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O Deus da Máquina

Isabel
Paterson
O DEUS DA MÁQUINA
Isabel Paterson

O DEUS DA MÁQUINA

1943
Título original: The God of the Machine
Tradução: Marcelo Centenaro
D esejo reconhecer uma inestimável dívida para com o Professor
Thomas T. Read, E.M., Ph.D., por seus comentários críticos
precisos e fundamentados sobre o manuscrito deste livro, que
foram extremamente úteis para tornar mais clara a apresentação do tema.
Isso não implica que o Professor Read necessariamente concorde com
todas ou com alguma das idéias e conclusões expressas, pelas quais a
autora é responsável.

Isabel Paterson.
Sumário

Prefácio ............................................................................................. 3
I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico ............................................. 7
II. O Poder das Idéias ....................................................................... 17
III. Roma Descobre a Estrutura Política ............................................ 25
IV. Roma como uma Demonstração da Natureza do Governo ........... 37
V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato......................... 41
VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo .................................... 51
VII. O Nobre Selvagem ..................................................................... 61
VIII. A Falácia do Anarquismo .......................................................... 69
IX. A Função do Governo .................................................................. 79
X. A Economia da Sociedade Livre .................................................... 91
XI. O Significado da Magna Carta ...................................................103
XII. A Estrutura dos Estados Unidos .................................................113
XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura ...........................................127
XIV. A Virgem e o Dínamo ...............................................................135
XV. As Emendas Fatais ....................................................................149
XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status .....................................157
XVII. A Ficção da Propriedade Pública .............................................169
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável....................................189
XIX. Crédito e Depressões ...............................................................205
XX. O Humanitário com a Guilhotina ..............................................219
XXI. Nosso Sistema Educacional Niponizado ....................................233
XXII. O Circuito de Energia em Tempos de Guerra............................243
XXIII. A Economia Dinâmica do Futuro ............................................259
Sobre a autora ...............................................................................271
Obras de Isabel Paterson ................................................................273
Prefácio

Que interesse pode despertar um livro escrito há mais de 70 anos, por


uma autora pouco conhecida até nos Estados Unidos, que não teve
educação formal e que usa metáforas difíceis, tiradas da engenharia
mecânica, elétrica e da arquitetura? Quando vi este texto, fiquei
fascinado. É uma afirmação apaixonada da liberdade. É também uma
fundamentação teórica muito bem construída dos valores políticos em
que acredito. Foi escrito num momento em que a liberdade estava em
baixa em todo o mundo e muito poucas pessoas se dispunham a defendê-
la.

Por isso, resolvi traduzir O Deus da Máquina para o português e tentar


fazê-lo mais conhecido. Estão nesta edição todos os grifos e todas as
notas de rodapé que Isabel Paterson colocou no original. Acrescentei
notas explicativas sempre que achei necessário, para identificar figuras e
fatos históricos, citações a outros textos e para esclarecer as metáforas
muito particulares que a autora criou. Procurei ter o máximo respeito por
seu estilo e sua linguagem. É claro que discordo dela em alguns pontos,
mas não exprimi essas divergências em minhas notas de rodapé.

Para Isabel, são três as idéias sobre as quais foi construída a civilização
ocidental: a ciência dos gregos, a lei dos romanos e a individualidade dos
cristãos.

Os gregos perceberam que o conhecimento tinha valor por si mesmo.


Não estavam preocupados com a aplicação da ciência. Entendiam que
era possível utilizar o conhecimento obtido em uma área para resolver
problemas encontrados em outras, que essa busca levava o homem na
direção da verdade e que isso era um bem, independentemente da
utilidade prática dessa verdade.

Politicamente, a democracia grega revelou-se extremamente instável,


suscetível às arbitrariedades das maiorias de ocasião. A República
Romana, por outro lado, estabeleceu uma legislação construída em bases
racionais. Não era uma lei divina e imutável. Era uma lei humana, falível
e passível de ser melhorada. Criou uma estrutura de Estado com um
sofisticado mecanismo de freios e contrapesos. Essa legislação estava
muito longe de ser perfeita e, em muitos casos, era quase bárbara.
Porém, pelo simples fato de existir e se aplicar indistintamente a todos,

-3-
criou um ambiente de confiança e estabilidade que fez com que Roma
perdurasse por tantos e tantos séculos e dominasse o mundo.

