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Estudos de Psicologia

Estudos de Psicologia, 25(1), janeiro a março de 2020, 80-90


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Possibilidades e potencialidades do rap para adolescentes e
jovens cumprindo medida socioeducativa
Alice Cristina Silva dos Santos. Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência-PB
Maria de Fátima Pereira Alberto. Universidade Federal da Paraíba
Aíla Souza Muniz. Conselho Regional de Psicologia da Paraíba

Resumo
Este artigo objetiva analisar os sentidos atribuídos ao RAP (rythym and poetry) pelos adolescentes e jovens em cumprimento
de medida socioeducativa de internação. A pesquisa exploratória de caráter qualitativo se deu em Unidades Socioeducativas
no estado da Paraíba. Participaram 12 adolescentes e jovens, entre 14 e 21 anos, sendo três do sexo feminino e nove do sexo
masculino. Utilizou-se como instrumento uma entrevista semiestruturada e procedeu-se a Análise de Conteúdo de Bardin
(1977). Os(As) participantes ressaltaram o potencial pedagógico do RAP, que ensina a escrever e sociabilizar. Os(As) jovens e
adolescentes apontaram, ainda, que se utilizam do RAP como elemento que auxilia no processo de resistência nas Unidades,
e como meio de lazer e fonte de ensinamentos. Este gênero musical oferece elementos que permitem aos(às) participantes
engajarem-se em projetos de vida e novas possibilidades de ações futuras.
Palavras-chave: hip-hop; psicologia histórico-cultural; resistência; projeto de vida.

Abstract
Possibilities and potentialities of rap for adolescents and young people in compliance with socio-educational measures. This
article aims to analyze the meanings attributed to RAP (rythym and poetry) by adolescents and young people in compliance with
a socio-educational measure. The qualitative exploratory research took place in Socio-Educational Units in the state of Paraíba.
Twelve adolescents and young people, between 14 and 21 years old, participated, 3 female and nine male. A semi-structured
interview was used as an instrument and Bardin’s Content Analysis (1977) was carried out. The participants emphasized the
pedagogical potential of RAP, which teaches how to write and socialize. Young people and adolescents also pointed out that
they use RAP as an element that helps in the resistance process in the Units, and as a means of leisure and source of teachings.
This musical genre offers elements that allow participants to engage in life projects and new possibilities for future actions.
Keywords: hip-hop; historical-cultural psychology; resistance; life project.

Resumen
Posibilidades y potenciales de rap para adolescentes y jóvenes que cumplen con la medida socioeducativa. Este artículo tiene
como objetivo analizar los significados atribuidos a RAP (ritmo y poesía) por adolescentes y jóvenes en cumplimiento de una
medida socioeducativa. La investigación exploratoria cualitativa se llevó a cabo en Unidades Socioeducativas en el estado da
Paraíba. Participaron doce adolescentes y jóvenes, entre 14 y 21 años, 3 mujeres y nueve hombres. Se utilizó una entrevista
semiestructurada como instrumento y se llevó a cabo el Análisis de contenido de Bardin (1977). Los(as) participantes enfatizaron
el potencial pedagógico de RAP, que enseña cómo escribir y socializar. Los(as) jóvenes y los adolescentes también señalaron
que usan RAP como un elemento que ayuda en el proceso de resistencia en las Unidades, y como un medio de ocio y fuente
de enseñanza. Este género musical ofrece elementos que permiten a los participantes participar en proyectos de vida y nuevas
posibilidades para acciones futuras.
Palabras-clave: hip-hop; psicologia histórico-cultural; resistência; proyecto de vida.

DOI: 10.22491/1678-4669.20200008 ISSN (versão eletrônica): 1678-4669 Acervo disponível em http://pepsic.bvsalud.org


