Você está na página 1de 9

Pode a subalterna outra subalterna calar?

Escrevo procurando alguma cura. E também rasgando minha ferida.

Agora mesmo, olho à minha frente, olho dentro de mim e também a minha pele. Olho a matemática
sem fim que resulta das interseções entre origem social, raça, geografia, gênero.

Eu preciso escrever sobre minha participação em uma mesa sobre arte, transexualidade e
representação, realizada dentro do projeto Todos os Gêneros, parceria Ssex Bbox e o Itaú Cultural,
no dia 16/6/2017.

Desde o momento em que fui convidada, um pequeno mas potente alarme amarelo foi ativado. Sei,
ao longo desses anos, que o terreno é complexo e hoje aciona uma série de questões que precisam
ser discutidas para além da caixa azul de Zuckeberg. Isso é bom – e foi também por isso que aceitei
estar ali. Minha função seria a de mediadora, ou seja, deveria apenas organizar os tempos das falas
iniciais (15 minutos cada) de quatro travestis autoidentificadas (Leonarda Gluck, Lua Lucas, Renata
Carvalho e Helena Vieira). Nas duas horas seguintes, eram elas e plateia, sendo papel cronometrar
tempos para que todas tivessem espaço equânime e, se necessário, lançar uma questão lá e cá.

Aprendi, há anos, que não falo por ninguém, nem quero mais falar sobre ninguém. Eu quero falar
com. Isso, é claro, se for interessante à outra – e se for permitido. Esperei, inclusive, que minha
presença pudesse ser descartada caso alguma das mulheres não quisesse uma cisgênera como
mediadora. As participantes da mesa foram escolhidas semanas antes da conversa e poderiam se
manifestar. Mas não houve nenhuma questão a respeito.

Havia de saída um fator de desacordo entre as convidadas: o manifesto escrito por artistas
transexuais e travestis pedindo por mais visibilidade e pelo fim de pessoas cisgêneras interpretando
pessoas trans nas novelas, peças – nos espaços de representação, em geral. Aqui:
https://www.facebook.com/RepresentatividadeTrans/

Eu concordo com o manifesto. É desonesto com estas pessoas transformá-las em eternos


“laboratórios” de pesquisa.

Helena Vieira, pesquisadora das mais produtivas e de presença importante sobre o debate da
travestilidade e transexualidade, colaborou com Glória Perez na novela global A Força do Querer,
na qual há uma personagem que está em transição: é um homem trans. A atriz, Carol Duarte, é uma
mulher cis interpretando este papel.

Se é possível fazer um resumo: Helena também concorda com o manifesto. Ao mesmo tempo, ela
entende que é preciso abrir os espaços para essa visibilidade acontecer – e uma pessoa em transição
em uma novela global, no horário nobre, pode ser um caminho para tal realidade começar.
Particularmente, a minha questão, acompanhando o manifesto, é: até quando essa negociação vai
acontecer? Como uma mulher trans que admiro bastante (Caia Coelho) colocou: visibilidade não se
consegue pedindo licença. Eu aprendi por experiência própria que é importante ocupar espaços que
produzem representações, mas é igualmente importante cutucar um ponto: essa ocupação tem que
ser feita pelo meu corpo, minha cara e minha voz, não por alguém as instrumentalizando.

A questão serve para ser refletida com profundidade, com honestidade. E com tempo. E é claro que
três horas não seriam suficientes para isso (a conversa começou às 15h e terminou às 18h).
Mas, no final, como alguém disse lá fora, na frente do Itaú, Avenida Paulista (esse nicho de
branquitude e riqueza nacional) depois de tudo encerrado: “eu queria ter participado de um debate.
Mas minha impressão é que vi apenas troca de balas”.

Eu entendi perfeitamente. Fazia tempo que eu não me sentia tão oprimida. E se sentir oprimida em
meio a mulheres historicamente oprimidas sendo uma pessoa igualmente- historicamente oprimida
é uma experiência louca: ela dói, ela ensina, ela reelabora. Perceber que há questões que se colocam
a partir da presença, no mesmo espaço, de uma mulher cisgênera negra nordestina e uma mulher
transgênera branca do sul/sudeste.

