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O DE SALES ne de Genebra S. FRANCI é Bispo e Pi FILOTEIA ‘¢ ow Introdugao 4 Vida Devota | FREI JOAO JOSE P. DE CASTRO, 0. F. M. Vir EDIGAO 1958 EDITORA, VOZES LIMITADA, PETROPOLIS, R. J, RIO DE JANEIRO — SKQ PAULO BELO HORIZONTE oe RE POR” CoM: REVMO, SR. DOM CUNHA’ CINTRA, Ei FRED DES! TODOS MOP RoE MA Tou SSA0_ PSPECIAL MANUEL br OS DIREITOS RESERVADOS S, FRANCISCO DE SALES Vida. — S. atraente pi retrato da_cai to de 1567, or de Sales, na cia sob os cui Sales e Dotado de fundo e¢ de gr se desde log seit coracio permanec! Francisco de Sales, que em si jadlos de_seus de Sionas, cia_ viva, nde. forg a estudos sérios ao constante de a Paris isco com ia em P se até por um voto perpétao vado do gr Ao pais que contr ndo de nobre familia, hoje Franca, anos o jovert Francisco passow a feliz ado Até aos 17 S6 entao é que foi cursar as aulas do colégio de Annecy. senti 8, to puro e jntacto nento ese a sui to esméro e nao se desc dav: pro- de vontade, &ntregou- torna- vida. de estudar entre- 1999799992999 9979999999939993933939333999 10 Filotéia : reita de honrarias e dignidades no mundo, Fran+ cisco, porém, j4 tinha decidido dedicar-se ao es- tado ‘eclesidstico e viver imicamente para Deus, 0 tinico objeto de sew amor. Inquebrantével neste propésito, apesar de t6das as contradigées do pai e parentes, dominou tédas as dificuldades, e aos 18 de dezembro de 1593 recebeu o Sacerdécio das maos do bispo de Genebra, Dom Claudio Granier, Entre os muitos trabalhos que assumiu em sua atividade de padre, merecem especial mencao: a reconciliagao dos habitantes de Chablas com a Igreja ¢ A sua viagem a Paris, onde pregou os sermaes quaresmais, Falecendo em breve o bispo_D. Granier, todos os olhos se volveram para Francisco, como _o seu mais digno sucessor; e 0 Papa, que nao ignorava gs herdicas virfudes do zeloso sacer- dote, néo'duvidou um instante em dar 0 con- sentimento, Em 1602, depois de umi retiro espiritual de 20 dias, Francisco foi sagrado bispo de Genebra, diocese essa que se tornou até a sua morte a are- na de muitas lutas e trabaihos em prol das ove- thas do rebanho de Cristo. A custa de muita ab- negagao tornava-se tudo para todos, a fim de ga- nhar a todos para Jesus Cristo. Uma caridade santa e sempre igual, que se manifestava prin cipalmente para com’ os clérigos subalternos e para com os pobres e desamparados, uma hu- mildade e uma simplicidade de coracao inexcedi- veis, uma mansidao e paciéncia inalteraveis em todas as vicissitudes da vida — cis ai os seus tragos mais caracteristicos. A Congregacdo das 8. Francisco un Visitan por éle juntamente com Santa Francisca de Chantal, sua filha espiritual, é um monumento perene de seu espirito belis- simo e de seu coracio todo terno e compassivo. A sua vida, tao cheia de trabalhos, foi rela- tivamente curta, Aos 55 anos de idadé ja entre- gava a alma nas m4os do Criador, de seu Deus, linico objeto de seu amor, aos 28 de dezembro de 1622, Canonizado em ‘1665, pelo Papa Ale- xandre VII, e Pio IX, em 1877, acedendo ao pe- dido de muitos bispos, elevou-o a dignidade de Doutor da Igreja. Em 1923, foi deciarado por Pio XI Padrociro da Boa Imprensa e dos jor- nalistas catdlicos. Obras. — No meio de_suas_miltiplas e impor- tantissimas ocupacées, Sao Francisco de Sales achou, entretanto, tempo bastante para uma gran- de e’ preciosissima atividade literaria, exarando excelentes obras de ascética crist4, que primam principalmente pela suavidade, solidez, simplici- dade e uma sublime elevacdo de espirito. Eis aqui as principais: 1. Filote » ou Introducéo A vida devota. 2. Teotimo ou Tratado do amor de Deus. 3. Controvérsias. Instrugdes as Inmas da Visitacao. Cartas (cérea de 2,000). Para a apreciacio dessas_ obras, limitamo-nos aqui a transcrever alguns textos de insignes au- tores que néo acham palavras para encomi condignamente: “Os escritos de S, Fran Fénelon — abundam de graga e Nenhum outro santo — © padre Hu- uet — contribuin tanto como S. Francisco de les, com seus escritos para fazer inguém sabe como tle — acrescenta o pa dre Alet (no livro: Divinas oportunidades do dou toramento de §. Fr. de 8.) — na al- ma prostrada, inerte, € al faceis da sal Sem estor- cobre- es San que. durante sas fléres da piedosos opiis- a abel anos_ reco! cristé 0 si S. Fr amor ardente, 0 raficos, muito dessa nos sobre) princip; itos, pela regular 0 da doutr idade por fdas ae ‘iéneia as sedugoes da poe praz nas belezas da © impele para as belezas do cé criatura € um prisma céres o faio ti A essas apreciagdes e fouvores acrescentar outros testemunhos de es forar Gre VII, Mons, de Segur. Mas para Abra-se éste livro igo a folheie-se 0 Tratado do Amor de L se & m&o as suas Cartas. Outro testem ‘0 valor dos ese Vida paginas, {20 cheias de‘uma celeste ung: ©. tradutor e 18 9299G69099999329F99HFFFIFHFDIFDAOGSANSHHABRA “ ry “ PREFACIO DE S. FRANCISCO DE SALES Peco-te, caro leitor, que leias este prefacio, tan- to para a tua como’ para a minha satisfacio. Uma mulher por nome Glieéria sabia distri- ir as flores e formar um ramalhete com tanta hilidade que todos os seus ramalhetes pareciam uns dos outros. Conta-se que o céle- Pausias, tendo procurado imitar com © seu pincgl