A. C. S. Santos, M. F. P. Alberto, A. S. Muniz

Este artigo objetiva analisar os sentidos atribuí- adolescência, ora definida pelo padrão etário, como
dos ao RAP (rythym and poetry) pelos adolescentes e no Estatuto da Juventude. Em seu artigo 2º, o Estatuto
jovens em cumprimento de medida socioeducativa de da Juventude estabelece como jovens as pessoas com
internação. Em termos jurídicos, o Estatuto da Criança idade entre 15 e 29 anos (Lei nº 12.852, de 05 de agosto
e do Adolescente (ECA) define como adolescente, em de 2013).
seu artigo 2º, os indivíduos com idade entre 12 e 18 Entretanto, o critério etário não contempla as
anos (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). No entanto, vicissitudes sociais apontadas por alguns autores como
autores que têm como referência a perspectiva sócio- parte da vivência da juventude. Para León (2005), os
-histórica compartilham entre si uma leitura da ado- sujeitos experimentam na juventude um período pro-
lescência que supera os elementos que comumente fundo de construção de sua identidade e passam a se
são naturalizados como característicos e típicos deste reconhecer enquanto integrantes de um coletivo social
período. Partilhando desta referência, Ozella (2002) maior e relacionar-se dialeticamente com este. Para
considera a adolescência como uma criação histórica do efeito deste artigo, considerando as faixas etárias da
ser humano enquanto representação social e psicoló- Adolescência e da Juventude que vão de 12 a 18 anos
gica. Sua construção, segundo o autor, se dá mediante a e de 15 a 29 anos, respectivamente, serão utilizados
atribuição de significados sociais e culturais à realidade os termos “adolescentes” e “jovens”, em que o crité-
concreta. rio etário será um referencial adotado em virtude do
Considerando a concepção do indivíduo como que define a legislação para as situações que envolvem
sujeito social e interativo apresentada pela abordagem a prática do ato infracional e as respectivas medidas
histórico-cultural vygotskiana, Rey (2003) compreende socioeducativas; apesar deste estudo encontrar-se pau-
que os sujeitos, dentro de um espaço social, comparti- tado no referencial histórico-cultural da Psicologia.
lham sentidos e significados (Bittencourt, 2013). Os sig- As medidas socioeducativas têm sua aplicação
nificados são produções históricas e sociais da realidade, executada pelo Estado em casos de cometimento, por
que possuem estabilidade e precisão, pois consistem na parte de adolescentes e jovens com idade entre 12 e
representação da realidade em determinadas condições 18 anos, de um ato infracional – conduta descrita como
históricas. Os sentidos, por sua vez, possuem caráter crime ou contravenção penal. O ECA estabeleceu sua
menos estável, uma vez que modificam-se através dos aplicação excepcional também àqueles que se encon-
diferentes contextos e situações – relacionando-se às tram entre 18 e 21 anos, nas hipóteses expressamente
sensações e às emoções de cada sujeito (Molon, 2009). previstas pela lei – de acordo com o artigo 2º, parágrafo
Na perspectiva histórico cultural o desenvolvi- único, da referida legislação (Lei nº 8.069, de 13 de
mento atrela-se à aprendizagem, que é impulsionada julho de 1990).
por meio de atividades guias. Cada período peculiar e Avançando no processo de estabelecimento do
específico da vida humana corresponde uma atividade atendimento socioeducativo, com o intuito de padro-
principal, com um percurso contextualizado historica- nizar o atendimento a crianças e adolescentes, bem
mente. Na adolescência inicial (ou crise da adolescên- como de reafirmar o caráter pedagógico da medida
cia) a atividade guia é a comunicação íntima pessoal, socioeducativa, foi instituído pela Lei nº 12.594, de 18
na juventude (crise da juventude) é atividade de estudo de janeiro de 2012, o Sistema Nacional de Atendimento
e profissional. O adolescente é visto como um sujeito Socioeducativo (SINASE), que regulamenta a execução
ativo produto e produtor do seu desenvolvimento a par- das medidas socioeducativas, estabelecendo princí-
tir das interações culturais que estabelece. O que está pios, regras e critérios para tal. De acordo com o refe-
fora (o signo) pela regulação, do outro, através de um rido documento, as medidas socioeducativas têm como
processo de significação compartilhada cria significado objetivo a responsabilização do adolescente ou jovem
para o sujeito (Alberto, Pessoa, Malaquias, & Costa, que comete o ato infracional, a integração deste ao seu
2020; Anjos & Duarte, 2016; Davidov, 1986). contexto social e a garantia dos seus direitos sociais
Enquanto a categoria adolescência é tratada e individuais e, por fim, a desaprovação da prática
como uma construção social que reconfigura a pers- infracional.
pectiva consolidada na Psicologia do Desenvolvimento As medidas socioeducativas, conforme estabe-
tradicional, a categoria juventude vai ganhando novos lecidas pelo ECA, são de: advertência; obrigação de
contornos e inserções. Ora tida como sinônimo de reparar o dano; prestação de serviços a comunidade;

