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Trajetória acadêmica e pensamento sociológico:

entrevista com Bernard Lahire*

O sociólogo Bernard Lahire é professor da gado a viver permanentemente em dúvida so-


École Normale Supérieure Lettres et Sciences bre a pertinência das diferentes teorias socio-
Humaines e Diretor do Grupo de Pesquisa sobre lógicas (que são ensinadas em outras universi-
Socialização (CNRS / Universidade de Lyon 2). Sua dades mais “monocromáticas”, sob o espírito de
obra mais conhecida no Brasil é o livro Sucesso catequese).
escolar nos meio populares: as razões do impro- Proveniente de um ambiente popular, vindo de
vável, publicado pela Ática em 1997. Essa entre- um dos bairros operários de Lyon, o estudo da
vista foi concedida por e-mail a Maria da Graça sociologia agiu sobre mim como uma revelação.
Jacintho Setton, professora da Faculdade de Cheguei à universidade com os questiona-
Educação da USP, que também fez as notas mentos e as inquietações próprias à minha si-
explicativas e a revisão técnica da tradução. tuação de trânsfuga de classe, e nela encontrei
a sociologia, que começou a me trazer respos-
Educação e Pesquisa: Parece interessante que tas satisfatórias. Rapidamente comecei a viver a
o senhor nos conte sobre sua formação acadê- sociologia como uma vocação e de forma apai-
mica e trajetória profissional, onde o senhor xonada. Para mim não se tratava de uma sim-
estudou, qual foi seu ponto de partida, quais ples formação acadêmica e de um simples per-
são suas principais atividades e posição atual curso em busca de um diploma, mas de uma
no meio universitário francês. verdadeira experiência íntima, existencial, vital.
Percorri todas as etapas sem saber muito bem
Bernard Lahire: Sou, como já disse, um produ- aonde iria chegar (e, por vezes, sem saber exa-
to puro da “universidade de massa”. Sem dúvi- tamente o que viria depois), mas tinha a im-
da, como você sabe, o sistema do ensino supe- pressão de viver um privilégio enorme (e qua-
rior na França se distingue pela existência de se ilegítimo) ao passar meus dias (e por vezes
um percurso nobre (classes preparatórias para também minhas noites) construindo meu olhar
as Grandes Écoles)1 e um percurso escolar mais e minha profissão de sociólogo.
comum (universidade). Eu ingressei na univer- Essa dedicação inicial e freqüentemente consi-
sidade (a de Lyon 2) e aí construí o essencial derada “irracional” só podia produzir efeitos
de meus conhecimentos sociológicos. bastante positivos na aquisição de conhecimen-
O ensino de sociologia em Lyon sempre foi tos. Sendo assim, percorri as diferentes etapas
marcado pela existência de uma pluralidade de com relativa facilidade, sempre trabalhando
escolas teóricas com as quais tive de me con- intensamente, e em seguida tive a oportunida-
frontar desde o início do curso. Nenhum dos de de obter um posto de mestre de conferên-
grupos de professores — nem as diferentes ca- cias (aos 29 anos) e, sobretudo, de professor
tegorias de marxistas, nem os bourdieusianos, universitário (aos 31 anos), bastante jovem. Fui
nem os interacionistas, nem os foucaultianos,
nem alguns dos tourainianos que lá estão... — * Tradução do francês de Eugênio Vinci de Moraes e Maria A. C. Cappello.
era maioria de fato na universidade. Na verda- 1. Trata-se de um curso preparatório para o ingresso em uma seção particular
do sistema de ensino francês, as “Grandes Escolas”, estabelecimentos de
de, era um tanto desconcertante para os estu- ensino superior que preparam para as posições de poder do aparelho de Estado
dantes de sociologia, que ouviam discursos ou do setor privado. São instituições altamente seletivas, nas quais se ingressa
muito diferentes e contraditórios, mas penso mediante concurso. Entre elas podemos citar: Escola Central, Escola Politéc-
nica, Escola Nacional de Administração, Escola de Altos Estudos Comerciais,
hoje que foi uma sorte para mim ter sido obri- Instituto Nacional Agronômico e as Escolas Normais Superiores.

