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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 315-321, maio/ago. 2004 315
ainda beneficiado, entre 1995 e 2000, com EP: Quais são os autores que lhe parecem mais
excelentes condições de trabalho para realizar importantes no que diz respeito à sociologia da
pesquisas no Instituto Universitário da França2 cultura e da educação na França durante esses
(um tipo de Collége de France 3 descentraliza- últimos anos? E por quê?
do). E, finalmente, em 2000, fui admitido na BL: A sociologia da educação e da cultura na
Escola Normal Superior de Letras e Ciências França conheceu seus dias de glória nos anos de
Humanas, quando esse estabelecimento deixou 1960-1970 com os trabalhos orientados por
a região parisiense para se estabelecer em Lyon. Pierre Bordieu e Jean-Claude Passeron. Desde os
É nesse espaço intelectual privilegiado (para o anos 1980 ela só vem perdendo influência (e
qual a seleção é particularmente severa) que eu interesse). A sociologia da cultura francesa está
ensino e pesquiso atualmente. tão em baixa que, recentemente, para retomar a
Em relação à sociologia havia ainda tudo a ser discussão sobre sociologia da cultura (em meu
feito, uma vez que cheguei com a possibilidade último livro intitulado La Culture des individus.
de recrutar os colegas com os quais eu iria tra- Dissonances culturelles et distinction de soi5 ),
balhar. Sou o responsável pela sociologia desde o precisei recorrer mais a trabalhos estrangeiros do
início. Montei ali também um laboratório ligado que franceses. Autores norte-americanos como
ao CNRS,4 intitulado Grupo de Pesquisa sobre a Paul Di Maggio ou Richard A. Peterson, como
Socialização, que dirijo desde janeiro de 2003. também os autores que publicam na excelente
revista holandesa Poetics, Journal of Empirical
EP: Quais são os autores ou as escolas de pen- Research on Culture, the Media and the Arts me
samento que marcaram sua formação acadêmica? inspiraram mais do que os sociólogos da cultu-
BL: Se eu interpretar sua questão em um sen- ra francesa em voga ou bastante influentes no
tido amplo e não apenas no sentido mais po- meio acadêmico, que têm em mente apenas uma
sitivo, fui marcado, como já lhe disse ante- obsessão: fazer tudo para esquecer os trabalhos
riormente, por autores bastante diferentes e, de Pierre Bourdieu. O problema é que em ciên-
em muitos casos, opostos. Freqüentei o curso cia (tanto nas ciências sociais quanto nas demais)
de um dos tradutores franceses de Erving não se pode desprezar o passado, sobretudo
Goffman (antigo foulcaltiano convertido ao quando este foi tão fecundo.
interacionismo), mas também os cursos de
marxistas ortodoxos ou heterodoxos, como o EP: Como o senhor vê a influência atual da so-
de alunos diretos ou indiretos de Pierre ciologia francesa no mundo? Onde o senhor
Bourdieu. Mas os autores que mais me impres- situaria a vanguarda da sociologia moderna, se
sionaram foram, aleatoriamente, o lingüista e é que ela existe?
filósofo russo Mikhail Bakhtin, o lingüísta suiço
Ferdinand de Saussure, o filósofo francês
2. O Institut de France, criado em 1795, é um organismo altamente
Michel Foucault, Maurice Merleau-Ponty (que prestigiado no sistema de ensino francês e congrega várias instituições do
foi professor de meu orientador de doutorado), ensino superior. Está diretamente ligado ao Ministério da Educação do país.
3. O Collège de France é uma instituição de ensino atípica. Está sob a
o antropólogo inglês Jack Goody, o sociólogo responsabilidade do chefe de Estado, que delega sua tutela ao Ministério da
e economista alemão Max Weber e, evidente- Educação. Seus cursos não são ministrados de maneira convencional, ou
seja, não sofrem nenhum tipo de regulação, inscrição ou avaliação. Mais
mente, o sociólogo francês Pierre Bourdieu. informações podem ser encontradas em Almeida, A. O Collège de France
Como eu me interessava muito pelas relações e o sistema de ensino francês . In: CataniI, A. e Martinez, P. (Org.). Sete
entre linguagem, pensamento e classes sociais, ensaios sobre o Collège de France. São Paulo: Cortez, 1999.
4. Centro Nacional de Pesquisa Científica, instituição de pesquisa vincu-
li também com bastante prazer autores como lada ao Ministério da Educação francês, que congrega vários grupos de
Benjamim Lee Whorf, Edward Sapir, William estudo e pesquisa, em parceria com professores do ensino superior ou
pesquisadores autônomos.