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liberdade assistida; inserção em regime de semi-liber- atestam que, em 2016, 59% dos(as) adolescentes inter-
dade; internação em estabelecimento educacional (Lei nos em instituições de privação e restrição de liberdade
nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Neste trabalho, a no Brasil se autodeclararam como pardos/negros e ape-
medida socioeducativa em destaque será a de interna- nas 22% como brancos (MMFDH, 2019).
ção em estabelecimento educacional, estabelecida pelo Entretanto, há de se considerar que nem sempre
artigo 112, inciso quarto, do ECA. Tal medida baseia-se a autodeclaração étnica ocorre de modo simples. O mito
nos princípios da: brevidade, segundo o qual deve ser da democracia racial no Brasil, as exclusões vivenciadas
reavaliada, no máximo, a cada seis meses e não deve pelos membros da comunidade negra e a exaltação dos
exceder o período de três anos; da excepcionalidade, valores eurocêntricos afetam de maneira significativa o
sendo admitida apenas em caso de ato infracional processo identitário do povo negro. Portanto, a auto-
mediante grave ameaça ou violência, de reiteração do declaração étnica comumente vem acompanhada de
cometimento de infrações graves e pelo descumpri- estigmas e diversas construções sociais e culturais que,
mento reiterado e injustificável da medida já imposta; por vezes, dificultam este processo (Munanga, 2004).
e do respeito à condição peculiar de desenvolvimento Este segmento dos(as) adolescentes e jovens que
do adolescente, sendo dever do Estado zelar pela inte- se encontram privados de liberdade experimentam, por
gridade física e mental dos(as) adolescentes e jovens parte do Estado e da mídia, um processo de crimina-
internos (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). lização de suas condutas a partir de critérios sociais
Em relação ao cumprimento da medida de inter- e da própria estratificação da sociedade (Gonçalves,
nação, o artigo 94 do ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho Araújo, & Santana, 2010). Entretanto, a conduta infra-
de 1990) estabelece dentre as obrigações das entidades cional muitas vezes representa o ápice de constantes
que desenvolvem programas deste caráter, observar os e sucessivas exclusões e privações, materiais e subje-
direitos e garantias fundamentais dos(as) adolescentes. tivas, experimentadas pelos(as) adolescentes e jovens
O mesmo artigo prevê um atendimento pautado por um pobres, negros(as) e periféricos(as). Desse modo, a prá-
ambiente de respeito e dignidade ao adolescente, com tica do ato infracional deve ser compreendida como a
instalações físicas em condições adequadas de salubri- tentativa, por vezes única, por parte do adolescente e
dade, higiene, segurança e habitabilidade. jovem de construir ou reestabelecer sua ligação com
O SINASE ratifica tais pressupostos estabelecendo a sociedade e tentar recuperar o pertencimento ao
os Direitos Humanos como um dos princípios através do mundo (Castro & Guareschi, 2008).
qual deve se dar o atendimento socioeducativo, condi- O contexto de vida dos(das) adolescentes e
cionando-o à garantia de todos os direitos, em conjunto jovens pobres das periferias é expressão da questão
com o desenvolvimento de ações educativas e de natu- social (Yamamoto & Oliveira, 2010), que emerge do sis-
reza sócio-pedagógica, que oportunizem a formação da tema desigual do capitalismo, da inexistência de polí-
cidadania (Lei nº 12.594, 2012). De acordo com A. C. ticas sociais de bem-estar social que promovam para
G. Costa (2006), a preparação do socioeducando para os(as) adolescentes, jovens e suas famílias, o acesso aos
o convívio social no exterior da Unidade é a “natureza bens socialmente produzidos (Medeiros & Paiva, 2015).
essencial” da ação socioeducativa. Conforme discutido por Leão, Dayrell e Reis (2011), tais
Mas os direitos humanos desses(as) adolescentes condições implicarão de maneira significativa o modo
nem sempre são garantidos. Dados do Levantamento como este segmento da população irá se relacionar, de
Anual SINASE 2017, publicado em 2019 pela Secretaria modo real e subjetivo, com o meio em que vive; bem
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do como a forma com que o mesmo passa a construir seus
Ministério dos Direitos Humanos (SNDCA/MDH), com- interesses e sua trajetória e projetos de vida.
provam que, até o final do ano de 2017, na Paraíba, Os projetos de vida são construídos de maneira
um total de 434 adolescentes estavam em contexto de dinâmica, com base na personalidade e no contexto
Internação, quando a capacidade total era de apenas ontogenético do indivíduo, e desenvolvidos e altera-
217 (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos dos conforme se apresentem diferentes possibilida-
Humanos [MMFDH], 2019). Com relação aos dados des e oportunidades aos mesmos (Pessoa, 2017). No
biossociodemográficos dos(as) adolescentes em regime caso dos(as) adolescentes e jovens em cumprimento
de restrição e privação de liberdade no contexto nacio- de medida socioeducativa, seus projetos de vida dizem
nal, dados do Levantamento Anual do SINASE 2017 respeito às projeções futuras que estes indivíduos

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vislumbram construir, para além da conduta infracio- público conselhos e ensinamentos advindos da vivên-
nal. A construção do projeto de vida do(a) adolescente cia nas periferias, além de permitirem a construção de
e jovem que cumpre medida socioeducativa deve ser novas perspectivas de inserção e transformação dentro
direcionada para perspectivas futuras, considerando os da sociedade que é a própria produtora da exclusão
aprendizados que a medida socioeducativa pode forne- (Eble, 2016; Rocha, Domenich, & Casseano, 2001).
cer, de modo a viabilizar uma possível mudança de vida Teixeira (2017) aponta a música como importante
(C. S. S. Costa, 2017). ferramenta de desenvolvimento cognitivo, psicomotor
Ao discorrer sobre os projetos de vida dos(as) e sócio-afetivo. Os estímulos diversos produzidos pela
adolescentes e jovens em cumprimento de MSE, música colaboram para o desenvolvimento intelectual
Baquero, Lemes e Santos (2011) apontam que estes do sujeito, ao passo em que o desenvolvimento das
funcionam como elemento de fortalecimento do senso habilidades motoras e o processo de formação de iden-
pessoal destes indivíduos. Construir e conduzir um tidade e autoestima são favorecidos.
projeto de vida permite aos(às) adolescentes e jovens O uso que os(as) adolescentes e jovens que
enxergarem com maior clareza quem são e os desejos cumprem medida socioeducativa de internação fazem
que possuem, experimentando uma reinvenção de seu do RAP é justificado pelo fato destes encontrarem, no
contexto futuro. gênero musical, um elemento que permita falar sobre
Em contexto e com intuito semelhantes, e como a realidade social e econômica desigual vivenciada
forma de resistir às violações de direitos e à ausência do nas periferias. O RAP auxilia na existência e na sobre-
Estado em sua função protetiva que, entre as décadas vivência destes jovens em uma sociedade racista e
de 60 e 70, os(as) adolescentes e jovens nova-iorqui- opressora (Amaral, 2014; Eble, 2016). É comum que os
nos deram início ao que viria a se tornar o movimento RAPs relatem em suas rimas as nuances do cotidiano
Hip Hop. A implantação da via expressa Cross Bronx da privação de liberdade. O discurso de ressocialização
Expressway, entre os anos 1960 e 1970, dividiu ao meio disseminado pelo Estado é problematizado nas com-
a área central de Nova York e culminou na remoção de posições do gênero musical, e visto apenas como um
cerca de 60 mil moradias, que foram alocadas na área modo institucionalizado de encarceramento em massa
chamada de “South Bronx” – que, por sua vez, passou do segmento da população, encarado como desviante
a ser associada pela mídia ao abandono, atraso e crimi- da norma (Corrêa, 2016).
nalidade (Gimeno, 2009). O RAP funciona como um modo de denúncia
Os jovens daquela área ansiavam por opções da cruel realidade prisional, de combate à opressão e
culturais alternativas à situação social e territorial que ao silenciamento a que se encontram submetidos, e
enfrentavam. Nesse sentido, enquanto movimento juve- de fazer ser ouvida as vozes dos privados de liberdade
nil social, político e cultural, o Hip Hop ofereceu “espa- (Corrêa, 2016; Poncio, 2014). Para Poncio (2014), além
ços para a identificação quanto ao lugar que moram, do RAP tematizar a realidade da privação de liberdade,
ao lugar que ocupam no tecido social, à sua condição apresenta também perspectivas de resistência e
juvenil” (Matsunaga, 2004, p. 70). O RAP (rhythm and mudança de vida. O RAP colabora no processo de resis-
poetry, do inglês, ritmo e poesia), um dos elementos tência aos efeitos do cárcere sobre a “personalidade” do
que compõem o movimento, é resultado da junção do indivíduo, tecendo novas possibilidades e desvelando
DJ (disc jokey) e do MC (mestre de cerimônia): o pri- novos caminhos a serem percorridos por esta parcela
meiro produz as bases musicais que dão ritmo às letras da população (Poncio, 2014).
compostas e cantadas pelo segundo (Silva, 2005). Para a Sobre o potencial do RAP no trabalho com ado-
autora, o RAP tornou-se um dos principais instrumentos lescentes em cumprimento de medida socioeducativa,
utilizados pelos jovens negros das periferias para inter- Tomasello (2006), através de sua pesquisa, atestou o
vir nas relações sociais de desigualdade nas quais estão poder deste gênero musical como um elemento que
inseridos, através da denúncia das opressões sofridas. permite a manifestação da subjetividade dos(as) ado-
Para além dos aspectos musicais e rítmicos, o RAP lescentes e a produção de novas perspectivas de vida.
consegue sintetizar e disseminar, através de suas letras, O autor conclui que os jovens enxergam o RAP não só
elementos que conduzem ao desenvolvimento de uma como um veículo de comunicação, mas como um modo
consciência social e política por parte de quem o ouve. de realizar-se enquanto indivíduo na sociedade. O RAP
Muitas das letras de RAP reúnem em si e apresentam ao fornece a estes jovens a sensação de pertencimento, de