A pedido do evento, Helena, a única não atriz entre as quatro mulheres, deveria falar por último.
Essa organização foi questionada inicialmente entre as participantes. Expliquei que Helena seria o
contraponto das exposições, mudou-se a ordem de quem começaria a fala (seria Renata, mas foi
Lua) e a conversa seguiu.

Lua começou sua apresentação citando Shakespeare. Falou sobre sua experiência, sua batalha, sua
falta de representatividade, seu dinheiro minguado e cotidiano instável. Dado momento, disse para a
plateia: “vocês vão ter que nos engolir sim.” O interessante é que essa fala pensada para um publico
que se pensava totalmente cisgênero também bateu em ao menos dez pessoas trans (aqui uso trans
para abarcar todas as demais identidades além de travestis, mulheres e homens transexuais) que
estavam ali. Depois, Renata seguiu com uma fala potente (a mais longa) e necessária. Observou que
alguns termos do manifesto não cabem (como o uso de “transface”, comparado ao blackface: é
importante lembrar que se uma atriz ou um ator podem representar um gênero, eles não podem
fazer o mesmo quando o assunto é a cor da pele). Leonarda, concordando com as colegas, lançou
uma luz, informando que havia, sim, conquistas, e que a presença delas ali, naquele espaço
legitimado, era um indicativo disso. Essa luz foi amplificada por Helena, que falou sobre os
problemas trazidos com a crescente corporificação do debate.

Eu havia preparado um pequeno texto que servia para embasar a primeira questão que queria lançar
no debate. Trazia um incômodo antigo: onde estão as pretas e os pretos, onde está a pobreza, os
lugares de classe, nos debates sobre transexualidades/travestilidades? Onde está a travesti negra das
bordas desse país? Esses debates não alcançam as periferias (lembrando que periferia também
pode ser centro – basta pensar a cracolândia paulista) por que?

Mostrei no texto (pedi para Leonarda cronometrar meu tempo de fala), a minha aproximação com
várias mulheres transexuais e travestis a partir do momento em que iniciei as investigações sobre
minha própria condição: a de mulher negra. Mostrei que no dia a dia como repórter, ao falar com
meninas cis que viviam em ruas, mulheres exploradas sexualmente, mulheres silenciadas e
violentadas, eu terminava me aproximando também de mulheres negras não cisgêneras. Que essa
realidade eu encontraria mais tarde nas leituras teóricas, quando vi que parte do transfeminismo se
pauta em autoras negras e feministas, algumas lésbicas, como Angela Davis, Bell Hooks e Audre
Lorde. Aliás, foi uma mulher não cisgênera que me chamou atenção para isso: Vivi Vergueiro, a
quem devo parte de meu aprendizado em eterna construção. A partir daí, percebi outras micro e
internas opressões, como a passabilidade (e a violência do medo de ser acusada de estar enganado
alguém quando sua identidade é trans/travesti).

No texto, falei sobre Carol e Stephanie, exploradas sexualmente (a primeira cis, a segunda travesti,
ambas dividindo as ruas na reportagem Casa Grande e Senzala, escrita no fim de 2013). Falei sobre
o fato de Joicy ser questionada mesmo entre transexuais e travestis, por seu corpo ser percebido
como “masculino” demais. Contei que isso aconteceu tanto aqui, durante o momento do tratamento,
quanto em SP, quando fomos homenageadas pela associação que organiza a parada LBGT. Falei
sobre Fernanda, mulher negra trans encarcerada com 99 homens em um presídio masculino aqui em
Pernambuco. Falei, por fim, do maracatu rural como espaço de tensão de identidades e gêneros,
como espaço de arte, e trouxe aquelas pessoas que negociam seu masculino/feminino no mundo:
homens que, nas apresentações, vestem-se de damas e ostentam suas calungas. É ali que muitas
vezes conseguem dar conta da identidade que gostariam de levar – mas o entorno não permite.
Assim, uma vez com a permissão da festa, blindam-se. Eu tentava costurar, enfim, que a arte é um
espaço de dignidade essencial para as pessoas trans, travestis – ou seja, concordava abertamente
com o manifesto.