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ainda beneficiado, entre 1995 e 2000, com EP: Quais são os autores que lhe parecem mais
excelentes condições de trabalho para realizar importantes no que diz respeito à sociologia da
pesquisas no Instituto Universitário da França2 cultura e da educação na França durante esses
(um tipo de Collége de France 3 descentraliza- últimos anos? E por quê?
do). E, finalmente, em 2000, fui admitido na BL: A sociologia da educação e da cultura na
Escola Normal Superior de Letras e Ciências França conheceu seus dias de glória nos anos de
Humanas, quando esse estabelecimento deixou 1960-1970 com os trabalhos orientados por
a região parisiense para se estabelecer em Lyon. Pierre Bordieu e Jean-Claude Passeron. Desde os
É nesse espaço intelectual privilegiado (para o anos 1980 ela só vem perdendo influência (e
qual a seleção é particularmente severa) que eu interesse). A sociologia da cultura francesa está
ensino e pesquiso atualmente. tão em baixa que, recentemente, para retomar a
Em relação à sociologia havia ainda tudo a ser discussão sobre sociologia da cultura (em meu
feito, uma vez que cheguei com a possibilidade último livro intitulado La Culture des individus.
de recrutar os colegas com os quais eu iria tra- Dissonances culturelles et distinction de soi5 ),
balhar. Sou o responsável pela sociologia desde o precisei recorrer mais a trabalhos estrangeiros do
início. Montei ali também um laboratório ligado que franceses. Autores norte-americanos como
ao CNRS,4 intitulado Grupo de Pesquisa sobre a Paul Di Maggio ou Richard A. Peterson, como
Socialização, que dirijo desde janeiro de 2003. também os autores que publicam na excelente
revista holandesa Poetics, Journal of Empirical
EP: Quais são os autores ou as escolas de pen- Research on Culture, the Media and the Arts me
samento que marcaram sua formação acadêmica? inspiraram mais do que os sociólogos da cultu-
BL: Se eu interpretar sua questão em um sen- ra francesa em voga ou bastante influentes no
tido amplo e não apenas no sentido mais po- meio acadêmico, que têm em mente apenas uma
sitivo, fui marcado, como já lhe disse ante- obsessão: fazer tudo para esquecer os trabalhos
riormente, por autores bastante diferentes e, de Pierre Bourdieu. O problema é que em ciên-
em muitos casos, opostos. Freqüentei o curso cia (tanto nas ciências sociais quanto nas demais)
de um dos tradutores franceses de Erving não se pode desprezar o passado, sobretudo
Goffman (antigo foulcaltiano convertido ao quando este foi tão fecundo.
interacionismo), mas também os cursos de
marxistas ortodoxos ou heterodoxos, como o EP: Como o senhor vê a influência atual da so-
de alunos diretos ou indiretos de Pierre ciologia francesa no mundo? Onde o senhor
Bourdieu. Mas os autores que mais me impres- situaria a vanguarda da sociologia moderna, se
sionaram foram, aleatoriamente, o lingüista e é que ela existe?
filósofo russo Mikhail Bakhtin, o lingüísta suiço
Ferdinand de Saussure, o filósofo francês
2. O Institut de France, criado em 1795, é um organismo altamente
Michel Foucault, Maurice Merleau-Ponty (que prestigiado no sistema de ensino francês e congrega várias instituições do
foi professor de meu orientador de doutorado), ensino superior. Está diretamente ligado ao Ministério da Educação do país.
3. O Collège de France é uma instituição de ensino atípica. Está sob a
o antropólogo inglês Jack Goody, o sociólogo responsabilidade do chefe de Estado, que delega sua tutela ao Ministério da
e economista alemão Max Weber e, evidente- Educação. Seus cursos não são ministrados de maneira convencional, ou
seja, não sofrem nenhum tipo de regulação, inscrição ou avaliação. Mais
mente, o sociólogo francês Pierre Bourdieu. informações podem ser encontradas em Almeida, A. O Collège de France
Como eu me interessava muito pelas relações e o sistema de ensino francês . In: CataniI, A. e Martinez, P. (Org.). Sete
entre linguagem, pensamento e classes sociais, ensaios sobre o Collège de France. São Paulo: Cortez, 1999.