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uso de um recurso próprio, que lhes pertence. O pró- Procedimentos de Análise dos Dados
prio processo de composição de RAPs, como explorado O presente estudo trata-se de uma pesquisa
por Souza, Jovino e Muniz (2018), envolve práticas de exploratória de caráter qualitativo, a partir do qual
letramento que se relacionam com questões culturais foi possível compreender os sentidos construídos
e políticas, posto que ampliam as formas de possibi- pelos(as) adolescentes e jovens participantes em torno
lidades do sujeito de se inserir em um lugar social de do tema proposto, e atribuídos ao mesmo. A adoção
crítica, contestação e subversão. O processo de criação do método qualitativo se deu pela maior viabilidade
do RAP acaba por incorporar e permitir a reinvenção e deste no sentido de compreender as dimensões sociais
ressignificação dos usos sociais da linguagem, o que é envolvidas na construção de sentidos por parte dos
chamado pela autora de “letramentos de reexistência”. participantes, bem como de conhecer o universo de
motivos, crenças e valores dos sujeitos, como aponta
Método Minayo (2014).
Optou-se pela utilização do método de Análise
de Conteúdo de Bardin (1977), seguindo as etapas de
Lócus e Participantes
pré-análise (leitura flutuante do material), codificação,
Este trabalho foi realizado em três Unidades categorização, inferência e interpretação dos dados. As
Socioeducativas que atuam com medidas em caráter de categorias a serem analisadas abordarão o potencial
internação no estado da Paraíba; sendo uma feminina pedagógico do RAP, as possibilidades de uso do mesmo
e duas masculinas. Foram entrevistados 12 adolescen- e a construção do projeto de vida dos(as) adolescentes.
tes e jovens que cumpriam medida socioeducativa de
internação, com idades que variaram de 14 a 21 anos
e de ambos os sexos. Solicitou-se à Direção Técnica da
Resultados
Unidade a indicação do primeiro participante, sendo um
adolescente ou jovem que cantasse ou compusesse RAP Perfil dos(as) Participantes
na Unidade. A partir disto, seguiu-se o método da bola As idades dos(das) participantes variaram entre
de neve, em que cada participante fazia a indicação de 14 e 18 anos, em que a maioria encontrava-se com 17
outro(a) socioeducando(a). anos. Dos(Das) 12 participantes, três eram do sexo femi-
Utilizou-se o critério de saturação, que ocorreu nino e nove do sexo masculino. Quanto à etnia, cinco
com 10 participantes. Com o objetivo de garantir o sigilo participantes se declararam como brancos(as), dois
da identidade dos(as) participantes, foram atribuídos como pardos(as), quatro como morenos(as) e apenas
nomes fictícios a cada um deles. Os nomes utilizados uma afirmou ser negra. Sobre o nível de escolaridade,
foram de rappers e MCs brasileiros, e a escolha conside- cinco possuíam Ensino Fundamental incompleto, dois
rou elementos semelhantes entre os(as) participantes haviam concluído o Ensino Fundamental, quatro pos-
e suas falas e grandes nomes do movimento Hip Hop. suíam Ensino Médio incompleto, e apenas uma havia
concluído o Ensino Médio.
Instrumento, Procedimentos de Coleta e Éticos
Utilizou-se como instrumento uma entrevista Potencial Pedagógico
semiestruturada, que incluía, além dos dados bios- Esta categoria, denominada Potencial pedagógico
sociodemográficos como idade, sexo, etnia e esco- do RAP, trata da capacidade do gênero RAP de facilitar
laridade, perguntas sobre a relação do adolescente o desenvolvimento de processos de caráter pedagógico.
e jovem com o RAP, como o mesmo é utilizado pelo A categoria aborda os conteúdos das falas dos(das) par-
adolescente e jovem na Unidade, quais cantores os(as) ticipantes que revelaram fazer uso da composição e do
participantes costumam ouvir, o que mais chama aten- consumo do RAP como forma de treinamento da escrita
ção no RAP e a diferença entre o RAP e outros gêne- e como modo de favorecer a sociabilidade. No primeiro
ros musicais entre outras. A pesquisa atendeu todos caso, o RAP constitui-se enquanto um elemento com
os preceitos éticos determinados pelas Resoluções de intenso potencial de viabilizar o desenvolvimento de um
nº 466/2012 e 510/2016, para pesquisas com seres maior domínio por parte do adolescente da linguagem
humanos. Diante disto, foram realizadas as entrevistas escrita; sendo o processo de elaboração da letra rea-
com jovens e adolescentes que gostavam de ouvir ou lizado inicialmente pelo canto e posteriormente pela
que compunham RAP. transposição para um papel.