O cristianismo tem como um de seus pilares a crença de que o ser


humano possui uma alma individual e imortal. Um indivíduo não é
responsável pelos atos de outro e não pode ser premiado ou punido por
causa deles. O Império Romano foi a sociedade mais avançada da
Antigüidade. Chegou perto de colocar essas três idéias em prática,
juntas. Mas ruiu com o peso de seus domínios antes que isso se
concretizasse. De qualquer maneira, essas idéias permeiam nossa
cultura. A Humanidade teve de esperar muitos séculos até que fossem
novamente reunidas e se transformassem numa experiência de liberdade
e progresso.

A descoberta da América criou um laboratório de experiências sociais.


Os europeus travaram contato com povos então desconhecidos, em
diversos estágios de desenvolvimento social, e estabeleceram colônias
que conviviam e interagiam com esses povos. As riquezas da América,
despejadas sobre a sociedade rígida da Espanha, criaram um curto-
circuito e esfacelaram o Império espanhol. A Inglaterra, que já era um
país mais livre que as outras nações européias, desde a Magna Carta,
permitiu que se criasse um ambiente de notável liberdade em suas
colônias americanas. Seus habitantes, em grande parte refugiados de
perseguições religiosas, políticas ou étnicas, viviam de maneira
surpreendentemente harmoniosa. Os problemas que dividiam os
diferentes grupos na Europa não foram resolvidos, simplesmente
evaporaram.

Isso provocou estupefação no Velho Continente. Como era possível


existirem selvagens, sem governo, que vivessem razoavelmente em paz?
Como a liberdade podia funcionar nas colônias? A Europa era capaz de
conceber que a sociedade pudesse funcionar minimamente sem um
governo forte. Então, passou a acreditar que os selvagens do Novo
Mundo eram seres humanos muito superiores aos que eles conheciam na
Civilização. Surgiu assim a figura do Nobre Selvagem e a idéia européia
de que a sociedade corrompe o ser humano, originalmente puro no
estado de Natureza. Uma diferença marcante entre o pensamento
americano e o europeu é que os americanos acreditam na liberdade do
indivíduo, um direito nato e inalienável, enquanto os europeus acreditam
em “liberdades”, ou seja, permissões dadas pelo governo em situações
determinadas.

Sobre a função do governo, Isabel diz que ele é única e exclusivamente


um freio à ação humana. Freios são necessários e extremamente

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importantes. Existem coisas que precisam ser proibidas. Para poder
impor essas proibições, o governo evidentemente precisa de recursos.
Mas, um governo não tem capacidade ou poder para criar alguma coisa.
Quem cria qualquer coisa são os indivíduos. O governo pode estabelecer
proibições e tomar dinheiro dos cidadãos, por meio de impostos, para se
desempenhar suas atividades. Sempre que faz isso, a sociedade fica
menor, menos livre e menos produtiva.

Um capítulo muito divertido é A Economia da Sociedade Livre, em que


Isabel denuncia a falta de sentido do marxismo. A teoria do materialismo
dialético é uma corrupção da linguagem semelhante a dizer que um
triângulo isósceles é verde. Tolos podem argumentar que um triângulo
isósceles não é verde, mas azul, ou que o triângulo isósceles verde
produzirá um círculo azul e os dois se sintetizarão em um rombóide
púrpura; ainda assim, essas afirmações serão vazias. Mas Marx era um
tolo com um grande vocabulário de palavras longas. Sua teoria de luta de
classes é um completo nonsense por sua própria definição. Uma vez que
trata de capital e de trabalho, não faz referência nem à luta nem a classes.
É impossível que o capital e o trabalho lutem entre si.

