lúcia Silva Souza


semana. telefone – o meu amigo concluiu.
É, a gente foi mesmo feliz para sempre, Esta carta, que tu estás lendo agora, é a
durante os sete dias que passou junto. que eu nunca mandei para a princesa, e
Mas a princesa teve que voltar para que ela provavelmente nunca lerá. Ou será
Angola. que lerá? Ah, só de imaginar... Ela, casada
Assim, depois que nós nos despedimos, com um homem que preste mais atenção
ra uma vez... É assim que Sorri, oferece pratos e sucos, opina sobre
eu escrevi para ela mais cartas do que todos na letra do que na música, mãe de um
começam as histórias de princesas! os sabores, vai e volta, com agilidade. É
os homens já escreveram antes e ela me menino, morando em alguma outra lonjura
Era começo de noite em São Tomé perspicaz, tem voz melodiosa, gestos deli-

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ligou mais vezes do que todas as pessoas do por aí, com aqueles olhos, lendo a minha
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e Príncipe, um dos muitos países do cados e uma postura esguia, que sustenta
mundo já ligaram para alguém na vida. última carta, e comentando a estranheza
imenso continente africano. Inde- o corpo de uma linda mulher. Essa é
Bem, um dia, a Marinela me telefonou, com uma velha amiga, nem tão velha, nem
pendente de Portugal desde 1975, Iraiurdes!
mas não foi para falar de amor, não. tão amiga. E tudo isso com aquele sotaque.
é formado por duas ilhas, tem A televisão está ligada, olhos na
Ela me ligou para me dizer que precisá- Ai que cena bonita, ai que cena bonita!
pouco mais de 200 mil habitantes tela e no que podemos jantar em
vamos terminar de namorar, porque havia
e apresenta expectativa de vida breve - é hora do noticiário e muito
lonjura demais entre nós, para sustentar
que se aproxima dos 70 anos de idade. nos interessa saber dos assuntos políticos
tanto sentimento. Márcio Vassallo nasceu no Rio de Janeiro,
Lá, o cotidiano começa seu agito por e econômicos, assuntos que colam no
A gente não sabia que a lonjura era jus- em 1967. Jornalista e escritor, há mais de dez
volta de cinco horas da manhã. Chama cotidiano do país. Intervalo na programa-
tamente o que sempre tinha sustentado anos realiza palestras e oficinas sobre a impor-
a atenção a grande quantidade ção. Uma jovem aparece na TV,
aquela paixão toda. tância do encantamento na vida da gente.
de crianças e adolescentes dizendo: “Proteja-se contra a
- Sei que eu devo estar fazendo a maior Escreveu textos para “O Globo”, “Folha de S.
que se deslocam na ida e SIDA”. A voz é melodiosa,
bobagem da minha vida - ela me disse, cho- Paulo”, “O Estado de S. Paulo” e “Jornal do
vinda para a escola e as os gestos são delicados e a
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rando sem parar. E começou a me falar de Brasil”. É autor da biografia “Mario Quinta-
mulheres, muitas e postura esguia sustenta o
outras coisas que atravessavam a pé o seu na” (Moderna), do livro de entrevistas “Mães: o
muitas, com suas crian- corpo de uma inteligente
coração. Só que eu nem escutava mais o que elas têm a dizer sobre educação” (Guarda-
ças junto ao corpo, e mulher. Gente, parece a
que a princesa me dizia, porque só pensava chuva), e dos títulos “A princesa Tiana e o Sapo
uma altivez admirável. Iraiurdes!!!
na frase em que ela falava sobre a tal da sua Gazé”, “O príncipe sem sonhos” (Brinque-Book);
Na sala do hotel, Tiramos os olhos da
maior bobagem. Depois dessa frase, só além de “A fada afilhada”, “O menino da
aguardávamos a hora tela, nos entreolhamos e,
prestei atenção na música daquela voz, sem chuva no cabelo”, e “Valentina” (Global). Todos
de jantar. O dia de juntos, colocamos os
ouvir mais tanto a letra. esses títulos foram selecionados pela Fundação
trabalho1 tinha sido olhos em Iraiurdes, a da
“Ai que cena bonita, ela me dizendo isso Nacional do Livro Infantil e Juvenil, para o
intenso, juntando com sala de jantar, e que
com esse sotaque”, eu pensava na hora, de Catálogo de Autores Brasileiros da Feira do
o calor, o barulho do parecia a moça da impor-
choro preso, me fazendo de forte. Livro de Bolonha, na Itália. “O Menino da
mar, a nossa alegria de tante campanha publici-
No mesmo dia, de choro corrido com chuva no cabelo” também foi selecionado para o
estarmos em África. tária contra a SIDA, a
um riso no meio, contei para o meu mais catálogo The White Ravens 2006, da Biblioteca
Acreditem, isso cansa. AIDS, doença cujos sinto-
velho amigo o quanto eu tinha achado bela Internacional de Munique, na Alemanha.
Agora é descanso! Uma mas por vezes sorrateiros
aquela cena. E ele me disse que eu estava
jovem nos atende, arruma aparecem já em fase adian-
mais doido do que nunca e que eu não
a mesa para nós e, ao tada da contaminação e que,
podia achar beleza no meio de tanta tristeza.
mesmo tempo, vai apresen- na invisibilidade, afeta gran-
- Isso é ainda mais estranho do que
tando com simpatia o que de parte da população africa-
você ter namorado uma princesa africana,
42 43
“dá pra fazer” na cozinha. na, incluindo as crianças.
Perguntamos a ela: - Ei, é você mesma? fingiu-se de morta para escapar da morte. sente que Iraiurdes sente: que tenha poder realiza diversas ações na área da alfabetização de
jovens e adultos e no planejamento, implementação
- Sim, eu mesma, responde ela. E nós: Viveu. Na rua, depois, encontrou a mãe e e força essa campanha na TV, com a possibi-
e gestão da oferta de educação continuada.
- Noooooossa! Que legal e interessante! Ela com ela seguiu um cotidiano tecido de mui- lidade de que os movimentos aconteçam em
sorri e diz que gosta muito de fazer esse tas tramas. Talvez com poucas passagens função de sua palavra, dita, eivada de sensa-
trabalho, sente que contribui com uma dos clássicos textos de princesas, nos quais ções e vivências, tornada coisa viva, germi- Ana Lúcia Silva Souza é socióloga, douto-
causa importante; diz que já trabalhou em sempre tudo acaba bem, mas com trechos nando dentro de toda pessoa que a ouvir. randa em Lingüística Aplicada - Unicamp -
rádio, é angolana, tem uma filha, gosta de... repletos de histórias das muitas princesas Instituto de Estudos da Linguagem, mestre em
E isso..., isso... e mais aquilo. É horário do que estão nas áreas de conflitos – tanto no Notas: Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade
jantar, não dá pra continuar. - Depois você Brasil como em muitos países -, alguns 1 Na ocasião, 2008, integrei a equipe de especialis- Católica de São Paulo. Em seus estudos, busca

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conta sua história pra gente? E ela nos diz mais explícitos outros nem tanto, mas nem tas da Associação Alfabetização Solidária (Alfasol), no estabelecer interfaces entre letramento, relações
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que sim, podíamos voltar no final do expe- por isso mais brandos ou menos violentos. projeto de cooperação técnica “Alfabetização Solidária raciais e práticas juvenis de uso social da lingua-
em São Tomé e Príncipe”, produto de uma parceria
diente que ela contaria mais coisas. E nós Os fios tanto tecem e destecem que aca- gem. Investiga práticas de letramento no movi-
entre o governo desse país e o Ministério das Relações
voltamos com sede por ouvir um pouco bam por levar a angolana para outros paí- Exteriores do Brasil, por meio da Agência Brasileira de mento cultural hip-hop. Integra a Associação
mais de toda aquela história, a de Iraiurdes ses. A guerra de ontem em Luanda ainda é Cooperação (ABC). Desenvolvido desde 2001, o projeto Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN.
da sala de jantar e da tela da televisão. A parte de sua vida, mas o que se vê em seus
voz é melodiosa, os gestos são delicados, a olhos é sorriso que carrega força, muita
postura esguia sustenta o corpo de força! Estuda, é apaixonada por comunica-
uma guerreira mulher, Iraiurdes. ção e gostaria de fazer carreira nessa área.
Era uma vez uma menina que Não dá, ainda não dá. Tem de sobreviver,
morava em Luanda, Angola, em fazendo outros trabalhos, como agora
tempos de uma guerra que durou no hotel. Quando na televisão
anos e envolveu todas as etnias do diz “Proteja-se contra a SIDA”,
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país. Mais uma das guerras prepara- sente-se feliz por ser portadora
das pelo colonizador europeu. Certo dia, a de uma história que proclama
menina Iraiurdes estava com sua mãe na igreja. “Viva a vida e seus itinerários. Proteja-se!
Rezavam pelas vidas em tempos de conflitos. Fique vivo!”. Acho que isso tem bem mais
Havia o desejo de paz. O coro em oração subi- sentido para quem um dia viu a morte de
tamente interrompido por barulhos, barulho de perto. E não apenas uma vez.
gritos, barulho de tiros, barulho de medos, Na vida vivida de todo dia, a princesa
barulho de gente correndo. se casou, descasou, namora e tem uma
Na sala de jantar do hotel em São Tomé filha: “Ela é bonita como eu e para ela
e Príncipe, a menina, agora mulher, fecha quero um futuro de vida e de brilho. Vida
os olhos, coloca a mão em concha no ouvi- de princesa!” Iraiurdes, princesa, guerrei-
do e, sacudindo memórias, balança a cabeça ra, presenteou-nos com fragmentos de
para um lado e outro - gesto semântico que vida densos, complexos, e repletos de
imita sua vida -, num movimento que evoca humanidade. A nossa escuta ainda está
a lembrança que vem e vai. Desse jeito, agradecida por suas palavras.
continua a falar de seu lugar de origem, Como nos diz o africano Amadou
Luanda, do momento em que correu e se Hampâ Tá Bé, a fala humana anima, coloca
perdeu da mãe. Conta que foi perseguida em movimento e suscita as forças que estão
pelos homens e que, deitada no chão, estáticas nas coisas. É assim que a gente
44 45
Princesa de África, o filme

P
Uma entrevista com Juan Laguna

esquisando para a edição desta O fato de que a história “escrita” da


revista me deparei com um filme espanhol África contenha somente fatos ocorridos nos
chamado PRINCESA DE ÁFRICA. Lógico últimos séculos nos permite supor que exista

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que logo quis saber mais sobre alguém que, muito mais que os ocidentais, por mais que
em outro continente, tinha se debruçado tentem estudar, podem chegar a compreen-
sobre os mesmos interesses que eu. Assim, der, mesmo que sejam detalhes muito pre-
cheguei ao diretor Juan Laguna. sentes na sociedade africana até hoje.
Em seu primeiro filme, Laguna procura Nesse sentido, através da música, da poe-
fugir de todos os estereótipos sobre gêneros sia, da dança, o griot nos aponta uma infor-
cinematográficos: mulheres, arte e, princi- mação muito interessante do legado familiar,
palmente, a África e choques culturais. Ele do que se passava há seis ou sete gerações.
penetra no universo dos griots do Senegal, Pois bem, sempre quem tem a informação
artistas detentores da tradição milenar de tem também o poder de manipulá-la. Assim
seu povo, o que lhes confere um poder e é que devemos estar sempre atentos ao que
uma responsabilidade de verdadeiros reis. contam os griots.
Misturando o real e a animação, o filme Durante os quase quatro anos que levei
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é conduzido pela adolescente africana para produzir o filme, minha perspectiva
Maren e pela terceira mulher de seu pai, a sobre a África mudou completamente. Pri-
bailarina espanhola Sonia. A sedução e as meiro você se aproxima com desconheci-
dificuldades de dois mundos tão diferentes mento e preconceito, mas logo se deixa
estão nas palavras, gestos e olhares de duas impressionar pela magia. E, pouco a pouco,
mulheres que usam a dança como meio de essa magia de alguma forma desaparece.
expressão e compreensão do mundo. Você passa a ter um distanciamento que
não lhe permite envolver-se excessivamente,
LC. A História que conhecemos da África foi mesmo sendo uma relação muito intensa.
contada pelas fontes escritas pelos europeus, ou
seja, sob o ponto de vista europeu. Geralmente LC. A narradora de seu filme é jovem, afri-
ela fala de um continente subjugado pela escra- cana e mulher, os grupos geralmente considera-
vatura e colonialismo. Mas os griots, preservan- dos com menos “voz”. Isso foi proposital? O que
do a cultura ancestral através da oralidade, da o fez escolher Maren, 14 anos, como a narradora
dança e da música, podem trazer esta história de seu filme?
Divulgação
de uma maneira diferente, do ponto de vista No princípio não tínhamos intenção de
africano. Você observou isso durante a realiza- que fosse assim, mas logo percebemos que o
ção de seu filme? E sua perspectiva em relação à espectador poderia acompanhar a mudança

46 47
África mudou, após “Princesa de África”? de uma menina de 12 anos em uma atraente
mulher de 15. Além disso, eu não tinha o O choque cultural existe, faz parte do Os meios de comunicação tentam fazer que geralmente a África é contada sob o ponto
direito de colocar um ponto final na história mundo de hoje. No filme, quisemos fazer que acreditemos que esses imigrantes vêm de vista da devastação e do subdesenvolvimento.
de Sonia e de Pap (já que é uma história real com que as pessoas não vissem as grandes porque nosso país é melhor, e o seu, uma Por que o seu título “Princesa de África”?
que persiste e não uma ficção). Mas Maren é ações dos políticos, nem dos formadores de m. Está tudo dirigido: fazem-nos acreditar Quem é, ou são, as princesas de África?
uma visão do futuro, é a mudança da socie- opinião, que vivem a vários quilômetros da superiores ao negro que arrisca a vida para Coincidimos em muitas coisas. A prince-
dade africana na figura de uma mulher, a realidade. Trazemos uma pequena história, chegar à Europa em uma embarcação, inte- sa, para mim, representa também falar da
mistura da tradição com a modernidade. Ela cada vez mais comum, que por um lado fala ressa-lhes que o tratamento não seja de fantasia, do imaginário, dos sonhos. E fugir
é uma personagem com a qual o público de coisas lindas, mas por outro, mostra a pessoa a pessoa, mas de superior a inferior, do real, o que, nos dias de hoje, já não sei
tem empatia, pois ela não toma parte das dureza e a dificuldade da mistura. Histori- como tem sido sempre. muito bem o que é.
decisões dos mais velhos. Só observa a reali- camente o ser humano tem se mesclado, Supunha falar da mulher, que é o futuro
dade adulta, mas até o fim do filme não par- primeiro pela força e depois por vontade LC. Li que você não gosta que classifiquem da África; e o passado, que sustentou esse
ticipa dela. própria. A mescla não é fácil. Quando duas seu filme como documentário. E ele se utiliza de continente. Era mostrar uma imagem da
culturas são muito diferentes, tem que lindíssimas imagens de animação, além das África que fugia da visão ocidental, mistura
LC. Pesquisando a origem da palavra griot, haver muita paciência para chegar a um gravações “reais”. Mas a ficção também não é de pobreza, exotismo e caos. Na África exis-
descobri que ela vem do francês, por sua vez ponto comum. uma maneira de se mostrar e pensar a realidade? te isso, mas a África é muito grande, muito
originado do português “criado”, serviçal. Mas Sou “cético”, não creio que seja possível a Creio que se deve chamar simplesmente diversa e muito rica em outras coisas. Que-
parece que a figura do griot dentro da socieda- formação de um filme ou filme documentário, porque ria falar de duas personagens que se encon-
de senegalesa é quase real. Uma realeza dada terceiro mesmo que as personagens sejam reais, o tram em realidades diferentes. Maren, sene-
não pelo poder divino, mas pelo conheci- espaço. A objetivo da história não é documentar, é galesa, 14 anos, sonhando ir para a Europa
mento da tradição. É assim mesmo? fusão em arte emocionar. Muitas vezes a pessoa sai do (como quase todos seus compatriotas) e ser
Sim, é isso, possivelmente no pode acontecer, cinema e me pergunta incrédula: é bailarina. Sonia, 34 anos, espanhola, baila-
momento da colonização os franceses mas verdade? São reais? Não parece rina, atraída pela magia da África. Em
utilizaram os griots como animadores, como de um documentário! As defini- comum, Pap Ndiaye, percussionista,
bufões (como muitas vezes ainda hoje se pessoa a pessoa sempre ções que utilizamos no cinema senegalês, pai de Maren e marido de
tratam os músicos e artistas em nossa socie- haverá alguém que vai como gênero estão obsoletas. Sonia.
dade). Na África, os griots são os portadores renegar parte de suas raízes. Porém, claro, as pessoas necessi- A Europa não é como Maren sonha.
da tradição. É muito difícil que dois mun- tam delas. Também tem pobreza, as pessoas não
dos reneguem parte de sua dançam nas ruas, é muito difícil para um
LC. Seu filme trata de choque cultural tam- identidade. Isso acontece com LC. Existe a previsão da estréia de africano.
bém. Não por uma perspectiva política ou eco- Sonia e Pap, os prota- “Princesa de África” no Brasil? E Sonia tem que aceitar que na África,
nômica, mas pela perspectiva dos laços de gonistas, por isso eles Espero poder lançá-lo no Brasil. Pap Ndiaye, seu marido, tenha mais duas
família e dos sentimentos, mas que também tem me parecem tão especiais em sua história. Os Gostaria muito. Farei todo o possí- mulheres, Fama e Kine.
suas relações de poder estabelecidas. Na verda- que tratam ou vivem esses temas são seres vel para lançá-lo antes de um ano. Logo os sonhos são os motores de nos-
de, você fala de dois mundos paralelos que se marginalizados e diferentes. Logo, não creio Mas hoje não temos nenhum distri- sos atos, mas quando se fazem realidade
tocam. Mas eles têm a possibilidade de se fun- que a sociedade tenha vontade de assimilar a buidor no Brasil. nunca são como havíamos pensado.
dir? É possível a criação de um terceiro espaço? mistura. As costas espanholas estão invadidas Mas, pelo menos, nos fazem viver
Quando pergunto isso, não posso deixar de por alemães e ingleses, que são diferentes de LC. Nossa revista se chama “Princesas Afri- coisas que ninguém viveu. Vale
pensar na bela animação que cria um beijo nós e a quem não entendemos, mas aceita- canas” porque queríamos, através da imagem a pena? Eu creio que sim.
entre os dois continentes, mas também na ques- mos e potenciamos. Por outro lado, não acei- que a princesa tem dentro do imaginário das
tão da imigração que acontece atualmente na tamos que venham africanos, que não dão culturas eurocentristas, mostrar a África como Entrevista: Ana Claudia Maia
Europa. dinheiro, vêm trabalhar. É tudo estúpido! espaço de uma importante cultura e tradição, já Tradução: Maurício Rúbio
48 49
Iya Ibeji, a mãe dos gêmeos - A leitura dos símbolos nagô