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Além de demonstrar tal uso, em sua fala, Dexter pensando e escrevendo, vem uma letra ali, aí eu
relevou que está praticando a escrita durante as vou fazendo... [...] Vai vindo na mente, aí quando
composições: eu vejo já saiu.

Tem uma música que tem na minha mente, que Para a participante Viviane, o uso do RAP se dá
eu to tentando escrever a metade dela, eu só sei como ferramenta de resistência à privação de liber-
a metade dela. ... Eu só num sei escrever minha dade. Neste caso, o gênero musical é utilizado como
letra muito bem não. Mas dá pra eu entender. ... To um instrumento essencial para suportar o contexto da
aprendendo a escrever mais, que é melhor. Minha internação, auxiliando na sobrevivência e colaborando
letra é de forma. De imprensa, quer dizer.
para uma permanência mais favorável, dentro dos
Sobre o favorecimento da sociabilidade, identi- limites possíveis, dentro da Unidade.
fica-se a capacidade do RAP de auxiliar na convivência Me tira, eu acho que assim, muita... Que aqui a
cotidiana do participante com os demais socioeducan- gente é daquela que a gente pode pegar depressão
dos. A relação do jovem com os demais companheiros por qualquer coisa. Aí inspira, a gente se acalma,
da Unidade Socioeducativa passou por mudanças posi- fica melhor em tudo. É uma diversão. ... É. É
tivas graças ao RAP, o que colaborou para a construção melhor, a gente procura escrever, cantar, do que a
de relações interpessoais mais pacíficas. gente tá se estressando, tá em brigas, a gente foca
nas coisas melhores pra gente (Viviane).
Eu to aprendendo a convivência, tá entendendo,
que antes eu era, vamos dizer assim, um pouco A participante Kmila apresentou o RAP como uma
tímido, arrumava muitas confusão, tá entendendo, espécie de cartilha de ensinamentos para a vida. O RAP,
assim, num ficava calado pra ninguém. E através neste caso, constitui-se como um gênero musical que
do RAP, hoje em dia, eu to aprendendo a conviver
consegue reunir diversas lições de vida para os(as) ado-
com pessoas, tá entendendo. [...] E eu to apren-
dendo, respeitando, ajudando, que eu gosto de
lescentes e jovens que enfrentam a privação de liber-
trabalhar [...] E o RAP assim, tem um pouco de dade. Através do RAP este público consegue adquirir
tudo né, do RAP, força, caráter, disposição, né, é aprendizados e lições de vida compatíveis e pertinentes
isso aí o RAP, tá entendendo (Gustavo). à suas vivências.
Quando você escuta as letras e vê ali... É tipo um
Possibilidades de Uso do RAP conselho, ali você escutando um RAP. Tipo assim,
Esta categoria, intitulada possibilidades de uso ele fala na convivência que já viveu, e no mesmo
do RAP, aborda os meios através dos quais o referido momento, fortalecendo você a não se envolver,
gênero musical pode ser utilizado nas Unidades. A cate- dizendo o que é o crime, dizendo os prejuízos se
goria reúne o teor das falas dos(das) participantes que você continuar, se você permanecer ... Ali quando
fizeram menção à formas de utilização do RAP no con- você escuta você já vê, você para e pensa “É
mesmo, oh, enquanto tem filho de rico que tá ali
texto das Unidades Socioeducativas. O RAP apareceu
gastando dinheiro, rindo, e outro ali tá chorando”.
como ferramenta de lazer, instrumento de resistência à Porque ele fala a realidade que a gente tá vivendo
privação de liberdade e como fonte ensinamentos para hoje, fala que ele tá presenciando na realidade o
a vida. que a gente vive hoje (Kmila).
Como meio de lazer, os(as) adolescentes recor-
rem ao RAP nos momentos de ócio, como forma de A jovem mencionou, ainda, o retrato que o RAP
fazer o tempo passar mais rápido dentro das Unidades. faz das desigualdades de renda e dos problemas sociais
A fala do jovem Léo exemplifica este aspecto: “Aqui den- que marcam o cotidiano das periferias. A participante
tro procuro um meio, assim, de passar mais o tempo, eu Kmila também se referiu ao auxílio oferecido pelo RAP
escrevo um RAP, canto. Ajuda a passar mais o tempo. da defesa da população periférica frente aos preconcei-
Na hora que eu to mais assim, com a mente sem ter o tos sofridos. Desse modo, além de transmitir perspec-
que fazer”. Na fala do jovem Alex o elemento ociosidade tivas projeções e aspirações de futuro e mudanças de
também aparece: vida, o RAP instrui seu público a partir do retrato fiel
que faz da realidade social das periferias.
Aqui a gente num tem nada pra fazer, eu fico só
escrevendo lá dentro... Aí do nada eu já vi que ... fala da desigualdade social, fala daqueles que
eu fiz um RAP. Eu sento, aí eu fico só pensando... vem da comunidade, da periferia, defendendo