Labov, Basil Bernstein, John Gumperz tanto 5. La Culture des individus. Dissonances culturelles et distinction de soi.
quanto os já citados anteriormente. Paris: La Découverte, 2004.
EP: O senhor poderia explicar as pequenas mas 6. Culture écrite et inégalités scolaires . Sociologie de l’ “échec scolaire”
significativas transformações sofridas ultima- à l’école primaire. Lyon: PUL, 1993.
mente por seus objetos de pesquisa? Inicial- 7. La Raison des plus faibles. Rapport au travail, écritures domestiques
et lectures en milieux populaires. Lille: Pul, 1993.
mente o senhor havia trabalhado no domínio 8. Tableaux de familles. Heurs et malheurs scolaires en milieux populaires.
da sociologia da educação, nos meios popula- Paris : Gallimard/ Seuil, Hautes Études, 1995. Traduzido no Brasil como
Sucesso Escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo:
res e, mais recentemente, o senhor se debruçou Atica, 1997.
sobre a questão das práticas culturais dos fran- 9. Les Manières d’étudier. Paris: La Documentation Française, 1997.
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sociais sobre as “classes iletradas” considerando- nas quais a família não tem mais o monopólio
as como novas classes perigosas (L’invention de da educação legítima das crianças. O argumen-
l’ “illetrisme”. Rhétorique publique, éthique et to que eu desenvolvo em L’Homme pluriel12 é
stigmates).10 que se definimos o habitus como um sistema
Direta ou indiretamente, meu trabalho sempre homogêneo de disposições gerais, permanentes,
esteve no entrecruzamento de uma sociologia sistemas transferíveis de uma situação à outra,
da educação e da cultura. Mais recentemente, de um domínio de práticas a outro, então cada
no entanto, abri um grande campo de pesquisa vez menos agentes de nossas sociedades serão
sobre a relação dos franceses com a cultura definíveis a partir de um tal conceito. Esse tipo
legítima, que retomou a questão abordada por de definição convém melhor para sociedades
Pierre Bourdieu em La distinction,11 a saber, a da bastante homogêneas, demograficamente frá-
função social da cultura nas sociedades com geis, com extensão geográfica relativamente
divisão de classes. Mas, mesmo nesse último pequena, que oferecem esquemas socializantes
trabalho — La Culture das individus. Dissonances bastante estáveis e coerentes para seus mem-
culturelles et distinction de soi — que claramente bros. Nas sociedades em que as crianças co-
diz respeito à sociologia da cultura, encontra-se nhecem muito cedo uma diversidade de con-
a marca dos efeitos do sistema escolar sobre os textos socializantes (a família, a babá ou a cre-
perfis culturais individuais. Não se pode traba- che, a escola, os grupos de iguais, etc.) os pa-
lhar sobre os usos da cultura fazendo abstração trimônios individuais de disposições raramente
da grande ligação existente nas sociedades são muito coerentes e homogêneos. Bourdieu
fortemente escolarizadas entre capital escolar e pensava que seria sobre a base de um habitus
práticas e preferências culturais. O volume e a familiar bastante coerente já constituído que as
natureza (literária versus científica) do capital experiências ulteriores adquiriam sentido. Os
escolar adquirido determinam em grande par- esquemas de socialização são de fato muito
te os gostos e disposições culturais. mais heterogêneos e cada vez mais precoces.
EP: Sua crítica à teoria do habitus de Bourdieu EP: Como o senhor interpreta o papel do sujei-
parte do fato de que esse conceito não reco- to social na teoria de Norbert Elias, notada-
bre a multiplicidade de referências identitárias mente no que diz respeito à relação de inter-
vividas pelo homem contemporâneo. Conside- dependência entre as instituições sociais e os
rando que esse conceito de habitus não pode ser indivíduos? Que proximidade e que distan-
dissociado de sua relação de interdependência ciamento podem existir entre o conceito de
com um campo social, como não vê-lo sendo habitus de Elias e de Bourdieu?
construído a partir de uma nova arquitetura BL: Acredito que Bourdieu e Elias não tinham
cultural? Acredito que esse conceito de habitus a mesma coisa em mente quando falavam de
não pode ser interpretado unicamente como habitus. Em Norbert Elias, essa noção mantém-
sinônimo de uma memória sedimentar e imutá- se bastante fluida e geral (ele fala em habitus
vel; trata-se de um sistema de disposições con- nacional). Bourdieu foi um dos que mais pro-
tinuamente construídas, abertas e sujeitas a curou definir esse conceito. Elias e Bourdieu
novas experiências. O que o senhor pensa a pensavam os indivíduos como seres totalmen-
esse respeito?