A
Marco Aurélio Luz

tradição nagô-yorubá ocupa quicas o mais novo pede bênção ao mais


papel destacado na cultura brasileira. antigo, ele diz “otun ba mi”, o mais antigo
Para uma adequada aproximação e pode responder, “eleda mi gbe iin o”, o meu

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entendimento da cultura africano-brasilei- orixá criador o proteja. Portanto, o poder
ra, temos de estar preparados para uma lei- individual do mais antigo, o seu axé, carac-
tura de símbolos. Para tanto, é preciso com- teriza-se por sua dimensão sagrada, trans-
preender o valor da estética como parte cendente, o seu eleda, fortalecido ao longo
intrínseca de uma comunicação de partici- de sua trajetória sacerdotal.
pação direta, interdinâmica e intergrupal, Da mesma forma que a literatura — os
que exige a presença de seus integrantes itans, as histórias ou contos em geral per-
num aqui e agora, e a maneira como a arte tencem ao sacerdócio oracular de ifá, ou
procede a elaboração de conhecimentos. A erindinlogun; os orikis, poemas, e korin, as
noção de odara, em língua yorubá expressa cantigas, são combinação de versos com
uma dimensão em que o bom e o belo são música percussiva em que os toques ou rit-
uma coisa só, o técnico e o estético são mos classificam, significam e acompanham
inseparáveis. as ações rituais —, a dança é composta de

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Na civilização tradicional africana, espe- gestos que simbolizam os poderes e princí-
cificamente na cultura nagô, o sagrado está pios das entidades, bem como seus trajes,
integrado nas ações cotidianas. A religião paramentos e emblemas. A culinária litúr-
acompanha a vida; o aiyê, esse mundo, e o gica também simboliza as características de
orun, o além, estão inter-relacionados pela determinada entidade, executada através da
noção de axé, força circulante entre esses iya bassê, sacerdotisa que está preparada
mundos de que trata a liturgia e que movi- pela elaboração da comida ritual, iyanlé,
menta a existência e garante o existir. conforme as regras da tradição. Nesse con-
A forma de vinculação humana, a socia- texto, cor, odor, sabor, textura e composição
bilidade nesse contexto, se constitui pela ou apresentação simbolizam; e, para
linguagem estética que o mais das vezes apreender os significados, são chamados a
magnifica o sagrado, pois a religião, o reli- atuar os cinco sentidos, tato, paladar, olfato,
gare, a pulsão ou o desejo de estar juntos, visão e audição.
fortalecidos num corpo comunitário, forma Na tradição religiosa nagô dois cultos se
o egbe, a comunidade envolvida pelos valo- complementam: o culto aos ancestres e
res sagrados transcendentes. Assim, nesse ancestrais, e o culto aos orixás, as forças
contexto os códigos e repertórios compõem cósmicas que governam a natureza do uni-
e expressam uma visão sagrada de mundo. verso no qual nos integramos.

50 51
Por exemplo, quando nas relações hierár-
Esculturas alaafin, o senhor do palácio, o rei, patrono uma à direita, outra à esquerda. Seus bra- A audição do som ritmado das águas
Já houve quem aludisse à cultura tradi- das dinastias, da realeza de Oyó, capital ços se estendem às crianças em atitude de correntes indica que Oxun é a entidade
cional africana como “floresta dos símbo- política da tradição, que protege as comuni- apoio. As crianças, por sua vez — uma patrona da música. O ijexá é seu ritmo por
los”. A própria noção de floresta, ibo, se dades e garante sua expansão, com muitos com a mão direita, outra com a mão excelência. Uma célebre história narra a
refere a um espaço sagrado onde habitam filhos em sucessivas gerações. esquerda — seguram os seios pronun- competição entre Oxun e Obá pala predile-
espíritos, inclusive ancestrais, e onde ocor- Convém dizer ainda da importância do ciados, representação da propriedade ção de Xangô, envolvendo a orelha
rem diversos ritos iniciáticos. grupo de escultores. Alguns são de famílias do poder feminino de transformar como símbolo de feminilidade, aqui
As esculturas obedecem às delimitações dedicadas a essa atividade por várias gera- seu corpo em alimento e alento combinada com a culinária. Na
dos valores estéticos da arte, isto é, elas ções e, portanto, muito respeitados nas aos recém-nascidos. Com a escultura, brincos pendentes nas

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são símbolos, representação de idéias, sociedades tradicionais, não só pela técnica outra mão, cada criança segura orelhas ressaltam esse aspecto.
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noções ou conceitos da tradição cultural. e estética adquirida ao longo dos anos, mas um abebe, emblema em forma Na parte de trás da escultura,
Elas estão presentes na decoração de palá- também pelo conhecimento da simbologia. ovalada, parecendo um leque destaca-se a figura de dois pássa-

Iya Ibeji, a Mãe dos Gêmeos e o


cios ou fazem parte das instituições reli- com espelho, simbolizando a ros. Os pássaros e os grandes

poder feminino
giosas. Nesse caso elas têm uma dimensão vaidade feminina, mas que pássaros, assim como os pei-
transcendente, pois se destacam do plano expressa, sobretudo, o xes, fazem parte da simbolo-
material para atuar no espiritual. As escul- Os poderes e princípios femininos na poder de fertilidade gia das Iya-mi, nossas mães
turas podem estar presentes nos altares, tradição cultural nagô só se realizam pelo feminina, útero, ventre ancestrais. Penas ou esca-
ojubo, ou como parte dos paramentos que processo de interação e complementação fecundado. mas representam filhos
compõem as entidades nos festivais rituais. com os princípios masculinos. Devemos Outro abebe se desta- descendentes desprendi-
A leitura dos símbolos se caracteriza acrescentar que o inverso também ocorre. ca também na imagem dos do corpo do pássaro
por vários planos. O primeiro, que já sig- O mistério da continuidade ininterrupta esculpida de um ovo- mítico.
nifica, diz respeito à qualidade da matéria, da vida nesse mundo se processa pela con- ventre fecundado, Uma história conta
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ou substância, da escultura. Nós nos refe- cepção e gestação. caracterizando a que no início dos tem-
riremos à madeira, que faz parte do atribu- Os Ibeji, os gêmeos, literalmente nasci- continuidade das pos, Olorun, Deus, enviou
to de determinados orixás. Basta dizer que, dos dois, ibi+eji, e mais os da gestação sub- gestações. Contor- sete pássaros ao mundo.
de acordo com a tradição, para cada ser seqüente, denominados Taiyo ou Tayewo, nando esse abebe, Três pousaram na árvore
humano que criava, Oxalá, orixá que repre- Kehinde e Dou ou Eta-Òkò, fazem parte pequenas partículas do bem, três na árvore do
senta o princípio masculino mais antigo da da constelação de entidades do panteão do de luminescências mal, e um costuma voar
criação, criava uma árvore. Assim as árvores orixá Xangô e de sua relação com o orixá douradas aludem ao de uma para outra árvore.
estão relacionadas à ancestralidade mascu- Oxun. ouro, metal de infin- Na escultura, os pássa-
lina. Oxun é Iya mi akoko, Mãe ancestral da durabilidade, e de ros ancestrais volta-
As árvores ocupam uma presença suprema, que representa os poderes de cor característica da dos para o poente
importante no mundo sagrado: ramos e fecundidade e fertilidade feminina. entidade. são guardiões do
folhas podem representar filhos, descen- Na escultura Iya Ibeji, temos uma Abaixo, contor- mistério e do poder
dência, ancestralidade masculina que recriação da simbologia da tradição refe- nando a escultura, a feminino.
garante a continuidade da vida por infindas rente ao mistério e poder feminino que, imagem de águas cor-
gerações. Algumas são relacionadas ao culto através da maternidade, garantem a conti- rentes, símbolo do poder da
aos ancestrais masculinos, e também estão nuidade da vida. fertilidade feminina, alusão ao corrimento Marco Aurélio Luz é Doutor em Comunica-
presentes na simbologia do orixá Xangô. A escultura de nossa autoria destaca a sanguíneo dos ciclos menstruais que ção, escultor e escritor, autor do livro “Agadá:
As esculturas componentes do panteão imagem de uma jovem mãe sentada, com conotam o insondável mistério da femini- dinâmica da civilização africana brasileira”,
do orixá Xangô são de madeira. Ele é o duas crianças apoiadas em suas coxas, lidade. dentre outros.
52 53
A lenda da princesa negra que incendiou o mar

M
Geraldo Maia

aria Felipa é uma heroína negra Lançaram reinos contra reinos


A poderosa Princesa da Bica Irmãos contra irmãos
Uma Iabá guerreira pela liberdade Pela força da mentira e da desídia

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Que pôs fogo no mar de Itaparica Caíram os mais fracos nos porões
Incendiou os navios da escravidão Os súditos da Rainha África dizimados

Era uma princesa negra poderosa Pela febre da escravidão arrancados


E simples como o mar e a liberdade Da história de suas famílias e terras
A mesma liberdade arrancada de seu povo Engolidos pelo mar da escravidão
A mesma liberdade que brigava na baía Esquecidos nos navios infectados
O mar de Kirimurê era o cais da liberdade Mas mantidos na memória de suas lendas

Kirimurê tingida de sangue negro Dos guerreiros e princesas reis e orixás


Fez-se resoluta pela Rua do Cais Das danças e cantigas dos parentes
Até os confins da África Mãe Agora presos nos ferros dos pelourinhos
Onde viviam livres em suas tribos Uivam nos troncos na chibata na senzala

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Com seus Reis e Rainhas e Guerreiros Gemem nas prisões embrutecidas

E Príncipes e Princesas os mais belos Mas no culto de seus antepassados


E livres antes do veneno da cizânia A união de povos desunidos
Atiçada pelos invasores de além-mar Pelas mentiras dos comerciantes
Foi lançado povo contra povo Descobrem que a união é o poder
E alimentada a cobiça pelo ouro negro Que precisam para voltar à liberdade

As cortes de além-mar estavam famintas Reúnem-se nos cantos dos xirês


Sua cupidez arrasava os horizontes E assentados nas pedras invisíveis
Em busca de ouro de todas as cores Cultivam seus deuses e deusas
O cobiçado ouro negro feito de sangue Firmam a memória de liberdade
De negros e negras escravizados E fincam a rebeldia nos gestos

Traficados como peças de um negócio E a voz da liberdade se faz ouvir


Seres humanos foram reduzidos De um grito onde ecoa independência
A uma mercadoria de alto lucro E esse grito ressoa além da fala
A África foi transformada em celeiro É a luta que se trava aguerrida

54 55
E seu povo negociado nos mercados É o sonho em sua plena possibilidade
A batalha se faz ouvir na voz do povo Contra a opressão dos invasores Tomar Itaparica outra vez Tocou “avançar cavalaria degolando”
Com suas cores e vestes destroçadas De saia rodada, bata, torço e chinela Depois de a terem desdenhado Estava consolidada a independência do
Mas decidido a deixar “nossa pátria A princesa negra que tocou fogo no mar O plano era abastecer homens e naus Brasil
hoje livre dos tiranos não será” Auxiliada por um grupo de mulheres E rumar fortalecidos sobre o recôncavo A força do grito tornou necessária a luta
Espoca a independência encarniçada negras Onde esperavam manter a opressão O povo é o responsável pela vitória
Incendiou quarenta e dois navios do Brasil em terra de todos nós
E as lutas travadas em terra e mar portugueses Mas na fazenda trinta e sete Maria Felipa
Pelas mãos heróicas do povo Na lendária Batalha de Itaparica Costumava ficar bem lá no alto “Cresce, oh filho de minh´alma
Garantem que “nunca mais o despotismo Vigiando os barcos que chegavam Para a pátria defender
Regerá nossas ações, com tiranos Ocorrida na praia do convento E à noite em romaria pela praia O Brasil já tem jurado
não combinam brasileiros corações” Em sete de janeiro de mil oitocentos Com seu grupo de mulheres guerreiras Independência ou morrer”
e vinte e três
E lá na praia do convento em Itaparica Na Ilha de Itaparica que fica na baía Invadia os navios com suas tochas Terra da princesa africana Maria Felipa
surge Felipa a princesa negra e sua de Kirimurê Para atear fogo no mar de Kirimurê A guerreira que tocou fogo nos navios
coragem A baía de todos os santos na Bahia Essa é a história da coragem Para garantir a independência do país
Em seu coração o sangue de liberdade Onde o povo negro, índio, caboclo e e da força de uma princesa negra E contribuir decisivamente
luta feito vulcão quando perde a paciência sertanejo Uma mulher guerreira vitoriosa Na luta pela liberdade do seu povo
É Maria Felipa e sua força guerreira
Lutou para garantir a vitória da inde- Uma linda princesa negra Iabá baiana Geraldo Maia é poeta.
“Nasce o sol a 2 de julho pendência Heroína das lutas da independência Contribuem: Hino ao “Dois de Julho”, de
Brilha mais que no primeiro “havemos de comer/marotos com pão/ Impôs aos invasores cruel derrota Ladislau dos Santos Titara e José dos Santos
É sinal que neste dia dar-lhe uma surra/de bem cansanção/ Seus navios incendiados e afundados Barreto, e uma canção de domínio público.
Até o sol é brasileiro” fazendo as marotas/morrer de paixão/ Como os corpos negros jogados ao mar
português, bicho danado/arrenegado,
Seu nome para que todos saibam arrenegado” Pela força da cobiça e da usura
É Maria Felipa de Oliveira Agora ardiam os navios da exploração
A heroína negra da independência da E o mar foi incendiado com vitórias E o povo triunfante inicia sua marcha
Bahia O povo negro, índio, caboclo, sertanejo Desde Santo Amaro, Cachoeira, Pirajá
A heroína negra da independência do Chamou para si a luta nas ruas Onde o corneteiro ao invés de recuar
Brasil Onde se fez vitorioso e obrigou
Negra alta forte e desaforada A fuga dos portugueses que pensaram

56 57
Nas malhas das imagens e nas trilhas da resistência:

V
heroínas negras de ontem e de hoje - Andréia Lisboa de Sousa

ocê saberia dizer quais princesas dominantes e que povoam as mídias e tam-
negras brasileiras ou africanas você conhe- bém o imaginário brasileiro são as das
ceu? Com quantas brincou ou, até mesmo, famosas heroínas européias. Não é novida-