Quando terminei o texto, para minha surpresa, não aconteceu nenhuma interação. Na verdade,
enquanto eu o lia, percebi um certo desconforto por parte das convidadas. Alguns cochichos,
algumas levantadas da cadeira. Uma aberta e pública decisão de não ouvir o que eu falava.

No vácuo, fiz a pergunta: “o espaço da arte, no Brasil, é dedicado a um público privilegiado.


Pessoas negras, pessoas pobres, geralmente sentem-se desconvidadas. Entre as pessoas transexuais
e travestis não é diferente: na estreia do espetáculo A Demência dos Touros, que tem entrada
gratuita para pessoas trans, em SP, a plateia era majoritariamente branca e cisgênera. Como vocês
percebem esta questão?”

Leonarda passou a responder, disse que era uma realidade difícil. Que era complicado mesmo e que
era por isso que mais ações como aquela, que promovem o debate entre pessoas trans nas artes,
precisava acontecer. Sim, Leonarda tem razão.

Durante a fala de Leonarda (Curitiba) e durante a minha fala (Recife), vez ou outra eu ouvia de
Renata um “nossa que sotaque bonitinho” ou “nossa, tem sotaque de todo canto aqui hoje!”. Ela
dividia os comentários com Lua. O sotaque de Helena não era uma questão: ela mora no Ceará, mas
é de SP.

Percebi que no final não havia diferença, a partir do gênero, de meu modo de falar ser reconhecido e
sublinhado como distinto. E isso, os “distintos” e “distintas”, principalmente nordestinos e
nordestinas sabem, é cansativo, irritante e desnecessário. É preconceituoso, enfim. Leonarda, cuja
origem geográfica é inversamente estigmatizada, pode não se importar. Eu me importo.

Aliás, um dos problemas na fala de Leonarda se localizou justamente aí, na geografia, na hora em
que afirmou que “mais ações como essas precisam circular pelo país, circular por lugares como o
Nordeste”. Aquilo me tocou. Lá estávamos nós, nordestinos, de novo, precisando ser salvos pelas
pessoas do sul/sudeste. Antes de passar o microfone para Helena, eu disse rapidamente: “Olha, o
Nordeste não precisa que o Ssex Bbox leve esta ação para lá, estamos debatendo essas questões
também. Eu por exemplo dou aula em Caruaru, no interior, e lá existem grupos que discutem
gênero”. Para mim, está explícito: entender que outros lugares possuem sua capacidade própria de
pensar o mundo tira de muitos o seu intuito salvacionista, o seu PROTAGONISMO. Ou seja,
descapitaliza quem quer ser herói ou heroína, quem “dá voz”.

Algumas pessoas aplaudiram minha quase tímida intervenção. Leonarda se corrigiu, disse “ah, que
bom que lá está acontecendo isso” e afirmou que sua observação valia para todo o Brasil, inclusive
para o Sul. Na minha condição de mulher cisgênera – e de mediadora – eu não deveria estender
minhas falas. Assim, apenas retruquei que sim, o Sul me parece hoje a região do país que precisa
bastante de um debate não só sobre transexualidade e travestilidade (as últimas eleições
presidenciais mostraram o tipo de ódio ainda dirigido aos nordestinos, ódio este decantado nas redes
sociais). Me incomodou muito a fala da atriz afirmando continuamente que “o brasileiro é ruim”,
que “a maldade está em nosso coração”. Eu discordo. Para mim, soa quase higienista. Para mim,
planifica. É raso. É a lógica do “contra tudo o que está aí.” É justamente esse essencialismo que
vem reduzindo tanta gente a nada. É esse essencialismo e essa certeza de que nós não prestamos que
baliza tanta violência. Inclusive a violência entre pessoas transexuais e travestis.

Sobre o texto que eu havia lido, a única interação que aconteceu veio de Renata, momentos mais
tarde, quando disse: “amada, não é Parada Gay, é LGBT”. Eu havia trazido na leitura a história de
três travestis encarceradas entre quase cem homens, eu havia trazido um corpo transexual não
reconhecido entre as próprias pares (Joicy), eu havia falado da presença de pretas trans e cis no
cotidiano do crack. Mas a única – a única - coisa pescada na minha leitura foi o “parada gay”.