BL: Para ser mais preciso, eu não falo de “iden-
10. L’Invention de l’ “illetrisme”. Rhétorique publique, éthique et
tidades múltiplas” ou de “referências identitá- stigmates. Paris: La Découverte, 1999.
rias”, mas de pluralidade e de heterogeneidade 11. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979.
12. L’Homme pluriel. Les ressorts de l’action. Paris: Nathan, 1998.
de disposições incorporadas por cada agente Traduzido no Brasil como Homem plural: os determinantes da ação .
nas sociedades com forte diferenciação social, Petrópolis: Vozes, 2002.
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que do que cultura de saídas13 ) que progressi- EP: Entre as diversas abordagens psicológicas,
vamente se instalou. E também, de uma certa a psicologia histórico-cultural é notadamente a
maneira, um poderoso meio de controle (certa- mais compatível com a sua orientação socioló-
mente indireto e não intencional) das popula- gica. Como o senhor poderia relacionar a ques-
ções (basta ver o deserto em que se transfor- tão da constituição da singularidade com a da
mam as ruas das grandes cidades nas noites de gestão da heterogeneidade social explorada em
grandes jogos de futebol televisionados). Le- seus trabalhos e, no plano psicológico, explo-
vando-se em conta o tempo passado pelas cri- rada por Vygotski e seus colaboradores?
anças diante da televisão ou ouvindo o rádio, BL: Eu já me sentia próximo de Vygotski antes
ninguém dúvida que isto modificou as condi- mesmo de desenvolver a idéia de uma sociolo-
ções de socialização infantil. Mas é difícil fazer gia em escala individual e de me interessar pela
das mídias agentes autônomos de socialização, questão das singularidades sociais. Vygotski
uma vez que os efeitos das mídias são eles pró- estudou o papel da escrita e da escola no de-
prios mediatizados e filtrados pelos pais e pela senvolvimento da consciência metalingüística
escola: não se assiste da mesma forma à tele- das crianças. É um autor que já está presente
visão em meios sociais diferentes, em função em La Reprodution 14 de Pierre Bourdieu e
da situação escolar (boa ou má), etc. As mídias, Jean-Claude Passeron e que teve um papel fun-
portanto, só têm o poder que lhes damos: elas damental no desenvolvimento de uma psicolo-
só exercem seu poder com a cumplicidade tá- gia cultural nos Estados Unidos, notadamente
cita dos adultos que permitem que se assista a mediante os trabalhos de Jérome Bruner. Atu-
elas ou que a elas assistem. almente, entretanto, em um país como a Fran-
ça, Vygotski conta muito pouco para uma co-
EP: Quais são as referências teóricas que lhe munidade de psicólogos que, em sua grande
permitem pensar o papel das mídias em relação maioria, está convertida às ciências cognitivas
aos processos atuais de socialização? e à idéia segundo a qual é preciso ser “expe-
BL: Eu mesmo nunca trabalhei diretamente rimental”, não ultrapassar os limites do labora-
sobre o papel das mídias audiovisuais nos pro- tório e se aproximar das ciências duras (da
cessos de socialização. Mas acredito que uma neurobiologia e da imagética cerebral). Nesse
boa sociologia dos usos sociais das mídias contexto, a psicologia cultural e histórica só
deverá se apoiar sobre as aquisições da socio- pode ser entendida como uma psicologia pré-
logia da recepção (inspirada na sociologia da científica. Sendo assim, a sociologia que se
apropriação de Michel de Certeau, da estética interessa pela socialização dos indivíduos infe-
da recepção de Hans R. Jauss ou da história lizmente encontra pouco apoio entre os psicó-
cultural, cujo programa foi traçado pelo histo- logos nos dias de hoje.
riador da leitura Roger Chartier). Ela deverá lutar
contra a idéia inicial de que as mensagens e as EP: Em seu livro Sucesso escolar nos meios po-
imagens se imprimem diretamente na mente pulares, diferentes configurações familiares são
das pessoas que assistem à televisão ou ao exploradas de modo a esclarecer vantagens espe-
rádio. Trata-se de mostrar, levando-se em conta cíficas e, ao mesmo tempo, permitir a construção
suas diferentes experiências sociais passadas, de características gerais ligadas aos sucesso esco-
que as diferentes categorias de telespectadores lar. Como poderíamos aplicar essa mesma solução
ou ouvintes não tratam da mesma forma os
programas que lhes damos para ver e ouvir. Os 13. Cultura de saídas é um conceito usado na literatura sobre lazer para
ouvintes ou telespectadores não se apropriam se referir à prática de atividades culturais exercidas fora de casa.
14. Bourdieu, P. e Passeron, J.C. La Reproduction. Paris: Minuit, 1970.
dos programas de maneira homogênea. Publicado no Brasil com o nome de A Reprodução: elementos para uma
teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
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