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Jürgen Habermas1
Utilizar essas idéias para planejar projetos podem fazer outra coisa, senão oferecer mu-
de pesquisa empírica é um outro modo, mais tuamente demandas de validade para seus
indireto, de construir uma ponte entre a teo- proferimentos e argumentos, uma vez que o
ria normativa e a realidade política. A teoria que dizem deveria ser assumido – e, se ne-
normativa atualmente serve como guia de cessário, provado – como algo verdadeiro,
pesquisa em certos campos da ciência polí- correto ou sincero e, sem dúvida, racional.
tica. Isso explica, de um lado, as afinidades Uma referência implícita ao discurso racio-
eletivas entre o liberalismo político e a teoria nal – ou à competição por melhores razões
econômica da democracia (Arrow, 1963) e, – é construída dentro da ação comunicativa
de outro lado, entre o republicanismo e as como uma alternativa onipresente ao com-
abordagens comunitaristas (que se concen- portamento rotineiro.
tram na confiança e em outras fontes de so-
lidariedade [“hábitos do coração”]) (Bellah,
1975; Putnam, 2000). O modelo deliberativo
está mais interessado na função epistêmica
A deliberação é uma
do discurso e da negociação do que na esco- forma de comunicação
lha racional ou no ethos político. Neste mo- exigente, a partir
delo, a busca cooperativa, empreendida por de rotinas diárias
cidadãos deliberativos, por soluções para invisíveis nas quais as
problemas políticos substitui a idéia da agre- pessoas trocam razões
gação de preferências de cidadãos privados
ou da auto-determinação coletiva de uma
umas com as outras
nação eticamente integrada.
O paradigma deliberativo oferece como
seu ponto de referência empírico principal um As idéias penetram na realidade social
processo democrático que supostamente deve- através de pressuposições idealizadas inatas
ria gerar a legitimidade através de um proce- às práticas cotidianas e adquirem, impercep-
dimento de formação da opinião e da vontade tivelmente, a qualidade de fatos sociais obsti-
que garante (a) publicidade e transparência nados.2 Pressuposições similares estão implí-
para o processo deliberativo, (b) inclusão e citas também em práticas políticas e legais.
igual oportunidade para a participação, e (c) Tomemos o exemplo do chamado paradoxo
uma pretensão justificada para resultados ob- dos eleitores (o qual não é, de forma alguma,
tidos através da troca de argumentos (princi- um paradoxo): os cidadãos continuam a par-
palmente em vista do impacto dos argumentos ticipar de eleições gerais, apesar de cientistas
nas mudanças racionais de preferências) (Boh- políticos apontarem, a partir de um ponto de
man, 1996; Bohman & Rehg, 1997). vista de observadores, os efeitos marginali-
A pretensão de alcançar resultados fun- zantes da geografia eleitoral ou dos procedi-
dados na troca de razões permanece, por sua mentos eleitorais. A prática democrática das
vez, ligada à hipótese de que discursos institu- eleições constitui um empreendimento cole-
cionalizados mobilizam tópicos e demandas tivo e requer que os participantes procedam
relevantes, promovem a avaliação crítica das segundo a suposição de que cada voto “con-
contribuições e conduzem a reações favorá- ta”. De forma semelhante, pessoas envolvidas
veis ou contrárias, racionalmente motivadas. em demandas litigiosas não deixam de ir à
A deliberação é uma forma de comunicação corte, independentemente do que profes-
exigente, ainda que se desenvolva a partir de
rotinas diárias invisíveis nas quais as pessoas
trocam razões umas com as outras. No curso 2
Essa concepção de uma razão não transcedentalizada, ou seja, o
conteúdo normativo do que é incorporado às práticas sociais, não
das práticas cotidianas, os atores estão sem- deve ser confundido com a oposição que John Rawls faz entre a
pre expostos a um espaço de razões. Eles não teoria ideal e a teoria que não é ideal (cf. Neblo, 2005).
sores de direito observem e pronunciem a ção, cada um deles era convidado novamente
respeito da indeterminação das leis e da im- a expor suas opiniões individuais.
