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Comunicação política na sociedade mediática:


o impacto da teoria normativa na pesquisa empírica

Jürgen Habermas1

Resumo: Primeiramente, comparo os modelos deliberativo, libe-


ral e republicano de democracia e considero possíveis referências
à pesquisa empírica. Em seguida, examino as evidências empí-
ricas que comprovam a hipótese de que a deliberação política
N o texto Política, de Aristóteles, a
teorização normativa e a pesquisa
empírica caminham lado a lado. Entretan-
possui um potencial de busca pela veracidade. Argumento que to, teorias contemporâneas da democracia
a comunicação política mediada na esfera pública pode facilitar
processos de legitimação deliberativa em sociedades complexas
liberal expressam uma visão exigente de que
somente se adquire independência com relação a seu ambiente ambas “deveriam” estar juntas que afronta a
social, e se houver um feedback entre o discurso informado da seriedade do estado atual de sociedades cada
elite e uma sociedade civil responsiva.
Palavras-chave: modelos democráticos, pesquisa empírica, de- vez mais complexas. O modelo deliberativo
liberação, comunicação política. de democracia, que reivindica uma dimensão
epistêmica para processos democráticos de le-
Comunicación política en la sociedad mediática: el impacto
de la teoría normativa en la investigación empírica gitimação, parece exemplificar especialmente
Resumen: Primeramente, comparo los modelos deliberativo, a imensa distância existente entre abordagens
liberal y republicano de democracia y considero posibles refe-
rencias a la investigación empírica. Enseguida, examino las evi-
normativas e empíricas da política.
dencias empíricas que comprueban la hipótesis de que la delibe- Em primeiro lugar, estabeleço uma com-
ración política posee un potencial de búsqueda por la veracidad. paração entre os modelos deliberativo, liberal
Argumento que la comunicación política mediada en la esfera
pública puede facilitar procesos de legitimación deliberativa en
sociedades complejas sólo si adquiere independencia en relación
con su ambiente social y si hay una respuesta entre el discurso 1
Filósofo e sociólogo alemão, atuou como assistente de
informado de la élite y una sociedad civil responsiva. ­ heodor Adorno no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt
T
Palabras clave: modelos democráticos, investigación em- em meados dos anos 1950 compondo, assim, a segunda gera-
pírica, deliberación, comunicación política. ção da Escola de Frankfurt. No final da década de 1960, passa
a dirigir a New Yorker New School for Social Research. No início
Political communication in media society: the impact of da década de 1980, transfere-se para a Johann-Wolfgang Goe-
normative theory on empirical research the Universität Frankfurt, na Alemanha, onde, mesmo tendo
Abstract: I first compare the deliberative to the liberal and the re- se aposentado em 1994, permanece atuando junto ao Depar-
publican models of democracy, and consider possible references tamento de Filosofia.
to empirical research then examine what empirical evidence there Este artigo é baseado em uma apresentação feita pelo autor em 20
is for the assumption that political deliberation develops a truth- de junho de 2006, por ocasião da 56o Annual International Com-
tracking potential. I argue that mediated political communication munication Association Conference, ocorrida na cidade de Dres-
in the public sphere can facilitate deliberative legitimation proces- den, Alemanha. Traduzido do inglês por Ângela Cristina Salguei-
ses in complex societies only if it gains independence from its so- ro Marques, Doutora em Comunicação Social pela UFMG, com
cial environments and if there is a feedback between an informed a permissão da Blackwell editora. Referência original: “Political
elite discourse and a responsive civil society. communication in media society: does democracy still enjoy an
Key words: democratic models, empirical research, delibera- epistemic dimension? The impact of normative theory on empiri-
tion, political communication. cal research”. Communication Theory, v.16, 2006, pp. 411-426.

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e republicano de democracia, considerando O desenho deve também assegurar (b) a


possíveis referências à pesquisa empírica. Exa- participação política da maior quantidade
minarei, em seguida, as evidências empíricas possível de cidadãos interessados através de
existentes para comprovar a hipótese de que a direitos iguais de comunicação e participa-
deliberação política desenvolve um potencial ção. Deve assegurar ainda eleições periódicas
de busca pela veracidade. As partes principais (e referendos) com base no sufrágio inclusi-
do artigo destinam-se a dispersar dúvidas apa- vo; a competição entre diferentes partidos,
rentes a respeito do conteúdo empírico e da plataformas e programas, e a aplicação do
aplicabilidade do modelo deliberativo. O mo- princípio da maioria no processo político
delo comunicativo de política deliberativa que decisório em instâncias representativas.
desejo apresentar enfatiza duas condições críti- O desenho institucional deve garantir
cas: a comunicação política mediada na esfera ainda (c) uma contribuição apropriada de
pública pode facilitar processos de legitimação uma esfera pública política para a formação
deliberativa em sociedades complexas somente de opiniões públicas cuidadosamente consi-
se um sistema mediático auto-regulador adqui- deradas por meio de uma separação entre o
re independência com relação a seu ambiente Estado (baseado em taxas) e a sociedade (ba-
social, e se audiências anônimas garantem um seada no mercado). Precisa também afirmar
feedback entre o discurso informado da elite e os direitos de comunicação e associação e ze-
uma sociedade civil responsiva. lar por uma regulação da estrutura de poder
da esfera pública, assegurando a diversidade
Referências empíricas para teorias de meios de comunicação de massa indepen-
normativas da democracia dentes, assim como um amplo acesso de au-
diências massivas inclusivas à esfera pública.
O desenho institucional das democracias Esse desenho institucional incorpora idéias
modernas reúne três elementos. Primeiro, a de diferentes filosofias políticas. Cada uma des-
autonomia privada dos cidadãos, sendo que sas principais tradições confere uma importân-
cada um deles segue sua própria vida. Segun- cia diferenciada a princípios tais como liberda-
do, a cidadania democrática, ou seja, a inclu- des iguais para todos, participação democrática
são de cidadãos livres e iguais na comunidade e governo através da opinião pública (Haber-
política. E, terceiro, a independência de uma mas, 1998:239-252). A tradição liberal revela
esfera pública que opera como um sistema uma preferência pelas liberdades dos cidadãos
intermediário entre o Estado e a sociedade. privados, enquanto as tradições republicana
Esses elementos formam a base normativa e deliberativa acentuam tanto a participação
das democracias liberais (independentemen- política de cidadãos ativos quanto à formação
te da diversidade que, em vários casos, exis- de opiniões públicas cuidadosamente consi-
te em textos constitucionais e ordens legais, deradas. Esses limites do pensamento político
instituições e práticas políticas). causam um impacto diferenciado em culturas
O desenho institucional deve garantir: (a) políticas nacionais, criando, por isso, relações
a igual proteção dos membros individuais da específicas entre teoria e prática. Eles dão for-
sociedade civil através da regra do direito e ma a diferentes tradições legais e a diferentes
de um sistema de liberdades básicas que seja quadros nacionais para os discursos públicos
compatível com as mesmas liberdades con- que mantêm e transformam culturas políticas
cedidas a todos. Deve também garantir um e identidades coletivas (Peters, 2005). A impor-
igual acesso a cortes independentes – sendo tância diferenciada que cidadãos de nações dis-
que a proteção de todos deve ser igualmen- tintas conferem aos direitos e às liberdades, à
te assegurada por elas –, e uma separação de inclusão e à igualdade, ou à deliberação públi-
poderes entre o Legislativo, o Judiciário e o ca e à resolução de problemas determina como
Executivo, sendo este último a ramificação eles vêem a si próprios como membros de sua
que vincula a administração pública à lei. comunidade política.