tamanha variedade, nao a pdde con- re declarou-se vencido. De modo semelhan- te 0 Espirito Santo -dispde e arranja com uma vel variedade as ligdes de virtude que nos da pela boca € pela pena de seus servos. E” sem- pre a mesma doutrina, apresentada de mil mo- dos diferentes. Na presente obra outro fim nao temos em mira sendo repetir o que ja tantas vé- ze se tem dito e escrito sobre esta matéria. Séo esmas flores, benévolo leitor, que te venho r aqui; erenca que ha € que o vamalhete estd disposto diversamente A maior parte dos autores que trataram sobre a devocio dirigiram-se exclusivamente a pessoas retiradas do mundo ow ao menos se esforcaram por Thes ensinar o caminho déste retiro. O mew intento, porem, é ser util agueles que se véem obrigados a viver no meio do mimdo e que nao podem levar uma vida diversa da dos outros. Acontece muitas vézes que estas pessoas, sdb 0 Pretéxto duma impossibilidade pretensa, nem se- quer pensam em aspirar a devocao. ‘Imaginam que, assim como animal algum ousa tocar na- quela erva chamada Palma’ Christi, do mesmo modo pessoa alguma que vive no meio de negé- cios temporais pode fomentar pretensdes a palma da piedade cristé. Mas vou mostrar-Ihes gue mui- to se enganam e que a graca é em suas opera~ gGes ainda muito mais jecunda que a natureza As madrepérolas sao banhadas pelas aguas do mar @ contudo ndo sao penetradas delas; perto das ilhas de Celidénia existem fontes de agua doce no meio do mar; os piranetas entre ag chamas queimar; as nerosas vivem no mundo sem impregnar-se do Seu espirito, acham a doce fonte da devogao no meio das aguas amargas das corrupcses. mun- danas sem queimar as asas de santos desejos du- ma vida virtuosa. Nao ignoro as dificuldades do grande trabalho que empreendo e bem desejara que outros mais doutos e santos o tomassem a si; todavia, apesar da minha impoténcia, farei o que possivel fr de minha parte, para’ auxi ésses coragées generosos que aspiram A devocdo. N fesejo_nem minha intencéo pu blicar esta obra; uma alma de esmerada virtude, tendo recebido de Deus, hd tempo, a graca dé aspirar a vida devota,, pediu-me the ajudasse a conseguir éste designio. Muito devia eu a essa Pessoa, que alids ew julgava plenamente disposta Para ésse Arduo trabalho, Considerei, pois, co- mo um dever, Ja, 0 melhor possivel, dei- xando-lhe uma direcéo por escrito, que Ihe po- deria ser itil no futuro. Aconteceu que essa obra 16 Futotéia caiu nas maos de um santo e sabio religioso que, tendo em yista o proveito que muitas almas dai poderiam haurir, me aconselhou publicé-la. De bom grado anui ao seu conselho, porque ésse santo homem tinha grande influéncia ¢ autori- dade sébre mim. A fim de qumentar um pouco a utilidade desta obra, eu a revi © pus em ordem, acrescentando diversos avisos ¢ conselhos, conforme me_permi- tia 0 pouco tempo de que disponho. Ninguém procure aqui uma obra exarada com esméro, E’ apenas uma série de avisos que julgo necessé- tise a que procure’ dar uma torma clara e precisa. Quanto aos ornamentos de estilo, nem se- quer pensei néles; tenho mais que fazer Dirijo minhas palavras a Filotéia, porque Filo- téia significa uma alma que ama a Deus e € para essas almas que escrev Téda a obra se divide em. cinco partes: na primeira esforco-me, por meio de alguns avisos @ exercicios, a converter o simples desejo de Filotéia numa resolugdo decidida, tomada depois da confissdo geral, por uma protestagio firme e seguida da sagrada comunhao. Esta comunhao, em que ela se entrega inteiramente ao divino Sal- vador, enquanto o Salvador se da a ela, fd-la entrar auspiciosamente no amor divino. Para a levar adiante, mostro-Ihe dois grandes meios de se unir mais e mais com a Majestade divina: 0 uso dos sacramentos, pelos quais Deus vem a nds, € a oracdo, pela qual nos vamos a Deus. Nisto consiste a matéria da segunda parte. A terceira contém a pratica de diversas virtudes que muito contribuem para o adiantamento espi- | | \_ L a __Pretaeio Ww ritual; limito-me, porém, a certos avisos particula- res que ndo se podem achar de si mesmos ou raramente se encontram nos autores. Na quarta parte iaco ver a Filotéia os embustes do ini- migo e lhe mostro como livrar-se déles e ven- cé-ios, Por fim, na quinta parte, eu levo a alma a soliddo, para que ai se refrigere um pouco, tome alento e recupere as fdrcas, de modo que possa caminhar em seguida, com mais ardor, nas veredas da vida devota. Nosso século é extremamente bizarro e jd es- tou vendo dizerem-me que uma obra semelhan- te devia ser escrita por um religioso ou ao me- nos por alguém que professe a vida devota ¢ nao por um bispo encarregado duma diocese tio dificil como a minha, a qual requer para si toda a atencio do prelado. Mas, carissimo leitor, posso responder, com 8. Dionisio, que sio exatamente os bispo$’ que an- tes de todos estéo incumbidos de encaminhar as almas para a perfeicio. Eles ocupam o primeiro lugar entre os homens, como os serafins entre os anjos, ¢ o seu tempo no pode ser empregado duma’ forma melhor. Os antigos bispos e padres da Igreja, que nao se ocuparam menos de suas funcgdes do que nés, encarregaram-se, entretanto, da direcao de certas almas, que recorriam aos seus avisos ¢ A sua pru- déncia. F’.0 que se