A Constituição dos Estados Unidos resolveu o problema que Roma não


havia conseguido: como criar bases regionais para uma estrutura política
sem recorrer a uma aristocracia. O federalismo é essa solução. Os
Founding Fathers fizeram um trabalho admirável de arquitetura.
Construíram um mecanismo político que funciona e que permite que a
nação cresça, aumente sua população e a quantidade de energia
envolvida no sistema como um todo, sem que se altere o design
intrínseco. Isabel chama atenção para a cláusula de traição da
Constituição dos Estados Unidos, uma instituição inédita e singular na
história. Em primeiro lugar, essa cláusula define que não existe traição
em tempos de paz. Apenas uma rebelião armada ou unir-se a uma nação
inimiga constitui traição, e nações só são inimigas quando em guerra.
Nenhum tipo de oposição pacífica ou pessoal é traição, e nem mesmo o
ataque armado de uma única pessoa contra o governo americano. Na
Europa, qualquer ataque à pessoa do rei, mesmo que não fosse por
razões políticas, seria tratado como traição. Nos Estados Unidos, a
pessoa e o cargo são conceitos separados. Mas existe outro detalhe
relevante. A cláusula estabelece que os bens de alguém condenado por
traição só podem ser confiscados se o réu estiver vivo. Se morrer, os
bens passam para seus herdeiros legítimos. Ou seja, a culpa é pessoal e a
propriedade pertence aos indivíduos.

A escravidão foi o grande defeito na estrutura criada nos Estados


Unidos. Em nome do federalismo, os constituintes admitiram uma

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desastrosa e imoral solução de compromisso, que manteve essa
instituição abominável no sistema que estavam criando. As
conseqüências disso foram uma instabilidade crescente na nação, que
resultou na Guerra Civil. A Guerra ensejou emendas à Constituição que
desfiguraram parte do projeto. A Emenda 14 faz uma referência confusa
a “poderes implícitos”, que causa discussões judiciais perigosas até hoje.
A Emenda 15 cancelou a soberania dos Estados, ao impedi-los de
determinar as qualificações dos seus eleitores. A Emenda 17 criou uma
nova distorção do projeto original, ao tirar a eleição dos senadores das
legislaturas estaduais e passá-la para o voto popular. Os senadores
deveriam ser representantes dos Estados, enquanto os deputados seriam
os representantes do povo. Da maneira como ficou, os Estados perderam
essa representação.

Isabel analisa e desmonta diversos absurdos, como as leis antitruste, a


chamada propriedade pública, o dinheiro sem lastro (fiat money), as
teorias educacionais progressistas e a filantropia profissional. O capítulo
XX, O Humanitário com a Guilhotina, o melhor do livro, trata
exatamente desse tipo distorcido de filantropia. Ela ainda aborda as
causas das depressões econômicas e discute como maximizar o poder
militar de um país livre quando em guerra.

A conclusão do livro, com a qual concordo totalmente é que a liberdade


é a maior herança de que o homem já desfrutou. É o resultado do esforço
heróico de incontáveis pessoas, por muitos milhares de anos. Darmos
meia volta e nos submetermos à escravidão seria uma traição inominável
a todas essas pessoas e às gerações presentes e futuras. Mas temos a
oportunidade grandiosa de justificar a fé depositada por aqueles que
acreditaram e acreditam na liberdade. Não percamos essa oportunidade!

Marcelo Centenaro
27 de setembro de 2014

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I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico

P ouco antes do fim do quarto século antes de Cristo, um navegador


de uma colônia grega velejou do porto de Massília (atual
Marselha), sua cidade natal, através do Estreito de Gibraltar e,
dali, pela costa da Espanha, da França e das Ilhas Britânicas até Última
Thule, o nome dado ao fim do mundo. Possivelmente Thule era a
Islândia; isso ainda é objeto de conjecturas. O nome do ousado
marinheiro, Pítias, chegou até nós. Ele aparece em nossa imaginação –
uma figura solitária cercada de luz – como se um portal pendesse aberto
entre as Colunas de Hércules, em direção ao mundo ocidental.

Agora, o que é curioso sobre este aspecto da aventura de Pítias é que ele
não foi de modo algum o primeiro homem civilizado a atravessar o
lendário portal do Atlântico. Pelo contrário, essa era uma rota comercial
de navios mercantes fenícios desde tempos imemoriais. Estanho da
Cornualha e peles e âmbar do Báltico estavam entre as principais cargas
entregues aos mercados do leste, para o lucro de Cartago, cuja riqueza
provinha de sua posição de intermediária.