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Utilizar essas idéias para planejar projetos podem fazer outra coisa, senão oferecer mu-
de pesquisa empírica é um outro modo, mais tuamente demandas de validade para seus
indireto, de construir uma ponte entre a teo- proferimentos e argumentos, uma vez que o
ria normativa e a realidade política. A teoria que dizem deveria ser assumido – e, se ne-
normativa atualmente serve como guia de cessário, provado – como algo verdadeiro,
pesquisa em certos campos da ciência polí- correto ou sincero e, sem dúvida, racional.
tica. Isso explica, de um lado, as afinidades Uma referência implícita ao discurso racio-
eletivas entre o liberalismo político e a teoria nal – ou à competição por melhores razões
econômica da democracia (Arrow, 1963) e, – é construída dentro da ação comunicativa
de outro lado, entre o republicanismo e as como uma alternativa onipresente ao com-
abordagens comunitaristas (que se concen- portamento rotineiro.
tram na confiança e em outras fontes de so-
lidariedade [“hábitos do coração”]) (Bellah,
1975; Putnam, 2000). O modelo deliberativo
está mais interessado na função epistêmica
A deliberação é uma
do discurso e da negociação do que na esco- forma de comunicação
lha racional ou no ethos político. Neste mo- exigente, a partir
delo, a busca cooperativa, empreendida por de rotinas diárias
cidadãos deliberativos, por soluções para invisíveis nas quais as
problemas políticos substitui a idéia da agre- pessoas trocam razões
gação de preferências de cidadãos privados
ou da auto-determinação coletiva de uma
umas com as outras
nação eticamente integrada.
O paradigma deliberativo oferece como
seu ponto de referência empírico principal um As idéias penetram na realidade social
processo democrático que supostamente deve- através de pressuposições idealizadas inatas
ria gerar a legitimidade através de um proce- às práticas cotidianas e adquirem, impercep-
dimento de formação da opinião e da vontade tivelmente, a qualidade de fatos sociais obsti-
que garante (a) publicidade e transparência nados.2 Pressuposições similares estão implí-
para o processo deliberativo, (b) inclusão e citas também em práticas políticas e legais.
igual oportunidade para a participação, e (c) Tomemos o exemplo do chamado paradoxo
uma pretensão justificada para resultados ob- dos eleitores (o qual não é, de forma alguma,
tidos através da troca de argumentos (princi- um paradoxo): os cidadãos continuam a par-
palmente em vista do impacto dos argumentos ticipar de eleições gerais, apesar de cientistas
nas mudanças racionais de preferências) (Boh- políticos apontarem, a partir de um ponto de
man, 1996; Bohman & Rehg, 1997). vista de observadores, os efeitos marginali-
A pretensão de alcançar resultados fun- zantes da geografia eleitoral ou dos procedi-
dados na troca de razões permanece, por sua mentos eleitorais. A prática democrática das
vez, ligada à hipótese de que discursos institu- eleições constitui um empreendimento cole-
cionalizados mobilizam tópicos e demandas tivo e requer que os participantes procedam
relevantes, promovem a avaliação crítica das segundo a suposição de que cada voto “con-
contribuições e conduzem a reações favorá- ta”. De forma semelhante, pessoas envolvidas
veis ou contrárias, racionalmente motivadas. em demandas litigiosas não deixam de ir à
A deliberação é uma forma de comunicação corte, independentemente do que profes-
exigente, ainda que se desenvolva a partir de
rotinas diárias invisíveis nas quais as ­pessoas
trocam razões umas com as outras. No curso 2
Essa concepção de uma razão não transcedentalizada, ou seja, o
conteúdo normativo do que é incorporado às práticas sociais, não
das práticas cotidianas, os atores estão sem- deve ser confundido com a oposição que John Rawls faz entre a
pre expostos a um espaço de razões. Eles não teoria ideal e a teoria que não é ideal (cf. Neblo, 2005).