vé por suas cartas e faziam- no a exemplo dos apéstolos, que, por mais so- brecarregados que estivessem com a evangeliza~ go do mundo, acharam tempo para escrever as suas epistolas, cheias dum amor e afeto extraor- Filotéia — 2 PRAMAS ARHAAASOSAAREOPOSIOSSOVOEBPIHOSDD 18 Filotéia dinrios para com as diversas almas, suas: filhas espirituais, ‘Quem ndo sabe que Timiteo, Tito, Filémon, Onésimo, Santa Tecla, Apia eram filllos espiri- tuais muito caros ao grande S. Paulo, como S. Marcos e Santa Petroniiha o eram a S. Pedro? E ponho neste niimero a Santa Petronilha, porque, como sabiamente provam Bardnio e Galénio, nao foi filha carnal, mas espiritual de S. Pedro. E S. Joao nao escreven uma das suas Epistolas Ca- ndnicas & devota senhora Electa? | E! penoso, confesso-o abertamente, conduzit as almas em particular, mas ésse trabalho nao dei- xa de ter as suas consolagées, Os ceifadores nun- ca estio t90 satisfeitos como quando tém muito que ceifar. E’ um trabalho que alivia e fortitica 0 coracio. Diz-se que, se a fémea do tigre acha um de seus filhotes que © cacador abandona no meio do caminho para cacar outros, imediata- mente o carrega, por mais pesado gue seja, ¢, ajudada pelo amor de mae, corre ainda mais de- pressa do que de costume, Como, pois, um cora- cao paterno nao tomara a si uma alma que an- scia por sta propria -perfeigdo, carregando-a_co- mo uma mae a seu fiho, sinta embora'o seu peso? Sem thivica, ésse coracio deve ser verdadeira- mente paterno; razio pela qual os apdstolos € os homens apostélicos chamavam as seus disei- pwios de filhos e até de filhinhos De mais, caro leitor, é verdade que eserevo s6- bre a vida devota, sem que possua cu mesmo a devacao, mas ndo'sem que tenha um grande de- sejo dea ter; e & éste desejo que me anima, Um douto dizia Um bont modo de aprender é Preficlo 19 estudar: um melhor, é esentar, mas o melhor de todos, € ensinar. Acontece muitas vézes, diz San- to Agostino a piedosa Florentina, que, dando, se adquire um titulo para receber e que, ensinan. do, nos obrigamos a aprender. Diz-se que os pintores se apegam nao s6 aos Quadros que pintam, mas também as‘ coisas que querem desenhar. Mandou Alexandre ao insupera- vel Apeles que the pintasse.a formosa Campaspe, sua amada. Apeles, tendo que fixar demoradat mente Campaspe para ir eopiando suas. feiches na tela, acabou gravando-a também no coracdo, Apaixonou-se tanto por ela que Alexandre bon dosamente Iha deu em casamento, privando-se, por amor déle, da mulher que mais amou na terra E nisso, diz Plinio, revelou 2 grandeza de seu coragao, tanto quanto poderia manifesté-la numa das suas _maiores vitérias, Meu caro leitor, pen= 80 que, sendo eu bispe, Nossa Senhor quer que eu desenhe nos coracies nao sé as virtudes ton muns, como também a devocio que Ihe € tao ra; e eu o faco de bom grado, eumprindo o meu dever e esperando que, gravando-a no es- Pirito dos outros, © meu também reveberd alg ma coisa, E a divina Majestade, vendo que me apego vivamente a devocio, se dignard de infun- di-fa em meu coracao. A bela e casta Rebeca, dane do de beber aos camelos de Isaac, tarnowse sua espdsa_e recebeu déle os brincos'e pulseiras de ouro. Espero, pois, também, da imersa bondade de meu Deus, que, conduzindo as suas caras ove- Ihas as Aguas salutares da devogao, éle escolhe- r4 minha alma para sua espOsa, pondo em meus ouvidos as palavras de oure de seu amor e em 2 20 Filotés meus bracos a forga de praticd-las. Nisto con siste, pois, a esséncia devocao verdadeira, que suplico a’ Majestade divina de conceder a’ mim ea todos os membros da Igreja, & qual quero submeter para sempre meus escritos, minhas acées, minhas palavras, m ntade e meus pensamentos. Annecy, no dia de Santa Maria Madatena, 1609. ORACAO DEDICATORIA Si ‘0’ doce Jesus, meu Senhor, mew Salvador e met Deus, aqui me fendes prostrado diante de vossa Majestade, para oferecer e consagrar éste escrito & vossa ‘¢! Vivificai com vossa bén- ¢do as palavras que contém, a fim de que as Almas, para quem as escrevi, possam delas reti~ rar aS inspiragoes sagradas’ que thes desejo € particularmente a de implorar em meu favor a vossa imensa misericérdia, Nao se dé o caso de que, mostrando acs outros o caminho da pieda- de neste mundo, venha eu a ser eternamente re- provado e confundido no outro. Antes pelo con- trario, em companhia di ir a cantar fo, a ex- ico, testemunho de fidelidade, no meio dos perigos ¢ vicissitudes desta vida mortal: VIVA JESUS! VIVA JESUS! Senhor Jesus, vivei € reinai em nossos co- racdes pelos sécilos dos séculos. Assim seja”. PARTE 1 Avisos e exercicios necessirios para uma alma, que comeca a sentir os p desejos. da vida devota, até possuir uma von- tade resoluta e sincera de abraga-la A natureza da devogio Aspiras A devocio, Filotéia, porque a fé n le sumamente agrad vel & Majestade divina. Mas, como cs pequenos erros em que se cai a é vi modo quase necessario que, vas ¢ falsas. E” mister saibas discernir uma das outras, para que te deixes enganar e no te dés a exercicios de uma devocdo’ tola e supersticios Um pintor por nome io, ao debuxar painéis, costumava desenhar néles aquelas mi Tes a quem consagrava estima e apréco. E’ éste um emblema de como cada um se afigura e tra- ¢a a