Quando Pítias fez sua viagem, as Guerras Púnicas e o Império Romano


ainda estavam no futuro. Não que Cartago estivesse em paz; nunca
esteve por um período muito longo. Tomada em conjunto, a série de
guerras que perpassa a história dos fenícios forma um padrão geográfico
que lembra a trilha de um furacão – o fluxo de energia de um ciclone
durando quase mil anos e movendo-se irresistivelmente pelo caminho
marítimo em meio às terras dos grandes continentes da antiguidade
clássica, Ásia, África e Europa. Essa corrente incessante de atividade
humana rodopiou através de seu canal sem maré, sempre numa direção
principal – uma direção que, em vista do conhecimento de geografia da
época, não tinha sentido, porque levava para o oceano vazio. Não estou
negando o valor do comércio da costa exterior da Europa, mas o impulso
daquela região parece desproporcional ao volume de bens. Durante o
período dessa travessia, os fenícios flutuaram na tempestade, ou fizeram
parte dela.

Que tipo de povo eram esses fenícios, aprendemos das Escrituras, com
outro nome. Foi um fenício, Hirão, rei de Tiro, que enviou seus
auxiliares a Salomão quando este subiu ao trono e obteve a incumbência
de construir o palácio de Salomão e, depois, o Templo. Hirão forneceu
os materiais, transporte e trabalhadores especializados numa estrutura
pré-fabricada; troncos de cedro cortados sob medida no Líbano foram
levados a Israel e envolvidos em pedras numa pedreira. Ornamentos

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Isabel Paterson O Deus da Máquina

elaborados de metal foram lavrados segundo especificações, de maneira


que a residência real foi levantada e “não se ouviu na casa martelo, nem
machado nem instrumento algum de ferro, enquanto ela se edificava”.1
Como pagamento, Hirão recebeu “para sustento da sua casa vinte mil
coros de trigo e vinte coros de azeite batido”,2 e ao final um
assentamento de “vinte cidades na terra da Galiléia”.3 Hirão não gostou
das “cidades”, tendo-as aceito sem ver; é uma suposição razoável que ele
tenha estendido um pouco além da conta o crédito de Salomão. Quando
Salomão enviou seus navios, eles seguiram num comboio fenício.

Obviamente, os fenícios eram a nação industrial e comercial líder de seu


tempo. Misteriosamente, não conseguiram montar a estrutura positiva de
um império e o centro de sua esfera indefinida de autoridade e influência
foi determinado por forças em movimento, numa linha da Síria até a
Espanha. Deslocou-se progressivamente passando por Tiro e Sídon até
sua última capital, de onde eles desapareceram da lista das nações do
mundo. Seu modo de ser histórico estava implícito no caráter de
Cartago, sua última e suprema realização, como indicado por sua posição
entre o mar e o deserto, um nexo sólido de energia confluente num ponto
determinado. Embora a cidade fosse apoiada por um distrito produtor de
cereais, a terra arável não mantinha uma relação normal com a
população, que se estima que tenha chegado a um milhão de pessoas.
Admitindo que haja algum exagero, o número ainda assim impressiona.
Cartago era menos uma entidade territorial que um nó amarrado no
vento e na água.

Contra as antigas monarquias despóticas do Oriente, os fenícios


estabeleceram e mantiveram com sucesso seu lugar especial. Contra os
gregos, defenderam-se bastante bem numa longa luta. Os gregos eram
claramente seus rivais naturais, habitantes de ilhas fazendo comércio nas
mesmas águas e, da mesma maneira, espalhando-se de porto em porto
quando tocavam um continente. Nem os fenícios nem os gregos se
mostraram capazes de manter suas colônias em estrita confederação; as
cidades subsidiárias mudavam de lado sob pressão, e faziam seus
próprios tratados quando tinham coragem para tanto. Algum elemento
faltava no sistema deles, para amarrar o conjunto.

Há tantas explicações sobre a dominância e o declínio das nações quanto


há exemplos. O favor dos deuses ou “as estrelas, desde suas órbitas”4 já

1
Reis I, 6:7 (N. do T.)
2
Reis I, 5:11 (N. do T.)
3
Reis I, 9:11 (N. do T.)
4
Juízes, 5:20 (N. do T.)

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I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico

foram considerados determinantes. A análise moderna se baseia em


fatores temporais, principalmente matérias-primas, alto desenvolvimento
econômico, força naval e gênio militar, este último revelado no
entendimento da estratégia maior, e numa tropa corajosa e preparada que
utiliza disciplinas ou tipos de armamento especiais. O problema é que
cada teoria pode ser aplicada apenas a uma época ou a um povo, sem que
nada prove a real existência do fator considerado. Experimentemos
algumas comparações de acordo com as regras estipuladas.