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sores de direito observem e pronunciem a ção, cada um deles era convidado novamente
respeito da indeterminação das leis e da im- a expor suas opiniões individuais.
previsibilidade das decisões legais. A regra da Os resultados corroboram mais ou me-
lei e a prática de emissão de um julgamen- nos o impacto esperado da deliberação sobre
to final em um procedimento legal iriam se a formação da opinião política resultante de
deteriorar se os participantes não agissem de uma cuidadosa reflexão. O processo da deli-
acordo com a premissa de que eles recebem beração em grupo resultou em uma mudan-
um tratamento justo e de que um veredito ça unidirecional e não em uma polarização
adequado será emitido. de opiniões. As decisões finais foram bastan-
te diferentes das opiniões iniciais expressas,
e as opiniões se alteraram refletindo níveis
aprimorados de informação e perspectivas
A comunicação política
ampliadas acerca de uma definição mais
mediada não precisa clara e específica das questões. Argumentos
preencher todos os neutros tenderam a receber prioridade so-
padrões de uma bre a influência das relações interpessoais, e
deliberação ideal, assu- também houve uma expressão crescente de
mindo diferentes formas confiança na legitimidade procedimental da
argumentação justa.
em diferentes arenas
Outros exemplos podem ser citados, como
os famosos experimentos de James Fishkin
(1995; e também Fishkin e Luskin, 2005) com
grupos focais, ou experimentos de campo
O potencial de busca pela veracidade
oferecido pela deliberação política como aquele que envolve uma amostra de 160
habitantes da província de British Columbia,
Saber se a deliberação introduz de fato no Canadá, que foram escolhidos a partir de
uma dimensão epistêmica na formação da listas de eleitores para uma Assembléia de Ci-
vontade política e nos processos de tomada dadãos sobre a Reforma Eleitoral e reunidos
de decisão é algo que nos remete, obviamen- especificamente durante seis finais de semana a
te, a uma questão empírica. Já existe um im- fim de “aprender, de deliberar sobre e de deci-
pressionante conjunto de estudos baseados dir entre três propostas alternativas”. Evidências
em pequenos grupos de pessoas que inter- do impacto da deliberação na estruturação de
preta a comunicação política como um me- preferências não apenas ativou críticas a respei-
canismo destinado ao aprimoramento do to do paradigma da escolha racional (Health,
aprendizado cooperativo e da busca coletiva 2001; Johnson, 1993), mas também motivou
de soluções para problemas comuns. Neblo uma nova pesquisa acerca dos efeitos provo-
(no prelo), por exemplo, traduziu as pressu- cados pelos enquadramentos (framing effects)
posições principais da teoria normativa em na formação de preferências políticas. Druck-
hipóteses sobre como grupos experimentais man (2004:675) aponta que “indivíduos que se
aprendem sobre questões políticas (como a engajam em conversações com um grupo he-
ação afirmativa, a presença de gays no exér- terogêneo serão menos suscetíveis aos efeitos
cito, ou a justiça distributiva de esquemas de dos enquadramentos do que aqueles que não
taxas baixas) através da deliberação. Os indi- se engajam em conversações”. Grupos de espe-
víduos eram interrogados primeiramente so- cialistas (de cooporações multinacionais) e de
bre suas opiniões a respeito dessas questões. contra-especialistas (de organizações não-go-
Cinco semanas depois, eles eram reunidos vernamentais) que se reuniram sob o amparo
em grupos e convidados a debater sobre as do Wissenschaftszentrum de Berlim estão mais
mesmas questões e a chegar a decisões cole- próximos da política da vida real. Esses grupos
tivas. Mais cinco semanas após essa delibera- mediadores foram convidados explicitamente

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a discutir visões conflitantes sobre questões po- tre os papéis desempenhados pelos falantes e
líticas (os riscos trazidos pelo cultivo de plan- pelos destinatários em uma troca igualitária
tas geneticamente modificadas e os direitos de de demandas e opiniões.
propriedade intelectual no âmbito da biotec- Além disso, a dinâmica da comunicação de
nologia versus cuidados de saúde contra epi- massa é dirigida pelo poder dos media de sele-
demias em regiões subdesenvolvidas) (Van den cionar e de formatar a apresentação de mensa-
Daele, 1994, 1996; World Business Council for gens e pelo uso estratégico do poder político e
Sustainable Development and Science Center social para influenciar as agendas, assim como
Berlin, 2003). para ativar e enquadrar questões públicas.
Todos esses estudos oferecem evidên- Antes de desenvolver essa questão das in-
cias empíricas sobre o potencial cognitivo tervenções de poder, explicarei primeiro por
da deliberação política. Contudo, amostras que nem o caráter abstrato da esfera pública
de pequena escala somente podem prover que separa as opiniões das decisões, nem a
um limitado suporte para o conteúdo em- relação assimétrica entre ator e audiência no
pírico do paradigma deliberativo designado palco virtual da comunicação mediada são,
para processos de legitimação em socieda- per se, características dissonantes, ou seja,
des nacionais ou de larga escala. As socie- fatores que poderiam negar a aplicabilidade
dades ocidentais contemporâneas revelam do modelo de política deliberativa. A comu-
um aumento impressionante no volume da nicação política mediada não precisa preen-
comunicação política (Van der Daele e Nei- cher todos os padrões de uma deliberação
dhardt, 1996), mas a esfera pública política ideal. A comunicação política, circulando de
é, ao mesmo tempo, dominada por um tipo baixo para cima e de cima para baixo através
de comunicação mediada que não apresenta de um sistema de múltiplos níveis (da con-
as características definidoras da deliberação.3 versação cotidiana na sociedade civil, pas-
Falhas a esse respeito são evidenciadas pela sando pelo discurso público e pela comuni-
(a) ausência de uma interação face a face en- cação mediada entre públicos fracos, até os
tre participantes presentes em uma prática discursos institucionalizados no centro do
compartilhada de produção de decisão cole- sistema político), assume diferentes formas
tiva, e pela (b) ausência de reciprocidade en- em diferentes arenas. A esfera pública forma
a periferia do sistema político e pode facilitar
processos deliberativos de legitimação “fil-
4
Permitam-me fazer um comentário a respeito da Internet, que trando” os fluxos de comunicação política
atua como um contrapeso em relação às aparentes deficiências que
se fundamentam no caráter neutro e assimétrico das emissões me- por meio da divisão do trabalho com outras
diáticas, reintroduzindo elementos deliberativos na comunicação partes do sistema.
eletrônica. A internet certamente reativou as ações cívicas de um
público igualitário de escritores e leitores. Contudo, a comunicação
mediada por computador através da internet pode demandar mé-
A estrutura da comunicação de massa
ritos democráticos inequívocos somente para um contexto especial: e a formação de opiniões públicas
ela pode desafiar a censura imposta por regimes autoritários que
tentam controlar e reprimir a opinião pública. No contexto de regi- cuidadosamente consideradas4
mes liberais, o crescimento de milhões de salas de bate-papo (chat
rooms) fragmentadas através do mundo tende, contudo, a uma
fragmentação de amplas audiências de massa, porém politicamen-
Imagine a esfera pública como um sis-
te focadas, em um grande número de públicos isolados e voltados tema intermediário de comunicação entre
para uma única questão. Através de esferas públicas nacionais esta- deliberações formalmente organizadas e de-
belecidas, os debates online entre os utilizadores da web promovem
uma comunicação política somente quando novos grupos se crista- liberações face a face informais em arenas
lizam em torno de pontos focais sobre a qualidade da imprensa, por localizadas, respectivamente, no centro (ou
exemplo, jornais nacionais e revistas políticas. (Um bom indicador
para a função crítica desse papel parasita da comunicação online é a
no topo) e na periferia (ou na base) do sis-
conta de 2.088 euros que o âncora do site Bildog.de enviou recente- tema político. Existem evidências empíricas
mente para o diretor da Bild.T-Online relativa a “serviços”: os blog-
gers afirmaram que eles melhoraram o trabalho do grupo editorial
do Bildzeitung através de críticas e correções úteis [cf. “Rechnung 4
Estou seguindo as principais linhas de uma análise apresenta-
für Bild.de“, 2006:95]). da por Peters (1994, 2001).