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aqueles que vem da comunidade, que as outras Anual SINASE 2017 (MMFDH, 2019) acerca do perfil
pessoas veem com outros olhos, falando que é biossociodemográficos dos jovens e adolescentes em
favelado... E tá sempre ali apoiando quem vem da privação de liberdade. Este antagonismo é o próprio
periferia, querendo ou não a gente vem de uma reflexo dos estigmas envolvidos na autodeclaração
comunidade que não tem muita renda. [...] Então
étnica como negro(a). Reconhecer-se e dizer-se como
é o que é a realidade, o RAP é a realidade que a
negro(a) é um processo marcado pelas sucessivas exclu-
gente tá vivendo hoje (Kmila).
sões e marginalizações experimentadas pelo povo negro
(Munanga, 2004).
Construção de Projeto de Vida Vê-se que apenas uma jovem possui Ensino
Nesta categoria são apresentados os projetos de Médio completo. Este aspecto encontra semelhança
vida que os(as) participantes afirmaram ter, reunindo com a literatura (Medeiros & Paiva, 2015; Yamamoto
as aspirações, planos e perspectivas que os(as) adoles- & Oliveira, 2010), segundo a qual os(as) adolescentes
centes e jovens possuem quando visualizam seu futuro. e jovens pobres e periféricos(as) experimentam inúme-
Todos os projetos de vida trazidos pelos(as) adoles- ros efeitos da expressão da questão social: ausência de
centes em suas falas apresentaram, direta ou indireta- políticas públicas de bem-estar social e falta de acesso
mente, relação com o RAP e com o uso que fazem deste aos bens socialmente produzidos. São adolescentes e
nas Unidades Socioeducativas. Alguns se relacionavam jovens que vivenciam experiências de exclusão e nega-
ao ofício de compor músicas e outros a seguir a carreira ção dos direitos legítimos e fundamentais dos quais
de ser cantor do gênero musical. deveriam gozar, enquanto cidadãos.
Sobre a composição de letras, o participante A partir de suas vivências nas Unidades, os(as)
Mano Brown trouxe à tona o desejo de compor RAP participantes enxergam no RAP um elemento de funda-
quando saísse da Unidade Socioeducativa, e apresentou mental importância. O RAP fornece, igualmente, estí-
o gênero musical como uma possibilidade de alcançar mulo e auxílio no processo de melhoria da escrita, no
um futuro melhor: “Aí nois pega, escuta, pra quando caso de um jovem que não dominava a escrita cursiva
nois sair daqui, o que? Se esforçar pra ser um cantor da letra e que estava tentando aprimorar-se para poder
de RAP, essas coisas assim. [...] E quando eu sair daqui compor RAPs. Para Souza et al. (2018), o processo de
correr atrás de um futuro melhor, só isso mesmo”. composição de letras deste gênero musical que envolve
Outro projeto de vida mencionado foi o de tor- práticas de letramento são só a nível escrito, mas alcan-
nar-se cantor de RAP. O participante considera, inclu- çando fatores culturais e políticos, ao permitir ao ado-
sive, que a carreira de cantor deste gênero musical lescente e ao jovem uma participação social compro-
possa funcionar como um meio através do qual o parti- missada com a transformação das relações sociais e
cipante poderia “vencer na vida”. raciais. Compor RAP permite ao indivíduo reinventar e
Resolvi escrever igual a eles, que no futuro eu tam- dar novos sentidos à linguagem e ao seu uso.
bém podia ser um deles né. [...] mas aí eu quero Ainda no contexto das Unidades, a sociabili-
mudar de vida, né. Ser, como é que se diz... Tipo os dade entre os jovens e adolescentes internos também
meus sons de moleque, né, um cantador de RAP. traz consigo alguns traços do que as músicas de RAP
[...] Sair daqui, botar a cabeça no lugar, trabalhar, apresentam. A melhoria da qualidade na relação entre
fazer faculdade, se Deus quiser, e seguir diante no os(as) socioeducandos(as) é fruto da própria intimidade
meu RAP, que eu tenho dom, esse é o meu dom que este gênero musical apresenta com contextos mar-
e eu vou mostrar pra todo mundo que eu consigo cados pela violência e pela exclusão. O movimento Hip
vencer (Edi Rock). Hop, em especial o RAP, conseguem exercer o papel
de mediadores no processo de produção de sentidos
Discussão sociais e pessoais, bem como de representações acerca
da realidade onde o sujeito se insere. Em sua pes-
Os(As) jovens e adolescentes entrevistados(as), quisa, Amaral (2014) encontra a explicação para esta
em sua maioria, se declararam como brancos(as) ou relação de intimidade e troca: o Hip Hop oferece aos
morenos(as). O fato de apenas uma participante ter se jovens e adolescentes que vivenciam contextos sociais
declarado como negra representa certa incompatibili- complexos e violentos um modo particular de sociabili-
dade com os dados apresentados pelo Levantamento dade, através do qual estes atores conseguem adquirir