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quantas sonhou ser um dia? Quantas histó- de que as narrativas de heroínas brasileiras
rias de heroínas negras você ouviu ou con- são marcadas por um investimento na invi-
tou em sala de aula, em casa ou em rodas sibilidade ou na estereotipia das heroínas
de bate-papo? Pare e pense: quais delas negras brasileiras.
você viu ou vê na TV brasileira hoje? A Onde estão as nossas Nzingas, Acotire-
quais apresentadoras negras você assiste nes, Mahins, Lélias, Beatrizes, Marias, Bene-
nas telinhas da TV, em programas para ditas, Silvas, Souzas, Carmozinas, Neides,
crianças e jovens? Perguntas instigantes e Dinhas, Nininhas e assim por diante? A
cheias de significados... figura da heroína ainda é permeada por
No Brasil, notoriamente os meios de aquela imagem ocidentalizada, sub-repre-
comunicação ainda mantêm forte investi- sentando as guerreiras negras, sejam elas
mento no “ideal” branco europeu. O padrão históricas, reais, fictícias e/ou mitológicas.2
de beleza ainda é o de um corpo esguio, Uma dessas figuras, a rainha Nzinga

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etnocentricamente1 valorizado, a ser olhado, (Ngola Ana Nzinga Mbande), liderou os rei-
desejado e comprado. Trata-se de modelos nos do Ndongo e de Matamba (região
magérrimas, altas, de pele clara e, na maio- sudoeste africana no século XVII). Viveu
ria das vezes, de cabelos lisos. São essas as durante um período em que o tráfico de
heroínas modernas. Quando eu era criança, escravos africanos e a consolidação do
essa imposição de um padrão colonialista poder dos portugueses na região cresciam
parecia algo “normal”, “natural”. Esse para- rapidamente. Ela negociava e conversava de
digma da brancura também se estendia igual para igual com a colônia portuguesa e,
para as páginas dos livros escolares, fazen- em sua trajetória, liderou um império mili-
do-se presente nas histórias das princesas e tar, venceu várias batalhas e defendeu o ter-
heroínas brancas. ritório angolano de invasões. Ainda hoje é
Esse modelo ocidental deixa marcas nas tratada com o respeito devido a uma rainha
imagens e conteúdos que povoam os livros e seu nome se faz presente na história e
didáticos e paradidáticos, contribuindo memória afro-brasileira, seja em livros
para a manutenção de um currículo euro- infantis e juvenis, em nomes de ONGs,
cêntrico que ainda pouco considera a grupo de capoeira, canções, peças de teatro
necessidade de pretejar as páginas com a etc. São as reminiscências de uma guerreira
diversidade. Diante desse contexto, cabe africana que inspira a luta anti-racista e

58 59
relembrar que as imagens ainda hoje pre- anti-sexista no Brasil e na diáspora.
Outra figura que merece destaque é a Almeida Gonzalez, Maria Beatriz Nascimen- força vital e a palavra formam um elemento É hora de abrir as cabaças da existência,
escritora negra Maria Firmina dos Reis, que to e, mais recentemente, Neusa Santos primordial imprescindível para a composi- deixar as palavras negrejadas virarem
escreveu a obra Úrsula (1859), num momen- Souza? ção das relações individuais e grupais. Os verbo e atitude, incrustando em nossa
to em que nem escritoras brancas tinham Lélia foi antropóloga, militante negra e legados de inúmeras civilizações africanas memória, contando velhas, novas e outras
espaço para isso. A obra é considerada o feminista do Nzinga Coletivo de Mulheres estão presentes no jeito de ser e de viver experiências Afro-Diaspóricas.
primeiro romance de autoria feminina no Negras (RJ) e do Movimento Negro Unifica- brasileiro, por meio da história das popula-
Brasil. Quantos cursos de Letras analisam do (MNU), dentre outras instituições. Voz ções africanas escravizadas, que, como Notas:
obras como essa ou como as de Carolina dissonante no branco segmento acadêmico sábias guardiãs, mantiveram a tradição oral 1 Termo utilizado quando um grupo, povo ou

Maria de Jesus? Quantas Carolinas das fave- brasileiro, tornou-se referência dentro e e recriaram novas rotas e alternativas de nação vê e interage com o outro, o diferente (o negro,
las atuais têm sua voz e experiência periféri- fora do país. Beatriz, outra pensadora da vida após a colonização. Mulheres, heroínas indígena ou o não-branco), a partir do ponto de vista
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próprio. Isto é, levando em consideração somente os


ca transformadas em verso, filme ou livro? diáspora africana, historiadora, poeta e pes- de ontem e de hoje, reinventam a memória
modelos e explicações que vêm das idéias formuladas,
Mais ainda: quantas negras das favelas quisadora, contribuiu para a dinâmica dos dos fatos e feitos dos antepassados. criadas e veiculadas por esse mesmo grupo. No caso
podem ser lidas em 14 idiomas em mais de estudos negros. Neusa Santos Souza, com a Faltam ainda, em nossa literatura, his- deste texto, refiro-me ao branco europeu.
40 países, como foi o caso de Carolina de obra Tornar-se Negro, corajosamente reali- tórias que enfatizem a força motriz de 2 A título de informação, no Dicionário Mulheres do
Jesus? Por que os contos sem fada, sem zou pesquisa psicanalítica, na década de resistência e re-existência da cosmovisão Brasil, de 1500 até a atualidade. Schuma Schumaher e
madrinha, sem varinha, mas com luta, 1980, desvendando a complexidade do afro-brasileira que estão, por exemplo, Érico Vital Brazil. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2000,
raras mulheres negras foram incorporadas na obra. O
resistência, ginga e sabedoria das mulheres racismo à brasileira e sua dinâmica interna com as nossas sábias yalorixás, guardiãs
que isso quiz dizer? Na história brasileira e na da diás-
negras da periferia não têm voz nem vez? e externa na vida dos negros. Esses são da memória e do axé afro-brasileiro. As pora africana não existiram figuras negras para serem
Por que são tão raras as exceções, como as exemplos de heroínas que ficam inscritas histórias estão voando por aí, de porta em lembradas, louvadas e exemplos de história de luta?
que começam a ter vez em vozes como as de na memória, no corpo e na história. Essas porta, de chão em chão, de esquina em Somente em 2007, o silêncio foi quebrado e os mes-
mos autores publicaram a obra: Mulheres Negras do
Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro? heroínas foram as griottes, cujo ofício foi o esquina, de multidão em multidão, de Brasil foi lançado pela Redeh - Rede de Desenvolvi-
Considerando a produção de livros de guardar e ensinar a memória cultural periferia em periferia. Repletas de magia, mento Humano e Senac Editoras. A obra apresenta
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infantis e juvenis propriamente dita: quais da/na comunidade. Vivenciar e enfrentar as cheias de encantos, trancadas nos fios de uma retrospectiva sobre mulheres negras na sociedade
brasileira desde o período colonial até a atualidade.
imagens negras a literatura infanto-juvenil adversidades de um cotidiano de discrimi- contas, nas tramas e nas malhas do cotidiano.
No entanto, com a obra é notório ver a ausência da
tem valorizado? Podemos afirmar que nações, preconceitos, sexismos e desigual- mulher negra na esfera de política, nos espaços de
houve um crescimento de obras narrando dades já é um ato heróico em si mesmo. decisão de poder, fruto da herança patriarcal e sexista
fatos e feitos da tradição oral africana. Da Inúmeras mulheres negras sejam em ONG’s (entenda-se branca) da sociedade brasileira.

mesma forma, a cultura e a mitologia afro- de mulheres negras, nos movimentos de


brasileira demarcam uma nova fase, ainda saúde, moradia, educação dentre outros são
em consolidação. Sem dúvida, mais narra- as guerreiras e feministas negras que for- Andréia Lisboa de Sousa é doutoranda em
tivas orais e mitológicas, sejam africanas jam, quando sobrevivem ao cotidiano vio- Educação na Universidade do Texas/Austin/USA.
ou afro-brasileiras, disparam nas pratelei- lento e genocida em que vivemos, novas Mestre em Educação pela Faculdade de Edu-
ras das editoras, desde meados de 1990. práticas e formas de saberes na Diáspora cação da USP (FEUSP). Integra a Associação
São narrativas de orixás femininas, tais Africana no Brasil. Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN.
como Iansã, Oxum, Iemanjá, Nanã e Obá. Vale salientar que, na cultura tradicional Fellow do Fundo Riochi Sasakaua/USP. Ex-
No entanto, cabe ressaltar que as nossas africana, a palavra tem o poder de garantir Sub-Coordenadora de Políticas Educacionais
heroínas da atualidade ainda não têm e preservar ensinamentos da tradição afro, da CGDIE/SECAD/MEC. Fellow do Pro-
espaço nas tramas das histórias infantis e fazendo circular energia vital, uma vez que grama Internacional de Bolsa da Fundação
juvenis. Quando teremos obras para o é transmissora de força mística transforma- Ford. Atualmente, realiza pesquisa sobre
público juvenil narrando a vida de heroí- dora do mundo, revelando uma dimensão diáspora africana em materiais didático-
nas atuais, como as intelectuais Lélia de criadora e ancestral. As conjunções entre a pedagógicos. (souzaliz@yahoo.com.br).
60 61
Uma guerreira

U
Julio Emilio Braz

ma guerreira. vezes vilipendiada por aqueles que não a


Na vastidão finalmente tranqüila do ver- concebem e, portanto, não a compreendem,
dejante campo de batalha, seu corpo ainda até porque como boa parte do mundo esco-

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se ergue, orgulhoso e beligerante, mas antes lheu a superficialidade como sentido de vida
de tudo, imponente, como se, sendo neces- e a ignorância como refúgio seguro não
sário, ainda estivesse disposta e preparada entende a sua real profundidade e impor-
para se entregar à nova refrega. tância. Aquela guerreira é parte de nós até
O corpo formiga de dor, alfinetado sem porque é em tudo semelhante à imagem
dó nem piedade pelo prolongado combate. que não queremos ter de nós mesmos.
Esforço inaudito, as vestes têm rasgão aqui, Ela é comum. Não é uma amazona grega.
outro ali. O suor abundante as torna mais Não tem a estatura física de uma deusa nór-
pesadas. dica, mas tem igual estatura moral e psico-
Não se importa. A leveza produzida pelo lógica. É estóica, porém orgulhosa. A bata-
alívio recente que vem com a certeza do lha é o seu alimento diário. A esperança, o
dever cumprido a impele finalmente para combustível do corpo mirrado, feito sólido
fora, de volta a um breve instante de paz e poderoso na fonte espúria do dia-a-dia e

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antes da próxima batalha. Ofega, narinas das dificuldades cotidianas tão comuns aos
dilatadas em buscar do ar para inflar os despossuídos.
pulmões exauridos. Há sangue na testa. Um Ali, na linha de frente de suas convic-
pouco mais escorre de um dos joelhos. O ções muitas vezes mais instintivas, até
olhar triunfante passeia pelo verde que se inconsciente, vejo Tereza do Quariterê à
esvazia. Ao cumprimento e ao entusiasmo frente de seu quilombo em Mato Grosso ou
das companheiras, responde com o silêncio a guerreira Felipa, no quilombo Alcobaça,
de quem tem a nítida consciência de que no Pará; a princesa Luiza Mahim, nascida
toda aquela mansidão em meio ao calor na África, engrandecida na revolta dos
sufocante do entardecer em terra estranha Malês. Vejo outras tantas princesas, orgulho
esconde apenas outro combate, a incerteza e força d’África, que lutaram com unhas e
de novo triunfo. dentes por sua liberdade e pela dignidade
Não há destino. Não há futuro, pois o em seus quilombos, mas a sua luta é outra,
presente é precário e o passado reserva como o é a luta de tantas como ela, nas tri-
poucos momentos que mereçam ser lem- lhas traiçoeiras do asfalto, nos desfiladeiros
brados. de concreto armado das grandes cidades, ao
Olhei-a a distância. Senti-me vingado volante do ônibus, no cabo da enxada, à
apenas por contemplá-la. Eu e minha mercê de um longo cabedal de incom-

62 63
nacionalidade tantas vezes ignorada, tantas preensões, na precariedade das favelas
Princesa, não. Mas...

P
onde a violência arranca filhos dos braços vezes inúteis dribles. Orgulho de saber que

Marina Colasanti
mas obriga a ser forte para criar e defender o que realmente importa é a epopéia do
outros filhos. Sempre à beira da grandeza e caminho trilhado e não o destino. Que a ver-
a dois passos do fracasso e da desilusão. dadeira felicidade é persegui-la e muitas
Nossa, chorei emocionado, ao vê-la no vezes não alcançá-la. Que vencedor não é
meio de tanto entusiasmo, serena e orgu- quem ganha, mas antes, quem acredita sem-
lhosa em seu anonimato. À celebração de pre que é possível ganhar, que pode ganhar.
rincesa não sou. Africana, sem Festas, encontros, caçadas, a vida na
outras respondia com aquele longo olhar “Ave Form¥ca!”
dúvida. colônia que o fascismo queria transformar
dos que sabem o que fizeram e indepen- Os que vão te ver, ainda por muito
Dorme num baú, de onde o tiro em oca- em capital do novo império escorria com