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do impacto da deliberação em processos de subculturas intersectantes etc. Do espectro


tomada de decisão em legislaturas nacionais das opiniões políticas publicadas, podemos
(Steiner, Bächtiger, Spörndli e Steenbergen, distinguir a opinião sondada (polled opinion),
2004; ver também Habermas, 2005:389) e ou seja, um agregado mensurado de atitudes
em outras instituições políticas, assim como favoráveis ou contra questões públicas con-
existem evidências para os efeitos de apren- troversas a partir do modo como tomam for-
dizado e de amadurecimento da reflexão ma, tacitamente, entre públicos fracos. Essas
relativos às conversações políticas entre os atitudes são também influenciadas pela con-
cidadãos em sua vida cotidiana (Jonston, versação cotidiana em espaços informais ou
Conover e Searing, 2005). Meu foco será di- por públicos episódicos da sociedade civil, do
rigido, entretanto, para aquilo que a comu- mesmo modo como são influenciadas pela
nicação política na esfera pública pode trazer atenção que as pessoas conferem à mídia im-
como contribuição para um processo de le- pressa ou eletrônica.
gitimação deliberativa. Existem dois tipos de atores sem os quais
nenhuma esfera pública política poderia fun-
cionar: os profissionais do sistema dos media
– especialmente os jornalistas que editam as
Existem dois tipos de notícias, relatos e comentários – e os políticos
atores sem os quais que ocupam o centro do sistema político, e
nenhuma esfera pública são tanto co-autores quanto destinatários das
política poderia opiniões públicas. A comunicação política
funcionar: os mediada é conduzida por uma elite. Podemos
profissionais do sistema distinguir mais cinco tipos entre os atores que
fazem sua aparição no palco virtual de uma
dos media e os políticos esfera pública estabelecida: (a) lobistas que re-
presentam grupos de interesse especiais; (b)
advogados que ou representam grupos de in-
O centro do sistema político é formado por teresse geral, ou os substituem devido a uma
instituições conhecidas: parlamentos, cortes, ausência de representação de grupos margi-
autoridades administrativas e governo. Cada nalizados incapazes de expressar efetivamen-
ramificação pode ser descrita como uma are- te seus interesses; (c) especialistas a quem são
na deliberativa especializada. O output corres- creditados conhecimentos profissionais ou
pondente a essas arenas – decisões legislativas científicos em alguma área especializada e são
e programas políticos, opiniões ou vereditos, convidados a oferecer conselhos; (d) empre-
medidas administrativas e decretos, diretri- endedores morais que geram atenção pública
zes e políticas – resulta de diferentes tipos de para questões supostamente negligenciadas; e,
deliberação institucionalizada e processos de por último, mas não menos importantes, (e)
negociação. Na periferia do sistema político, intelectuais que adquiriram, diferentemente
a esfera pública está enraizada em redes de dos advogados ou dos empreendedores mo-
fluxos de mensagens desordenados – notícias, rais, uma reputação pessoal reconhecida em
relatos, comentários, falas, cenas e imagens, algum campo (por exemplo, escritores ou aca-
shows e filmes com um conteúdo informati- dêmicos) e que se engajam, de modo distinto
vo, polêmico, educativo ou de entretenimento. dos especialistas e lobistas, espontaneamente,
Essas opiniões publicadas originam-se a partir em um discurso público, com a intenção de-
de vários tipos de atores: políticos e partidos clarada de promover interesses gerais.
políticos, lobistas e grupos de pressão, ou ato- Somente através do sistema como um
res da sociedade civil. Elas são selecionadas e todo podemos esperar que a deliberação ope-
formatadas pelos profissionais dos mass media re como um mecanismo de “purificação” que
e recebidas por amplas audiências, campos e filtra os elementos “impuros” de um proces-

