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O mal-estar na civilização

(1930)

Vol.XXI

Alguns autores atribuem a fonte da religiosidade a um sentimento


“oceânico”, uma sensação de “eternidade”, de algo ilimitado.

Em contrapartida, o ego parece ao neurótico como algo unitário,


autônomo, distintamente demarcado de tudo o mais, mantendo linhas bem nítidas
com o mundo exterior. A única situação em que essa delimitação ameaça
desaparecer é no auge do sentimento de amor. Também na patologia, há casos em
que essa fronteira pode estar incorretamente demarcada ou se desfaça.

Realmente, o ego se desenvolve ao longo da infância, e a criança passa


de um estágio de indiferenciação com a mãe até distinguir-se dela. Essa separação
se dá pela presença e ausência do seio materno, das inúmeras situações de desprazer
às quais a criança é exposta. Assim, ela aprenderá a diferenciar as sensações que
vem de dentro, de seu ego, e aquelas vindas de fora, do mundo externo. Por toda a
vida, entretanto, o ego terá a tendência de tratar o que vem de dentro como se
viesse do exterior, sendo essa a grande falha do aparelho psíquico humano.

Outra questão, é que na vida mental, nada do que uma vez se formou
pode perecer, ou seja, tudo é, de alguma maneira preservado e, em circunstâncias
apropriadas, pode ser trazido de novo à luz. Somente na mente é possível a
preservação de todas as etapas do desenvolvimento anteriores, lado a lado com a
forma final.

Assim, esse sentimento “oceânico”, presente em algumas pessoas, nada


mais é do que fragmento das fases primitivas de indiferenciação do ego e do mundo
exterior, que coexiste com o ego já diferenciado e ele continua a existir devido ao
sentimento de desamparo infantil presente também no adulto. Posteriormente este
sentimento vincula-se à religião.

II

A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós, proporciona-


nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não
podemos dispensar as medidas paliativas. São estas: 1) derivativos poderosos, que
nos fazem extrair luz de nossa desgraça; 2) satisfações substitutivas, que a
diminuem; e 3) substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela.

As satisfações substitutivas, como a arte, são ilusões, em contraste com


a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças
ao papel que a fantasia assumiu na vida mental. As substâncias tóxicas influenciam
nosso corpo e alteram sua química.

Para compreender o papel da religião, deve-se compreender a ideia da


busca do sentido da vida. Na verdade, há uma busca pela “felicidade”, que seria
derivada de dois contrastes: a ausência de desprazer e a presença de um prazer
intenso, ou seja, é o próprio funcionamento do princípio do prazer.

A felicidade, como sentimento contínuo, é impossível, dado que deriva da


satisfação (de preferência repentina) de necessidades represadas em alto grau,
sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando
qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão
somente um sentimento de contentamento muito tênue.

Já a infelicidade é bem mais facilmente sentida. 1) Vem de nosso


próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução; 2) do mundo externo,
que pode voltar-se contra nós e 3) de nossos relacionamentos com outros
homens, sendo esse o mais penoso. Alguns acabam por se contentar em evitar o
sofrimento e a busca pela felicidade fica em segundo plano. Para evita-lo, pode-se
buscar o isolamento, o que traria uma felicidade de quietude, mas tornar-se membro
da comunidade humana mostra-se mais satisfatório e desafiador. Em última análise,
todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o
sentimos, e só o sentimos como consequência de certos modos pelos quais nosso
organismo está regulado.

Um meio de fuga é a intoxicação, repleta de problemas. A tentativa de


controlar os impulsos, negá-los ou aniquilá-los também não é muito eficaz, pois nesse
caminho do controle de desejos, sua satisfação perde força. É por isso que instintos
perversos e proibidos, ao serem satisfeitos, geram uma sensação muito maior de
prazer.

Outra maneira de evitar o sofrimento é através da sublimação dos


instintos. Porém esta é acessível a poucos e ainda sim, não se compara à satisfação
de impulsos grosseiros e primários.
Pode-se também desenvolver a capacidade de fuga para a ilusão ou
fantasia através da arte, mas também esta não gera uma grande proteção contra o
sofrimento.

Finalmente, pode-se afastar completamente da sociedade (como o


ermitão) ou embarcar em um delírio na realidade, tornando-se “louco”, construindo
uma realidade própria e totalmente desadaptada.

Quanto a “arte de viver”, há uma que visa tornar o indivíduo independente


do Destino, e para esse fim, localiza a satisfação em processos mentais internos,
deslocando sua libido. Não volta as costas ao mundo externo e desenvolve
relacionamentos emocionais com os objetos e deles extrai felicidade. Não foge do
desprazer, passa por ele com resignação e sem lhe dar grande atenção. Essa
modalidade de vida faz do amor o centro de tudo, busca toda a satisfação em amar
e ser amado. O problema dessa “estratégia” é que nunca nos achamos tão indefesos
contra o sofrimento como quando amamos e nunca tão desamparadamente infelizes
como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor.