4. Centro Nacional de Pesquisa Científica, instituição de pesquisa vincu-
li também com bastante prazer autores como lada ao Ministério da Educação francês, que congrega vários grupos de
Benjamim Lee Whorf, Edward Sapir, William estudo e pesquisa, em parceria com professores do ensino superior ou
pesquisadores autônomos.
Labov, Basil Bernstein, John Gumperz tanto 5. La Culture des individus. Dissonances culturelles et distinction de soi.
quanto os já citados anteriormente. Paris: La Découverte, 2004.

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BL: Questões espinhosas! Para falar da influên- ceses. Que relações o senhor estabeleceria en-
cia da sociologia francesa no mundo seria pre- tre educação e cultura?
ferível consultar alguém que não fosse francês. BL: Meus primeiros trabalhos referiam-se, com
Tenho uma convicção profunda (mas talvez eu efeito, ao fracasso escolar de crianças de meios
seja muito otimista) de que quando uma so- populares na escola primária, levando em conta
ciologia é intrinsecamente poderosa (de um pon- a especificidade da cultura escrita escolar (Culture
to de vista teórico e empírico) ela necessaria- écrite et inégalités scolaires. Sociologie de l’
mente vai além das fronteiras nacionais dentro “échec scolaire” à l’école primaire6 ). Sustentei a
das quais nasceu. Acredito que as coisas boas se hipótese de que a origem das dificuldades esta-
difundem pelo boca a boca e graças aos pesqui- va diretamente ligada à natureza da cultura esco-
sadores mais puros que têm um amor real pelo lar e ao tipo de contribuição à linguagem (mais
trabalho científico bem feito. reflexiva, distanciada, meta-linguística) que a es-
Quanto à questão de saber onde eu situo a crita tornou possível. Posteriormente procurei
vanguarda da sociologia moderna, eu respon- observar aquilo que dizia respeito aos adultos dos
deria, com o risco de parecer arrogante, que meios populares, seus usos da escrita (seu modo
todo o meu esforço atual tende para o objeti- de apropriação dos textos; suas práticas domés-
vo de representar esse pólo inovador. Como ticas e profissionais da escrita) e descobri, nesse
dizia Kuhn, “os inovadores eficazes” são aque- meio tempo, uma extraordinária divisão sexual das
les que se apropriam da tradição (os “jogos” do tarefas domésticas que envolviam a escrita: as
passado) e que descobrem novas regras e no- mulheres dos meios populares escreviam muito
vas peças de um jogo, com as quais podem mais que seus parceiros ( La Raison des plus
continuar a jogar. Os sociólogos franceses são faibles. Rapport au travail, écritures domestiques
freqüentemente obnubilados pela oposição a et lectures en milieux populaires).7
Pierre Bourdieu e se esfalfam negando as con- A partir disso procurei encontrar casos impro-
tribuições desse autor, que, no entanto, perma- váveis de sucessos em meios populares para
neceu por vinte anos na vanguarda da socio- compreender as razões que fazem com que se
logia francesa. Minha escolha foi sobretudo de tenha sucesso ali onde, estatisticamente, se
afrontar essa sociologia, de me apropriar dela deveria fracassar (Tableaux de familles. Heurs et
e de transformá-la do interior. No início tudo malheurs scolaires en milieux populaires ). 8
não passava de apresentar algumas nuanças, Como eu trabalhava paralelamente no Observa-
mas pouco a pouco cheguei a inventar algo tório da Vida Estudantil, em Paris, também to-
como uma nova maneira de pensar o mundo mei por objeto as formas de estudar e as prá-
social segundo uma escala individual, ou seja, ticas culturais extra-escolares dos jovens que
levando sistematicamente em conta as varia- seguiam os estudos superiores ( Les Manières
ções inter-individuais e intra-individuais dos d’étudier). 9 Enfim, acabei por tomar como ob-
comportamentos. Minhas próprias interroga- jeto os discursos públicos que tratam das difi-
ções são originárias da superação crítica (em- culdades de escrever dos franceses, discursos
pírica e teórica) da teoria do habitus. que me parecem carregar verdadeiros fantasmas

EP: O senhor poderia explicar as pequenas mas 6. Culture écrite et inégalités scolaires . Sociologie de l’ “échec scolaire”
significativas transformações sofridas ultima- à l’école primaire. Lyon: PUL, 1993.