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so de legitimação discursivamente estrutu- como uma inflação crescente ou uma fuga de


rado. Estima-se que a deliberação, enquanto capitais, um colapso do tráfego, uma falta de
elemento essencial do processo democrático, habitações ou de suprimentos de energia, uma
possa cumprir três funções: mobilizar e reunir carência de trabalhadores capacitados, uma
questões relevantes e informações necessárias, “fuga de cérebros” para países estrangeiros etc.
especificando interpretações; processar tais O impacto perturbador desses alarmes ou cri-
contribuições discursivamente por meio de ses sobre os cidadãos, em seu papel de clientes
argumentos adequados, sejam eles favoráveis desses respectivos subsistemas, é filtrado atra-
ou contrários a uma questão; e gerar atitu- vés de padrões distributivos de estruturas de
des racionalmente motivadas –favoráveis ou classe. Redes associativas da sociedade civil e
contrárias a uma questão –, as quais possuem grupos de interesse especiais traduzem a ten-
grande probabilidade de determinar o resulta- são ativada por problemas sociais pendentes e
do de decisões procedimentalmente corretas. demandas conflitantes por justiça social, em
Diante do processo de legitimação como questões políticas. Os atores da sociedade ci-
um todo, o papel facilitador da esfera pública vil articulam interesses políticos e afrontam o
política é, principalmente, o de preencher so- Estado por meio de demandas provenientes
mente a primeira dessas três funções e, além dos mundos da vida de vários grupos. Com
disso, de preparar as agendas para as institui- a sustentação legal dos direitos de voto, essas
ções políticas. Em suma, o modelo delibera- demandas podem ser reforçadas através da
tivo supõe que a esfera pública política possa ameaça de interromper a legitimação.
assegurar a formação de uma pluralidade de Os votos, contudo, não crescem “natural-
opiniões públicas cuidadosamente conside- mente” no solo da sociedade civil. Antes de
radas. Essa é ainda uma expectativa bastante eles ultrapassarem o limiar formal das campa-
exigente, mas, nas pesquisas de comunicação, nhas e das eleições gerais, eles ganham forma
um esquema realista das condições necessá- através do confuso alvoroço de vozes oriun-
rias para a produção de opiniões públicas cui- das tanto da conversação cotidiana quanto
dadosamente consideradas pode submeter-se da comunicação mediada. O sistema político,
a normas não-arbitrárias para a identificação dependente da legitimação democrática em
das causas das patologias da comunicação. sua periferia, possui um “flanco” desprotegido
Permitam-me desenvolver tal modelo co- com relação à sociedade civil, a saber, a vida
municativo para a legitimação democrática em indisciplinada da esfera pública.
dois momentos. Começo por lembrar-lhes o Organizações cujo objetivo é realizar pes-
amplo quadro de que estamos tratando: a inte- quisas de opinião pública monitoram e regis-
ração entre o Estado e seus ambientes sociais. tram continuamente as atitudes de cidadãos
O Estado enfrenta demandas vindas de privados. Os profissionais dos media produzem
dois lados. Além das normas e das regula- um discurso de elite, alimentado pelos atores
mentações, deve providenciar bens e serviços que disputam por acesso aos media e por influ-
públicos para a sociedade civil, assim como ência sobre eles. Esses atores sobem ao palco a
subsídios e infraestrutura para vários sistemas partir de três pontos: políticos e partidos políti-
funcionais, como o comércio e o mercado de cos partem do centro do sistema político; lobis-
trabalho, a saúde, a seguridade social, o trá- tas e grupos de interesse especiais partem, com
fego, a energia, as pesquisas e o desenvolvi- vantagem, do ponto dos sistemas funcionais e
mento, a educação etc. Por meio de lobbies e dos grupos de status que eles representam; e os
de negociações neocorporativistas, os repre- advogados, grupos de interesse público, igrejas,
sentantes de sistemas funcionais afrontam intelectuais e empreendedores morais vêm dos
a administração utilizando aquilo que eles bastidores da sociedade civil.
apresentam como “imperativos funcionais”. Juntamente com os jornalistas, todos eles
Os representantes de sistemas particulares se juntam para a construção do que chama-
podem fazer ameaças de falhas iminentes, tais mos de “opinião pública”, embora essa ex-

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pressão singular somente faça referência a que se engajam em conversações políticas


uma opinião pública prevalente entre muitas cotidianas, lêem jornais, assistem televisão e
outras. Tais feixes de questões e contribuições participam ou não de eleições, as opiniões pú-
sintetizadas exibem, ao mesmo tempo, o peso blicas cautelosamente consideradas apresen-
respectivo de atitudes favoráveis ou contrárias tam, igualmente, alternativas plausíveis para
que eles atraem de várias audiências. As opi- aquilo que conta com uma posição sensata
niões públicas são difíceis de serem definidas diante de questões públicas. É o voto formal e
claramente; elas são construídas juntamente a formação atual da opinião e da vontade dos
por elites políticas e audiências difusas a par- eleitores individuais que, juntos, conectam os
tir das diferenças perceptíveis entre opiniões fluxos periféricos da comunicação política na
publicadas e as medições estatísticas das opi- sociedade civil e na esfera pública aos proces-
niões sondadas. As opiniões públicas exercem sos deliberativos decisórios, conduzidos pelas
um tipo de pressão suave na forma maleável instituições políticas localizadas no centro do
do pensamento das pessoas. Esse tipo de “in- sistema político, filtrando-os, assim, para den-
fluência política” precisa ser diferenciado do tro do amplo sistema de circuitos da política
“poder político”, que está ligado a autoridades deliberativa. Gerhards (1993:26) aponta que
e permite a tomada de decisões coletivamente “a relevância da opinião pública tanto para
vinculantes. A influência das opiniões públi- o público quanto para os responsáveis pelos
cas se espraia em direções opostas, voltando- processos decisórios... é assegurada nas de-
se tanto em direção ao governo – observan- mocracias competitivas, em última instância,
do-o cuidadosamente – quanto em direção às pela instituição das eleições”.
audiências reflexivas – junto às quais as opini- A despeito da estrutura neutra e assimétri-
ões públicas tiveram sua primeira origem. ca da comunicação de massa, a esfera pública
O fato de que tanto governos eleitos quanto poderia, somente se as circunstâncias forem
os eleitores possam assumir uma atitude afir- favoráveis, gerar opiniões públicas cuidado-
mativa, negativa ou indiferente diante da opi- samente consideradas. Faço uso do condicio-
nião pública acentua o traço mais importante nal aqui para chamar a atenção do leitor para
da esfera pública, ou seja, seu caráter reflexivo. outra cautela óbvia: a estrutura de poder da
Todos os participantes podem revisitar as opi- esfera pública pode tanto distorcer a dinâmica
niões públicas consideradas e responder a elas das comunicações de massa quanto intervir
após a devida reconsideração. Essas respostas, através do requisito normativo de que ques-
vindas de cima e também de baixo, providen- tões relevantes, informações necessárias e con-
ciam um teste duplo para descobrir como a tribuições apropriadas sejam mobilizadas.
efetiva comunicação política na esfera pública
funciona enquanto um mecanismo de filtra- Estrutura de poder da esfera pública e
gem. Se ela funciona como tal, somente opi- dinâmica da comunicação de massa
niões públicas cuidadosamente consideradas
passam através dela. As opiniões públicas O poder não é ilegítimo per se. Permitam-
tornam manifesto o que amplos, mas confli- me distinguir quatro categorias. Existe, em
tantes setores da população consideram, sob a primeiro lugar, um poder político que, por de-
luz de informações disponíveis, como sendo finição, requer a legitimação. De acordo com
as interpretações mais plausíveis de cada uma o modelo deliberativo de democracia, o pro-
das questões controversas em pauta. cesso de legitimação precisa passar através da
A partir do ponto de vista de governos e das esfera pública que possui a capacidade de ali-
elites políticas responsivas, as opiniões públi- mentar as opiniões públicas cuidadosamente
cas cuidadosamente consideradas estabelecem consideradas. O poder social depende do status
um quadro para o escopo do que o público de que um indivíduo possui em uma sociedade
cidadãos aceitaria como decisões legítimas em estratificada; tais status são derivados de posi-
um caso específico. Para eleitores responsivos, ções dentro de sistemas funcionais. Por conse-