O amada não era amada, isso vocês sabem. Ela estava certa, eu havia usado o termo incorreto. Pedi
desculpa. A sigla, aliás, vive em constante debate, por várias pessoas trans acreditarem que ela não
as visibiliza (o mesmo com lésbicas, bissexuais entre tantos outros possíveis). Há quem escreva a
sigla como sendo simplesmente GGGG. Mas isso não era uma questão.

Eu estava reduzida ao “parada gay”, ao meu sotaque “diferente”, “bonitinho” e, importante, à minha
cisgeneridade.

Enquanto falava, Renata soltou um “denegrir as pessoas trans”. Uma parte da plateia olhou para
mim – adivinhem, eram pessoas negras. Em uma pequena confusão de vozes instaurada, eu, ao
microfone, disse: “Amada, denegrir é racista.”

Acho ruim, muito ruim que um debate chegue a isso, porque sei, de verdade, que não havia intenção
da atriz em soar racista, como eu, é claro, sei que a parada LGBT (ou GGGG, sim) não é uma
parada gay. Acho doloroso para a plateia. Acho doloroso para a questão em si, que ali já estava
cruzada de balas. Acho que vira uma lavagem de roupa suja e toda uma dedicação a pegar o outro
pelo pequeno delito, mas não pelo alcance do que interessante se está a falar.

Quando lancei o Nascimento de Joicy em SP, tive Daniela Andrade e Neon Cunha à mesa. Em dado
momento, ambas me chamaram. “Fabiana, você usa mulher biológica no texto. Não é certo.” Eu
concordei – no momento da escrita, a questão da cisgeneridade não havia me alcançado. Informei a
ambas que mudaria isso em uma próxima edição. Os erros cometidos na reportagem foram
mantidos e discutidos no segundo capítulo (“mudança de sexo”, por exemplo) justamente porque
entendo que estamos em pleno debate e reconstrução. Faço parte disso. Sou permeada também
pelos erros.

Esse pequeno exemplo do gay/denegrir nos serve para pensar como as palavras estão em disputa,
como estão sendo ressignificadas e, mais ainda, como nosso processo de construção/desconstrução
precisa ser feito primeiro com ouvido antes de acionarmos a cotovelada.

Em determinado momento, Helena foi criticada por ser acadêmica justamente por Lua, que
começou sua participação citando Shakespeare (e cuja colega atriz, Renata, havia citado Judith
Butler). “Não entendi nada do que você falou.” Isso não aconteceu apenas uma vez. O ser
acadêmica surgiu como uma quase ofensa. O recado era: você tem privilégio por estar na
universidade, eu não.

Ora, vejam só. Eu sou uma mulher acadêmica. Uma mulher negra acadêmica. Uma mulher negra,
nordestina e acadêmica. E parecia que eu deveria, assim como Helena, assim como outras mulheres
acadêmicas, mesmo transexuais, travestis, mesmo pretas, pedir desculpas por isso.

Eu jamais deixarei de torcer por essas presenças. É pela falta destas mulheres em todos os espaços –
e mais ainda nos espaços do poder – que estamos tão desassistidas institucionalmente. Eu quero e
eu vou ser canal (escrevendo, estando, calando, ouvindo, falando) para que muitas negras ocupem
locais reservados há séculos para a branquitude. Outras já fizeram isso por mim. Eu quero que as
próximas gerações sejam atendidas por mais médicas negras (eu nunca fui). Eu quero que a caixa de
supermercado, travesti e preta que trabalha aqui perto de minha casa e estuda em uma universidade
privada, seja juíza, como é seu desejo.

Sou a primeira pessoa da minha família a entrar em uma universidade. Esse caminho mudou
radicalmente a minha experiência de vida.

A vida de quem foi abusada sexualmente aos seis anos. E que conviveu e convive com uma cor de
pele hiperssexualizada e que nos expõe a toda uma sorte de assédios e violências.

A vida de quem, na infância, precisou durante algum tempo mudar-se todos os meses de casa por
falta de pagamento de aluguel.

De quem acordava às 4h30 da manhã na periferia de Jaboatão para ter aula às 7h em Recife e,
apenas com dinheiro de passagem para um ônibus, precisava andar todos os dias durante 1h30 para
ir e voltar até a sala de aula. Essa condição, somada ao cansaço de jornadas diárias de estudos, me
adoeceu seriamente.