mente por seus objetos de pesquisa? Inicial- 7. La Raison des plus faibles. Rapport au travail, écritures domestiques
et lectures en milieux populaires. Lille: Pul, 1993.
mente o senhor havia trabalhado no domínio 8. Tableaux de familles. Heurs et malheurs scolaires en milieux populaires.
da sociologia da educação, nos meios popula- Paris : Gallimard/ Seuil, Hautes Études, 1995. Traduzido no Brasil como
Sucesso Escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo:
res e, mais recentemente, o senhor se debruçou Atica, 1997.
sobre a questão das práticas culturais dos fran- 9. Les Manières d’étudier. Paris: La Documentation Française, 1997.

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sociais sobre as “classes iletradas” considerando- nas quais a família não tem mais o monopólio
as como novas classes perigosas (L’invention de da educação legítima das crianças. O argumen-
l’ “illetrisme”. Rhétorique publique, éthique et to que eu desenvolvo em L’Homme pluriel12 é
stigmates).10 que se definimos o habitus como um sistema
Direta ou indiretamente, meu trabalho sempre homogêneo de disposições gerais, permanentes,
esteve no entrecruzamento de uma sociologia sistemas transferíveis de uma situação à outra,
da educação e da cultura. Mais recentemente, de um domínio de práticas a outro, então cada
no entanto, abri um grande campo de pesquisa vez menos agentes de nossas sociedades serão
sobre a relação dos franceses com a cultura definíveis a partir de um tal conceito. Esse tipo
legítima, que retomou a questão abordada por de definição convém melhor para sociedades
Pierre Bourdieu em La distinction,11 a saber, a da bastante homogêneas, demograficamente frá-
função social da cultura nas sociedades com geis, com extensão geográfica relativamente
divisão de classes. Mas, mesmo nesse último pequena, que oferecem esquemas socializantes
trabalho — La Culture das individus. Dissonances bastante estáveis e coerentes para seus mem-
culturelles et distinction de soi — que claramente bros. Nas sociedades em que as crianças co-
diz respeito à sociologia da cultura, encontra-se nhecem muito cedo uma diversidade de con-
a marca dos efeitos do sistema escolar sobre os textos socializantes (a família, a babá ou a cre-
perfis culturais individuais. Não se pode traba- che, a escola, os grupos de iguais, etc.) os pa-
lhar sobre os usos da cultura fazendo abstração trimônios individuais de disposições raramente
da grande ligação existente nas sociedades são muito coerentes e homogêneos. Bourdieu
fortemente escolarizadas entre capital escolar e pensava que seria sobre a base de um habitus
práticas e preferências culturais. O volume e a familiar bastante coerente já constituído que as
natureza (literária versus científica) do capital experiências ulteriores adquiriam sentido. Os
escolar adquirido determinam em grande par- esquemas de socialização são de fato muito
te os gostos e disposições culturais. mais heterogêneos e cada vez mais precoces.

EP: Sua crítica à teoria do habitus de Bourdieu EP: Como o senhor interpreta o papel do sujei-
parte do fato de que esse conceito não reco- to social na teoria de Norbert Elias, notada-
bre a multiplicidade de referências identitárias mente no que diz respeito à relação de inter-
vividas pelo homem contemporâneo. Conside- dependência entre as instituições sociais e os
rando que esse conceito de habitus não pode ser indivíduos? Que proximidade e que distan-
dissociado de sua relação de interdependência ciamento podem existir entre o conceito de
com um campo social, como não vê-lo sendo habitus de Elias e de Bourdieu?
construído a partir de uma nova arquitetura BL: Acredito que Bourdieu e Elias não tinham
cultural? Acredito que esse conceito de habitus a mesma coisa em mente quando falavam de
não pode ser interpretado unicamente como habitus. Em Norbert Elias, essa noção mantém-
sinônimo de uma memória sedimentar e imutá- se bastante fluida e geral (ele fala em habitus
vel; trata-se de um sistema de disposições con- nacional). Bourdieu foi um dos que mais pro-
tinuamente construídas, abertas e sujeitas a curou definir esse conceito. Elias e Bourdieu
novas experiências. O que o senhor pensa a pensavam os indivíduos como seres totalmen-
esse respeito?