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dem do reconhecimento e da aprovação dos tempo, te saúdam.
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siões especiais, o albornoz de lã preta bor- prazer temperado de exotismo. Meus pais
outros. Ela foi. Ela é. Ela será. Se não para
dado de seda que meu pai jogava sobre os me contariam mais tarde das luxuosas fes-
todos, pelo menos para mim. Naquele dia Notas:
ombros por cima do smoking, para ir às tas do Governador, que aconteciam por
de calor sufocante e de grandes expectativas 1 Formiga é Miraildes Maciel Mota, meio-campista
festas da colônia. O da minha mãe, de lã vezes debaixo de tendas, com o chão todo
num campo de futebol na China, durante da seleção brasileira de futebol feminino, que conquis-
branca bordada com fios de prata, a envol- coberto de tapetes, as luzes pendentes,
as Olimpíadas de 2008, depois de um aca- tou medalha de prata nas Olimpíadas de 2008. Ela
nasceu em Salvador, BA, e desde 1995 faz parte da
veu como um casulo quando se foi para tochas do lado de fora. E os “ascari”, vigi-
chapante 4 a 1 nas imbatíveis alemãs. Dri-
Seleção. É uma lutadora fora de campo também e uma sempre de toda e qualquer festa. lantes, ao redor. Ascari eram os soldados
blando o pouco caso e montanhas de difi- de suas batalhas é melhorar as condições do futebol Setembro de 1937. Ao entardecer do dia nativos que formavam parte do exército
culdades. Naquele dia eu não vi a jogadora feminino no Brasil.
26, em Asmara, meu pai vai assistir a uma colonial italiano, não só na Eritréia, mas
cansada que fazia jus ao ape-
luta de boxe. Em casa, minha mãe entra em também na Líbia e na Somália. Usavam
lido – Formiga1. Vi uma ver-
trabalho de parto, amigos a levam ao hospi- uniforme branco, uma faixa vermelha na
dadeira guerreira. Uma prin-
tal. Meu pai só ficaria sabendo à noite, ter- cintura. Guardo até hoje uma dessas faixas
cesa africana a sós com a
minada a luta - o celular ainda demoraria e, quando a lã macia me envolve em suas
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savana e seu destino. À espe-
muito para ser inventado. Assim, a África espirais, me sinto, sim, uma princesa, uma
ra. Sempre à espera. Minha
se imprimiu em mim. guardiã do tempo. Os anos, tantos, nada
guerreira. Tão forte quanto
Minha África chamava-se Abissínia, puderam contra a intensidade daquela cor.
outras tantas. Tão comum
depois se chamou Etiópia, hoje é Eritréia. Descíamos às vezes até Massawa para ir
quanto outras tantas. Tão
Minha cidade é fresca, deitada sobre o pla- nadar no Mar Vermelho. Não que fizesse
igual a todos nós, filhos de
nalto de Kebessa, a mais de dois mil e demasiado calor, nunca faz calor excessivo
África, vitimados por uma
duzentos metros de altitude. Diz-se que ali em Asmara. Era a saudade do mar que nos
certa miopia social que confi-
a Rainha de Sabá deu à luz Menelik I, filho levava, nós irremediavelmente peninsulares.
na muitos a uma invisibilida-
do Rei Salomão. Crescem flores em Asma- A Itália havia construído uma estrada de
de implacável, parte desse
ra, o pôr-do-sol é um deslumbramento, as ferro ligando as duas cidades, obra de enge-
gigante chamado Brasil. Julio Emilio Braz é escritor. Autodidata, se ruas são largas e a arquitetura tem um sur- nharia colossal que coleava encosta abaixo,
Sabe, Formiga, a medalha de ouro não tornou escritor profissional escrevendo roteiros preendente sabor art-déco. Morávamos em misto de serpente e dragão. Gosto de pen-
importa mais. Será, como disse um antigo para histórias em quadrinhos nas revistas de apartamento, que era mais moderno, e na sar que viajei naquele trem, mas creio não
treinador, um mero detalhe. Um importante terror da Editora Vecchi, do Rio de Janeiro. única foto que tenho dessa época, com ser verdade, íamos de carro.
detalhe, mas ainda assim, um detalhe. Eu já Muitas de suas histórias foram publicadas em escrito atrás “o quarto das crianças”, vejo De carro também meus pais iam, com
a carrego no peito desde aquele jogo. Orgu- várias editoras no Brasil, em Portugal, Bélgica, uma nursery européia, com minha mãe amigos, caçar. De jeep, mais precisamente.
lho de vê-la se multiplicando como uma França, Holanda, Cuba e EUA. Tem mais de elegante e jovem, pronta para ir a alguma Ponho à minha frente as poucas fotos que
leoa no campo enquanto outros tinham 134 livros publicados e vários prêmios nacionais festa, posando de perfil à luz do abajur tenho. O grupo está sentado no chão à
olhos para a beleza passageira de belos e por e internacionais.
64 65
aceso. sombra de árvores ralas, na savana, meu pai
de botas altas e calças de montaria, minha ou almoço, o doce Zemba, aproveitando sua Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etió- prêmios nacionais e internacionais. Dentre
mãe de short e sapatinhos brancos, a seus anatomia esguia para socializar, meteu-se pia, morou 11 anos na Itália e desde então vive outros, escreveu “E por falar em amor”,
pés os capacetes de cortiça forrados, o dela entre as grades da jaula. Zemba significa no Brasil. É escritora, jornalista e artista plás- “Contos de amor rasgados”, “A morada do ser”,
com duas pequenas plumas. Pareceriam mosca. Aquela pequena mosca pálida não tica. Publicou vários livros de contos, crônicas, “A nova mulher”, “O leopardo é um animal
fantasiados de caçadores, não fosse o cansa- teve nem tempo de pousar-se no leão. poemas e histórias infantis. Recebeu diversos delicado” e “Uma idéia toda azul”.
ço e o calor que transparecem na postura, Em casa, falávamos italiano. E continua-
nos rostos sem sorriso. mos falando italiano quando saímos de
Perguntei a minha mãe se ela também Asmara e fomos viver em Trípoli. Que bela
matava animais nessas caçadas. Me contou casa tínhamos em Trípoli, com um muro
que, depois de uma noite inteira de vigília alto ao redor do jardim, e um cacto enorme
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junto a um bebedouro, havia feito barulho, encostado no muro, e um cachorro que não
de propósito, para espantar as gazelas. Eu chegava perto do cacto, e um poço. Tudo
era criança, queria ouvir de ações heróicas isso eu lembro, embora não tivesse ainda
com leões ou leopardos, mas essas gazelas quatro anos.
em fuga e salvas nunca mais esqueci. Mas da cidade além do muro, daquela
Fugiu também um macaco curioso, em Trípoli absolutamente mediterrânea, cheia
outra ocasião, mas não conseguiu salvar-se. de arcadas brancas e palmeiras, que vejo
No jardim vazio, onde me haviam deixado atrás da minha mãe na foto tirada em maio
no berço para tomar sol, o macaco aproxi- de 1940 quando já a Itália havia entrado na
mou-se atraído. Do alto da janela meu pai Segunda Grande Guerra, a única imagem
o viu subir no berço, estender a pata, talvez que levaria comigo seria a da partida.
para pegar alguma coisa que eu comia, tal- Deixamos a África de hidroavião, moder-
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vez para me tocar. Não sei se meu pai gritou nos até nisso. Eu o conservo em minha
primeiro para espantá-lo, sei que atirou de memória, anguloso e escuro como um inse-
onde estava e o atingiu no peito. De certa to pousado sobre a água. E conservo o
forma, meu pai também se atingiu, porque medo que cristalizou aquele embarque,
todas as vezes que me contou essa história para sempre sentada no bote de madeira
imitou com tristeza o gesto do macaco que nos levaria até ele, e que meu irmão
levando a mão ao peito, e dobrou-se como balançava propositadamente, para que meu
se sentisse dor. medo visível encobrisse aquele, secreto, que
Você falava africano?, sempre me per- ele escondia no peito.
guntam, como se houvesse africano. Da lín- A África, para onde meus pais haviam se
gua que se falava fora da minha casa só transferido cheios de projetos e de entu-
guardei uma palavra, Zemba. siasmo, dispostos a viver uma nova vida e
Zemba foi o nome dado por meu pai ao começar a minha, já nada lhes oferecia, a
nosso galgo italiano, pequeno e magérrimo, não ser perigo. Nunca mais voltariam a ela.
trêmulo como se sempre com frio. A Mas uma parte de mim nunca a deixou.
magreza e sua alma gentil custaram-lhe a
vida. Um amigo da família criava um leão
no jardim, não solto, evidentemente, mas
na jaula. E uma tarde, durante uma visita
66 67
Os três cocos

H
Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque

avia uma mulher que tinha uma Volte, menina - disse Iwin - somente
filha e uma enteada. A mulher não gostava fadas entram nesta floresta.
nem um pouquinho da enteada e a fazia Mas a menina repetiu: Irei aonde você

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trabalhar como escrava, enquanto que ela e for até que você me dê outra concha.
a filha passavam os dias passeando e des- A floresta era escura e quente e ouviam-
cansando. Todos os dias ela obrigava a pobre se uivos e urros de animais por toda a parte,
menina a levar vários potes de azeite para mas a menina seguiu a fada como uma som-
vender no mercado e ela só podia voltar bra, pisando em seus passos. Mais adiante,
para casa depois que todos fossem vendidos. chegaram aos pés de uma alta montanha.
Um dia, já quase noite, a menina estava Volte, menina, somente fadas sobem esta
ainda no mercado sem saber o que fazer. montanha - insistiu Iwin.
Não conseguira vender nem metade dos Mas a órfã repetiu:
potes e certamente a madrasta a castigaria. – Irei aonde você for, até que me dê
Foi quando apareceu Iwin, a rainha das outra concha.
fadas, e deu-lhe dez conchas, que era o A montanha era gelada e as pedras cor-
dinheiro daquele país, por todos os cestos. tavam seus pés, mas ela seguiu Iwin até o

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Ela ficou muito contente, mas quando con- alto. Depois de muito andar, chegaram à
tou as conchas, viu que uma delas estava beira de um grande rio.
quebrada, e correu atrás da fada gritando: Volte, menina, somente fadas atravessam
Iwin! Por favor, me dê outra concha! este rio.
Minha madrasta me baterá se eu chegar em Mas a menina sabia bem o que queria e
casa com uma concha quebrada! insistiu:
Vá embora, menina, não tenho outra – Irei aonde você for, até que você me dê
concha - respondeu a fada. outra concha.
Mas a órfã continuou a segui-la insistindo: As águas do rio eram rápidas e traiçoei-
Iwin! Por favor, me dê outra concha! ras, mas ela segurou a ponta da túnica da
Não posso chegar em casa com uma concha rainha das fadas e seguiu-a até o outro lado.
quebrada! Chegaram, enfim, à terra das fadas.
Volte pra casa, menina, pare de me Pois bem, já que você chegou até aqui,
seguir! Somente fadas podem entrar na dê-me de comer - disse a fada. Pegue aque-
terra das fadas, e é para lá que eu vou. las bananas, coma-as e me dê as cascas.
Pois eu irei aonde você for até que me A menina colheu as bananas, mas não
dê outra concha - respondeu a menina. teve coragem de dar as cascas para Iwin,
E assim foi. Andaram, andaram, até que afinal ela era uma fada. Preferiu comê-las

68 69
chegaram a uma floresta muito escura. ela mesma e dar-lhe as frutas.
Agora me dê de beber - continuou Iwin. Ah! Na mesma hora, a madrasta, sem
Colha aquelas laranjas, chupe-as e dê-me o dar ouvidos às reclamações da filha, obri-
bagaço. gou-a a ir ao mercado vender azeite.
Mas a menina novamente fez o contrá- Aconteceu tudo igualzinho como acon-
rio. Deu o caldo da laranja para a fada e tecera à irmã. A fada comprou-lhe o azeite
contentou-se com o bagaço. e pagou-lhe com dez conchas, sendo uma
Agora cate meus cabelos – ordenou a fada. quebrada. A menina pôs-se a segui-la. Pas-
Os cabelos de Iwin estavam cheios de saram pela floresta quente e úmida e a Menina, vá até aquela árvore e cate três
alfinetes que feriam seus dedos, mas a menina seguiu-a reclamando aos gritos que cocos. Mas cuidado, não colha aqueles que
menina os tirou um a um sem soltar um não agüentava tanto calor. Subiram a mon-
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pedirem para serem colhidos, colha os que


único gemido. Então a fada falou: tanha gelada e Iwin teve que suportar as ficarem calados, depois volte para sua casa.
Menina, vá até aquela árvore e cate três queixas da menina, que a cada passo recla- No meio do caminho, abra um dos cocos;
cocos. Mas cuidado, não colha aqueles que mava do frio. Quando atravessaram o rio, a ao avistar sua casa, abra o segundo; e quan-
pedirem para serem colhidos, colha os que menina agarrou-se de tal forma à túnica da do encontrar sua mãe, abra o terceiro.
ficarem calados. Depois, volte para sua casa fada, que quase as duas caíram dentro A menina correu até o coqueiro, mas
e nada de mal lhe acontecerá. No meio do d’água. No entanto, apesar de todos os res- como os cocos que gritavam para serem
caminho, abra o primeiro coco; quando mungos e reclamações, sempre que Iwin colhidos estavam já caídos no chão, pegou-
avistar a sua casa, abra o segundo; e quan- tentava se livrar dela e a mandava embora, os e voltou correndo para casa.
do encontrar sua madrasta, abra o terceiro. ela respondia como a irmã lhe ensinara: No meio do caminho, abriu o primeiro.
A órfã fez exatamente como a fada lhe – Irei onde você for até que me dê De lá saiu um enxame de abelhas que a
mandara. Embora muitos cocos no chão minha concha. teriam matado a ferroadas, se ela não mer-
gritassem: “Colha-me! Colha-me!”, ela Quando, enfim, chegaram ao reino das gulhasse no rio.
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subiu no coqueiro, colheu três que nada fadas, Iwin falou: Ao avistar sua casa, a menina abriu o
diziam e levou-os com ela. Dê-me de comer. Pegue aquelas bana- segundo e de lá saíram centenas de animais
No meio do caminho, abriu o primeiro. De nas, coma-as e me dê as cascas. peçonhentos: sapos, lagartos, escorpiões,
dentro dele saiu um cavalo negro como a E o que você pensou que eu faria? - res- baratas e ratos, que invadiram o quintal.
noite que se abaixou para que ela o montasse. pondeu a menina com maus modos. Acha, E quando a mãe correu ao seu encontro,
Quando avistou ao longe sua casa, abriu por acaso, que comeria as cascas para você ela abriu o terceiro coco. De lá saíram
o segundo, e de lá saíram ovelhas, cabras e ficar com as bananas? tigres e leopardos que correram atrás delas
vacas que encheram os estábulos e o quin- A fada pegou as cascas e disse: e as devoraram.
tal. E quando ela entrou em casa e abriu o Agora me dê de beber. Colha aquelas
terceiro coco, a casa ficou cheia de conchas laranjas, chupa-as e dê-me o bagaço. Adaptação de Maria Clara Cavalcanti de
e de pedras preciosas que transbordavam A menina chupou todas as laranjas e ati- um conto oriundo da Costa dos Escravos, do
pela porta e pelas janelas. rou os bagaços para a fada dizendo: livro “Os africanos no Brasil”, de Nina Rodri-
A madrasta, vendo tanta riqueza, ficou – Tome a sua parte. gues, publicado pela Editora UnB, p.236. No
morta de inveja, e fez com que a menina Agora cate meus cabelos - disse a fada. mesmo livro, à página 239, existe uma variante
contasse onde conseguira tudo aquilo para E você acha que eu vou ferir meus desse conto, contada pelos escravos de origem
que sua filha tivesse a mesma sorte. dedos em seus cabelos, sua bruxa? - per- Nagô na Bahia. Esse conto pode ser considera-
A menina contou tudo à madrasta: como guntou a menina, assim que viu os alfinetes do uma variante africana do conto “As Fadas”,
encontrara Iwin, a rainha das fadas, no na cabeça de Iwin. compilado por Perrault. Encontramos, também,
mercado, como a seguira etc., etc. A fada olhou-a com desprezo e falou:
70 71
nele, elementos da “Moura Torta”.
Uma princesa afrodescendente

N
Sueli de Oliveira Rocha

asci princesa. Certamente antes morena Rosa, com essa rosa no cabelo e
disso vivi embalada nos sonhos de meus esse andar de moça prosa1”. Para mim,
pais, que tanto queriam uma filha mulher. Rosa Luanda, a sua “Princesinha de Angola”,

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Os sonhos viraram traços fortes de brejeira ele inventava: “Rosa Luanda, Princesa de
morenice. O nome, Rosa Luanda, surgiu Angola, entra na banda e pega a viola, ó
de dupla homenagem: à minha mãe (talvez Princesa de Angola, vem pra roda, vem
por ela nunca ter desistido de ter uma cantar que a dança vai começar” - as rimas
filha mulher) e à capital de Angola, terra subitamente enriquecidas pelos acordes
de origem dos meus familiares mais anti- que tomavam conta do quintal. Meus dois
gos. Uma África que não conheço, miste- irmãos mais velhos dançavam com suas
riosa e distante, se instalou em mim desde namoradas; os dois mais novos revezavam-
antes do meu nascimento, entranhada na se na dança com minha mãe, Vovó e a Bisa.
pele e encarapinhada nos cabelos. E quando me tiravam para dançar, eu subia
Nasci numa casa simples, primeira filha nos sapatos deles e rodava feliz, por entre
de um casal que já tinha quatro filhos os espaços permitidos pelas raízes da jabu-
homens. Meu nascimento foi comemorado ticabeira.