devocdo, empregando as cores que Ihe su- gerem! as su ies. Quem & da 999980988 9099999993999999909090900300 22 Fitotéia, ao jejum tem-se na conta de um homem devoto, quando 6 assiduo em jejuar, embora fomente em set coracio um ddio oculto; ¢, ao passo que nao ousa humedecer a lingua com’ umas gotas de vi- nho ou mesmo com um pouco de 4gua, receoso de iio observar a virtude da temperanca, nao se faz escriipulos de sorver em largos haustos tu- Goo que the insinuam a murmuragdo ea ca Iii ‘icidvel do sangue do proximo, Uma mu- iher que recita diariamente um acervo de ora es se considerard devota, por causa déstes exer- ios, ainda que, fora déles, tanto em casa co- mo alhures, desmande a lingua em palavras co- Idrieas, arrogantes ¢ injuriosas. Rste alarga os cordies da bélsa pela sua consideragio com os pobres, mas certa 0 corag&o ao amor do préximo, a quem nao quer perdoar. Aquéle perdoa ao ini- migo, mas satisiazer as dividas é 0 que nao faz sem ser obrigado a forca, Todas estas pessoas fém-se por muito devotas ¢ sao talvez ti tidas no mundo por {ais, conquanto realmente de modo algum o sejam. Indo os soklaclos de Saul a casa de David, pa- rq prendé-Jo, entreteve-os em conversa Micol, sua esposa, para ocultarthes a sua fuga; mandou me- ter num leito uma estétua coberta com as roupas de David e com a cabeca envolta em pélos. Feito isso, disse aos soldados que o esposo- estava en- férmo e que presentemente estava dormindo, E’ ésse o trro de muitos que aparentam um exterior muito devoto e sao tides por homens realmente espiritua S que, na verdade, nao passam de mas de devocao. a A ‘ ' Parte 14 23 A verdadeira devogao, Filotéia, pressupde 0 amor de Deus, ou, methor, ela mésma é 0 mais Perfeito amor a Deus. Esse amor chama-se gra- , porque adereca a nossa alma e a torna bela Sos ollos de Deus. Se nos da férca e vigor pa- ta praticar o bem, assume o nome de caridade E, se nos faz praticar o bem fregiiente, pronta e cuidadosamente, chama-se devogio e atinge en- tio ao maior grau de perfcicdo, Vou esclarect-lo com uma. explicagéo tao simples guao natural, Os avestruzes tém asas, mas nunca se elevam acima da terra. As galinhas voam, mas t¢m um yoo pesado © 0 levantam raras vézes © a pouca altura, O voo das guias, das pombas, das an- dorinhas 6 veloz e¢ alto e quase continuo. De mo- do semelhante, os pecadores séo homens. terre- nos ¢ véo se arrastando de continue A flor da terra. Os justos, que sao ainda imperieitos, ele- vam-se para © céu pelas obras, mas fazem-no lenta e raramente, com uma espécie de peso no coracdo, So s6 as almas possuidoras de uma devocio sélida que, a semelhanga das dguias e das pom- bas, se exalcam a Deus por um voo vivo, st- blime e, por assim dizer, incansayel. Numa pa- lavra, a devocio nao é nada mais do que uma agilidade e viveza espiritual, da qual ow a ca- Tidade opera em nés, ou mos mesmos, levados pela caridade, operamos todo o bem de que so- mos capazes, A caridade nos faz observar todos os manda- mentos de Deus sem excecio, e a devocdo faz com que os observemos com toda a diligéncia e 24 Pilotéia fervor possiveis. Todo aquéle, portanto, que n&o cumpre os mandamentos de Deus nao ¢ justo e, muito menos, devoto; para se ser justo, é neces- sario que se tenha caridade e, para se ser devoto, € necessario ainda por cima que se pratique com um fervor vivo e pronto todo o bem que se pode. E como a devocao consiste essencialmente num amor acendrado, ela nos impele e incita nao sd- mente a observar os mandamentos da lei de Deus, pronta, ativa e diligentemente, mas também a pra- ticar as boas obras, que sio apenas conselhos ou inspiragdes particulares. Um homem ainda con- valescente duma enfermidade anda com um passo Jento e sé por necessidade: assim um pecador re- cém-convertido vai caminhando na senda da sal- vacio devagar e arfando, sé mesmo pela neces- sidade de obedecer aos ‘mandamentos de. Deus, até que se manifeste néle o espirito da piedade Entéo, sim; como um homem sadio e robusto, caminha, nao sé com alegria, como também en~ vereda corajosamente pelos caminhos que parecem intransitaveis aos outros homens, para onde quer que a voz de Deus o chame, ja pelos conselhos evangélicos, j pelas inspiracdes da graca.. Por fim a caridade e a devocio nao diferem mais en tre si do que o fogo da chama; a caridade & 0 fogo espiritual da alma, o qual, quando se levan- ta em labaredas, tem o nome de devocao, de sorte que a devocao nada acrescenta, por assim dizer, ao fogo da caridade além dessa chama, pela qual a caridade se mostra pronta, ativa e diligente na observancia dos mandamentos de Deus e na pra- tica dos conselhos e inspiragdes celestes. Parte L 2 ‘caPiTULo IL Propriedades e exceléncia da devocio Aquéles que desanimavam os israelitas da em- présa de conquistar a terra prometida, diziam-Ihes que esta terra consumia os habitantes, isto é, que os ares cram téo insalubres que ai nfo se po- dia viver, e que os naturais da terra.eram homens barbaros e mionstruoses a ponto de comer os setts semelhantes, como gaianhotos. Déste modo, Filo- téia, 0 mundo anda a difamar diariamente a santa devocdo, espathando por toda parte que ela torna os espiritos melancélicos e os caracteres insupor- taveis © que, para persuadir-se, ¢ bastante con- templar © semblante enfadonho, triste ¢ pesaroso das pessoas devotas. Mas, como Josué e Caleb, que tinham ido explorar a terra prometida, asse- guravam que erami, muito ao contrario, paragens deliciosas e encantadoras por sua fertilidade e beleza, assim também todos os santos, animados do Espirito Santo ¢ da palavra de jesus Cristo, asseveram que a vida devota € suave, aprazivel e ditosa, Ve o mundo que as_pessoas devotas jejuam, rezam, soirem com paciéncia as injirias que thes fazem, cuidam dos enfermos, déo esmolas, dam longas vigilias, reprimem os impetos da co- lera, detém a Violéncia de suas paixdes, renun- ciam aos prazeres sensuais e fazem tantas ou- tras coisas que sao de si custosas e contrdrias A nossa natureza, mas 0 mundo ndo vé a devocio interior, que torna tudo agradavel, doce e facil Presta ‘atengio as abethas no lomilho: 0 sumo que ai encontram é muito amargo, mas, ao chu- a 999999990909009339399399339999939339399839 pareni-no, as abelhas 0 convertem em mel. Con- jessamos a puridade, alias mundanas, que no coméso muitas amarguras encontram as pessoas devotas nos exercicios de mortificacdo e penitén- cia, mas com o tempo e a prdtica essas amar- guras se vo mudando em suavidades e delicias Os_mértires, no meio das chamas e amarra- dos As rodas, pensam estar deitados num leito de flores, perfumado deliciosamente. Ora, se_a tlevocdo pode suavizar por sua dogura os maio- res formentos e a mesma morte, que ndo fard ela ha pratiea das virtudes, por mais dificuitosas e ‘as que sejam! Nao se poder dizer que a deyocdo € para esses atos de virtude o que o agicar @ para as frutas que ainda estio verdes, suavizando-Ihes 0 sabor, €, se ja esto maduras, tirando-Ihes 0 resto que ainda possa sobrar de amargo? Na verdade, a devocio sozona todas as coisas com uma_afabilidade extrema; atenua 5 amargor das mortificagies; preserva 0 pesar dos pebres; consola os oprimidos: humilha o orgulho ‘a prosperidade; soleva o enjéo da solidao; tor- na recolhidos es que andam a lidar com o ‘mun- do; para nossas almas 0 que o fogo & no ine verno € 0 orvalho no verao; faz-nos moderados na abundancia e pacientes no sofrimento e pobre- za; tira proveito tanto das honras, como dos des- prezos; enfrenta com a mesma disposigio o pra~ zer e a dor e inunda nossa alma duma admird- vel suavidade. Contempla a escada de Jacob, a qual ¢ uma ver- dadeira imagem da vida’ devota. Os dois lados da escada representam, um a oracdo que suplica 0 amor de Deus e 0 outro a recepgao dos sacra Parte I, 2. Ea mentos que 0 conferem, Os degraus sao os diver- sos gratis de caridade, pelos quais se sobe de virtude em virtude, ora’ abaixando-se até a servir © proximo e suportar-ihe as fraquezas, ora guin- dando o espirito, pela contemplacdo, até a unido caritolégica com’ Deus. Considera como Qsecs anjos resplandecentes, re- vestidos dum corpo humano, sohem € descem’ pe- la escada, lembrando-nos os verdadeiros devotos, que possuem um espitite evangélico. Parecem jo- vens € com isso esiéo indicando o vigor e a ati- vidade espiritual da devocio. Suas asas represen- tam o voo ¢ enlévo da alma para Deus, por meio da oracao; e, como éles tém também pés, parece que nos estio inculcando 0 nosso dever, aqui na terra, de viver com os outros homens em santa harmonic € sociedade. A beleza e o jabilo que transparccem em seus semblantes nos ensi- nam com que tranqiiilidade devemos encarar os incidentes ca vida; sua cabeca, suas maos © pés descobertos d&o-nos a refletir que nenhum cutro motivo devemos ter cm nossas intencies e acdes além do de agradar a Deus. O resto do corpo trazem-no coberio de uma gaze finissima, dando- nos a entender que, na necessidade de nos ser- virmos do mundo ¢ das coisas mundanas, deve- mos tomar shmente o que € de todo imprescindivel, Cré-me, Filotéia, que a devocto é a rainha das irtudes, sendo a’perfeicao da catidade como a nata para o leite, a flor para a planta, o brilho para a_pedra preciosa, o perfume para o bal- amo. Sim, a devocao exala por toda parte um odor de suavidade que conforta o espirito dos homens e alegra os anjos, 28 Filotéia CAPITULO mn A devocao é util a todos os estados e circuns- tancias da vida O Senor, criando o universe, ordenou as ar- vores que produzissem frutos, cada uma segundo a sua espécie; e ordenou do’ mesmo modo a to- dos os fieis, que sio as plantas vives de sua Igre- ja, que fizessem dignos frutos de picdade, cada um segundo o sew estado © voca¢ao. Diversas sio as regras que devem seguir as pessoas da socie. dade, os operdrios e os plebeus, « mulher casada a solteira e a vitiva. A pratica da devocdo tem que atender & nossa satide, as nossas ocupagies, e deveres particulares. Na verd ade, Filotéia, se- ria porventura louvavel se um bispo fosse viver to solitario como um cartuxo? se pessoas casa das pensassem tio pouco em ajuntar pare si um pectilio, como os capuchinhos? se um operario freqiientasse tanta a igreja como um religiose o cOro? se um religioso se entregasse tanto a obras de caridade como um bispo? Nao seria ridicula uma tal devocio, extravagante e insuportavel? En- tretanto, & 0 que se nota muitas vézes, eo mune do, que nao distingue nem quer distinguir a de~ vosao verdadeira da imprudencia