Há cerca de seis meses, por volta das 8h, esbarrei em uma mulher branca, alta, em um cruzamento
perto da minha casa (vivo em um bairro de alto índice de Desenvolvimento Humano - eu e meu
filho somos as únicas pessoas negras do edifício). Me voltei para ela e ela para mim. Ela disse:
“Você ainda fica me encarando?” Eu respondi: “A senhora também me atropelou.” Ela retrucou:
“Atropelei e vou atropelar todas as vezes que gente como você bater em mim.” Percebam a
internalização: eu falei SENHORA. Pensei muito nisso. Em como meu pai, preto, me ensinou a
tratar assim as “pessoas mais velhas”. Mas ela não era tão mais velha do que eu, que tenho 42 anos.

Era a voz do meu pai que ecoava obediência (trazendo aqui a minha escuta de Conceição Evaristo).

Pois: eu deveria pedir desculpas pelo meu diploma de doutorado? Jamais.

Eu precisava falar sobre essas coisas (íntimas e coletivas) para que minha presença naquela mesa
fosse minimamente respeitada?

Menos ainda. Me recuso que nossa discussão seja pautada por uma espécie de mini campeonato
interno de sofrimento e opressão. A essencialização de identidades não pode apartar quem deveria,
junto, estar na linha de frente.

O que ficou óbvio para mim, ali, é que eu deveria estar atenta para a condição socialmente e
institucionalmente instável da mulher trans, branca, do sudeste, enquanto essa mulher, no fim,
diminuía o meu lugar (cis, negra, nordestina) conseguido após anos estudando enquanto trabalhava
e criava sozinha um filho. Ocupo hoje um lugar de privilégio? Sim, não tenho dúvida. Toda nossa
briga não é para que as pessoas, se quiserem, ocupem estes espaços? Para que elas não precisem
morrer, adoecer ou enlouquecer tentando? Não estávamos ali, no espaço do privilégio, tentando
falar sobre representatividade? A Globo não é um lugar de privilégio? E não era a justa reclamação
de que faltava uma pessoa de fato transexual na novela das 8 (“horário nobre”)? A mulher
trans/travesti que ocupar finalmente esse lugar na novela vai ser “acusada” de estar ali?

Mas, enfim. Eu era uma garota cis que não precisava falar. Eu era, aliás, a única garota negra
presente na discussão.
As falas da mesa foram historicamente cortadas pela voz de Neon Cunha, mulher trans, negra,
periférica em suas próprias palavras, que já citei aqui. Entre suas palavras iniciais: “estou muito
incomodada com tanta desonestidade. Estou incomodada com o fato de o convite desta mesa não
trazer a foto da mediadora. É possível falar de inclusão excluindo?”

Neon precisou lembrar que, sim, as coisas haviam mudado e não concordava com aquela fala
unicamente apocalíptica. Lembrou de operações de perseguição/extermínio às populações
consideradas indesejadas no Centro e outras regiões de São Paulo, que foi preciso muito sangue de
trans e travestis para que aquelas mulheres, hoje, 2017, estivessem sentadas ali, naquele que é
também espaço privilegiado.

As coisas, falava Neon, não iriam mudar em um espaço curto de tempo. Ali, ela usou uma alegoria
que jamais esquecerei: a das borboletas Monarca, que todos os anos migram dos Estados Unidos e
do sul do Canadá até a Califórnia e as florestas de Oyamel, no México. Voam cerca de 50
quilômetros por dia. Com o ciclo de vida muito curto, elas levam de três a quatro gerações para
completar o caminho.

Neon foi uma das pessoas trans, na plateia, a interagir com meu texto. A entender porque eu queria
falar de travesti preta e pobre. Porque ela, assim como tantas pessoas trans que eu conheço, não
vivem de close e lacre, e considero estas também formas legítimas de manifestos. Vivem, levam
lapada, levam beijo, do chão do dia a dia. Foi ela que me abriu os olhos (de novo), quando falou: foi
no espaço das mulheres negras que eu me senti acolhida, não entre as trans. “Ali os espelhos se
abriram.” Ela desejou que entre as pessoas transexuais nascesse uma Conceição Evaristo. Eu
também desejo.