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com muita festa. O que não era de estra- A música e a dança corriam em nosso
nhar numa família festeira como a minha. sangue. Com minha avó aprendi a cantar e
Meu pai, um caminhoneiro que rodava o a dançar. Ela era alegre, cantava o tempo
Brasil todo, sempre voltava carregado de todo e me fazia decorar seu vasto repertório,
grande saudade e pequenas lembranças: que ia das cantigas de ninar até as suas
doces, revistas para colorir, fivelas, contas prediletas, as que exaltavam a presença do
e fitas para o cabelo, além de algum brin- negro no Brasil. Eu não entendia muito o
quedo. que cantava, mas fazia coro com ela: “Glória
Com meu pai chegava também muita a todas as lutas inglórias, que através da
música. Nossa casa era pequena, acabando nossa história, não esquecemos jamais!
num gostoso quintal de terra, ou melhor, Salve, o almirante negro que tem um
num pequeno terreno de forma irregular, monumento nas pedras pisadas do cais!2”.
onde imperava uma jabuticabeira. Era Ela me dizia que um dia a escola ia me
debaixo daquela árvore que tudo aconte- ensinar o que tinha sido a Revolta da
cia, sobretudo a cantoria dos sábados. Chibata e que, então, eu compreenderia o
Com um violão e algumas cervejas, meu que estava cantando. Mas para Vovó, eu
pai soltava a voz. Rosa, minha mãe, sua não era só a princesa de Angola, das brin-
eterna “rainha das flores” era a primeira cadeiras do meu pai. Era também a sua

72
“Morena de Angola3”, música que ela me
73
homenageada: “Rosa, Morena, aonde vais
fazia dançar, rodando e requebrando, Uma noite, sem avisar, a Bisa foi para o num momento em que, de cansaço, Vovó tante da turma. Passei a pedir a Vovó que
enquanto ela cantava, batendo palmas. céu de Angola. Papai pediu a mim que tenha cochilado sobre suas costuras. penteasse meu cabelo esticando-o bem e
A África também me chegava, dia após não chorasse. “A Bisa foi embora feliz. Eu não conhecia ninguém em minha prendendo-o num rabo-de-cavalo que ter-
dia, pelas histórias de minha bisavó. Dandalunda a levou para conhecer nova escola. Os alunos estavam juntos minava em uma trança única, num desejo
Quando todos saíam para trabalhar, era Luanda e a ilha de Mussulo com suas desde o começo do ano, eram amigos uns inconfessado de conter a rebeldia dos
ela quem cuidava de mim. E me conta- areias douradas”, - contou meu pai, me dos outros. Eu me percebia uma estranha grossos fios. Ficava distante a princesa de
va histórias lindas. A lenda da galinha consolando. naquele espaço. A cada dia eu me encolhia Angola, o carinhoso apelido de família.
d’angola era a minha preferida: A verdade é que sem a Bisa em mais, longe da proteção do meu castelo. O nome Rosa Luanda também esteve per-
aquela kerere, gritando “tô casa, eu me tornei um proble- As crianças também me estranhavam. dido naquela escola. Quando aprendi a
fraco, tô fraco” porque se ma, pois ninguém podia lar- Eram perversas em suas brincadeiras, escrever, passei a assinar Rosa L. Raras
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achava feia, e sendo ajudada gar o emprego para ficar feriam-me, ironizando meu nome. Erra- pessoas perguntavam o que esse L. abre-
por Dandalunda para se tor- comigo. Resolveram, então, ram seu nome, Rosa Luanda? Era Rosa viava. Estavam me ensinando a me defen-
nar bonita, me dizia que sem- que eu iria para uma escola Luana que você ia se chamar? Eu tinha von- der da exclusão, de uma forma perversa,
pre era possível mudar algu- que ficava perto de onde tade de gritar que eu me chamava Rosa negando minha origem africana.
ma coisa que não ia bem. A Vovó trabalhava. Ficaria nela Luanda sim, Rosa Luanda, princesa de Quando Vovó se aposentou, senti o alí-
Bisa me contava histórias que o dia inteiro, até completar o Angola. Queria gritar que Luanda existia, vio de poder deixar aquele lugar e voltar
vinham de muito tempo e de pouco tempo que faltava para que ficava na África, que era a capital de para minha antiga escola. Dandalunda,
muito longe, contadas e reconta- Vovó se aposentar. Ela traba- Angola, a terra dos antepassados do meu sorrindo, soprou em meus ouvidos que
das por gerações, ligando-me lhava numa oficina de cos- pai. Mas eu não falava nada. O olho ardia, sempre era possível mudar o que não ia
a uma África de lendas e tura, onde o trabalho era o nó na garganta me impedia de dizer bem. Rosa Luanda renascia, consciente de
griots com um elo tão tênue tanto que ela trazia serviço alguma coisa e eu me calava, sofrida. sua afrodescendência e de sua brasilidade.
como nuvens de algodão. para terminar em casa, à Nessa hora, essa África que marcava terri- Princesa de Angola e do Brasil.
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Essas histórias já eram afro- noite. Lembro das muitas tório em meu nome e em minha pele me
brasileiras, pois a Bisa preen- vezes em que, após a partida sufocava com correntes tão fortes como as Notas:
chia com fatos lidos nos jornais da Bisa, eu acordava com o que prendiam os pés e o pescoço dos 1Rosa Morena (1960): composição de Dorival
as lacunas que a memória ia furtivamente renc-renc-renc da velha máquina de meus antepassados escravizados. Sentia o Caymmi.
construindo. E ela dava um jeito de me costura. Vovó então me dizia que peso da cor da minha pele. Queria fugir 2 Mestre-sala dos Mares (1975): composição de
fazer entrar nas aventuras que contava. dormisse, que ela ficaria acordada daquele lugar, onde, nas festas, as prince- João Bosco e Aldir Blanc.
Eu era, então, Rosa Luanda, princesa tomando conta do meu sono. Dizia- sas que cantavam e dançavam eram outras, 3 Morena de Angola (1980): composição de Chico
de Angola. De uma Angola que a Bisa me também que sossegasse, que tudo lindas e loiras. Eu me sentia feia, desajei- Buarque de Hollanda.
só conheceu pelas histórias daria certo na nova escola. tada e sem graça. Pensava em Dandalun-
contadas pelos parentes mais Ela percebia o meu medo do da. Por que ela não vinha me ajudar?
velhos que ela, mas da qual escuro misturando-se ao meu Naquela escola, a África era apenas um
ela sentia imensa saudade. medo de enfrentar a nova celeiro de negros e embrutecidos escravos. Sueli de Oliveira Rocha é coordenadora, na
Banzo - brincava meu pai, situação, e procurava me acal- Em nada se parecia com a África das his- Baixada Santista, do Programa de Leitura da
quando a via triste - Isso é mar. Nada lhe escapava, ela tórias da Bisa. Aquela África ia ficando Petrobras-RPBC pela Leia Brasil, ONG de pro-
banzo! E em seguida, ele dis- estava em todos os lugares, cada vez mais distante. Para não me sentir moção da leitura. É também membro da equipe
sertava sobre o tempo em que sempre cuidando para que tudo excluída do grupo, aos poucos fui encon- pedagógica do Gruhbas Projetos Educacionais
os negros escravizados no estivesse bem. Imagino que a trando meios de anular a minha descen- e Culturais e do conselho editorial dos jornais
Brasil morriam de saudade da Bisa deva ter aproveitado para dência africana. Defendia-me do isola- “Bolando Aula”, “Bolando Aula de História” e
África. escapulir para o céu de Angola mento buscando identificar-me com o res- “Subsídio”.
74 75
Princesa descombinada
Janaína Michalski

Oguntê, Marabô No porto de Santos, sem ainda imaginar


Caiala e Sobá que estava sendo abençoada por todos os

A
Oloxum, Ynaê santos, minha mãe, aquela menina, fez uma

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Janaína e Yemanjá promessa. Sem nem saber o que era pro-


São rainhas do mar... messa ainda. Inconformada por não conse-
Lenda das Sereias, letra de Marisa Monte guir pronunciar um “a” na língua daqui,
numa rasgada necessidade de se recons-
truir, fazer laços e criar novas raízes ela
jurou: dominaria o português.

Não te arrependas (fragmento)


h, o mar! Quanto mistério há Depois que ela se formou em Letras e
nessa imensidão de generosas águas... virou mestre em Literatura Brasileira, eu
Para mim o mar nunca significou sepa- nasci. No Rio Grande do Sul, durante as
Rhea Sílvia, a virgem princesa, vai descuidosa ração, mas união. Foi ele quem construiu festas juninas, minha mãe me vestia de
Buscar água ao Tibre, e o Deus dela se apossa. essa terra hoje chamada Brasil, ao trazer prenda gauchesca. Depois, quando fomos
Assim Marte gerou os seus filhos! — para cá mais de dez milhões de africanos na morar em Rondônia, porque ela foi lecio-
Uma loba amamenta era colonial e quase seis milhões de imi- nar na universidade de lá, descobrimos os
Os Gêmeos, e Roma nomeia-se princesa do mundo.
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grantes de vários países do mundo, a partir vestidos de lese, que me transformavam
do século XIX. numa princesinha caipira. Mais tarde, em
Johann Wolfgang von Goethe, in "Elegias Romanas" Mas em 1956 foi que o mar trouxe para Brasília, nas apresentações de balé clássico,
o Brasil a pessoa mais importante de todas ela dizia que a única diferença entre mim e
as pessoas importantes trazidas por ele. as bonecas russas das caixas de música é
Minha mãe. Ela e a família embarcaram no que eu sorria.
primeiro navio possível, após o ultimato de Cresci indo às praias, aos igarapés, às
um governo nazista do Egito. Foi uma via- serras e às cachoeiras de todo o Brasil.
gem longa, com uma parada de um mês na Festejávamos Pessach, Natal, Hosh Hashaná,
Itália, por causa de doença na família, e São João. Comíamos acarajé, mousse de
mais um mês a navegar. Metade desse cupuaçu, feijoada, caldeirada de tucunaré,
tempo, a menina de 11 anos levou para tabule com quibe cru. Eu estava sempre no
enxugar as lágrimas e se conformar com as meio das feiras, das capoeiras, dos sambas e
raízes arrancadas. Na outra metade da via- das óperas que ela adorava ouvir especial-
gem, ela se dedicou a estudar a língua do mente enquanto limpava a casa.
país no qual chegaria. Passou dias e noites Eu já era quase uma professora, quando
mergulhada no único livro em língua portu- uma zombação me tirou o rumo. “Janaína
guesa que havia no navio. Uma gramática Didio Michalski! Que nome esquisito, nada

76 77
de português de Portugal. combina com nada!”, gargalharam minhas
Princesas africanas e algumas histórias
colegas da escola de normalistas no Rio de tempo. Àquela confusão empacotada de

Tiely Queen (Atiely Santos)


Janeiro. Concordei com elas e achei que mim mesma ela disse ser brasilidade: um
deveria me chamar Sarah, Veruska ou infinito de cores, pessoas, lugares, formas,
Natasha. Tive uma crise de identidade que sons. Dentro desse infinito, não haveria a
parecia não ter fim: Sou judia? Cristã? possibilidade de me centrar. Infinitos não
Espírita? Não tenho sotaque, não tenho têm centro. E são belos porque são uma
cara de estrangeira, não me pareço com mistura e não uma combinação de coisas. E
Como a luta só termina quando existe um egípcio e que desempenhou o papel de
uma brasileira... Janaína não combina com também não têm explicação porque a bele-
vencedor metrópole cultural, artística e econômica do
Didio que não combina com Michalski! za nem sempre se traduz em palavras.

H
Yansã virou rainha da coroa de Xangô Mediterrâneo Oriental. Ela era egípcia de

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“Eu não sou daqui”, gritou meu coração. Sentindo-me enlaçada no balanço das
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Mas Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar nascimento, mas de dinastia macedônica.
E com um enorme pacote de tudo o que ondas do mesmo mar que a trouxe para o
Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar Sua família estabelecera-se no Egito em 305
eu tinha sido e achava que não era mais ou Brasil, ouvi de minha mãe que eu era sua
A Deusa dos Orixás (Romildo/Toninho), a.C., quando o general macedônio Ptolomeu
do que eu ainda era e achava ser um com- promessa cumprida: sua Janaína, sua brasi-
intérprete: Clara Nunes. tomou o título de rei. Filha do rei Ptolomeu
pleto absurdo, bati à porta de minha mãe. lidade, sua raiz aqui. E que isso era mesmo
XII Auleta e da rainha Cleópatra V, ela che-
Reclamei da descombinância do nome, da muito difícil de explicar. Mas que se eu
gou ao poder do trono egípcio quando o pai,
incoerência das escolhas, das múltiplas mesma ou outro alguém insistisse em que-
á séculos, rainhas e reis, prínci- antes de falecer, nomeou-a e ao irmão como
cidades, do singular sincretismo de reli- rer saber, era para eu simplificar dizendo
pes e princesas da grande mãe África marca- os novos soberanos do Egito. Mulher de uma
giões, da falta de centro no meu interior. que ela veio do Egito, na África. E que sou
ram presença na história de seus países e inteligência incomparável, teve a vida trans-
Com uma calma de maré baixa, a douto- Janaína, uma princesa africana.
mesmo na de outros, seja trazidos(as) acor- formada em história que foi contada por
ra em Ciências da Linguagem me disse que
rentados(as) em grandes navios negreiros, diversos escritores e apresentada ao público
eu era apenas Janaína, uma princesa. E Janaína Michalski é jornalista e escritora. É
seja marcando seus espaços de direito nas sob vários formatos, de livros a filmes. A con-
princesas não precisam ser de lugar nenhum autora de “Onde o Sol não Alcança”, livro que
terras que sempre lhe pertenceram. vite de César e a contragosto dos romanos,
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porque são de todos os lugares ao mesmo será lançado em breve pela editora Nova Fronteira.
A diversidade étnica sempre esteve pre- passou um tempo em Roma, onde César
sente na representatividade desses grupos mandou fazer-lhe uma estátua de ouro, que
monárquicos espalhados por todo o conti- foi colocada no templo da deusa Vênus.
nente africano. A pluralidade e o formato Após o assassinato de César, Cleópatra voltou
dessas famílias reais “temperaram” a história para o Egito onde seu marido morre miste-
mundial de várias maneiras. Decisões políti- riosamente. Assim, ela chegou ao poder,
cas e religiosas foram estabelecidas, partindo tendo o filho como co-regente. Em 30 a.C.,
de influências e/ou colaborações dos africa- em Alexandria, Cleópatra morre vítima de
nos que se fizeram presentes como subjuga- uma picada de serpente. Com sua morte, o
dos ou como chefes de seus estados. Muitas Egito torna-se província de Roma.
dessas personalidades reais viraram mitos ou A princesa de origem bantu, Anastácia,
santas que servem de exemplo, ou que são que teve sua existência colocada em dúvida
citadas em situações diversas. por falta de provas e documentos a seu res-
Para dar início à viagem, entre rainhas e peito, é outro exemplo. Mas, para o povo e
princesas, recorremos a uma das mais conhe- para alguns historiadores(as) sobre o tema,
cidas na história mundial, Cleópatra VII, que a escrava Anastácia existiu sim. Conta-se que
nasceu no ano de 69 a.C., em Alexandria, chegou ao Brasil em uma caravela de nome
cidade fundada por Alexandre, numa região “Galanga”, junto com uma família real africa-

78 79
pantanosa onde ficava o baixo império na e mais 120 negros. Nesse navio negreiro
estava outra figura importante de nossa his- antropólogos que buscavam a compreensão fugiu para um quilombo e foi viver junto nina de caráter religioso, existente nas socie-
tória: um negro que ficou conhecido como daquele momento histórico que caracterizou das pessoas que não aceitavam a escravidão dades tradicionais yorubás. Expressam o
Chico Rei no Ciclo do Ouro da Região de a destreza política e de armas dessa rainha e lutavam contra aquela opressão e sofri- poder feminino sobre a fertilidade da terra,
Ouro Preto. Delmira foi arrematada por 1000 africana que lutou a favor da resistência à mento. No quilombo que tinha seu nome, a procriação e o bem-estar da comunidade.
réis. Foi violentada por um homem branco, ocupação dos portugueses do território ango- todos e todas a queriam bem. Além de ser Essas mulheres fazem um papel importantís-
assim que desceu do navio. Desse ato de vio- lano e contra o tráfico de escravos. Contem- uma grande guerreira que defendia o qui- simo na sociedade em que vivem.
lência foi que nasceu Anastácia, em Pompeu, porânea de Zumbi dos Palmares, este outro lombo e ajudava na fuga e libertação de Na atualidade, há também as histórias que
Minas Gerais. Com olhos azuis e muito bela, herói afro-brasileiro (?-1695), ambos parecem escravos, Alafiá era uma grande contadora são contadas ou cantadas pelos nossos artis-
Anastácia resistiu como pôde às insistências compartilhar de um tempo e de um espaço de histórias. Sempre que podia, ela reunia tas populares, nas quais as princesas são cita-
do senhor da fazenda em que era escrava, comum de resistência: o quilombo. Na as crianças do quilombo para contar histó- das de forma muito interessante, como foi o
mas acabou sendo violentada pelos filhos mesma época em que Nzinga lutava no terri- rias da sua terra, Daomé, e da criação do caso da Escola de Samba Salgueiro (Rio de
dele. Devido ao ciúme das mulheres e filhas tório angolano por seu país, Zumbi lutava no mundo através das histórias dos Orixás. Janeiro) e de outra escola no Espírito Santo.
do senhor da fazenda, recebeu no rosto uma território brasileiro pela liberdade dos negros Outro momento interessante relacionan- E como não poderia deixar de citar, há
máscara de ferro, cuja manutenção era feita escravizados. A Rainha Nzinga já foi tema do do a história de princesas africanas e nossa também as rappers, guerreiras da cultura
por suas opressoras, que só permitiam a reti- Carnaval do Bloco Afro Ilú Obá de Min, de diversidade cultural é o das princesas mar- Hip Hop que, em suas composições, con-
rada da máscara para que ela se alimentasse. São Paulo, formado somente por mulheres roquinas, mulheres e concubinas de Muley templam variados assuntos ligados à Mãe
Muito debilitada, vítima das feridas causadas percussionistas. Abdessalam, príncipe herdeiro do trono do África. Auto-intituladas rainhas e princesas
pela máscara e pela coleira que carregara por Além de Anastácia, tivemos no Brasil a Marrocos. Muley era o quinto filho de negras, algumas nem são negras na pele,
anos, Anastácia faleceu no Rio de Janeiro. princesa Alafiá, que veio para nosso país em Mohamed III, que reinou de 1757 a 1790 e mas em seus antecedentes familiares a pre-
Devido à sua resistência contra o povo bran- um navio negreiro junto com sua família e tomou Mazagão, uma possessão portuguesa sença do negro é muito forte. Hoje em dia,
co que a sacrificava, Anastácia é considerada muitos irmãos negros, seqüestrados do reino no norte da África. Por contingências de são essas mulheres que evocam em seus tra-
santa e mártir pela população. de Daomé, um reino africano situado onde uma viagem por mar, a comitiva do príncipe balhos - dança, grafite ou produção musical
Como estamos falando de princesas, agora é o Benin. Naquela época, ela tinha Muley Abdessalan formada por 221 pessoas, - a ancestralidade do povo africano e dos
peço licença para citar uma grande persona- apenas doze anos de idade. No Brasil, foi entre elas a esposa - a princesa Laila Amina -, antepassados, dando continuidade à histó-
lidade africana, figura que marcou vários paí- viver numa fazenda, onde foi mucama de príncipes e princesas filhos do casal, escra- ria, mantendo-a viva e sempre presente.
ses na sua época: Nzinga Mbandi Ngola, rai- uma sinhazinha. Sempre quando conseguia, vos, eunucos etc. aportou em Portugal.
nha de Matamba e Angola nos séculos XVI- Alafiá ia à senzala ver se algum de seus Padre Frei João de Sousa relata de forma Notas:
XVII (1587-1663), foi uma das mulheres e irmãos negros necessitava ajuda, mas a liber- detalhada várias situações passadas pela Outras rainhas que não tiveram seu histórico cita-
heroínas africanas cuja memória mais tem dade era tudo o que seu povo mais queria comitiva do príncipe em terras portuguesas. do, mas que podem ser pesquisadas pelos leitores(as):