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guinte, o poder econômico é um tipo de poder significa a “auto-regulação” do sistema dos


social especial e dominante. Não é o poder so- media de acordo com seus próprios códigos
cial enquanto tal, mas sua transformação em normativos (Thompson, 1995:258).
pressão sobre o sistema político que precisa de
legitimação: ela não precisa contornar os ca-
nais da esfera pública. O mesmo pode ser dito
a respeito do impacto político dos atores que
A utilização do poder
se situam na sociedade civil, como, por exem- dos media manifesta-
plo, grupos de interesse geral, comunidades se na escolha da
religiosas ou movimentos sociais. Esses atores informação e do
não possuem “poder” em sentido estrito, mas formato, na forma e
obtêm influência pública a partir do “capital estilo dos programas e
social” e do “capital cultural” que acumula-
nos efeitos de sua difusão
ram em termos de visibilidade, proeminência,
reputação ou status moral.
Os meios de comunicação de massa cons-
tituem também outra fonte de poder (Jarren No processo de agendamento que ocorre
& Donges, 2006:119, 329). O poder dos me- no interior dos media, uma hierarquia infor-
dia é baseado na tecnologia das comunicações mal confere à imprensa de qualidade nacional
de massa. Aqueles que trabalham em setores o papel de líder de opinião. Há uma abundân-
politicamente relevantes do sistema dos me- cia de notícias e comentários políticos oriun-
dia (isto é, repórteres, colunistas, editores, dos de jornais prestigiosos e revistas políticas
diretores, produtores e proprietários) não de circulação nacional dentro de outros me-
podem fazer nada além de exercer o poder, dia (Jarren & Donges, 2006). Com referência
porque eles selecionam e processam um con- ao input oriundo de contextos externos aos
teúdo politicamente relevante e, desse modo, media, os políticos e os partidos políticos são,
intervêm tanto na formação de opiniões pú- sem sombra de dúvida, os mais importan-
blicas quanto na distribuição de interesses tes “fornecedores”. Eles possuem uma forte
influentes. A utilização do poder dos media posição com relação à negociação de acesso
manifesta-se na escolha da informação e do privilegiado aos media. Contudo, mesmo os
formato, na forma e no estilo dos programas governos geralmente não possuem nenhum
e nos efeitos de sua difusão – através de me- controle sobre o modo como os media apre-
canismos como o agenda setting, o priming sentam e interpretam suas mensagens, sobre
e o enquadramento das questões (framing) o modo como as elites políticas ou públicos
(Callaghan & Schnell, 2005). Do ponto de ampliados as recebem, ou sobre a maneira
vista da legitimidade democrática, o poder como esses últimos respondem a elas (Jarren
dos media permanece, todavia, “inocente”, na & Donges). Dado o alto nível da organização
medida em que os jornalistas operam dentro e dos recursos materiais, os representantes de
de um sistema mediático funcionalmente es- sistemas funcionais e de grupos de interesse
pecífico e auto-regulado. A independência re- especiais usufruem também de um certo aces-
lativa dos meios de comunicação de massa em so privilegiado aos media. Eles se encontram
relação aos sistemas político e econômico era em uma posição na qual podem utilizar téc-
uma pré-condição necessária para a ascensão nicas profissionais para transformar o poder
do que agora chamamos de “sociedade medi- social em potência política. Grupos de inte-
ática”. Essa é uma aquisição bastante recente, resse público e advogados tendem também a
mesmo no Ocidente, e remonta ao período empregar métodos gerenciais de comunica-
que logo se segue ao fim da Segunda Guerra ção coorporativa. Nesse sentido, os atores da
Mundial (Jarren & Donges, 2006:26; Weis- sociedade civil, se comparados aos políticos e
brod, 2003). Uma “independência” funcional aos lobistas, ocupam a posição mais fraca.