O conflito entre a Grécia e Cartago pode ser chamado propriamente de


guerra comercial. Os dois lados competiam por posições, bens, cargas e
clientes. Nesse aspecto, Roma era comparativamente insignificante nesse
momento. Possivelmente Roma se tornou um povoado permanente já
como um centro local de comércio. (Mommsen defende essa suposição
de maneira coerente, baseando-se em evidências internas e históricas.)
As origens mescladas da população, a localização ao lado de um rio e
suficientemente próxima do mar para ser alcançada por pequenas
embarcações, a construção precoce de pontes e o uso de dinheiro
indicam comércio; e as relações contratuais eram inextricavelmente
entrelaçadas com o sistema político romano. Aparentemente, o fluxo de
energia foi suficiente para demandar a acomodação habitual e,
conseqüentemente, fazer com que os romanos percebessem a
necessidade equivalente de fortes bases fixas na terra. Mas eles não
participaram da corrente principal de comércio mundial durante o
período formativo, em que estabeleceram sua estrutura cívica. “Por
diversas razões, em momentos diversos, Roma nunca foi, desde sua fundação
até hoje, uma cidade industrial. […] Para o comércio internacional, Roma
estava mal localizada. […] Apenas por cortesia o Tibre poderia ser chamado de
corrente navegável; […] o estuário (era) de pouco valor como porto; e a
rapidez da corrente fazia com que a jornada de Roma até o mar fosse uma
tarefa laboriosa mesmo para as barcaças fluviais. […] As imagens familiares de
mercadores marítimos engajados no comércio geral, velejando regularmente o
Tibre para os dois lados e usando um porto abaixo do Monte Aventino, podem
seguramente ser descartadas como produtos da imaginação.” Em seu tratado
mais antigo, “Cartago, como seria de se esperar, assegurava insistentemente
seu domínio comercial sobre as regiões que controlava,” enquanto Roma
“ficava indiferente a considerações que deveriam afetar qualquer comunidade
que possa ser chamada de industrial”.5

Comparada à Grécia, Cartago provavelmente estava à frente em


organização econômica e conhecimento técnico e possuía um maior
número de navios sob um único comando, monopolizando as mais

5
LAST, Hugh. Cambridge Ancient History: The Early Republic. Macmillan. (N. da A.)

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Isabel Paterson O Deus da Máquina

extensas províncias ricas em recursos naturais. A luta entre a Grécia e


Cartago já vinha ocorrendo havia séculos e ainda não estava decidida
quando Pítias fez sua viagem. Em cinqüenta anos, Roma se imiscuiu
entre as duas, iniciando o longo, amargo e intermitente esforço que
destruiu o poder fenício, arrasou os muros de Cartago e deixou o lugar
em ruínas. Os gregos não chegaram a se beneficiar do fim de seu
poderoso antagonista; ao contrário, a submissão da Grécia ocorreria em
seguida. O determinismo econômico falhou.

O resultado dessa disputa em particular foi tão definitivo que a questão


principal se ofuscou. A História é obrigada a recorrer a termos
geográficos: Roma e Cartago lutaram pelo domínio do Mediterrâneo.
Conseqüentemente, o cenário de hostilidades é considerado naturalmente
variável. Cartago estava situada na costa norte da África, e vivia de sua
marinha. Mesmo assim, vemos o general cartaginês Aníbal conduzindo
um exército com elefantes contra Roma, numa penosa marcha por sobre
os Alpes.