Outra possibilidade é a busca constante pela beleza, onde quer que esta
se apresente a nossos sentidos e nosso julgamento, como uma forma derivada da
satisfação sexual.

Em suma, a questão da felicidade é uma questão individual. É uma


questão de quanta satisfação real alguém pode esperar obter do mundo externo, de
até onde é levado para tornar-se independente dele e, finalmente, de quanta força
sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos.
Nisso, a constituição psíquica desempenha papel decisivo, independente de
circunstâncias externas. Qualquer escolha levada ao extremo condena o indivíduo a
ser exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como
exclusiva, se mostre inadequada. A sabedoria popular nos aconselha a não buscar a
totalidade de nossa satisfação numa só aspiração.

A outra “técnica de vida” é a fuga para a neurose.

A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe


igualmente a todos o seu próprio caminho para a felicidade e da proteção contra o
sofrimento: ela deprecia o valor da vida à custa da manutenção de um infantilismo
psicológico, exigindo uma submissão incondicional aos “desígnios superiores” e
arrastando a todos para um delírio de massa. Mesmo a religião, contudo, não
consegue manter sua promessa de felicidade.
III

Ao relembrarmos as fontes de sofrimento, as duas primeiras são


impossíveis de serem combatidas em grande parte. Já a terceira, a fonte social de
sofrimento, merece nossa atenção, por estar associada a uma hostilidade à
civilização, como causa de nosso sofrimento.

A psicanálise descobriu que uma pessoa se torna neurótica porque não


pode tolerar a frustração que a sociedade lhe impõe, a serviço de seus ideais
culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas exigências resultaria
num retorno a possibilidades de felicidade.

A civilização possui dois intuitos: o de proteger os homens contra a


natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos.

Em geral, a civilização é o controle das forças naturais adquirido


através de invenções, das ciências, das criações humanas. Também está vinculada a
ideia de beleza, ordem e asseio, estendida tanto às construções e cidades, quanto
ao corpo humano. Contudo, os seres humanos revelam uma tendência inata para o
descuido, a irregularidade e a irresponsabilidade em seu trabalho e é necessário um
laborioso treinamento para que aprendam a seguir o exemplo de seus modelos.

Além desses aspectos, nada parecer caracterizar mais a civilização do que


o incentivo em relação à mais elevadas atividades mantais do homem – suas
realizações intelectuais, científicas e artísticas - e o papel fundamental que atribui às
ideias na vida humana. Entre essas ideias, em primeiro lugar se encontram os
sistemas religiosos. A seguir, a filosofia e, finalmente, os “ideais do homem” – suas
ideias a respeito de uma possível perfeição dos indivíduos, dos povos, ou da
humanidade como um todo, e as exigências estabelecidas com fundamento nessas
ideias.

O último aspecto característico da civilização é a maneira pela qual os


relacionamentos mútuos dos homens, seus relacionamentos sociais são regulados. A
vida humana só é possível com a substituição do poder do indivíduo pelo poder de
uma comunidade, o que é estabelecido como “direito”, em oposição à força bruta. A
primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que
uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. O resultado final
seria um estatuto legal para o qual todos contribuiriam com um sacrifício de seus
instintos e que não deixa ninguém à mercê da força bruta.

Assim, o desenvolvimento da civilização impõe restrições à liberdade do


indivíduo e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições.
Há uma grande semelhança existente entre os processos civilizatórios e
o desenvolvimento libidinal do indivíduo. O desenvolvimento dos traços de caráter,
ao longo do desenvolvimento da libido em suas fazes, leva a valorização da ordem,
do asseio e outras características já apresentadas da civilização. A sublimação dos
instintos constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural/
é ela que o torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas,
ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada.

IV

A vida comunitária dos seres humanos teve, um fundamento duplo: a


compulsão para o trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que
fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher, em
privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada – seu filho. Assim, o
amor e a necessidade se tornaram os pais da civilização humana. Seu primeiro
resultado foi que mesmo um número bastante grande de pessoas poderia agora viver
reunido numa comunidade.

Assim que o homem descobriu que amor sexual (genital) lhe


proporcionava as mais intensas experiências de satisfação, fornecendo-lhe o
protótipo de felicidade, ele se tornou dependente, de uma forma muito perigosa, de
uma parte do mundo externo, isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo-se
a um sofrimento extremo, caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através
da infidelidade ou da morte.

Algumas pessoas, ao contrário, se tornam independentes da aquiescência


de seu objeto de amor, deslocando o que mais valorizam do ser amado para o amar;
protegem-se da perda do objeto, voltando seu amor, não para objetos isolados, para
todos os homens, com um impulso de finalidade inibida. Desenvolvem um amor pela
humanidade e pelo mundo, difuso, que não parece ser viável para todos.