No mesmo momento, eu pensei nas mulheres trans e travestis que mais estiveram dividindo suas
vozes e subjetividades comigo nos últimos anos: Alessandra, Fernanda, Stephanie, Davila,
Sandriely, Marias Claras e a própria Neon. Mulheres e negras, como eu. Algumas vizinhas do morro
onde nasci. Algumas dividindo espaços nos quais circulo agora. Foram poucas as mulheres de
espaços privilegiados (cis, trans ou travestis) com quem pude contar durante minha vida. E poucas
brancas. Cis, trans ou travestis. Naquele momento, essa verdade surgiu como um empurrão.

Estamos, estas mulheres, em nossas diferenças e especificidades, juntas. Não é um ambiente


desprovido de tensão. É claro que não. Mas ele é um lugar de existência. De resistência. E esse
lugar não me cospe. Me irmano, em minha diferença, a Alessandra, Fernanda, Stephanie, Davila,
Sandriely, Marias Claras e a Neon. A Audre, Angela, Bell. Conceição e Maria Carolina. A Rosa,
faxineira no jornal no qual trabalhei, que ia trabalhar de sombra verde no olho às 7h da manhã.
Cisgênera. Depressão profunda e solidão afetiva.

Penso que o conceito de pobreza multidimensional que o economista indiano Amartya Sen criou
pode ser uma boa ferramenta para pensar estes cruzamentos. Pensar que, se silenciamento e
opressão se entrecruzam, privilégios também. Amartya entende a pobreza não a partir de uma ideia
de renda inferior ao que é preestabelecido, mas pela privação de capacidades, pela privação de
liberdades (em todas as suas combinações: liberdade política, liberdade social, liberdade
econômica). A pobreza, assim, é percebida no fim como privação de uma vida que as pessoas
poderiam levar. Uma menina pode morar em uma casa de classe média. Mas se todos os
investimentos da casa foram potencialmente dirigidos ao menino da família, os dois enfrentam
diferentes realidades no estar no mundo. E percebam: estou falando apenas de pobreza. Não estou
citando neste debate o machismo.
Isso me leva também a pensar: como identidades que podem fissurar o capitalismo (como as
travestis, transexuais) podem existir em seu interior? Simples: quando ele consegue “higienizá-las”
e colocá-las para falar em espaços controlados ou privilegiados. Como ali, na Avenida Paulista.

A mesa terminou, fui chamada para gravar uma fala para um doc do próprio evento. Demorei um
pouco lá. Para meu alívio e felicidade, uma parte significativa da plateia estava lá fora quando saí.
Pessoas trans, travestis, brancas, pretas, não binárias. Algumas me abraçaram. Algumas
agradeceram que a cor da pele e a pobreza tivessem sido inseridas no debate. Algumas perceberam
que sim, eu em vários momentos me senti acuada e que minha condição em nenhum momento foi
percebida como algo que serviria para unir, mas unicamente para separar.

Compramos algumas cervejas, também Doritos que estavam na promoção (em cinco dias,
perderiam a validade) em um mercado ali perto. Em plena Paulista, fizemos uma espécie de mesa
dois, desta vez com mais empatia, com close e com lacre, mas com vontade real de ouvir e ser
ouvida.

Ali, não se exigia, como Adelaide Ivanova escreveu, o escutamento a partir do silenciamento da
outra, mas sim por meio de uma “coreografia” nas falas.

Uma pessoa trans falou da novela. Disse que seria complicado participar de uma. “Como colocar
um homem trans se tinha que ser uma personagem em transição?” É um ponto, sim. Mas para além
disso sabemos que uma empresa com o poder de fogo da Globo, como também colocou Caia,
poderia dar conta dessa questão facilmente (troca de ator/atriz, maquiagem, etc.) Eu disse que
entendo o manifesto e que não dá mais para negociar a falta de pessoas trans e travestis nos palcos,
na literatura, na mídia. Era eu, cisgênera, falando isso para uma pessoa transexual, motivo maior do
manifesto.

Nada é raso.