O mais obstinado proponente da interpretação naval dos eventos


mundiais, o Almirante Mahan, explicou como a idéia lhe surgiu. Lendo
A História de Roma, de Mommsen, ele se recorda de que: “Subitamente
me ocorreu […] como as coisas poderiam ter sido diferentes se Aníbal tivesse
invadido a Itália por mar, como os romanos fizeram tantas vezes com a África,
em vez da longa rota por terra.” A partir dessa reflexão, Mahan escreveu A
Influência do Poder Naval na História. Ele poderia também ter chamado
seu livro de influência da história no poder naval. Sem dúvida, as coisas
teriam sido diferentes se tivessem sido diferentes. Particularmente, se o
poder naval – uma marinha superior comandando as principais rotas
comerciais a partir de bases inexpugnáveis – fosse necessariamente
decisivo, Aníbal nunca teria sido arrastado para seu desvio alpino e
Cartago teria vencido. Mais propriamente: por esse critério, Cartago
deveria ter vencido uma geração antes. Em vez disso, “com a mais forte
armada dos mares e com uma experiência naval adquirida ao longo de
séculos, os almirantes cartagineses perderam seis das sete batalhas navais que
travaram, apesar de os romanos nunca terem possuído um qüinqüerreme
antes dessa ocasião (a Primeira Guerra Púnica), e pouquíssimos romanos
terem até então posto os pés a bordo.”6

Esboçado rapidamente, o método pelo qual Roma varreu os mares beira


o ridículo. “Enquanto Cartago mantinha uma frota de 120
qüinqüerremes” (o maior navio de guerra padrão), Roma não tinha nem

6
FRANK, Tenney. Cambridge Ancient History: The First Punic War. Macmillan. (N. da
A.)

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I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico

navios, nem armadores, nem marinheiros. Para compensar a deficiência,


os romanos recuperaram uma embarcação púnica encalhada e a usaram
como modelo para construir uma frota, enquanto treinavam as
tripulações necessárias em terra, usando bancadas estacionárias dotadas
de remos. Todos os seus navios foram “construídos, tripulados e
comandados por romanos”. Quando feitos ao mar, seus verdes pilotos
ficavam “impotentes sempre que uma tempestade surgia”. É difícil
conter a sugestão de meu espírito leviano, de que eles ficaram mareados.
Ignorantes de manobras navais e sem oportunidade de aprender, os
romanos simplesmente transformavam um encontro no mar na coisa
mais parecida com uma batalha em terra que conseguiam, e lutavam do
seu jeito. Tendo equipado seus barcos com gruas e ganchos,
manobravam para ficar ao lado das galeras cartaginesas, prendiam um
navio no outro e subiam a bordo. Assim, em seu primeiro combate
importante, venceram uma frota cartaginesa que tinha trinta navios a
mais que a esquadra romana. Novamente, em Drepana, os romanos
estavam aportados quando a frota cartaginesa se aproximou. Caía uma
tempestade em terra, o que fazia com que os cartagineses tirassem o
vento dos romanos. Indiferentes a essa desvantagem, os romanos
atravessaram o curso do inimigo, tomaram setenta navios cartagineses e
afundaram outros cinqüenta. Entre as vitórias, os romanos geralmente
naufragavam suas próprias frotas por inexperiência marítima.7 Depois de
cada perda, punham-se a trabalhar e lançavam novos navios em
substituição. As despesas pesaram grandemente sobre Roma; Cartago
tinha vasta vantagem financeira. Nem assim Roma recorreu ao
absolutismo de estado em face da emergência; não houve confisco de
meios privados. Quando o tesouro público romano foi exaurido e “os
impostos não podiam mais ser elevados”, os cidadãos mais ricos
contribuíram para montar uma nova marinha, com a promessa de que
seriam reembolsados se vencessem. Venceram.

Os cartagineses ficaram tão desconcertados por esse desempenho


inexplicável que chegaram a considerar a idéia de fundar um império em
terra, imitando Roma. Os recursos estavam à mão. Mas eles não sabiam
como fazer.

Também deve ser observado que, embora a disciplina militar romana


fosse estrita e a consideração pelos militares fosse proporcional a sua

7
Em 255 AC, uma frota romana recém-construída derrotou a principal frota púnica
“com facilidade”, mas, na viagem de volta para casa, encontrou uma tempestade
perto da Sicília. De 364 navios, apenas 80 se salvaram. Calcula-se que mais de 90.000
pessoas pereceram, na maior parte homens livres; um desastre maior que a perda da
Invencível Armada pela Espanha. Foi a mais terrível calamidade marítima conhecida
até então e esse recorde se mantém até hoje. (N. da A.)