O amor que fundou a família continua a operar na civilização, tanto em


sua forma original, quanto na inibida em sua finalidade. Mas a civilização torna-se
incompatível com o amor em duas questões. A primeira é a resistência da família em
deixar chegar novos membros, e separar-se da família torna-se uma tarefa com que
todo jovem se defronta e deve conseguir através de ritos de puberdade e iniciação.
A segunda é tendência da civilização em restringir a vida sexual. Essa restrição
justifica-se para que a energia psíquica seja utilizada em prol do trabalho e da
civilização em si.
Toda essa inibição da vida sexual acaba por prejudica-la, e após tantas
regras e restrições, perde grande de sua possiblidade em prover felicidade.

A máxima da civilização de “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” não


faz sentido, em especial porque esse outro não é digno desse amor e não fez nada
para merecê-lo.

Em verdade, os homens são criaturas com poderosa quota de


agressividade. A civilização tem que utilizar esforços supremos a fim de estabelecer
limites para os instintos agressivos do homem em manter suas manifestações sob
controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos
destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos
em sua finalidade (amizades), daí a restrição à vida sexual e daí, também o
mandamento ideal de amar ao próximo com a si mesmo, mandamento que realmente
justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do
homem.

A despeito de seus esforços, a civilização não conseguiu muito nesse


sentido, mesmo porque a agressividade é necessária luta e competição e crimes
bárbaros e guerras continuam a ocorrer.

O comunismo é uma tentativa de eliminar esse problema pelo fim da


propriedade privada, de forma a serem todos iguais. Contudo, as premissas
psicológicas em se se baseia são uma ilusão insustentável. A agressividade não foi
criada pela propriedade, ela é uma característica indestrutível da natureza humana.

A civilização, então, impõe sacrifícios enormes à sexualidade e à


agressividade do homem e assim é possível compreender a infelicidade do homem
nessa civilização. O homem primitivo tinha menos restrições, mas suas perspectivas
de desfrutar da felicidade eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela
de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança.

VI

Ao longo da evolução da teoria psicanalítica várias foram as denominações


e tentativas de descrever os instintos. Finalmente, chegou-se à compreensão que ao
lado do instinto para preservar a vida, a libido (que poderia ser dirigido a objetos, ou
ao próprio ego – narcisismo), havia outro instinto, contrário àquele, um instinto de
morte, perceptível em fenômenos como a compulsão à repetição, o caráter
conservador da vida instintiva e a agressividade. Esses dois tipos de instintos
raramente – talvez nunca – aparecem isolados um do outro, mas estão mutuamente
mesclados em proporções variadas e muito diferentes. Sadismo (agressividade
dirigida para o outro e sexualidade) e Masoquismo (agressividade dirigida para dentro
e sexualidade) são provas dessas manifestações dos instintos mesclados.

A inclinação para a agressão constitui no homem uma disposição instintiva


original e auto subsistente e é o maior impedimento à civilização.

A civilização é um processo a serviço do instinto de vida, cujo propósito é


combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos
e nações numa única grande unidade da humanidade. O natural instinto agressivo,
a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra um, se opõe a esse
paradigma de civilização. A evolução da civilização é, portanto, a luta entre Eros e a
Morte, entre o instinto de vida e o de destruição, tal como ela se elabora na espécie
humana. Essa evolução é a luta da espécie humana pela vida.

VII

Para onde é dirigida a agressividade na civilização, já que é


constantemente inibida e rechaçada? Ela é introjetada, internalizada; é, na verdade,
dirigida no sentido do próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se
coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de
“consciência”, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade
rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos.
A tensão entre o severo superego e o ego é o sentimento de culpa e expressa-se
como uma necessidade de punição.

Sobre a origem desse sentimento de culpa, é preciso ressaltar que mesmo


a intensão de fazer algo “mau” é equivalente ao ato. Na construção do que seria bom
ou mau, identificamos que mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz
sentir ameaçados. Por isso, o simples desejo já desencadeia a culpa.

Em crianças, a ansiedade social consiste em medo de perder o amor dos


pais e alguns adultos permanecem nesse estado de coisas, apenas substituindo a
figura do pai pela comunidade humana mais ampla. Assim, temem apenas serem
descobertas.

Quando a autoridade é internalizada através do estabelecimento do


superego o medo de ser descoberto se extingue, já que nada pode ser escondido,
nem pensamentos, do superego. O superego então atormenta o ego pecador com
um forte sentimento de ansiedade e fica à espera de oportunidades para fazê-lo ser
punido pelo mundo externo.

Assim, são duas as origens do sentimento de culpa: uma que surge do


medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A
primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo
tempo que faz isso, exige uma punição. Nesse último caso, uma ameaça de
infelicidade externa – perda de amor e castigo por parte da autoridade externa – foi
permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de
culpa.