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maiores possibilidades de reelaborarem suas vivências sobrevivência saudáveis, aparecem na fala dos(das)
cotidianas. participantes. Para Tomasello (2006), o RAP é visto
É o fato do RAP carregar consigo elementos do pelos(as) adolescentes e jovens como um modo de
cotidiano da juventude pobre que permite que o gênero realização pessoal, permitindo o fortalecimento da sen-
musical funcione como elemento pedagógico nos sação de pertença. É este gênero musical que permite
mais diversos aspectos. O RAP atua como a ponte que aos reeducandos, através do existir-resistir cotidianos, a
medeia, aproxima e oferece elementos para a inscrição descoberta de novos sentidos e a elaboração de novos
do socioeducando no contexto da privação de liberdade elementos sociais e subjetivos. Desse modo, o RAP
em direção a universos e elementos antes não conheci- opera como auxiliar na superação das exclusões e vio-
dos. Conforme abordado por Tomasello (2006), o RAP é lações do Sistema; funcionando como elemento funda-
a ferramenta que permite a estes jovens e adolescentes mental na linha de frente da resistência ao contexto da
a produção de novas perspectivas de vida. privação de liberdade (Eble, 2016).
Podemos reunir, a partir das falas dos(das) par- Como gênero musical que oferece elementos que
ticipantes, que o uso que os(as) adolescentes e jovens permitem aos jovens e adolescentes engajarem-se em
das Unidades Socioeducativas fazem do RAP percorre, projetos de vida e novas possibilidades de ações futuras,
em sua maioria, caminhos mais comprometidos com o RAP preenche, nos(as) adolescentes e jovens privados
a sobrevivência nas Unidades e com as lições de vida de liberdade, as lacunas deixadas pela presença parcial
apresentadas por este gênero musical; embora o de práticas de formação e convivência social. O RAP
mesmo também seja usado como meio de lazer. Poncio assume a forma de cartilha de ensinamentos, conforme
(2014) e Corrêa (2016) confirmam tal visão ao tratar do falas dos(das) participantes, permitindo uma série de
RAP como um componente que colabora no processo aprendizados e lições em termos de uma real educação
de resistência à prisionização (efeitos da prisão sobre a social. De acordo com Alves, Oliveira e Chaves (2016),
“personalidade” do indivíduo), sendo fundamental na o hip hop é um recurso extremamente significativo
linha de frente da sobrevivência no contexto de priva- nas práticas de cunho social, educativo e cultural, pois
ção de liberdade. além de estimular a reflexão crítica e a participação
O uso do RAP como lazer nos aponta para um cidadã por parte dos jovens em seus contextos sociais,
modelo Socioeducativo que apresenta momentos ocio- favorece o desenvolvimento de ações individuais e
sos que não deveriam existir nesta proposta. Os jovens comunitárias de mudança em busca da conquista de
e adolescentes assumem o RAP como substituto da direitos sociais.
ausência de atividades de reintegração social. De acordo Estes dados aproximam-se do que é trazido pela
com A. C. G. Costa (2006), a preparação do jovem para literatura (Gimeno, 2009; Matsunaga, 2004; Rocha et
estabelecer uma relação sadia consigo e com a socie- al., 2001) acerca da principal intenção que levou à cria-
dade deveria ser o pilar central de toda e qualquer ação ção do movimento Hip Hop: resistência à pobreza e à
empreendida no contexto da Socioeducação. marginalização, bem como elementos de identificação
O uso do RAP passa a funcionar como fornece- com o espaço social que ocupavam – espaço, este, que
dor de sentido ao ócio provocado pela vivência em um aparece na fala de uma das jovens: “E tá sempre ali
contexto que deveria ser socioeducativo, mas que não apoiando quem vem das periferias, querendo ou não
parece oportunizar ocasiões que permitam o estímulo e a gente vem de uma comunidade que não tem muita
desenvolvimento da autonomia, do empoderamento e renda” (Kmila).
do protagonismo dos socioeducandos. A “alma” da ação Não é coincidência que, o rapper Carlos Eduardo
socioeducativa, mencionada por A. C. G. Costa (2006) Taddeo, ex-integrante do grupo de RAP Facção Central,
como a preparação para o convívio social, passa a ser na música “Eu acredito” (do álbum solo de estreia “A
tomada para si pelo RAP, através do qual os(as) ado- Fantástica Fábrica de Cadáver”, lançado em 2014), den-
lescentes e jovens conseguem apreender uma série de tre os diversos conselhos que fornece aos moradores
aprendizados e lições em termos de uma real educação das periferias, menciona o não envolvimento com a
social. criminalidade. Os conselhos dados por Eduardo ilus-
O compromisso de resgatar os jovens de condu- tram de maneira extraordinária o modo como o RAP
tas infracionais e de fornecer elementos que permitam “fortalece” os(as) adolescentes e jovens privados(as)
a construção de um processo de autoafirmação e de de liberdade.