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Os jogadores que se encontram no palco vir- públicos e respondê-los. Em contrapartida, es-


tual da esfera pública podem ser classificados em ses discursos não podem se degenerar em um
termos do poder ou do “capital” que possuem à modo colonizador da comunicação.
sua disposição. A estratificação das oportunida- A última condição é perturbadora, para di-
des de transformar o poder em influência públi- zer o mínimo. A literatura sobre a “ignorância
ca através dos canais da comunicação mediada pública” desenha um quadro bastante severo
revela, assim, uma estrutura de poder. Esse po- do “cidadão médio” como uma pessoa ampla-
der é coagido, contudo, pela reflexividade pecu- mente desinformada e desinteressada (Frie-
liar de uma esfera pública que permite a todos dman, 2003; Somin, 1998; Weinshall, 2003).
os participantes a chance de reconsiderar o que Contudo, este quadro tem sido modificado
entendem por opinião pública. A construção através de estudos recentes acerca do papel
comum da opinião pública certamente convida cognitivo dos atalhos heurísticos e informa-
os atores a intervir estrategicamente na esfera cionais no desenvolvimento e na consolidação
de orientações políticas. Eles sugerem que, a
longo prazo, leitores, ouvintes e telespectado-
Uma sociedade civil res podem formar, definitivamente e mesmo
inclusiva precisa inconscientemente, atitudes sensatas em re-
conferir poder aos lação a questões públicas. Podem construí-las
agregando suas reações, freqüentemente tácitas
cidadãos, de modo que e mesmo esquecidas, a fragmentos e pedaços
eles possam participar casualmente recebidos de informação, os quais
de discursos públicos eles inicialmente integraram a um background
e respondê-los de esquemas conceituais em evolução, avalian-
do-os também em relação a esse pano de fundo
cognitivo. Nesse sentido, “as pessoas podem ser
conhecedoras em seu uso da razão acerca de
pública. A distribuição desigual dos meios para suas escolhas políticas, sem possuir uma vasta
a realização de tais intervenções, entretanto, não gama de conhecimentos sobre a política” (Dal-
distorce necessariamente a formação de opini- ton, 2006:26; Delli Carpini, 2004:412).
ões públicas cuidadosamente consideradas. As
intervenções estratégicas na esfera pública pre- Patologias da comunicação política
cisam, de modo a evitar o risco da ineficiência,
aceitar as regras do jogo. E, uma vez que as regras Na análise final, nós somos ainda confron-
estabelecidas constituem o “jogo certo” – aquele tados com uma evidência que, à primeira vis-
que promete a produção de opiniões públicas ta, aponta que o tipo de comunicação política
cuidadosamente consideradas –, mesmo os ato- que conhecemos em nossa então chamada
res mais poderosos irão contribuir somente para sociedade mediática se posiciona na direção
a mobilização de questões, fatos e argumentos contrária aos requerimentos normativos da
relevantes. Contudo, para que as regras do “jogo política deliberativa. Contudo, o uso empíri-
certo” existam, duas coisas precisam ser alcança- co recomendado do modelo deliberativo nos
das. Em primeiro lugar, um sistema mediático fornece um impulso crítico: ele nos permite
auto-regulador deve manter sua independên- ler os dados contraditórios como indicadores
cia frente aos sistemas que o rodeiam, ao mes- de entraves contingentes que merecem uma
mo tempo em que estabeleça conexões entre a séria investigação. Os requerimentos mencio-
comunicação política desenvolvida na esfera nados anteriormente – ou seja, a independên-
pública, a sociedade civil e o centro do sistema cia de um sistema dos media auto-regulado e
político. Em segundo lugar, uma sociedade civil a forma correta e justa de um feedback entre a
inclusiva precisa conferir poder aos cidadãos, de comunicação política mediada e a sociedade
modo que eles possam participar de discursos civil – podem servir como detectores para a

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descoberta de causas específicas para ausên- A ausência de distância entre os media e os


cias existentes de legitimidade. grupos de interesse especiais é menos espeta-
Com relação à primeira condição, precisa- cular, embora mais freqüente e “normal” do
mos distinguir, de um lado, entre uma diferen- que sua implicação transitória nos meandros
ciação incompleta entre o sistema dos media e de poder da política. Se, por exemplo, políticas
os ambientes que o cercam e, de outro lado, en- ecológicas ou de proteção à saúde produzem
tre uma interferência temporária e a indepen- impacto nos interesses principais de corpora-
dência do sistema dos media que já alcançou o ções importantes, esforços concentrados para
nível da auto-regulação. O monopólio do Esta- traduzir o poder econômico em influência po-
do exercido sobre as emissoras públicas de co- lítica podem ser vistos como capazes de pro-
municação na Itália durante as primeiras três duzir um efeito mensurável. Nesse contexto,
décadas do período pós-guerra é um exemplo a influência intermediária de comunidades
do interligamento da mídia eletrônica com o eruditas (como a Escola de Chicago) é também
sistema político. Durante o período no qual digna de ser mencionada. Um caso especial de
toda mudança de governo entre os políticos da dano causado à independência editorial ocorre
situação, pertencentes ao Partido Democrata quando proprietários privados de um império
Cristão, e os membros da oposição comunista mediático desenvolvem ambições políticas e
foi bloqueada, cada um dos principais parti- usam seu poder, baseado na propriedade, para
dos usufruía do privilégio de recrutar os em- adquirir influência política.
pregados para um dos três canais públicos de A televisão privada e a mídia impressa são
televisão. Esse padrão garantiu um certo grau empresas comerciais como quaisquer outras.
de pluralismo, mas certamente não assegurou Nesse caso, contudo, os proprietários podem
a independência da programação profissional. utilizar sua vantagem econômica como um
Uma conseqüência dessa diferenciação incom- “botão” para converter imediatamente o poder
pleta entre a comunicação mediada o o núcleo dos media em influência pública e em pressão
do sistema político foi a de que as emissoras política. Ao lado de proprietários poderosos
públicas favoreceram um tipo de paternalis- como Rupert Murdoch, temos Silvio Berlus-
mo, como se cidadãos imaturos precisassem de coni como um exemplo infame. Ele primeiro
uma instrução política adequada de instâncias explorou as oportunidades legais traçadas so-
superiores (Padovani, 2005). mente para sua auto-promoção política e, as-
Comparado com essa ausência de diferen- sim, depois de assumir o poder de controle so-
ciação, uma perda de especialização temporária bre o governo, utilizou seu império mediático
parece ser uma deficiência menor. Entretanto, para sustentar uma legislação dúbia em favor
às vezes pode ter um impacto mais marcante. da consolidação de sua fortuna privada e de
Um caso recente em voga é a manipulação do seus bens políticos. No decorrer dessa aventu-
público americano pelo surpreendente sucesso ra, Berlusconi obteve sucesso em modificar a
da gestão de comunicações da Casa Branca an- cultura mediática de seu país, retirando-a do
tes e depois da invasão do Iraque, em 2003. O domínio da educação política e enfatizando
que esse caso destaca não é a manobra astuta o mercado do entretenimento despolitizado
do presidente para enquadrar o evento do 11 – “uma mistura de filmes e telefilmes, shows
de setembro como algo que ativou a “guerra de variedades e shows de perguntas e respos-
contra o terrorismo” (Entman, 2004). O fenô- tas, desenhos animados e esportes, com a pro-
meno mais remarcável nesse contexto foi a au- eminência do futebol nessa última categoria”
sência de qualquer contra-enquadramento efe- (Ginsborg, 2004).
tivo (Artz e Kamalipour, 2005). Uma imprensa A segunda condição diz respeito ao feedback
responsável teria oferecido aos media popula- entre um sistema dos media auto-regulador e
res notícias mais fidedignas e interpretações al- uma sociedade civil responsiva. A esfera pública
ternativas, por meio de um agendamento entre política precisa dos recursos fornecidos (inputs)
diferentes veículos mediáticos. pelos cidadãos que dão voz aos problemas da so-