- 11 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

conduta em campo, um general romano ou seus soldados tinham muito


menos medo de punições de seu próprio governo que os comandantes
púnicos. Por perder uma campanha, os cartagineses crucificaram um de
seus almirantes.

Com relação a bases navais, Roma começou sem nenhuma. Cartago foi a
primeira grande nação a ocupar Gibraltar, o que certamente era a chave
para o futuro naquele tempo. Obviamente, seria fácil adquirir essa
posição de seus habitantes primitivos. Mas, desde então, Gibraltar
pertenceu a um império após outro. Sendo a fortaleza pronta para
defender a Península Ibérica, voltou ao domínio da Espanha em seu
breve período de glória. O enigma é que foi finalmente perdida para a
Inglaterra, e isso somente ocorreu depois que a Inglaterra reduziu a
Espanha a um papel secundário por meio de operações navais. A derrota
da Invencível Armada é normalmente explicada como resultado de
gerenciamento inadequado, equipamento ruim e, sobretudo, mau tempo.
Mas é difícil de acreditar que faltassem marinheiros à Espanha, da raça
que conquistou todo o oceano ocidental e quase conseguiu mantê-lo. A
frota inglesa era improvisada, em grande parte composta de piratas;
havia falta de provisões e de pólvora. Finalmente, quando a Armada foi
dispersa e destruída, os navios ingleses não estavam em doca seca;
tiveram de resistir à mesma tempestade. A Espanha sem dúvida teve
poder naval, enquanto ele durou. A menos que se concorde com o
absurdo de que o poder naval não consiste em navios, marinheiros,
portos e oportunidade comercial, ou seja, todos os seus atributos
tangíveis, o fato é que o poder naval fracassou.

Por outro lado, se o segredo do desenvolvimento e longevidade do


domínio romano está na aptidão militar, o regime conquistador de
Napoleão deveria ter deitado raízes e florescido pela mesma duração.
Por uma série de ações que figuram entre os clássicos da arte da guerra,
Napoleão colocou todo o continente europeu sob sua influência. Seus
exércitos invasores foram tacitamente bem recebidos por parte influente
dos povos conquistados, que já estavam descontentes com o velho
regime e imaginavam uma nova ordem. Reis caíram como pinos de
boliche; a organização de caserna foi exaltada como o instrumento de
unidade que prenunciaria um milênio de eficiência; a América recebeu
um sortimento incongruente de exilados. Napoleão surfou na crista da
onda do futuro. Entretanto, a aparência resplandecente de um Império
erigido sobre baionetas esfacelou-se em nada depois de uma grande
derrota na longínqua Rússia. Roma perdeu mais de uma grande batalha e
reviveu com renovado vigor. O desastre de Napoleão em Moscou, com
as conseqüências que teve, é atribuído ao frio e à neve. Mas os russos
não passaram o inverno na Riviera. Os meios militares fracassaram.

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I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico

Mais uma vez, se o domínio romano se originou de sua ordem social


antecedente, os cidadãos de Roma, fossem aristocratas ou plebeus,
orgulhavam-se de serem simples fazendeiros, alternando entre a espada e
a pá. Voltando para casa depois das guerras, Cincinato não pediu nada
além de voltar a arar sua terra. A mais honrosa recompensa que pôde ser
imaginada por Horácio, aquele que defendeu a ponte,8 foi do mesmo
tipo:

They gave him of the corn-land,


That was of public right,
As much as two strong oxen
Could plough from morn till night.9

Sem dúvida, estas são versões românticas, se não forem puro mito. O
que expressam é a tradição, com uma origem real por trás. A descrição,
maquiando inclusive uma cruel fundação na escravidão, se adequa
igualmente à cultura agrária defendida pela Confederação Sulista.10
Infelizmente, essas são precisamente as razões aduzidas para indicar
porque o Sul não teve chance, em nossa Guerra Civil, contra o Norte
mecanizado e mercantil, reforçado por suas empresas de navegação.

Acredita-se que Cartago enfraqueceu sua virtude marcial devido ao uso


de tropas estrangeiras. Em seguida, Roma governou por séculos
enquanto as famosas legiões eram recrutadas em parte das mesmas
fontes.