previsibilidade das decisões legais. A regra da Os resultados corroboram mais ou me-
lei e a prática de emissão de um julgamen- nos o impacto esperado da deliberação sobre
to final em um procedimento legal iriam se a formação da opinião política resultante de
deteriorar se os participantes não agissem de uma cuidadosa reflexão. O processo da deli-
acordo com a premissa de que eles recebem beração em grupo resultou em uma mudan-
um tratamento justo e de que um veredito ça unidirecional e não em uma polarização
adequado será emitido. de opiniões. As decisões finais foram bastan-
te diferentes das opiniões iniciais expressas,
e as opiniões se alteraram refletindo níveis
aprimorados de informação e perspectivas
A comunicação política
ampliadas acerca de uma definição mais
mediada não precisa clara e específica das questões. Argumentos
preencher todos os neutros tenderam a receber prioridade so-
padrões de uma bre a influência das relações interpessoais, e
deliberação ideal, assu- também houve uma expressão crescente de
mindo diferentes formas confiança na legitimidade procedimental da
argumentação justa.
em diferentes arenas
Outros exemplos podem ser citados, como
os famosos experimentos de James Fishkin
(1995; e também Fishkin e Luskin, 2005) com
grupos focais, ou experimentos de campo
O potencial de busca pela veracidade
oferecido pela deliberação política como aquele que envolve uma amostra de 160
habitantes da província de British Columbia,
Saber se a deliberação introduz de fato no Canadá, que foram escolhidos a partir de
uma dimensão epistêmica na formação da listas de eleitores para uma Assembléia de Ci-
vontade política e nos processos de tomada dadãos sobre a Reforma Eleitoral e reunidos
de decisão é algo que nos remete, obviamen- especificamente durante seis finais de semana a
te, a uma questão empírica. Já existe um im- fim de “aprender, de deliberar sobre e de deci-
pressionante conjunto de estudos baseados dir entre três propostas alternativas”. Evidências
em pequenos grupos de pessoas que inter- do impacto da deliberação na estruturação de
preta a comunicação política como um me- preferências não apenas ativou críticas a respei-
canismo destinado ao aprimoramento do to do paradigma da escolha racional (Health,
aprendizado cooperativo e da busca coletiva 2001; Johnson, 1993), mas também motivou
de soluções para problemas comuns. Neblo uma nova pesquisa acerca dos efeitos provo-
(no prelo), por exemplo, traduziu as pressu- cados pelos enquadramentos (framing effects)
posições principais da teoria normativa em na formação de preferências políticas. Druck-
hipóteses sobre como grupos experimentais man (2004:675) aponta que “indivíduos que se
aprendem sobre questões políticas (como a engajam em conversações com um grupo he-
ação afirmativa, a presença de gays no exér- terogêneo serão menos suscetíveis aos efeitos
cito, ou a justiça distributiva de esquemas de dos enquadramentos do que aqueles que não
taxas baixas) através da deliberação. Os indi- se engajam em conversações”. Grupos de espe-
víduos eram interrogados primeiramente so- cialistas (de cooporações multinacionais) e de
bre suas opiniões a respeito dessas questões. contra-especialistas (de organizações não-go-
Cinco semanas depois, eles eram reunidos vernamentais) que se reuniram sob o amparo
em grupos e convidados a debater sobre as do Wissenschaftszentrum de Berlim estão mais
mesmas questões e a chegar a decisões cole- próximos da política da vida real. Esses grupos
tivas. Mais cinco semanas após essa delibera- mediadores foram convidados explicitamente
a discutir visões conflitantes sobre questões po- tre os papéis desempenhados pelos falantes e
líticas (os riscos trazidos pelo cultivo de plan- pelos destinatários em uma troca igualitária
tas geneticamente modificadas e os direitos de de demandas e opiniões.
propriedade intelectual no âmbito da biotec- Além disso, a dinâmica da comunicação de
nologia versus cuidados de saúde contra epi- massa é dirigida pelo poder dos media de sele-
demias em regiões subdesenvolvidas) (Van den cionar e de formatar a apresentação de mensa-
Daele, 1994, 1996; World Business Council for gens e pelo uso estratégico do poder político e
Sustainable Development and Science Center social para influenciar as agendas, assim como
Berlin, 2003). para ativar e enquadrar questões públicas.