desafiado o processo diluidor da amnésia, (Isso não nos faz lembrar de “A Escrava Isaura”, Essas princesas, que se tornaram rainhas • Rainha Hatshepsut, que governou o Egito, viven-
dando origem a um imaginário cultural não o romance de Bernardo Guimarães que virou de seu povo, fazem parte de um espaço do no século XV a.C.;

só na diáspora, mas também no folclore bra- telenovela?). Alafiá vivia na casa grande, mas existente em nossa história onde desfilam • Rainha Makeba Oubsheba de Axum, Etiópia, 960 a.C.;
sileiro, com o nome de Ginga. Nzinga é cul- não se achava melhor que os escravizados muitas personalidades reais, não somente na • Rainha Candace, do Sudão, que enfrentou o
tuada pelos modernos movimentos naciona- que ficavam na senzala; ela também sabia atualidade, mas nos tempos passados, quan- exército de Augusto César.
listas de Angola como a heroína angolana que era uma escrava e o fato de estar na casa do tiveram grande força e atuação. Na reli-
das primeiras resistências. Despertou um grande, comendo e dormindo melhor, não a gião, por exemplo, existe a Gelede, original- Tiely Queen (Atiely Santos) é atriz, arte-edu-
crescente interesse dos historiadores e tornava diferente. Ao completar 19 anos, mente uma forma de sociedade secreta femi- cadora e desenvolve atividades na cultura Hip
Hop. Coordena o Projeto “Mulheres do Hip Hop
cantam as realidades” e o Setor de Audiovisual
da CUFA/SP (Central Única das Favelas, com
sede no Rio de Janeiro). www.hiphopmulher.com.br
80 81
Bibliografia

A
África e princesas: livros e filmes

África - estamos tão acostuma- África


dos a nos referirmos ao mais antigo conti-
nente no singular, que muitas vezes nos ÁFRICA, de Ilan Brenman, editora Moderna.

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Este volume contempla contos populares africa-
esquecemos de como ela é plural. O cha-
nos de diversas regiões da imensa mãe África.
mado berço da humanidade é também a
“Ananse acordou um dia decidida: - Quero ser a
casa de ricas e diversas culturas. Parte delas contadora de histórias oficial da África. Naquela
chegou ao Brasil no triste balanço dos época, o dono das histórias era Nyankonpon, o
porões negreiros, mas aqui esta deus do céu. Ananse pediu uma audiência
semente floresceu sua exuberân- com o todo-poderoso detentor das
cia, lutando contra todas as narrativas africanas.”
adversidades. E hoje, todo
A ÁFRICA EXPLICADA A
brasileiro, independente-
MEUS FILHOS, de Alberto da
mente de sua carga genética,
Costa e Silva, editora Agir. A
carrega dentro de si uma África sempre serviu de inspira-
parte da magia da África. ção para filmes e livros que fica-
E as princesas, mais do ram na memória de várias gera-

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que ficcionais ou reais, são ções. Mas ainda há muito que
meninas e mulheres com quem as dizer – e que aprender – sobre esse
brasileiras de todas as idades podem continente. Neste livro, o historiador
Alberto da Costa e Silva nos mostra não somen-
encontrar semelhanças e diferenças. E não
te por que a África é fascinante, mas também
são justamente as semelhanças e diferenças
por que nossa trajetória está intimamente ligada
que nos ajudam a sermos nós mesmos?
ao seu povo.
Aqui tentamos reunir uma parte do que,
felizmente, tem chegado cada vez mais às A ÁFRICA, MEU PEQUENO CHAKA…, de
livrarias e bibliotecas. Com certeza deixa- Rosa Freire Aguiar, editora Companhia das Letri-
mos de fora muitos livros, mas esse é o pro- nhas. Vovô Dembo é um africano muito alto e
blema das listas. Então, que esta bibliogra- muito sábio. E ele quem conta ao neto Chaka a
fia seja um começo e não um fim. história da sua África: a infância pobre numa
família de catorze irmãos, o pastoreio das cabras,
Fechamos com uma pequena filmogra-
as pescarias no rio barrento, as festas, as comi-
fia. Infelizmente pequena, pois apesar do
das, as plantações de amendoim e batata-doce.
sucesso do cinema brasileiro dentro e
fora do Brasil, ainda são poucos os filmes AGBALA, UM LUGAR CONTINENTE, de
que retratam essa parte de nossa história Marilda Castanha, editora Cosac Naify. A autora
e cultura. Bem, por falta de boas histórias traça um novo olhar sobre a trajetória dos negros

82
desde a chegada ao Brasil, durante a escravidão, e
83
é que não é.
convida o leitor a adentrar na cultura desses ELEGUÁ, de Carolina Cunha, editora SM. descobre que seu pêlo, antes amarelo com pinti- muitos anos. Algumas delas podem ser encon-
povos tão importantes para a formação da identi- O mais poderoso orixá entre a Terra e o Céu é o nhas, está preto como a noite, e fica apavorado. tradas em outras partes do mundo, em diferen-
dade do nosso país. O livro expõe singularidades menor de todos os heróis iorubás. Mesmo sendo tes versões. Gcina Mhlophe é uma das mais
como: por que os negros eram obrigados a dar criança, é o primeiro da família a ser saudado, o A GÊNESE AFRICANA – CONTOS, MITOS populares contadoras de história da África do Sul.
voltas ao redor de árvores antes de deixar o con- primeiro que recebe oferendas. Essa história E LENDAS, de Leo Frobenius e Douglas C.
tinente africano rumo à escravidão no Brasil? conta por que sua fama corre tão Fox, editora Landy. A origem do IFÁ – O ADIVINHO/ XANGÔ, O TROVÃO/
longe. homem, à maneira como os primei- OXUMARÉ, O ARCO-ÍRIS, de Reginaldo Pran-
BICHOS DA ÁFRICA, de Rogério de Andra- ros africanos a conceberam. As pin- di, editora Companhia das Letras. Embora
de Barbosa, editora Melhoramentos. São quatro A ENXADA E A LANÇA - A turas rupestres da África pré-histó- fazendo parte de uma trilogia, esses livros são
volumes que trazem lendas sobre diversos ani- ÁFRICA ANTES DOS PORTU- rica integram os mitos, lendas e independentes e contam os principais mitos dos

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mais de diferentes partes do continente africano. GUESES, de Alberto da Costa e Silva, fábulas. A mesma força criativa des- orixás pertencentes às tradições afro-brasileiras:
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editora Nova Fronteira. O autor apóia-se em ponta na expressividade de seus traços e de Exu, Ogum, Oxóssi, Erinlé, Logum Edé,
BOM DIA, CAMARADAS, de Ondjaki, edi- vastíssimo material arqueológico, antropológico seus conteúdos. Essas pinturas também escre- Ossaim, Nanã, Omulu, Oxumarê, Eua, Iroco,
tora Agir. Um menino, filho de um alto funcio- e histórico desconhecido no Brasil e em sua pró- vem as histórias que as lendas contam. Xangô, Obá, Iansã, Oxum, Iemanjá, Ibejis, Ajalá,
nário do governo angolano, tem uma vida privi- pria vivência pessoal, pois trabalhara durante Ifá, Odudua, Oxaguiã e Oxalá. Histórias que o
legiada e tem contato com as idéias do povo, por muitos anos na África, como diplomata. O livro GOSTO DE ÁFRICA – HISTÓRIAS Brasil herdou da África e que hoje fazem parte
intermédio de seu pajem, “o camarada Antonio”. trata de povos que deixaram poucos documentos DAQUI E DE LÁ, de Joel Rufino dos Santos, de nosso patrimônio cultural.
escritos; trata também de territórios imensos, editora Global. Histórias daqui e da África con-
O CHAMADO DE SOSU, de Meshack quase não pesquisados. tam mitos, lendas e tradições negras. Com um LENDAS DA ÁFRICA, de Julio Emilio Braz,
Asare, editora SM. Sosu percebe que sua aldeia olhar crítico e afetuoso, o autor fala também editora Bertrand Brasil. Com adaptação de várias
corre perigo com a chegada de uma grande tem- FILHOS DA PÁTRIA, de João de de personagens da história do Brasil histórias do “tempo em que os animais ainda
pestade. Sem poder andar, ele utiliza seu tambor Melo, editora Record. Uma reflexão e de um tempo de escravidão, luta e falavam”, o livro é uma mistura de aventura com
para dar o importante aviso. profunda e cuidada sobre os filhos liberdade, ajudando-nos a com- humor e traz as lições de sabedoria característi-
do território angolano e seus com- preender melhor nossa cultura. cas desse folclore.
OS CHIFRES DA HIENA E OUTRAS HIS- plexos destinos é o ponto central de
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TÓRIAS DA ÁFRICA OCIDENTAL, de Mama- cada um dos dez contos de Filhos da O HERÓI COM ROSTO AFRI- LENDAS E FÁBULAS (Vol. I, II, III e IV),
dou Diallo, editora SM. Diversas histórias da tra- Pátria. CANO - MITOS DA ÁFRICA, de Clyde W. de Rogério de Andrade Barbosa, editora Melho-
dição oral africana reunidas em um livro em que Ford. Editora Summus / Selo Negro. Uma longa ramentos. Nas sociedades africanas que ainda
os traços humanos estão presentes nos animais. ESPELHO DOURADO, de Heloisa Pires viagem pela sabedoria africana, e em especial não têm escrita, a tradição e a história desses
Lima, Editora Peirópolis. A história se passa por pela rica mitologia do grande continente negro. povos são transmitidas em belas narrativas por
CRIANÇAS – OLHAR A ÁFRICA E VER O volta do ano de 700 d.C., no reino medieval de Clyde W. Ford faz distinção entre as lendas velhos sábios, chamados griots. Debaixo de uma
BRASIL, de Pierre Verger, editora IBEP. As Gana, território localizado na curva do rio Niger. populares e os mitos africanos. As lendas, árvore ou em volta de uma fogueira, homens,
fotos de Pierre Verger revelam a beleza da cultu- Espelho Dourado remete o leitor à crença segundo ele, são essencialmente histórias para mulheres e crianças se reúnem para ouvir essas
ra africana e a força de sua influência na música, achanti de que os mortos habitam um mundo divertir. Os mitos, não. Esses contêm símbolos narrativas envolventes, que divertem e, ao
na dança, na comida, nas roupas, nas artes e em que é a imagem espelhada do mundo dos universalmente reconhecíveis, com significa- mesmo tempo, transmitem costumes e valores
muitos outros costumes brasileiros. O título, por vivos. Os dois mundos encontram-se ção psicológica e espiritual. Os mitos morais.
si mesmo, explica a importância deste livro. nos sonhos. apresentados no livro, que é ilustra-
do com um mapa detalhado dos MADE IN ÁFRICA, de Luís da Câmara Cas-
O DIA EM QUE ZUMBI TOMOU O RIO, de O GATO E O ESCURO, de Mia povos e dos mitos da África, provêm cudo, editora Global. No início da década de
Eduardo Agualusa, editora Gryphus. Os morros Couto, editora Companhia das de muitas fontes. 1960, Luís da Câmara Cascudo empreendeu
do Rio de Janeiro estão ardendo. Aproxima-se o Letrinhas. Pintalgato vive sendo aler- uma longa viagem de estudos pela África Oci-
dia em que a guerra descerá sobre os bairros tado pela mãe para que não ultrapasse a fron- HISTÓRIAS DA ÁFRICA, de Gcina dental e Oriental. Em convívio com o cotidiano
ricos da cidade. Um jornalista - anão, negro e teira do dia. Mas ele, louco para descobrir o que Mhlophe, editora Paulinas. Esse livro reúne da vida africana, o pesquisador teve oportunida-
homossexual - mergulha no incêndio dos mor- se esconde sob a sombra da noite, decide se algumas histórias africanas bastante tradicionais, de de constatar as imensas afinidades espirituais,
ros cariocas em busca de respostas a perguntas aventurar e acaba tendo um encontro inusitado que têm em comum a característica de serem culturais e mágicas que unem Brasil e África.
que poucos se atrevem a colocar. com o escuro. Quando volta para a luz do dia, contadas de geração em geração, há muitos e
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MÃE ÁFRICA – MITOS, LENDAS, FÁBU- reunidos neste livro vêm de cinco países de lín- Princesas more com ela em Angola! Lá você encontrará
LAS E CONTOS, de Celso Sisto, editora Paulus. gua portuguesa, situados em distantes pontos da muitas das raízes do Brasil e dos brasileiros.
Uma rica coletânea de histórias africanas feita África: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, ALMA DA ÁFRICA (A CASA DA ÁGUA/ O
com base em ampla pesquisa, com o objetivo de Moçambique e São Tomé e Príncipe. REI DE KETO/ TRONO DE VIDRO), de Antonio A BONEQUINHA PRETA, de Alaide Lisboa
ressaltar a diversidade de etnias do continente Olinto, editora Bertrand Brasil. A trilogia de Oliveira, editora Lê. A bonequinha preta é a
africano. O autor selecionou 29 histórias originá- A SEMENTE QUE VEIO DA começa com o retorno da família da melhor amiga da menina Mariazinha, mas tam-
rias de diversos lugares da África, procurando ÁFRICA, de Heloisa Pires Lima, jovem Mariana à África. Neta de bém é muito levada e apronta muita confusão.
privilegiar histórias ainda não publicadas em editora Salamandra. O baobá uma escrava, mas nascida no Brasil,
português. Os leitores encontrarão aqui uma (adansonia) é considerado na África a menina vai descobrir suas raízes BRUNA E A GALINHA D’ANGOLA, de
festa plural de cores, nomes, belezas, sabores, “a árvore da palavra”. De beleza em uma terra ainda estranha a ela. Gercilga S. de Almeida, editora Pallas. Narra