daqueles que a praticam désse modo excentrico, censura ey tupera a devocao, sem nenhuma razao justa e real Nao, Filotéia, a verdadeira devocdo nada des- trdi; ao contrario, tudo aperfeicoa. Por isso, ca- 80 uma devogao impeca os legitimos deveres da vocacéo, isso mesmo denata que nao é uma de- vocao verdadeira. A abelha, diz Aristoteles, tira i i ‘ Parte I, 8 © mel das fléres, sem as murchar, e as de intactas e frescas como as achou; a devogao ver- dadeira ainda iaz mais, porque nao so em nada estorva 0 cumprimento'dos deveres dos diversos estados e ocupacses da vida, mas também os tor na mais meritosos e lhes confere o mais lindo ornamento. Diz-se que, lancando-se uma pedra preciosa no mel, esta se toraa mais brilhante e vigosa, sem perder a sua cor natural; assim, na jamilia em que reina a devocéo, tudo’ melhora e se torna mais agradavel: diminuem os cuidados pelo sustento da familia, o amor conjugal € mais sincero, mais fiel o servigo do Principe, © mais naves e eficazes os negécios € ocupagdes. £7 um ¢rro e até uma heresia querer expulsar a devocdio da corte dos principes, dos exércitos, da tenda do operdrio e da vivenda das pessoas casadas. E’ verdade, Filotcia, que a devocio me- ramente contemplativa, mondstica ou religiosa, nao se pode exercer nesses estados; mas existem amti- tas outras devogies adequadas a aperfeigoar os que as seguem, J no Antigo Testamento deparam-se-nos insig- nes exemplos Ua vida devota no lar doméstico; assim, Abrado, Isaac, Jacob, David, Job, Tabias, Sara, Rebeca, Judite e, na nossa era, S. Jost, LE dia e S. Crispim levaram uma vida devota’ nos seus trabathos manuais, Santa Ana, Santa Mar Santa Monica, Aquila e Prisca, nos trabaliios da casa, 0 centuriao Cornélio, 8, Sebastiio e S, Mau- ricio, no exército, 0 grande Constantino, Santa Helena, S. Luis, Santo Amadeu e Santo Eduardo, em seus tronos. Aconteceu, de fato, que muitos 30 Filotéia perderam a perfeicdo nas solidies que sto tao propicias & santidade e houve muitos também que a conservaram no meio do bulicio do mundo, por mais prejudicial que Ihe fésse. “is — diz S. Gregorio —— nao guarden na solidio aquela castidade admiravel que tinha con- servado no meio duma cidade corrompida”, Enfim, onde quer que estivermos, podemos e devemos aspirar continuamente a. perfeicdo. CAPITULO IV Necessidade de um diretor espiritual para entrar © progredir nos caminhos da devocao Querendo Tobias mandar o filho a uma terra longingua e estranha, disse-Ihe: Vai em busca de aigum komem gue te seja ficl, gue vd contigo EVo que te digo também a fi, Filotéia; se tens uma vontade sincera de entrar nas veredas da devocdo, procura um guia sabio e pratico que te concuza. Esta 6 a adverténcia mais necess4- ria_e importante. Em tudo o que fazemos — diz o devoto Avila so femos certeza de estar fazendo a vontade de Deus, enquanto néo nos apartamos daquela obediéneia submissa, que os santos tanto enco- mendaram e praticaram tao. fielmente. Ouvindo Santa Teresa da ausieridade e pe niténcias de Catarina de Cardona, concebeu gran- de desejo de imita-la e foi tentada a nao seguir © sew confessor, que Iho proibia Eutretanto, como se submetesse, Nosso Senhor Ihe disse: “Minha filha, o camino que segues & Parte I, 4 sh bom e seguro; tu estimavas muito essas penitén- cias, mas eu estimo mais ainda tua obediéncia” Desde entio ela devotou-se tanto a esta virtude que, além da obediéncia devida a sens superio- res, ela se ligou, por um voto especial, a seguir a direcdo de um homem prudente e de bem, o que sempre a edificon ¢ consolou muito, De mo- do semelhante, j4 antes e depois dela, muitas al- mas santas, que gueriam vive inteiramente sob a dependéncia de Deus, submeteram a sua propria vontade 4 de um de seus ministros. E’ essa a sujeicao humilde que Santa Catarina de Sena tan- to encomia em sews didlogos. Foi também a pré~ tica da santa princesa Isabel, que prestava uma obediéncia perteita a direcéo do sabia Conrado. Nem outro foi o conselho que, ao morrer, deu a S. Luis, seu fitho “Confessa-te a mitido e escollie um confessor insigne por sua ciéncia ¢ sabedorid, 0 qua: te ajude com suas Iizes em tudo 0 que for neces- sario para a tua direcéo espiritual O amigo fiel & uma forte protecdo ~ diz a Sa- grada Escritura — guem 0 achow ackow um ie Souro. O amigo fiel é unt medicamento de vida e de imortalidade, ¢ os que temem o Senkor acha- raéo um tal amizo. Trata-se aqui principalmente da imortatidade da vida futura; e, se_a quisermos aleancar, con- vém ter um amigo fiel ao nosso lado, que di- tija as nossas acoes com uma méo segura, atra vés das ciladas © embustes do inimigo, Ele sera para nés um tesouro de sabedoria para evitar o mal e praticar o bem de uma maneira mais perfeita; Gle nos dara confbrto para. aliviar-nos 32 Filotéia em nossas quedas e nos dard a remédio mais necessario para a cura pericita de nossas en- fermidades espirituais Mas quem achard um tal amigo? Diz o sabio que € aguéle que ieme a Deus, isto é, 0 homem humilde que anseia com ardor o seu adiantamen- to espiritual, Se é, pois, tao importante, Filotéia, ter um guiz. experimentado nos caminhos da devocao, pede com todo o fervor a Deus que te mande tm segundo o seu Coragdo e nao duvides nem um instante que Gle te