Todos esses estudos oferecem evidên- Antes de desenvolver essa questão das in-
cias empíricas sobre o potencial cognitivo tervenções de poder, explicarei primeiro por
da deliberação política. Contudo, amostras que nem o caráter abstrato da esfera pública
de pequena escala somente podem prover que separa as opiniões das decisões, nem a
um limitado suporte para o conteúdo em- relação assimétrica entre ator e audiência no
pírico do paradigma deliberativo designado palco virtual da comunicação mediada são,
para processos de legitimação em socieda- per se, características dissonantes, ou seja,
des nacionais ou de larga escala. As socie- fatores que poderiam negar a aplicabilidade
dades ocidentais contemporâneas revelam do modelo de política deliberativa. A comu-
um aumento impressionante no volume da nicação política mediada não precisa preen-
comunicação política (Van der Daele e Nei- cher todos os padrões de uma deliberação
dhardt, 1996), mas a esfera pública política ideal. A comunicação política, circulando de
é, ao mesmo tempo, dominada por um tipo baixo para cima e de cima para baixo através
de comunicação mediada que não apresenta de um sistema de múltiplos níveis (da con-
as características definidoras da deliberação.3 versação cotidiana na sociedade civil, pas-
Falhas a esse respeito são evidenciadas pela sando pelo discurso público e pela comuni-
(a) ausência de uma interação face a face en- cação mediada entre públicos fracos, até os
tre participantes presentes em uma prática discursos institucionalizados no centro do
compartilhada de produção de decisão cole- sistema político), assume diferentes formas
tiva, e pela (b) ausência de reciprocidade en- em diferentes arenas. A esfera pública forma
a periferia do sistema político e pode facilitar
processos deliberativos de legitimação “fil-
4
Permitam-me fazer um comentário a respeito da Internet, que trando” os fluxos de comunicação política
atua como um contrapeso em relação às aparentes deficiências que
se fundamentam no caráter neutro e assimétrico das emissões me- por meio da divisão do trabalho com outras
diáticas, reintroduzindo elementos deliberativos na comunicação partes do sistema.
eletrônica. A internet certamente reativou as ações cívicas de um
público igualitário de escritores e leitores. Contudo, a comunicação
mediada por computador através da internet pode demandar mé-
A estrutura da comunicação de massa
ritos democráticos inequívocos somente para um contexto especial: e a formação de opiniões públicas
ela pode desafiar a censura imposta por regimes autoritários que
tentam controlar e reprimir a opinião pública. No contexto de regi- cuidadosamente consideradas4
mes liberais, o crescimento de milhões de salas de bate-papo (chat
rooms) fragmentadas através do mundo tende, contudo, a uma
fragmentação de amplas audiências de massa, porém politicamen-
Imagine a esfera pública como um sis-
te focadas, em um grande número de públicos isolados e voltados tema intermediário de comunicação entre
para uma única questão. Através de esferas públicas nacionais esta- deliberações formalmente organizadas e de-
belecidas, os debates online entre os utilizadores da web promovem
uma comunicação política somente quando novos grupos se crista- liberações face a face informais em arenas
lizam em torno de pontos focais sobre a qualidade da imprensa, por localizadas, respectivamente, no centro (ou
exemplo, jornais nacionais e revistas políticas. (Um bom indicador
para a função crítica desse papel parasita da comunicação online é a
no topo) e na periferia (ou na base) do sis-
conta de 2.088 euros que o âncora do site Bildog.de enviou recente- tema político. Existem evidências empíricas
mente para o diretor da Bild.T-Online relativa a “serviços”: os blog-
gers afirmaram que eles melhoraram o trabalho do grupo editorial
do Bildzeitung através de críticas e correções úteis [cf. “Rechnung 4
Estou seguindo as principais linhas de uma análise apresenta-
für Bild.de“, 2006:95]). da por Peters (1994, 2001).