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Possibilidades e potencialidades do rap para adolescentes e jovens cumprindo medida socioeducativa

Se vingue sendo nota dez e meio / Roubando seus na privação de liberdade permite o desenvolvimento de
cargos não as vans dos correios [...] / Nosso papel uma relação de intimidade com este gênero musical.
não é ser troféu de caça / Apresentado pela civil Dessa forma, as ferramentas e possibilidades oferecidas
do lado da coca embalada / Não importa os ante- pelo RAP, inseridas no contexto social onde os reedu-
cedentes baixo poder aquisitivo / Sua sina não é
candos se encontram, e em meio a seus processos de
glóck quinze tiro... Eu acredito!
desenvolvimento, repercutem de maneira direta sobre
Com um tom confiante e carregado de estímulo, o que construirão como projeto de vida, conforme
o RAP faz sua assinatura e carimba a marca de sua fun- explorado por Leão et al. (2011).
ção social. Eduardo, nascido e criado no bairro pau-
lista Glicério, e tendo enfrentado uma infância extre- Conclusões
mamente difícil marcada pela pobreza e pelo trabalho
infantil, atesta o potencial de mudança e subversão que A pesquisa mostra que os objetivos pedagógicos
os jovens das periferias possuem, a despeito do con- das medidas socioeducativas parecem ter se restringido
texto que enfrentam. apenas aos ritos da lei, posto que os(as) adolescentes e
Os versos deste RAP cumprem o papel de rom- jovens experimentam, conforme dito por eles, longos
per o estigma de que “RAP é coisa de bandido, de momentos de ócio. Nota-se que é nesta ausência de ati-
marginal”. Eduardo destrói o argumento de que a vidades que RAP se faz presente, fornecendo sentido a
juventude das periferias está pré-determinada ao envol- esta vivência ociosa; como elemento que a preenche, fun-
vimento com a criminalidade; afirmando, inclusive, que cionando como mediador na experiência da privação de
a melhor forma de “vingança” é uma trajetória de vida liberdade, bem como ferramenta educadora e formadora.
“nota dez e meio”. Estes versos alimentam a ideia de A escolha pelo RAP pode sinalizar que os(as) ado-
que o processo de ser deixado à margem da socie- lescentes e jovens não encontram semelhante abertura
dade, vivenciado pelos jovens e adolescentes privados e possibilidade de expressão em outras ferramentas
de liberdade, dá lugar, cotidianamente, à existência, à dentro da Unidade Socioeducativa. A ausência de for-
visibilidade e à resistência empreendida por estes indi- mas possíveis e aceitáveis de expressão conduz estes
víduos feitos de puro protagonismo. adolescentes e jovens a encontrarem no RAP um meio
As falas dos(das) participantes apontam para a de adquirir conhecimentos consistentes e compatíveis
presença expressiva do RAP na construção dos proje- com suas experiências de vida.
tos de vida destes jovens e adolescentes. É este gênero Esperamos que este trabalho tenha demons-
musical que fornece elementos e possibilidades para trado, através das falas dos próprios socioeducandos,
que os(as) participantes consigam alcançar seus dese- como o RAP ultrapassa a mera definição de “forma
jos de “vencer na vida” ou “mudar de vida”. Além de de entretenimento”. O RAP ocupa o lugar da escola,
promover ao indivíduo uma mudança de vida, a cons- motiva, estimula e ensina formas de socializar, de escre-
trução de um projeto de vida colabora para que o indi- ver e de resistir diante do sofrimento cotidiano na pri-
víduo passe a ter maior clareza de seus ideais, objeti- vação de liberdade.
vos e aspirações (Baquero et al., 2011; C. S. S. Costa, O fato de o RAP ser um veículo de expressão,
2017). O fato de o RAP viabilizar esta visão nítida de através do qual os(as) adolescentes e jovens falam de
si mesmo e de seu futuro, por parte dos(das) partici- si mesmo e se suas experiências de sofrimento da pri-
pantes, é ilustrada pelos versos compostos e cantados vação de liberdade demonstra o potencial catártico que
pelo participante Mano Brown: “Quero sair daqui, eu o gênero parece ter para estes(as) participantes. Além
penso em mudar. Eu quero um emprego e penso em disso, considera-se que o RAP pode funcionar como fer-
me formar. Nessa vida do crime só tenho uma saída. ramenta potente para um trabalho de educação social
Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida”. nas unidades socioeducativas; oferecendo um meio
Infere-se que a decisão em relação a tornar-se um de integração e de construção de identidade por parte
cantor de RAP ou escrever RAP tenha sido possibilitada dos(as) adolescentes e jovens através da música.
pela apropriação que estes adolescentes e jovens fazem Reitera-se, aqui, o desejo de garantir que a voz,
do gênero musical dentro do contexto da Unidade. O as rimas e os versos destes adolescentes e jovens
fato de o RAP conseguir agregar e retratar os elementos sejam ouvidos e compreendidos para além de uma
da realidade vivenciada por estes adolescentes e jovens visão que apenas racionaliza e extrai de manifestações

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Alice Cristina Silva dos Santos, Psicóloga pela Universidade


Federal da Paraíba – UFPB, é psicóloga reabilitadora na Fundação
Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência-PB –
FUNAD/PB. Endereço para correspondência: Rua Luzitânia, 167
(1º andar), Roger, João Pessoa – PB, CEP 58.020-090.
Telefone: (83) 9 9956-7207.
Email: alice.crs1@gmail.com

Maria de Fátima Pereira Alberto, Doutora em Sociologia


pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Pós-Doutora em
Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN,
é Professora Titular da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Email: jfalberto89@gmail.com

Aíla Souza Muniz, Psicóloga pela Universidade Federal


da Paraíba – UFPB, é Psicóloga Clínica e colaboradora do
Conselho Regional de Psicologia da Paraíba (CRP-13). Email:
ailamuniz@hotmail.com

Recebido em 01.set.19
Revisado em 16.abr.20
Aceito em 18.mai.20

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