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feitos e fantasias africanas, os quais exercem rara e tamanho descomunal, ele se tor- como a terra ficou segura, e como Bruna e suas
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muita influência na cultura brasileira. nou um símbolo da África em sua luta para ANA E ANA, de Celia Godoy, editora DCL. amiguinhas da grande aldeia chamada Terra se
manter a integridade cultural de seus povos. Ana Carolina e Ana Beatriz eram gêmeas idênti- afeiçoaram a Conquém, na beleza de sua pele
NAÇÃO CRIOULA, de Jose Eduardo Agualu- Diz-se que dele se colhem histórias. cas... mas eram iguais só por fora! Esta história escura pintada de pequenas bolas brancas.
sa, editora Gryphus. Nos finais do século XIX, a encanta pela delicadeza com que aborda a
misteriosa ligação entre o aventureiro português TERRA SONÂMBULA, de Mia Couto, editora “igualdade” e as diferenças entre gêmeos idênti- CARMEN / AÍDA, de Adèle Geras, editora
Carlos Fradique Mendes, cuja correspondência Companhia das Letras. Um ônibus incendiado em cos e os sentimentos que acabam esquecidos. Salamandra. A ópera Aída narra a história de
Eça de Queirós recolheu, e Ana Olímpia Vaz de uma estrada poeirenta serve de abrigo ao velho uma princesa etíope feita escrava pelos egípcios.
Caminha, que, tendo nascido escrava, foi uma das Tuahir e ao menino Muidinga, em fuga da guerra UM ANO NOVO DANADO DE BOM, de Ninguém sabe sua identidade, mas mesmo
pessoas mais ricas e poderosas de Angola. civil devastadora que grassa por toda parte em Angela Lago, editora Moderna. Quatro assim ela desperta o amor de um valoroso guer-
Moçambique. O veículo está cheio de irmãs, princesas africanas, são feitas reiro. Essa série traz o libreto em linguagem
UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASA corpos carbonizados. Mas há também escravas. Em uma noite, três delas acessível às crianças. A edição traz também a
CHAMADA TERRA, de Mia Couto, editora um outro corpo à beira da estrada, escapam, mas deixam para trás a ópera Carmen.
Companhia das Letras. O estudante universitá- junto a uma mala que abriga os mais nova, ainda um bebê. O
rio Marianinho volta à ilha de Luar-do-Chão “cadernos de Kindzu”, o longo diário remorso das mais velhas com o CHICA QUE MANDA, de Agripa Vasconce-
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depois de anos de ausência: Ele fora incumbido do morto em questão. A partir daí, as abandono da irmãzinha vai desenca- los, editora Itatiaia. Mais que um romance bio-
de comandar as cerimônias fúnebres do avô Dito duas histórias são narradas paralelamente. dear uma história mágica. gráfico, Chica que Manda vale por um completo
Mariano, de quem recebera o nome. Marianinho estudo da vida, dos costumes e da política de
logo descobre que o falecimento do avô havia TUMBU, de Marconi Leal, editora 34. Um ANTÔNIO E CLEÓPATRA, de William sua época.
permanecido estranhamente incompleto, escon- garoto africano atravessa o Oceano Atlântico Shakespeare, várias editoras. Produzida em 1607,
dendo desígnios que escapavam à força dos escondido em um navio para tentar encontrar os esta tragédia tem como tema a relação entre o CONTOS E LENDAS AFRO-BRASILEI-
homens. Nesse romance, a situação de conflito pais, raptados e vendidos a traficantes negreiros militar romano Marco Antônio e Cleópatra, a RAS, de Reginaldo Prandi, editora Companhia
entre a deriva da África pós-colonial e o arraiga- por uma tribo rival. Inocente, mas inteligente e célebre rainha do Egito. O casal sonhava com o das Letras. Adetutu, uma jovem mãe africana, é
mento das tradições ganha retrato exemplar audacioso, Tumbu não fazia idéia dos sofrimentos estabelecimento de um grandioso império no aprisionada por caçadores de escravos e trans-
numa saga familiar poética e fantástica. e das aventuras que viveria em solo brasileiro. oriente, mas seus planos são interrompi- portada ao Brasil em um navio negreiro. Duran-
dos por Otávio Augusto, um dos te a viagem, ela sonha com a criação do mundo
SABORES DA ÁFRICA, de Dorinda Hafner, O VENDEDOR DE PASSA- líderes do Império Romano. pelos orixás, deuses de seu povo. Os contos e
editora Selo Negro. Receitas deliciosas e histórias DOS, de Jose Eduardo Agualusa, lendas mostrados em seus sonhos fazem parte
apimentadas da vida da autora, que reúne segre- editora Gryphus. Esta é a história BIA NA ÁFRICA, de Ricardo do patrimônio mitológico iorubá, que o Brasil
dos de culinária, lendas, cantigas e provérbios. de um albino que mora em Luanda, Dregher, editora Moderna. Bia é herdou da África e que aqui se preservou ao
Mais do que a rica mistura, o tempero capricha Angola, e que traça árvores genealógi- filha de uma diplomata e viaja com a longo de mais de um século, contado de boca
no humor irreverente das mulheres africanas. cas em troca de dinheiro. Estranho ofício, mãe por diferentes partes do mundo: África, em boca, transmitido de geração a geração.
estranho o personagem principal - Félix Ventu- Europa, Ásia... Nessas viagens, ela conhece mui-
O SEGREDO DAS TRANÇAS E OUTRAS ra, o vendedor de passados falsos - e mais estra- tas das influências que outros países trouxeram A COR DA VIDA, de Semíramis Palermo,
HISTÓRIAS AFRICANAS, de Rogério de nho ainda o narrador: uma osga, um tipo de para o Brasil. Prepare suas malas e viaje com a editora Lê. O livro de imagens narra o encontro
Andrade Barbosa, editora Scipione. Os contos lagartixa. de uma menina negra e um menino branco em
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Bia para a África. Conheça o Egito e o Quênia e
um shopping center. Através do olhar das duas LUANA – A MENINA QUE VIU O BRASIL A OVELHA NEGRA, de Bernardo Aibe, seu reino foi invadido por homens que possuíam
crianças se aprende o respeito às diferenças. NENÉM, de Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino, editora Mercury. Tita era uma ovelha diferen- armas de fogo. A menina, seus pais, que eram
editora FTD. Luana é uma heroína afro-brasi- te... Ela queria ser igual às suas amigas. Queria, rei e rainha da cidade e muitos de seus irmãos
DOCE PRINCESA NEGRA, de Solange de leira. Ela tem oito anos, corpinho ágil e gracio- mas não era.... Será que ser igual a todo mundo foram seqüestrados e escravizados em uma
Azevedo Cianni, editora LGE. Este é um dos so, sorriso doce e adora lutar capoeira. Com é tão bom assim? terra muito distante.
títulos da série Orgulho da Raça, dedicada ao seu berimbau mágico, ela se trans-
prazer de oferecer livros que auxiliem o traba- porta para outras épocas e lugares, PARA CONHECER CHICA DA A PRINCESA ANÁSTACIA, de Elma Neves,
lho de educador, para a construção da identida- levando o leitor a descobertas ina- SILVA, de Keila Grimberg, Lucia editora DCL (Difusão Cultural). Quando Anas-
de negra, principalmente na infância. creditáveis. Grimberg e Anita Correia Lima de tácia era pequena, lhe deram um mundo em
Almeida, editora Jorge Zahar. Em preto-e-branco. Desde então, ela vive entre tons

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DÚVIDAS, SEGREDOS E DESCOBER- LUANA – CAPOEIRA E LIBER- estilo leve e agradável, usando acinzentados, mas sabe que existe uma grande
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TAS, de Helena Carolina, editora Saraiva. Um DADE, de Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino, recursos ficcionais, as autoras narram a vida diversidade de cores e até tem uma predileta,
olhar poético sobre os pequenos e grandes editora FTD. Desta vez Luana nos mostra que de Chica da Silva, uma das mulheres mais que vê apenas quando fecha os olhos. Para não
momentos, sobre as tristezas e alegrias, pois mais que uma dança, mais que uma luta, a conhecidas na história do Brasil. O livro perder de vista seu tom de cor preferido, ela
quem tem arte e amor no coração enxerga, num capoeira é uma expressão de liberdade. reconstitui os eventos históricos da época, as desceu as escadarias do castelo, atravessou
olhar pela janela, mais do que ruas, carros e legislações, as formas de escravização, o tráfico muralhas e portões de ferro para alcançá-la.
pessoas. Enxerga amores e desamores, alegrias, MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA, de de escravos e o trabalho negro nas minas. Agora Anastácia quer misturá-la no mundo
fantasias, poemas e versos. Ana Maria Machado, editora Ática. Este livro já todo!
é um clássico. É irresistível o coelhinho branco PEIXE DOURADO, de Jean-Marie Gustave
ELA / AYESHA, A VOLTA DE ELA, de que quer se tornar negro como a menina Le Clezio, editora Cia. das Letras. A vida de PRINCESA ARABELA, MIMADA QUE SÓ
Henry Rider Haggard, ed. Record. O autor de linda do laço de fita. Laila, raptada aos seis anos de ELA, de Mylo Freeman, editora Ática. O que
As Minas do Rei Salomão narra a busca de dois idade e vendida no Marrocos a dar de presente para uma princesinha mimada
exploradores ingleses pela misteriosa e imortal NA TERRA DOS GORILAS, Lalla Asma, velha judia de origem que tem muito mais do que precisa? A rainha
rainha branca africana em dois livros que se de Rogério de Andrade Barbosa, espanhola. A compradora se torna pergunta a Arabela o que ela quer ganhar de
tornaram clássicos da literatura de aventura. editora Melhoramentos. Helena para ela, ao mesmo tempo, sua aniversário. Ora, simplesmente um elefante de
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ganha um prêmio da ONU e visita a dona e sua avó. Quando a avó verdade! Assim, os pais da pequena tirana
A FILHA DO REI, de Telma Guimarães África juntamente com um grupo de jovens morre, oito anos depois, Laila pode voltar movem mundos e fundos para atender tal
Castro de Andrade, editora SM. Raquel não de outros países. Chegando lá, enfrenta proble- para casa, mas um par de brincos em forma de capricho.
conhece o pai. Sua mãe diz que ela é filha de mas que envolvem questões sociais e ecológicas meia-lua é tudo o que a liga a seu povo. A
um rei que lhe faz todas as vontades. Só que de da região. Vive fortes emoções entre estranhos busca a leva à França, aos Estados Unidos e de PRINCESAS ESQUECIDAS OU DESCO-
longe. Até que um dia Raquel decide conhecer costumes tribais, guerrilhas de fronteira e pig- volta à África, o ponto de partida, onde a vida NHECIDAS, de Philippe Lechermeier, editora
de verdade este rei. Já que ele pode tudo, quem meus caçadores, antes de encontrar o amor. pode então recomeçar. Salamandra. Uma galeria de diferentes tipos de
sabe não pode ajudar nas contas do mês? Ou princesas e suas peculiaridades desfila pela
comprar o remédio que a mãe precisa? Ou, NEGRINHA, de Monteiro Lobato, editora PRETINHA, EU?, de Julio Emilio Braz, edi- poesia feita de palavras e imagens. Essas prin-
quem sabe, só ser um pai normal por algum Globo. O conto que dá título ao livro narra a tora Scipione. Uma menina negra ganha uma cesas podem estar no oriente, nos desertos e
tempo? triste história de uma menina que bolsa de estudos em um colégio bem perto de você.
sempre foi tratada como coisa, mas onde nunca havia entrado um
HISTÓRIAS DA PRETA, de Heloisa Pires que se descobre gente ao aprender aluno negro. A partir daí começa QUARTO DE DESPEJO, de Carolina Maria
Lima, editora Cia das Letrinhas. Reunindo a brincar com uma boneca. Com uma história de preconceitos, mas de Jesus, editora Ática. Os cadernos dessa cata-
informações históricas, reflexão intelectual, esse livro, Lobato denuncia e des- também de descobertas. dora de lixo foram publicados em diversos idio-
estímulos ao exercício da cidadania e histori- nuda os bastidores de uma sociedade mas e emocionaram milhares de pessoas pelo
nhas propriamente ditas (tiradas da mitologia patriarcal que deixa entrever os vestígios de A PRINCESA ALAFIÁ, de Sinara Rúbia, mundo. No relato de sua luta cotidiana, Caroli-
africana), a autora fala sobre a população negra uma persistente mentalidade escravocrata, Grupo Cultural Vozes da África. Era uma vez na demonstra uma dignidade admirável.
no Brasil, com a experiência de quem já foi mesmo décadas após a abolição. uma princesa chamada Alafiá, que morava no
alvo de racismo. reino de Daomé no continente africano. Certo O TESOURO DA CHICA DA SILVA, de
dia, durante uma festa na cidade da princesa, Antonio Callado, editora Nova Fronteira. Minas
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Gerais, ciclo do ouro. Chica da Silva, ex-escrava, CHICO REI, de Agripa Vasconcelos, editora Foi conhecido por usar seu talento de poeta e no marrom, mas fala também de um menino
vive cercada de suas mucamas e do luxo patroci- Itatiaia. História ou lenda, a saga de Chico Rei, orador a serviço da causa abolicionista. A obra cor-de-rosa. Eles são dois perguntadores inve-
nado pelo seu amante. A chegada de um repre- que foi rei na África e escravo em Vila Rica; e, “Os Escravos” é um livro póstumo, conjunto de terados e vão descobrir juntos os mistérios das
sentante do reino de Portugal ao arraial do Tiju- liberto, lutou pela alforria de seus conterrâneos. composições tendo como núcleo temático o cores.
co põe todo esse fausto em perigo. A obra faz problema da escravidão.
parte do chamado Teatro Negro, do dramaturgo DE ONDE VOCÊ VEIO, de O MENINO NITO, de Sonia Rosa, editora
e romancista Antonio Callado. Liliana Iacocca, editora Ática. Quais IRMÃO NEGRO, de Walcyr Pallas. Nito é um menino muito querido, mas
são as origens do povo brasileiro? Carrasco, editora Moderna, 1995. O muito chorão. Até que, um dia, o pai lhe diz que
AS TRANÇAS DE BINTOU, de Sylviane A. Seus avós e bisavós são negros, narrador da história, Leo, é filho homem não chora. O menino passa a engolir o
Diouf, editora Cosac & Naïf. O sonho de Bintou, índios, portugueses, alemães, árabes, único e sempre desejou ter irmãos. choro, mas ele acaba adoecendo.

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uma menina africana, é ter tranças como todas japoneses...? Diversas nacionalidades, A mãe dele recebe uma carta, por
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as mulheres mais velhas de sua aldeia. Mas, costumes, religiões, línguas e histórias contri- meio da qual, chocada, fica sabendo que sua MESTRE BIMBA, CORPO DE MANDINGA,
como ainda é criança, tem de se contentar com buíram para a formação do povo do nosso país. irmã falecera, deixando um filho, Sérgio, que de Muniz Sodré, editora Manati. Segundo o autor,
os birotes. está abandonado, vivendo nas ruas. A mãe de semiólogo e pensador, mas também capoeirista e
DOM OBÁ II D’ÁFRICA, O PRÍNCIPE DO Leo viaja para Salvador e de lá traz o sobrinho, amigo de Bimba, “Mestre Bimba e sua capoeira
VALENTINA, de Márcio Vassalo, editora POVO, de Eduardo Silva, editora Cia das Letras. que deverá ser incorporado à família como foram, no conjunto, uma expressão da ironia obje-
Global. “Valentina morava num castelo, na beira Original, divertido e erudito, este livro narra a “irmão” de Leo. Sérgio é negro e a convivência tiva do negro na Bahia, do negro no Brasil”.
do longe, lá depois do bem alto.” Assim começa saga verídica de Cândido da Fonseca Galvão, se mostra difícil: o menino é faminto e calado.
a encantadora história dessa princesa bem dife- filho de africano forro, aclamado pelos morado- Assusta-se com facilidade. Desconhece vida de O MULATO, de Aluísio Azevedo (várias edi-
rente daquelas dos contos de fadas, mas igual a res da “África Pequena” - os populosos bair- classe média. É discriminado pelos amigos toras). O amor entre o jovem Raimundo e sua
milhões de princesinhas brasileiras. ros negros do Rio de Janeiro - como de Leo e sofre preconceito quando prima Ana Rosa é impedido pela origem do