enviaré um diretor sdbio e fiel, ainda que fésse um anjo do céu, co- mo ao jovem Tobias, De fato, ésse amigo deve ser um anjo para ti, isto é uma vez que o tenhas obtido de Deus, ja ndo_o deves considerar como um simples ho- mem. Nao deposites a tua confianga néle sendo com respeito a Deus, que, por seu ministério, te quer gular e instruir, suscitando no seu coracio © nos seus labios os sentimentos e as palavras necessarias para a tua direcao, Por isso deves ouvi-lo como @ um anjo que vem do céu para te dirigir, Ajunta a esta confianga uma sinceridade a toda prova, tratando-o franca e abertamente e deixando-Ihe ver em tua alma todo o bem e o mal que ai se encontram: o bem serd mais certo e 0 mal menos profundo; a tua alma sera mais forte nas adversidades ¢ mais moderada nas consolagies, Unt religioso respeito também de- ves ajuntar A confianca, de tal forma que o res- peito nao diminua a contianga, nem a confianga © respeito. Confia néle como uma filha em seu pai e respeita-o como um filho sua mae. Numa palavra: esta amizade, que deve unir a forga com | Parte 1.5 38 a docura, tem que ser toda espiritual, toda san- fa, tOda 'sagrada, toda divina “Escolhe, pois, um entre mil — diz Avila” — e eu.te digo: escolhe um entre dez mil, porque se acham muito menos do que se cuida, que se- jam capazes déste oficio. Deve ser cheio de ca- ridade, ciéncia e prudéncia; se faltar uma des- tas trés qualidades, a escollia sera arriscada. Re- pito-te ainda uma vez: suplica a Deus um dire- tor e, quando o achares, agradece a divina Ma- jestade; persevera entdio em tua escolha, sem ir procurar outros; caminha para Deus com toda a simplicidade, humildade ¢ confianga ¢ tua viagem sera certamente feliz. CAPITULO v Necessidade de comegar pela purificagdo da alma Apareceram as fldres em nossa terra — diz 0 Espéso sagrado — chegou o tempo da poda. — Que flores’ sto estas, para nds, 6 Filotéia, senao 0s bons desejos? Logo que éies despertam em nossos coracdes, é preciso envidar todo o es- fOrco para purificd-los de tédas as obras mor- tais e supériluas, Prescrevia a lei de Moisés que a donzela, noiva de um israelita, tirasse o ves- tido do seu cativeiro, cortasse os cabelos ¢ apa- rass¢ as unhas. Serve isto de licio & alma que aspira a honra de ser esposa de Jesus Cristo, a qual se deve despojar do homem ‘velho e se te- vestir do novo, deixando o pecado e em seguida ir cortando com os demais impedimentos acess6- rios' que podem ser um empecilho para o amor. Filotéia — 3 pe OCHA HHEEEEBHOODHOOHOELESESEOS Oe a Filoté A cura da alma, assim como a do corpo, s6 se consegue comecando por combater os maus humores corrompidos, e € 0 que chamo purificar o coracao. Num instante operou-se isto em S. Paulo € 0 mesmo Ié-se nas vidas de Santa Ma- dalena, Santa Pelagia, Santa Catarina de Sena ¢ de alguns outros santos ¢ santas. Mas uma transtormacao t4o repentina é na ordem da gra- ca um milagre tao grande como na ordem da na~ tureza a ressurrei¢ao de um morto, e por isso no a devemos pretender. A cura da alma, Filo- teia, assemelha-se a do corpo; € vagorosa, vai progredindo gradualmente, aos’poucos, com ‘mu to custo e intervalos; mas neste seu passo lento ela é tanto mais segura. Creio que nio te é des- conhecido © antigo provérbio — que as doencas vem a cavalo ea galope e se vao a pé e muito devagar; outro tanto podes dizer das enfermida- des espirituais E’, pois, necessario, Filotéia, que te armes de muita paciéncia e coragem, Ah! que pena me fa- zem aquelas pessoas que, por se verem cheias de imperteigdes, depois de alguns meses de devo- Ho, comegam ‘a inquietar-se © perturbar-se, ja guase a sucumbir a tentacéo de deixar tudo ¢ tornar atras, Mas um outro extremo, igualmente perigoso, € 0 de certas almas que, deixando-se seduzir por uma tentagdio contréria, desde os primeiros dias se tm na conta de livres de suas inclinagoes mas, que jd pensam ser perfeitas an- tes de fazer algum progresso e que, arrojando-se a voar sem asas, se elevam ao que hd de mais su- blime na devosao. : Parte 1. 5. 35 O Filotéia, muito de temer € uma recaida de quem se subtrai tao cedo das maos do médico! Deveriam considerar os anjos da escada de Jacob, os quais, tendo asas, subiam, no entanto, de de~ grau em’ degrawt. Diz o profeta: Em vdo’ vos le~ vantais antes de amanhecer. A alma que surge do pecado para uma vida deyota pode-se comparar ao despontar do dia, que nao dissipa as trevas num instante, mas pou- co a pouco, quase imperceptivelmente. Ninguém seguiu ainda tao bem o conselho de purificar 0 coracéo, como aquéle santo peniten- te que, embora ja fdsse lavado de suas iniqitida- des, pedia sempre de novo a Deus, durante a sua vida, que o lavasse sempre mais désses pecados. Por ‘isso no nos devemos perturbar a vista de nossas imperfeigdes, porque a luta contra elas no pode nem deve acabar antes de nossa mor- te. A nossa perfeicio consiste em combaté-las; mas n&o as podemos combater e vencer, sem que as sintamos e conhecamos; a propria vitéria que esperamos conseguir sobre elas, de modo algum consist em nao as sentir, mas exclusivamente em nao consentir nelas. Demais, sentir as suas impressies no & dar © proprio consentimento. Neste combate espiri- tual convém muitas vézes que, para