ciedade e que respondem às questões articuladas ção à política (Lee, 2005:421). Se, contudo, a
pelo discurso da elite. Existem duas causas prin- dependência do rádio e da televisão alimenta
cipais para a ausência sistemática desse tipo de sentimentos de impotência, apatia e indiferen-
feedback circular. A privação social e a exclusão ça, não deveríamos procurar a explicação de
cultural dos cidadãos explicam o acesso seletivo tal fato no estado paralítico da sociedade civil,
a e uma participação irregular na comunicação mas sim nos conteúdos e formatos de um tipo
mediada, uma vez que a colonização da esfera degenerado de comunicação política. Os dados
pública pelos imperativos do mercado conduz a que mencionei sugerem que o modo da comu-
uma paralisia peculiar da sociedade civil. nicação mediada contribui independentemen-
Com relação ao acesso e à participação na te para uma alienação difusa dos cidadãos com
comunicação mediada, há um senso comum relação à política (Boggs, 1997).
sociológico de que o interesse por questões No que tange à colonização da esfera pública
públicas e o uso da mídia política está ampla- pelos imperativos do mercado, o que tenho em
mente correlacionados com o status social e o mente aqui é simplesmente a redefinição da po-
background cultural (Delli Carpini, 2004:404; lítica em categorias de mercado. O crescimento
Verba Schlozman e Bradey, 1995). Esse con- da arte autônoma e da imprensa política inde-
junto de dados pode ser interpretado como pendente, desde o final do século XVIII, prova
indicador de uma diferenciação funcional in- que a organização e a distribuição comerciais
suficiente da esfera pública política com rela- de produtos intelectuais não induzem, neces-
ção à estrutura de classes da sociedade civil. Ao sariamente, à tranformação de seu conteúdo
longo das últimas décadas, contudo, os víncu- e dos modos de sua recepção em mercadoria.
los com as origens sociais e culturais atribuídas Sob a pressão dos acionistas sedentos por lu-
têm se tornado mais fracos (Dalton, 2006:172, cros mais elevados, é a invasão dos imperativos
150, 219). A mudança em direção a “questões funcionais do mercado econômico na “lógica
a serem decididas com uma votação” revela interna” da produção e da apresentação das
o crescente impacto do discurso público nos mensagens que conduz à substituição secreta
padrões de votação e, de modo mais geral, o de uma categoria da comunicação por outra:
impacto do discurso público na formação de questões ligadas ao discurso político são assi-
“públicos voltados para questões específicas”. miladas e absorvidas por modos e conteúdos
Ainda que um grande número de pessoas de entretenimento. Além da personalização, a
tenda a se interessar por um amplo número dramatização dos eventos, a simplificação de
de questões, o conjunto geral desses públicos problemas complexos e a vívida polarização
pode ainda servir para antecipar as tendências de conflitos promovem um privatismo cívico
de fragmentação (Dalton, 2006:121, 206). e um clima anti-político.
A despeito da inclusão crescente de cida- O status crescente das imagens dos can-
dãos nos fluxos da comunicação de massa, didatos explica o padrão da política eleitoral
uma comparação entre estudos recentes chega centrada no candidato. Dalton afirma que
a uma conclusão ambivalente, talvez até direta- “as imagens dos candidatos podem ser vistas
mente pessimista, a respeito do tipo de impac- como mercadorias embaladas por publicitá-
to que a comunicação de massa possui sobre rios que atingem o público enfatizando traços
o envolvimento dos cidadãos na política (Delli que possuem um apelo especial junto aos elei-
Carpini, 2004). Vários resultados nos Estados tores” (Dalton, 2006:215). A tendência relacio-
Unidos sustentam a hipótese da “videomalaise”, nada às questões eleitorais caminha lado a lado
segundo a qual as pessoas que fazem um uso com a tendência ligada às eleições baseadas em
intenso da mídia eletrônica e a consideram candidatos, de maneira que esta última ainda
uma fonte importante de informação pos- não predomina. A personalização da política
suem um baixo nível de confiança na política é sustentada pela mercantilização dos progra-
e apresentam maior tendência a assumir, em mas. Estações de rádio e emissoras de televisão
conseqüência, uma atitude cínica com rela- privatizadas, as quais operam sob entraves or-