Nosso Brasil africano


Dom Obá II d’ África, o príncipe sai a passear com ele. O menino rapaz. Ele na verdade é filho de uma escrava
do povo, que, de fraque, cartola e negro possui também um segredo. com seu senhor. Mesmo uma educação européia
pince-nez, freqüentava assidua- Só quando Leo consegue descobrir e um futuro promissor não são o bastante para
O ANJO NEGRO, de Nelson Rodrigues, edi- mente as audiências públicas de seu afeto pelo irmão negro o misté- acabar com o preconceito contra o rapaz.
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tora Nova Fronteira. A peça, que esteve sob cen- D. Pedro II. rio é revelado.
sura durante dois anos, narra a polêmica história NA VENDA DA VERA, de Hebe Coimbra,
de Ismael - negro que renega a própria cor - e ENTRE EUROPA E ÁFRICA: A INVEN- JOSÉ MOÇAMBIQUE E A CAPOEIRA, de editora Manati. Na venda da simpática Vera ven-
de sua mulher, Virgínia, branca filicida que não ÇÃO DO CARIOCA, organizado por Antonio Joaquim de Almeida, Cia das Letrinhas. O diam-se vidros de vento, mas o menino Ivan des-
aceita a prole mestiça gerada na relação com o Herculano Lopes, editora Topbooks. Este livro autor parte de um pequeno conto para falar das confia dessa história.
marido. não é de literatura, mas uma obra de referência, origens, da evolução e dos fundamentos da
contendo o resultado de um seminário realiza- capoeira, que hoje não se restringe ao Brasil, NINGUÉM É IGUAL A NINGUÉM, de Regi-
BERIMBAU MANDOU TE CHAMAR, de Bia do pela Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janei- mas é estudada e praticada em pontos distantes na Otero, Editora do Brasil. Que ninguém é igual
Hetzel, editora Manati. Vários versos e cantigas ro, reunindo especialistas em diversas áreas da do planeta, como Dinamarca, Israel e Japão, a ninguém todo mundo já sabe. A novidade do
de capoeira que, de maneira alegre, estimulam cultura. O carnaval carioca, a música, a entre outros. texto é que ele mostra como é gostoso a gente ser
os menores a conhecer uma rica parte da cultura dança, o teatro, o circo, a literatura, a o que é, sentir o que sente e viver como vive, ape-
brasileira. fotografia, o cinema, os monumen- LUIZ GAMA, de Myriam Fraga, sar da opinião dos outros. Além disso, o persona-
tos, a vida boêmia e a repressão na editora Callis. A história do extraor- gem Tim traz uma proposta lúdica muito especial.
BRUNO ZUMBI, de Angela Cristina Mar- cidade são alguns dos temas trata- dinário mulato baiano que, com
ques, editora Lê. Diário de um adolescente dos por autores como Isabel Lusto- muita determinação e inteligência, POEMAS NEGROS, de Jorge de Lima, edi-
comum e ao mesmo tempo especial. Bruno, sa, José Ramos Tinhorão e Roberto venceu os obstáculos da escravidão, tora Record. Num único volume quatro obras
rapaz negro, convive com a dubiedade da socie- Moura. defendeu os seus direitos e batalhou pela poéticas de Jorge de Lima: Novos poemas (1929),
dade, disfarçadamente racista. Ele é um jovem liberdade. Poemas escolhidos (1932), Poemas negros (1947)
herói do cotidiano, como tantos que passam des- OS ESCRAVOS, de Castro Alves, editoras e Livro de sonetos (1949), que revelam a versati-
percebidos e podem até ser destruídos pelo pre- L&PM e Martin Claret. Castro Alves é a maior MENINO MARROM, de Ziraldo, editora lidade e a verve lírica do poeta.
conceito e pela incompreensão. figura literária da terceira geração romântica. Melhoramentos. Esta é a história de um meni-
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UMA REDE PARA IEMANJÁ, de Antonio ÁFRICA E BRASIL AFRICANO. Marina de IGUALDADE DAS RELAÇÕES ÉTNICO- debates e trabalhos didáticos. Os autores (mais
Callado, editora Nova Fronteira. Grávida e Mello e Souza, São Paulo: Editora: Ática, 2007, RACIAIS NA ESCOLA, de Ana Lucia Silva de trinta), foram escolhidos pela sua atuação
abandonada pelo marido, Jacira está à procura 2ª edição. A autora traça um amplo panorama Souza e Camilla Croso (coord.), ed. Peiropolis. profissional e afinidade com as questões étni-
de uma rede onde deitar e dar à luz. Vagando do continente africano, com suas diversas Reconhecendo o potencial da Lei nº 10.639/03, a co-raciais, com o cinema, ou com ambas as coi-
pela praia, encontra um senhor que faz preces sociedades locais, sua história e cultura, Ação Educativa, o Ceert e o Ceafro, em parce- sas. São profissionais de áreas bem diferentes,
a Iemanjá, rogando à Rainha do Mar que lhe antes e depois da escravidão. Retrata ria com o Movimento Interfóruns de de diferentes locais do país, o que dá à publi-
traga de volta o filho desaparecido. Da relação as conseqüências da importação de Educação Infantil do Brasil (Mieib) cação um colorido muito peculiar.
entre Jacira e o velho homem nasce uma bela quase 5 milhões de escravos africa- e o Núcleo de Relações Étnico-
história, um verdadeiro auto de Natal de inspi- nos ao longo de mais de 300 anos Raciais e de Gênero da Secretaria NEGROS E POLÍTICA (1888-1937), de
ração afro-brasileira. Escrita em 1961, “Uma de história do Brasil, mostrando as Municipal de Educação de Belo Flávio Gomes, Jorge Zahar Editora, 2005. Nar-

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rede para Iemanjá” compõe, juntamente com marcas de um legado cultural que até Horizonte, uniram forças para ideali- rativas historiográficas cristalizaram a imagem
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“A revolta da cachaça”, “O tesouro de Chica da hoje exerce grande influência em nossa zar e aplicar uma consulta em escolas públicas do negro como personagem social pouco mobi-
Silva” e “Pedro Mico”, o teatro negro de Anto- sociedade. que pudesse assinalar as possibilidades e os lizado e excluído dos processos de participação
nio Callado. desafios para a implatanção da referida Lei. política. Esse livro, ao contrário, apresenta
DICIONÁRIO LITERÁRIO AFRO-BRASI- várias organizações negras que propuseram
ZUMBI, de Joel Rufino dos Santos, editora LEIRO, de Nei Lopes, editora Pallas, 2007. A IMAGINÁRIO, COTIDIANO E PODER, de políticas públicas e inserção institucional, dia-
Global. Neste livro, Joel Rufino nos oferece, obra trata de elementos vários vinculados à pre- Vagner Gonçalves da Silva (Org.). Coleção logaram com setores da elite e com visões de
mais do que a biografia de um personagem que sença do negro na arte literária do Brasil. Não Memória Afro-brasileira. Vol. III, São Paulo: cidadania e nação nas primeiras décadas do
lutou pela liberdade dos negros no Brasil escra- constitui, entretanto, […] “um dicionário de Summus /Selo Negro, 2007. Terceiro livro da século XX.
vocrata, uma verdadeira radiografia do mundo Literatura brasileira”. Vai além. Relaciona e coleção Memória Afro-brasileira, a obra traz
ocidental. Ao analisar a estrutura dessa socieda- identifica, em função dela, autores, artigos com a história de figuras len- UM OLHAR NEGRO SOBRE O BRASIL,
de, examinando o núcleo familiar, a hierarquia obras, manifestações paraliterárias, dárias que deram importante contri- de Edson França, José Carlos Ruy, Manoel
de classes e a noção de riqueza então vigente, instituições, figuras e fatos históri- buição para a formação da identida- Julião Vieira. Editora Anita Garibaldi, 2007. O
desvenda para o leitor a ideologia que criou e cos, personagens marcantes, ismos de das comunidades afro-brasileiras. racismo brasileiro tem singularidades próprias,
fundamentou, durante séculos, o mais cruel sis- e estudiosos de questões ligadas à Entre as histórias está a de Gabriel decorrentes da formação histórica do país e do
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tema de escravidão que a história do Ocidente já afrodescendência. Joaquim dos Santos, nascido em povo, e que negam a existência, aqui, de uma
registrou. 1892 e morto em 1985, referência para a alegada “democracia racial”. Um olhar negro

Para saber mais


HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASI- população negra do Brasil. Homem de muitos sobre o Brasil discute o tema de forma avança-
LEIRA, de Regiane Augusto de Mattos, editora dons, construiu uma das mais belas obras de da e moderna, abrangendo diferentes aspectos
Contexto, 2007. A Lei nº 10.639 tornou obriga- arquitetura espontânea do país, feita com restos da questão. Ele traz um conjunto de ensaios de
ALFABETO NEGRO, de Cristina Agostinho tório o ensino da história e cultura afro-brasi- de materiais e refugos domésticos. A Casa da caráter sociológico, histórico, político e cientí-
e Rosa Margarida de Carvalho Rocha. Editora leira nas escolas. Esse fato foi considerado um Flor, tombada como patrimônio cultural, é fico que compõe um rico mosaico de idéias
Mazza, 56p. Manual, 20p. O alfabeto negro é um importante passo pelos movimentos de luta dos ponto turístico da cidade de São Pedro da Aldeia, para que possamos entender o papel da luta
instrumento concreto de valorização da diversi- negros em todo o país. Guia esclarecedor e no Rio de Janeiro. contra o racismo no Brasil e intensificá-la.
dade ética e cultural do país em consonância abrangente, pensado e elaborado de forma
com os objetivos dos Novos Parâmetros Curri- didática tanto para professores quanto NEGRITUDE, CINEMA E O SORTILÉGIO DA COR, de Elisa Larkin
culares do MEC, no que tange aos seus temas para alunos, este livro vem preen- EDUCAÇÃO: caminhos para a Nascimento, editora Selo Negro, 2003. Colo-
transversais. O alfabeto negro municia, em cher justamente essa lacuna. A implementação da Lei 10639/2003, cando o problema da identidade no centro de
especial, professores e alunos, e leitores em obra mostra que, apesar dos obstá- organizado por Edileuza Penha de sua análise, a autora mostra que a identidade
geral, para o combate às idéias preconceituosas culos impostos pela escravidão no Souza, Mazza Edições, 2007. (vol. 1 não é apenas um conceito teórico, mas se
que secularmente produzem e reproduzem Brasil, os africanos e seus descen- e 2). Como o cinema pode introdu- manifesta concretamente na realidade social
visões estereotipadas sobre os negros, e que dentes encontraram meios para se organizar zir debates interessantes nas salas de aula? brasileira. O livro descreve a recusa dos afro-
legitimam práticas discriminatórias que conspi- e manifestar suas culturas e, assim, influencia- Os livros apresentam um rol de filmes que descendentes em ver sua identidade diluída em
ram contra a democracia e a igualdade de direi- ram profundamente a sociedade brasileira podem ajudar os professores nessa tarefa, pois uma homogeneidade cultural ditada pela bran-
tos e oportunidades em nossa sociedade. como um todo. traz uma espécie de roteiro de leitura dos fil- quitude e pelo universalismo europeu.
mes, com sugestões de encaminhamento dos
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Filmes CHICO REI, direção de Walter Lima Jr., HOTEL RUANDA (Hotel Rwanda), direção QUANTO VALE OU É POR QUILO, direção
1985. Em meados do século XVIII, Galanga, de Terry George, EUA/Itália/África do Sul, 2004. de Sergio Bianchi, 2005. A partir do conto “Pai
AMISTAD, direção de Steven Spielberg, rei do Congo, é aprisionado e vendido como Durante a guerra civil de Ruanda, um gerente contra mãe”, de Machado de Assis, e de registros
EUA, 1997. Dezenas de escravos negros se escravo. Trazido da África num navio negreiro, de hotel tenta salvar pessoas de um massacre em judiciais da época da escravidão, o cineasta traça
libertam das correntes e assumem o comando recebe o cognome de Chico Rei e vai traba- meio à indiferença da ONU e da comunidade uma crítica à herança da escravatura e a indús-
do navio negreiro La Amistad. Eles sonham lhar nas minas de ouro de um desa- internacional. tria da miséria na sociedade brasileira contem-
retornar para a África, mas desconhecem nave- feto do governador de Vila Rica. porânea.
gação e se vêem obrigados a confiar em dois Escondendo pepitas no corpo e KIARA, CORPO DE RAINHA,
tripulantes sobreviventes, que os enganam e nos cabelos, Galanga habilita-se a produção da ONG Djumbay, 2001. QUASE DOIS IRMÃOS, direção de Lúcia
fazem com que, após dois meses, sejam captu- comprar sua alforria e, após a des- O curta-metragem aborda a cons- Murat, 2005. Miguel é um senador da República

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rados por um navio americano, quando desor- graça do seu ex-senhor, adquire a trução de uma identidade racial não que visita seu amigo de infância Jorge, que se
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denadamente navegaram até a costa de Con- mina Encardideira, tornando-se o primeiro negra por crianças negras, levando em consi- tornou um poderoso traficante de drogas do Rio
necticut. Os africanos são inicialmente julgados negro proprietário. Ele associa-se a uma deração os programas infantis. de Janeiro, para lhe propor um projeto social
pelo assassinato da tripulação, mas o caso toma irmandade para ajudar outros negros a com- nas favelas. Apesar de suas origens diferentes,
vulto e o presidente americano, que sonha ser prarem sua liberdade. KIRIKU E A FEITICEIRA (Kirikou et la sor- eles se tornaram amigos nos anos 50, pois o pai
reeleito, tenta a condenação dos escravos. Os cière), direção de Michel Ocelot, (Franca/Bélgica/ de Miguel tinha paixão pela cultura negra e o pai
abolicionistas vencem, no entanto o governo UM GRITO DE LIBERDADE (Cry Freedom), Luxemburgo), 1998. Kiriku, um menino que de Jorge era compositor de sambas. Nos anos 70,
apela e a causa chega à suprema corte america- direção de Richard Attenborough, Inglaterra, nasceu para lutar e combater o mal, enfrenta o eles se encontram novamente, na prisão de Ilha
na. Este quadro faz o ex-presidente John Quin- 1987. A história real de Steve Biko, jovem líder poder da Karabá, a feiticeira maldosa e seus Grande. Ali as diferenças raciais eram mais evi-
cy Adams, um abolicionista não-assumido, sair negro em luta contra o apartheid na África guardiões. Kiriku aprende em sua luta que a dentes: enquanto a maior parte dos prisioneiros
da sua aposentadoria voluntária, para defender do Sul. A história é contada sob a origem de tanta maldade é o sofri- brancos estava lá por motivos políticos, a maioria
os africanos. ótica de um jornalista branco que mento e só a verdade, o amor, a dos prisioneiros negros era de criminosos comuns.
aos poucos se conscientiza da generosidade e a tolerância, aliados
ANTÔNIA – O FILME, direção de Tata situação e também é perseguido. à inteligência, são capazes de vencer QUILOMBO, direção de Cacá Diegues, 1984.
Amaral, 2006. Originado de uma minissérie Drama biográfico e épico grandilo- a dor e as diferenças. Em torno de 1650, um grupo de escravos se
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televisiva, o filme se passa na periferia de São qüente bem ao gosto do diretor, rebela num engenho de Pernambuco e ruma ao
Paulo, onde quatro jovens mulheres negras sobre racismo e violência. Baseado em dois A NEGAÇÃO DO BRASIL, direção de Quilombo dos Palmares, onde uma nação de ex-
batalham pelo sonho de viver de sua música, o livros do jornalista Donald Woods. Joel Zito Araújo, 2000. O documentário traça escravos fugidos resiste ao cerco colonial. Entre
hip-hop. Mas quando o sonho de fazer algo da um painel da participação do negro como ator eles, está Ganga Zumba, príncipe africano e
vida parece tomar corpo, as viradas de um coti- A HORA DO SHOW (Bamboozled), direção e personagem das telenovelas brasileiras, desde futuro líder de Palmares.
diano marcado pela pobreza, pela violência e de Spike Lee, EUA, 2000. Pierre Delacroix é “O direito de nascer” até o fim do século XX.
pelo machismo ameaçam o grupo. um escritor de séries de TV que não agüenta Ele traz entrevistas com importantes atores O XADREZ DAS CORES, direção de Marco
mais a tirania de seu chefe. Sendo o único negros que refletem sobre seus próprios papéis, Schiavon, 2004. Curta metragem. Cida, uma
CAFUNDÓ, direção de Paulo Betti e Clóvis empregado negro da companhia, Delacroix dentro e fora da TV. mulher negra de quarenta anos, vai trabalhar
Bueno, Brasil, 2005. João de Camargo viveu nas resolve propor a idéia mais absurda que con- com uma velha de oitenta anos, viúva e sem
senzalas em pleno século XIX. Após deixar de seguira imaginar: um programa de PRINCESA DE ÁFRICA, direção filhos, que é extremamente racista. Mas um jogo
ser escravo, fica deslumbrado com o mundo em TV estrelado por dois mendigos de Juan Laguna, Espanha, 2008. de xadrez pode mudar a relação entre as duas.
transformação ao seu redor e desesperado para negros que denunciariam o este- Este belo documentário infelizmen- Disponível no site www.portacurtas.com.br
viver nele. O choque é tanto que faz com que reótipo e o preconceito do negro te ainda não tem previsão de distri-
João tenha alucinações, acreditando ser capaz de na televisão americana, exatamente buição no Brasil. Ele acompanha XICA DA SILVA, direção de Cacá Diegues,
ver Deus. Misturando suas raízes negras com a com o intuito de ser demitido. Mas a uma família de griots e a bailarina 1976. Escrava que, durante o ciclo de ouro, na
glória da civilização judaico-cristã, João passa a surpresa é que o programa em questão não espanhola Sonia, que muda seu destino ao se atual e rica cidade de Diamantina, viveu um
acreditar que é capaz de curar e realmente acaba apenas se torna realidade como passa a ser um tornar a terceira esposa do chefe do clã de artis- grande amor com o homem mais importante da
curando. Ele torna-se então uma das lendas bra- grande sucesso entre o público americano. tas senegaleses. região, ganhou sua alforria e se tornou uma das
sileiras, popularizando-se como o Preto Velho. figuras mais conhecidas do Brasil.

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