BL: Para ser mais preciso, eu não falo de “iden-
10. L’Invention de l’ “illetrisme”. Rhétorique publique, éthique et
tidades múltiplas” ou de “referências identitá- stigmates. Paris: La Découverte, 1999.
rias”, mas de pluralidade e de heterogeneidade 11. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979.
12. L’Homme pluriel. Les ressorts de l’action. Paris: Nathan, 1998.
de disposições incorporadas por cada agente Traduzido no Brasil como Homem plural: os determinantes da ação .
nas sociedades com forte diferenciação social, Petrópolis: Vozes, 2002.

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te sociais, que são inteiramente socializados e vários círculos socias na formação de uma
cuja economia psíquica é fundamentalmente relação mais reflexiva (tendo a opção de com-
social, mas Elias nunca foi além de um uso parar, os indivíduos ganham em liberdade
superficial desse termo. Por seu lado, Bourdieu mental com relação ao que se impõe como
teorizou a noção, mas nunca trabalhou sobre a sendo totalmente natural, diferente dos que
produção do habitus sobre a constituição de vivem dentro de um só círculo social). Mas
disposições constitutivas do habitus. Se o tives- acredito que, desse modo, fazemos os autores
se feito, ele teria se dado conta que uma par- do passado dizerem coisas que eles não havi-
te de sua definição (e notadamente a questão am dito; fazemos com que sustentem teses
da transferabilidade dos esquemas ou das dis- que não haviam sustentado, simplesmente
posições) não é evidente. Uma outra diferença porque procuramos fazê-los falar a nosso fa-
entre a abordagem eliasiana e a abordagem vor. Quanto aos dois autores sobre os quais a
bordieusiana, é o fato de que Elias apresenta senhora me perguntou, eu diria que o primeiro
como centro de sua sociologia a idéia de rela- é mais um teórico do social (o que em certa
ções de interdependência entre indívíduos que época chamávamos de “filósofo do social”)
formam então configurações sociais específicas do que um sociólogo que busca, por meio de
e se constroem por meio dessas relações de pesquisas empíricas, encontrar a razão para
interdependência. Bourdieu definiu os indiví- determinados aspectos do mundo social, e que
duos sobretudo pelo volume e estrutura de seu o segundo é um sociólogo que tem uma con-
capital (essencialmente o econômico e o cultu- cepção pouco rigorosa, bastante jornalística
ral). Ainda que aparentadas, estas são duas da pesquisa empírica. A sociologia empírica é
concepções antropológicas definitivamente uma sociologia que deve ser impecável tanto
bastante diferentes. no plano da construção teórica e da coerên-
cia da interpretação, quanto em relação à
EP: Nesses últimos anos, a sociologia moderna solidez e à pesquisa empírica. Aqueles que
parece querer recuperar as contribuições de colocam em prática uma concepção pouco
Georg Simmel. Ainda que de modos diferentes, rigorosa da sociologia dão razão a todos que
François Dubet e Anthony Giddens se baseaim vêem nela apenas uma forma disfarçada de
em Simmel para pensar uma sociologia do su- ideologia ou de jornalismo.
jeito social. Ou seja, para discutir o papel ati-
vo e reflexivo do indivíduo em relação às for- EP: A presença das mídias constitui uma refle-
mações sociais modernas. O que o senhor di- xão “obrigatória” para aqueles que atualmen-
ria sobre esses autores e suas contribuições à te pensam a educação, notadamente para
sociologia atual? aqueles que se debruçam sobre os processos
BL: O fato de buscar idéias em Simmel ou de socialização próprios ao mundo contempo-
entre outros autores do passado ainda mais râneo. O senhor acredita que as mídias podem
esquecidos do que ele me parece bastante ser consideradas como um novo “agente” de
natural. O que, no entanto, me parece suspei- socialização? Por quê? Qual é a importância
to é o uso “interessado” de autores do passa- das mídias na França? Elas desempenham pa-
do para fins atuais. Temos assim um Simmel péis equivalentes em países “desenvolvidos”,
(como também um Weber) recuperado segun- como a França, e naqueles “em desenvolvi-
do os adeptos do individualismo metodológico mento”, como o Brasil?