o exercicio, da humildade, Ihes suportemos os ataques mo~ lestos; entretanto, sé seremos vencidos se per- dermos a vida ou a coragem. Ora, as imperfei- gdes e faltas veniais nado nos podem tirar a vida espiritual da graca, de que sé 0 pecado mortal nos priva; portanto, o que temos que temer ai 3 26 Filotéia é a perda_da coragem; mas digamos, com Da- vid, a N. Senhor: Salvai-me, Seakor, da pusilani- midade e do desdénimo. ’, pois, sumamente conso feliz. a nos- poderemos LO VI y-Antes de tudo € necessirio que a alma se puri- fique dos pecados mortais Sg, Libertar-se do pecado deve ser 0 primeiro cuida~ # do de quem quer purificar o coracdo, e 0 meio de fazé-lo se depara no sacramento da penitén- + ‘cia, Procura o coniessor mais digno que possas achar; toma um désses livrinhios préprios para me que se deve efe- tuar sébre a vida passada, como os de Granada, Bruno, Arias, Auger; Ié-os com atencdo, notan= do, ponto por , tudo em que ofendeste a Deus desde 0 uso da’ razao e, se nao confias em tua memoria, assenta por escrito o que notaste me, detesta e abomina os pecados viva e perfeita que siderando éstes mo- simos: gue pelo pecado perdeste a Deus, abanionaste os teus direitos s6- mereceste as penas eternas do infer- no e renunciaste a todo 0 amor de Deus. Ja vés, Filoiéia, que te estou falando da con- isso geral de toda a vida; mas digo francamen- \ __Parte 1, 6 3 sua utilidade e proveito para o coméco, Iho-ta encarecidamente, Acontece nao. raras vé- zes que as confissies ordinarias de pessoas que levam uma vida negligente e comum sio defei- tuosas ¢ mal feitas; ndo se preparam nada ou quase nada; n&o tém a contri¢do devida; confes- sam-se com wma vontade secreta de con a pecar, ou porque nao querem evitar as ocasides do pecado ou porque n&o querem envidar todos os meios necessdrios para a emendacdo da vida; € nesses casos uma confissio geral torna-se_ne- cessdria para assegurar a salvacao. Além a confissdo geral nos da um conhe nos ¢ ossos pei tages; tranq 80s fares; ramente os pecados com mi Pratando-se, poi completa de tua vi de tr Jo perfeita ver, gerd SOO RAAAARA AAA ARAAARAROEIODAREDOOHOADD 38 Filotéia CAPITULO VIL Em seguida, é necessério puriticar a alma de téda a afeicéio a0 pecado Todos os isractitas sairam do Egito, mas mui- tos deixaram 1& 0 set coracio préso; por isso € que tio deserto se Ihes despertaram desejos das cebolas ¢ viandas do Egito. Assim também ha muitos penitentes que efetivamente saem do_pe- cado, porém no the perdem 0 afeto; quero dizer: éles se propfem nao recait no pecado, mas com uma certa relutancia e pesar de abster-se de seus deleites. O coracéo os denuncia e afasta de si, mas sempre tende novamente para éles, A se- melhanca da mulher de Lo, que virou a cabeca para Sodoma. Privam-se do pecado, como os doentes dos meldes; é verdade que n&o os co- mem com médo da morte, de que o médico os ameagara; mas aborrecem-se da dieta, falam dela com ayersio e nao sabem o que fazer; a0 me- nos, querem cheird-los muitas vézes e tém por ditosos os que os podem comer. Eis ai um re- trato fiel dos penitentes fracos ¢ tibios. Passam algum tempo sem pecado, mas com pesar; muito estimariam poder pecar, se nao fossem condena- dos por isso; falam do pecade com um certo gos- to que © vao prazer Ihes proporciona e pensam sempre que os outros se satisfazem e deleitam cometendo-o. Renuncia alguém na confissio a0 proposito de vingar-se, mas dai a pouco vé-lo-ds numa roda de amigos, conversando de bom gra- do sobre 0 motivo de'suas queixas; diz que sem © temor de Deus faria isso ou aquilo; que a lei divina, quanto a ésse ponto de perdoar os A Parte I, 7 nimigos, ¢ muito dificil de observar; que prou- vesse a’ Deus que fdsse permitida a vingancal Ah! quao enredado esté o coragio deste misero homem pela afeicéo ainda que livre do pecado, € quanto se assemelha aos israelitas de que falei acima, E’ isso exatamente 0 que devemos dizer também daquelas pessoas que, detestando seus améres pecaminosos, conservam ainda um resto de prazer em familiaridades vas e em demon: tracoes demasiado vivas de acatamento e amiza- de. Oh! que perigo imenso esta correndo a sal- vacio déstes penitentes! Portanto, Filotéia, uma vez que aspiras since- ramente & devocio, nio sé deves deixar 0 peca- do, mas é também necessério que teu_coracio se purifique de todos os afetos que the foram’ as causas e sao presentemente as conseqiiéncias; pois, além de constituirem um continuo perigo de recaidas, enfraqueceriam a tua alma e te abateriam © espirifo — duas coisas que, como deixei_dito — sao irreconciliaveis com a vida devota. Essas almas, que, tendo deixado 0 pecado, sao tao tie bias e vagarosas no servico de Deus, asseme- lham-se a pessoas que tém uma cOr palida: nao & que estio verdadeiramente doentes, mas bem se pode dizer que sew aspecto, seus gestos ¢ 16- das as suas acées esto doentes. Comem sem apetite, riem sem alegria, dormem sem repouso e mais se arrastam do que andam. Déste modo aquélas almas, em seus exercicios espirituais, que nem so numerosos nem de grande mérito, pra~ ticam © bem com tanto dissabor e constrangimen- to que perdem o britho e graca que o fervor da as obras de piedade,

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