Mais ainda, toda renúncia ao instinto torna-se uma fonte dinâmica de


consciência, e cada nova renúncia aumenta a severidade e intolerância desta última,
ou seja, cada agressão de cuja satisfação o indivíduo desiste é assumida pelo
superego e aumenta a agressividade deste (contra o ego). De fato, a severidade
original do superego não representa a severidade que se experimentou dessa
autoridade, e sim, nossa própria agressividade para com ela.

Assim, a severidade do superego que uma criança desenvolve, de maneira


nenhuma corresponde à severidade de tratamento com que ela própria se defrontou.
Isso significa que fatores constitucionais inatos e influências do ambiente real atuam
de forma combinada.

Há também o fato de o sentimento de culpa ser oriundo do Complexo de


Édipo e esse “remorso” constitui o resultado da ambivalência de sentimentos para
com o pai. Assim, o sentimento de culpa é a expressão tanto do conflito devido à
ambivalência, quando da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou morte.
Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se defrontem com a tarefa de
viverem juntos. Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da
família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a
consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa. Quando se faz uma tentativa
para ampliar a comunidade, o mesmo conflito continua sob formas que dependem
do passado; é fortalecido e resulta numa intensificação adicional do sentimento de
culpa. O que começou em relação ao pai é completado em relação ao grupo.

VIII

O preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma


perda da felicidade pela intensificação do sentimento de culpa, consciente ou não.
Quando inconsciente, esse sentimento de culpa se manifesta pela necessidade de
punição do neurótico.
Esse sentimento nada mais é do que uma variedade topográfica da
ansiedade; em suas fases posteriores, coincide completamente com o medo do
superego. A ansiedade está sempre presente, num lugar ou outro, por trás de todo
sintoma. Por conseguinte, é bastante concebível que tampouco o sentimento de culpa
produzido pela civilização seja percebido como tal, e em grande parte permaneça
inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação,
aproveitado pelas religiões sob a promessa de redenção.

Pode-se supor que a derivação do sentimento de culpa é restrita aos


instintos agressivos. Qualquer tipo de satisfação instintiva frustrada, resulta, ou pode
resultar numa elevação do sentimento de culpa.

Os sintomas neuróticos são, em sua essência, satisfações substitutivas


para desejos sexuais não realizados. Quando uma tendência instintiva experimenta
a repressão, seus elementos libidinais são transformados em sintomas e seus
componentes agressivos em sentimento de culpa.

Como já foi dito, o processo do desenvolvimento da civilização se


confunde com o desenvolvimento individual humano. Mas há distinção: no processo
de desenvolvimento do indivíduo, o programa do princípio do prazer, que consiste
em encontrar a satisfação da felicidade, é mantido como objetivo principal. A
integração numa comunidade humana, ou a adaptação a ela, aparece como uma
condição dificilmente evitável, que tem que ser preenchida antes que esse objetivo
de felicidade possa ser alcançado. No processo civilizatório, porém, o que importa é
o objetivo de criar uma unidade a partir dos seres humanos individuais.

Assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda


em torno de seu próprio eixo, assim também o indivíduo humano participa do curso
do desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que persegue o seu próprio
caminho na vida. A luta entre o indivíduo e a sociedade é uma luta dentro da
economia da libido, comparável àquela referente à distribuição da libido entre o ego
e os objetos, admitindo uma acomodação final no indivíduo, tal como pode-se
esperar, também o fará no futuro da civilização, por mais que atualmente essa
civilização possa oprimir a vida do indivíduo.

Pode-se afirmar que também a comunidade desenvolve um superego sob


cuja influência se produz a evolução cultural. O superego de uma época de civilização
tem origem semelhante à do superego de um indivíduo. Ao se estabelecer, esse
superego cultural estabelece certas exigências, aquelas que tratam das relações dos
seres humanos uns com os outros, abrangidas sob o título de ética. A ética é o ponto
mais doloroso de toda civilização, pois opõe-se diretamente a inclinação constitutiva
do ser humano, a agressividade. O mandamento “ama teu próximo como a ti mesmo”
constitui a defesa mais forte contra a agressividade humana e um excelente exemplo
dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É impossível cumprir esse
mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode rebaixar seu valor, sem se
livrar da dificuldade. Essa ética “natural” só pode oferecer a satisfação narcísica de
se poder pensar ser melhor do que os outros. A ética baseada na religião introduz
suas promessas de uma vida melhor depois da morte, mas é de pouca valia se não
for recompensada aqui na Terra.

Finalmente, coloca-se a questão sobre até que ponto o desenvolvimento


cultural da espécie humana conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal
causada pelo instinto de agressão autodestruição. Os homens adquiriram sobre as
forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em
se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que
provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua
ansiedade.

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