ou da teoria da ação racional, um Simmel para BL: As mídias como o rádio ou a televisão
fenomenólogos sociais, etc. Eu mesmo pude transformaram profundamente a relação que os
jogar esse jogo ao mostrar que Simmel havia indivíduos mantinham com a cultura e o lazer.
salientado a importância do pertencimento em É toda uma cultura do lar, doméstica (mais do

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que do que cultura de saídas13 ) que progressi- EP: Entre as diversas abordagens psicológicas,
vamente se instalou. E também, de uma certa a psicologia histórico-cultural é notadamente a
maneira, um poderoso meio de controle (certa- mais compatível com a sua orientação socioló-
mente indireto e não intencional) das popula- gica. Como o senhor poderia relacionar a ques-
ções (basta ver o deserto em que se transfor- tão da constituição da singularidade com a da
mam as ruas das grandes cidades nas noites de gestão da heterogeneidade social explorada em
grandes jogos de futebol televisionados). Le- seus trabalhos e, no plano psicológico, explo-
vando-se em conta o tempo passado pelas cri- rada por Vygotski e seus colaboradores?
anças diante da televisão ou ouvindo o rádio, BL: Eu já me sentia próximo de Vygotski antes
ninguém dúvida que isto modificou as condi- mesmo de desenvolver a idéia de uma sociolo-
ções de socialização infantil. Mas é difícil fazer gia em escala individual e de me interessar pela
das mídias agentes autônomos de socialização, questão das singularidades sociais. Vygotski
uma vez que os efeitos das mídias são eles pró- estudou o papel da escrita e da escola no de-
prios mediatizados e filtrados pelos pais e pela senvolvimento da consciência metalingüística
escola: não se assiste da mesma forma à tele- das crianças. É um autor que já está presente
visão em meios sociais diferentes, em função em La Reprodution 14 de Pierre Bourdieu e
da situação escolar (boa ou má), etc. As mídias, Jean-Claude Passeron e que teve um papel fun-
portanto, só têm o poder que lhes damos: elas damental no desenvolvimento de uma psicolo-
só exercem seu poder com a cumplicidade tá- gia cultural nos Estados Unidos, notadamente
cita dos adultos que permitem que se assista a mediante os trabalhos de Jérome Bruner. Atu-
elas ou que a elas assistem. almente, entretanto, em um país como a Fran-
ça, Vygotski conta muito pouco para uma co-
EP: Quais são as referências teóricas que lhe munidade de psicólogos que, em sua grande
permitem pensar o papel das mídias em relação maioria, está convertida às ciências cognitivas
aos processos atuais de socialização? e à idéia segundo a qual é preciso ser “expe-
BL: Eu mesmo nunca trabalhei diretamente rimental”, não ultrapassar os limites do labora-
sobre o papel das mídias audiovisuais nos pro- tório e se aproximar das ciências duras (da
cessos de socialização. Mas acredito que uma neurobiologia e da imagética cerebral). Nesse
boa sociologia dos usos sociais das mídias contexto, a psicologia cultural e histórica só
deverá se apoiar sobre as aquisições da socio- pode ser entendida como uma psicologia pré-
logia da recepção (inspirada na sociologia da científica. Sendo assim, a sociologia que se
apropriação de Michel de Certeau, da estética interessa pela socialização dos indivíduos infe-
da recepção de Hans R. Jauss ou da história lizmente encontra pouco apoio entre os psicó-
cultural, cujo programa foi traçado pelo histo- logos nos dias de hoje.