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ciedade e que respondem às questões articuladas ção à política (Lee, 2005:421). Se, contudo, a
pelo discurso da elite. Existem duas causas prin- dependência do rádio e da televisão alimenta
cipais para a ausência sistemática desse tipo de sentimentos de impotência, apatia e indiferen-
feedback circular. A privação social e a exclusão ça, não deveríamos procurar a explicação de
cultural dos cidadãos explicam o acesso seletivo tal fato no estado paralítico da sociedade civil,
a e uma participação irregular na comunicação mas sim nos conteúdos e formatos de um tipo
mediada, uma vez que a colonização da esfera degenerado de comunicação política. Os dados
pública pelos imperativos do mercado conduz a que mencionei sugerem que o modo da comu-
uma paralisia peculiar da sociedade civil. nicação mediada contribui independentemen-
Com relação ao acesso e à participação na te para uma alienação difusa dos cidadãos com
comunicação mediada, há um senso comum relação à política (Boggs, 1997).
sociológico de que o interesse por questões No que tange à colonização da esfera pública
públicas e o uso da mídia política está ampla- pelos imperativos do mercado, o que tenho em
mente correlacionados com o status social e o mente aqui é simplesmente a redefinição da po-
background cultural (Delli Carpini, 2004:404; lítica em categorias de mercado. O crescimento
Verba Schlozman e Bradey, 1995). Esse con- da arte autônoma e da imprensa política inde-
junto de dados pode ser interpretado como pendente, desde o final do século XVIII, prova
indicador de uma diferenciação funcional in- que a organização e a distribuição comerciais
suficiente da esfera pública política com rela- de produtos intelectuais não induzem, neces-
ção à estrutura de classes da sociedade civil. Ao sariamente, à tranformação de seu conteúdo
longo das últimas décadas, contudo, os víncu- e dos modos de sua recepção em mercadoria.
los com as origens sociais e culturais atribuídas Sob a pressão dos acionistas sedentos por lu-
têm se tornado mais fracos (Dalton, 2006:172, cros mais elevados, é a invasão dos imperativos
150, 219). A mudança em direção a “questões funcionais do mercado econômico na “lógica
a serem decididas com uma votação” revela interna” da produção e da apresentação das
o crescente impacto do discurso público nos mensagens que conduz à substituição secreta
padrões de votação e, de modo mais geral, o de uma categoria da comunicação por outra:
impacto do discurso público na formação de questões ligadas ao discurso político são assi-
“públicos voltados para questões específicas”. miladas e absorvidas por modos e conteúdos
Ainda que um grande número de pessoas de entretenimento. Além da personalização, a
tenda a se interessar por um amplo número dramatização dos eventos, a simplificação de
de questões, o conjunto geral desses públicos problemas complexos e a vívida polarização
pode ainda servir para antecipar as tendências de conflitos promovem um privatismo cívico
de fragmentação (Dalton, 2006:121, 206). e um clima anti-político.
A despeito da inclusão crescente de cida- O status crescente das imagens dos can-
dãos nos fluxos da comunicação de massa, didatos explica o padrão da política eleitoral
uma comparação entre estudos recentes chega centrada no candidato. Dalton afirma que
a uma conclusão ambivalente, talvez até direta- “as imagens dos candidatos podem ser vistas
mente pessimista, a respeito do tipo de impac- como mercadorias embaladas por publicitá-
to que a comunicação de massa possui sobre rios que atingem o público enfatizando traços
o envolvimento dos cidadãos na política (Delli que possuem um apelo especial junto aos elei-
Carpini, 2004). Vários resultados nos Estados tores” (Dalton, 2006:215). A tendência relacio-
Unidos sustentam a hipótese da “videomalaise”, nada às questões eleitorais caminha lado a lado
segundo a qual as pessoas que fazem um uso com a tendência ligada às eleições baseadas em
intenso da mídia eletrônica e a consideram candidatos, de maneira que esta última ainda
uma fonte importante de informação pos- não predomina. A personalização da política
suem um baixo nível de confiança na política é sustentada pela mercantilização dos progra-
e apresentam maior tendência a assumir, em mas. Estações de rádio e emissoras de televisão
conseqüência, uma atitude cínica com rela- privatizadas, as quais operam sob entraves or-

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