Uma travesti me disse que se sentiu mal quando uma das meninas, acredito que Lua, falou que
precisava “chupar pau” para ter dinheiro e estar ali. “Eu entendo, sabe? Mas isso nos estigmatiza
mais e mais. Eu trabalho em um salão e estou aqui. Parece que todas nós só podemos viver com
isso, sendo puta”. Eu entendo o que ela coloca – apesar de saber também que prostituição continua
a ser condição por falta de oportunidades para mulheres trans e travestis.

Falamos muito. Tomamos cerveja e comemos mais Doritos perto de vencer.

Conseguíamos acionar o que também nos aproxima, e não apenas o que nos separa.

A experiência de vivermos sempre em suspeição.


A experiência de levar um corpo “branco pra casar, mulato pra fuder, preto pra trabalhar”
De não sermos levadas a sério: irracionais, explosivas, emocionais, barraqueiras.
De sermos muito fortes, logo demonstrações de carinho são menos necessárias para nós.
De termos empregos tantas vezes pouco legitimados.
De sermos as primeiras a entrar (se com alguma sorte) no mercado de trabalho - e as últimas a sair.

O que Neon falou das borboletas acontecia.


Estávamos migrando.

Era ela, me ensinando, de novo. Era ela, acolhida pelas mulheres negras, que me acolhia.
“Ninguém nasce desconstruído.” Sim. E é preciso pensar no que estamos fazendo quando
reclamamos visibilidade calando alguém que se aproxima de nós. Na instauração da necessária e
política polifonia, do dissenso, eu não tenho qualquer dúvida: uma subalterna precisa deixar outra
subalterna falar.

Fabiana Moraes

(* agradeço pela construção e debate desse texto: Maria Clara de Sena, Neon Cunha, Adelaide
Ivanova, Conceição Evaristo, Caia Coelho)

Aqui, uma pequena bibliografia:

* Violência, intersecionalidades e seletividade penal na experiência de travestis presas (Guilherme


Gomes Ferreira): http://www.publicacoes.ufes.br/temporalis/article/view/7359

* A pobreza como um fenômeno multidimensional (Crespo, Gurovitz):


http://www.scielo.br/pdf/raeel/v1n2/v1n2a03.
* Prostituição enquanto profissão para mulheres trans (Maria Clara de Araújo):
http://www.revistacapitolina.com.br/prostituicao-enquanto-profissao-para-mulheres-trans/
* Diferenças, diversidade, diferenciação (Avtar Brah):
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf

* Cultura e Representação (livro de Stuart Hall)


* Representação política, identidades e minorias (Iris Marion Young):
http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a06n67

Reportagens citadas no texto lido durante encontro:

O Nascimento de Joicy: http://www2.uol.com.br/JC/especial/joicy/

Na mesma cela, 99 homens e 3 mulheres:


http://periodicos.unb.br/index.php/metagraphias/article/view/23494

O homens-damas do maracatu : http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/suplementos/jc-


mais/noticia/2015/02/08/as-damas-masculinas-do-maracatu-167252.php

Casa Grande e Senzala: http://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/casagrandeesenzala/


* Violência, intersecionalidades e seletividade penal na experiência de travestis presas (Guilherme Gomes
Ferreira): http://www.publicacoes.ufes.br/temporalis/article/view/7359

* A pobreza como um fenômeno multidimensional (Crespo, Gurovitz):


http://www.scielo.br/pdf/raeel/v1n2/v1n2a03.

* Prostituição enquanto profissão para mulheres trans (Maria Clara de Araújo):


http://www.revistacapitolina.com.br/prostituicao-enquanto-profissao-para-mulheres-trans/

* Diferenças, diversidade, diferenciação (Avtar Brah): http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf

* Cultura e Representação (livro de Stuart Hall)

* Representação política, identidades e minorias (Iris Marion Young):


http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a06n67

Reportagens citadas no texto lido durante encontro:

O Nascimento de Joicy: http://www2.uol.com.br/JC/especial/joicy/

Na mesma cela, 99 homens e 3 mulheres:


http://periodicos.unb.br/index.php/metagraphias/article/view/23494
O homens-damas do maracatu: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/suplementos/jc-
mais/noticia/2015/02/08/as-damas-masculinas-do-maracatu-167252.php

Casa Grande e Senzala: http://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/casagrandeesenzala/

Você também pode gostar