riador da leitura Roger Chartier). Ela deverá lutar
contra a idéia inicial de que as mensagens e as EP: Em seu livro Sucesso escolar nos meios po-
imagens se imprimem diretamente na mente pulares, diferentes configurações familiares são
das pessoas que assistem à televisão ou ao exploradas de modo a esclarecer vantagens espe-
rádio. Trata-se de mostrar, levando-se em conta cíficas e, ao mesmo tempo, permitir a construção
suas diferentes experiências sociais passadas, de características gerais ligadas aos sucesso esco-
que as diferentes categorias de telespectadores lar. Como poderíamos aplicar essa mesma solução
ou ouvintes não tratam da mesma forma os
programas que lhes damos para ver e ouvir. Os 13. Cultura de saídas é um conceito usado na literatura sobre lazer para
ouvintes ou telespectadores não se apropriam se referir à prática de atividades culturais exercidas fora de casa.
14. Bourdieu, P. e Passeron, J.C. La Reproduction. Paris: Minuit, 1970.
dos programas de maneira homogênea. Publicado no Brasil com o nome de A Reprodução: elementos para uma
teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

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metodológica ao contexto escolar, superando a riormente o adolescente, constituem suas dis-
idéia de escola como um meio social homogêneo? posições mentais e comportamentais por meio
BL: Se quisermos considerar a escola em seus das formas assumidas pelas relações de inter-
aspectos mais singulares, será necessário estudar dependência com as pessoas que, de modo
as relações que se estabelecem entre alunos sin- mais frequente e durável, encontram-se ao seu
gulares e professores com características relati- redor. Ele não “reproduz” necessária e direta-
vamente singulares (homens ou mulheres, jovens mente os modos de agir de seu entorno, mas
ou velhos, crianças de classe alta, média ou das encontra sua própria modalidade de compor-
classes populares, seguidores de determinada tamento em função da configuração na qual
pedagogia, etc.), em contextos pedagógicos ele se vê inserido. Suas ações são reações que
sempre singulares (estilo pedagógico da escola, “se apóiam” de modo relacional nas ações dos
características da população escolarizada, modo diferentes agentes da constelação social que,
de inserção da escola no tecido urbano, etc.). sem o saber, circunscrevem, traçam espaços
Procurei destacar a diversidade de configurações de comportamentos e representações possíveis
familiares em meios populares que explica, em para ele.
grande parte, as diferenças do destino escolar de O segundo projeto diz respeito ao estudo da vida
crianças que, no entanto, têm capital familiar literária, paraliterária e extraliterária dos escritores.
inicial bastante semelhante. Talvez seja necessá- A idéia geral dessa pesquisa é a de materializar os
rio tentar descobrir, agora do lado da escola, a escritores, que muito freqüentemente são reduzi-
diversidade de situações e apontar para os con- dos a criadores “sem laços nem raízes” (aparen-
textos mais favoráveis ao sucesso escolar das temente, o que pode haver de mais singular do
crianças dos meios populares. que um “criador”?), em seres pensantes e em suas
concepções de literatura, suas representações do
EP: Quais são as próximas questões nas quais que é para eles ser um “escritor”. Materializar os
o senhor pensa em trabalhar, seus projetos e autores da literatura é reinscrevê-los nas condi-
planos de trabalho? ções de existência social e econômica (do que
BL: Acabo de terminar um estudo sobre as eles vivem?), nas redes de interdependências lite-
práticas culturais dos franceses e estou traba- rárias, paraliterárias, e extraliterárias (com quem
lhando atualmente em dois grandes projetos. vivem e de quem dependem?) e nas condições
O primeiro diz respeito à construção social da materiais e temporais do trabalho da escrita
personalidade cultural de crianças e adolescen- (quando e como escrevem?). Um processo como
tes. Suas preferências e práticas, suas ações e esse se situa no cruzamento de uma sociologia
reações tornam-se inacessíveis fora das relações das profissões (e a questão que nesse caso é par-
sociais que se tecem entre eles e entre os ticularmente instigante é a de saber em que
membros da constelação social na qual eles medida a literatura pode ser encarada como uma
se encontram. Com efeito, a criança, e poste- “profissão”, um “trabalho”), de uma sociologia
dos processos de reconhecimento simbólico e de
uma sociologia das práticas artísticas.

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