Na estratégia principal, Cartago tinha uma percepção precisa dos pontos


vitais. Ao perder a Sicília, foi posta na defensiva no Mediterrâneo
oriental, espremida entre o poder naval grego e o poder terreno romano.
A jogada de Aníbal através da Espanha foi um ataque evidentemente
lógico pelo flanco, e não um expediente desesperado. Ele invadiu o
8
Públio Horácio Cocles, militar romano que, segundo a lenda, impediu sozinho que
um exército inimigo invadisse Roma pela Ponte Sublício. (N. do T.)
9
“Deram a ele milharais que eram de direito público. De tal tamanho que dois bois
fortes levariam da manhã até a noite para arar.” Do poema Horatius, escrito por Lord
Thomas Babington Macaulay em 1842. (N. do T.)
10
Analisando friamente, a pequena nobreza rural romana parece ter sido composta
também por agiotas, ou muitos deles criariam problemas sem fim, emprestando por
hipotecas e escravizando credores que não podiam pagar. Assim também os
agricultores do Sul eram empresários rurais em vez de reais cultivadores do solo. Nem
um financista nem um avarento parecem ser soldados ideais; mas não se pode negar
que aqueles foram excelentes combatentes. Os detalhes são duplamente
desconcertantes, uma vez que os resultados não foram os mesmos; Roma triunfou, o
Sul foi derrotado. (N. da A.)

- 13 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

interior em busca de soldados e suprimentos, inclusive prata, que era


moeda sonante. Além das montanhas, ele esperava outra circunstância
compensadora, mas foi frustrado. Muitas das tribos ou cidades do norte
da Itália eram aliadas de Roma, a quem eram mais ou menos
subordinadas. Aníbal presumiu que elas se uniriam aos invasores para se
livrarem do jugo romano. Em vez disso, permaneceram fiéis a Roma,
pelo menos tacitamente. Porém, quando Cipião levou a guerra à África,
os mais proveitosos auxiliares locais de Cartago, os Númidas,
bandearam-se para os romanos e foram vitoriosos. Seja o que for que
envolva a construção de um império, o comportamento dos povos
tributários e a confiabilidade dos aliados deve ser parte dela; o ponto
crucial é aquilo que os induz a escolher um lado. A proximidade não é
suficiente. As explicações convencionais são meramente declarações
superficiais do que aconteceu.

Como evento, o que ocorreu quando Cartago foi destruída foi de


importância imensa e permanente. Embora a conseqüência não tenha
podido ser apreendida de uma vez, isso prognosticou a futura ascensão
da Europa e o declínio, no equilíbrio do poder mundial, do hemisfério
oriental. Uma pesquisa racional deveria investigar a natureza do
processo que foi conduzido até então pelos fenícios e que só pôde
continuar a ser realizado por Roma; e o surgimento aparentemente
acidental de Pítias, um grego, como aquele que abriu a porta.

A resposta fácil, por que Pítias é lembrado e seus predecessores


permaneceram anônimos, é que ele escreveu uma narrativa de sua
viagem. Como os fenícios eram alfabetizados, isso nos leva a perguntar
por que não o fizeram muito antes, a partir de sua experiência tão maior.

Não o fizeram porque pretendiam preservar um completo monopólio do


Atlântico. Não era uma questão de altas tarifas, ou nações favorecidas,
ou um bloqueio em tempo de guerra. Com o estreito sob seu domínio,
nenhuma embarcação podia passar exceto as deles, na paz ou na guerra,
em qualquer condição. Cartago apostava sua existência nessa política de
exclusão. Ocasionalmente, sem dúvida algum pirata temerário furava o
bloqueio. Mas, se o fizesse, poderia não voltar nunca. Onde quer que ele
aportasse no litoral proibido, arriscava-se a encontrar os fenícios,
situação em que o navio não autorizado estava sujeito a ser apreendido e
a tripulação a ser morta. Nenhuma palavra podia retornar. Não era à toa
que rumores preenchiam aquelas regiões remotas com terrores vagos.
Supõe-se que Pítias conseguiu fazer sua exploração em segurança e
escrever seu relato enquanto Cartago estava sendo atacada por Siracusa,
deixando os estreitos insuficientemente vigiados. Se foi assim, a
vigilância foi retomada em pouco tempo, e mantida até o fim. Na

- 14 -
I. O Ciclo de Energia no Mundo Clássico

corrente principal, o fluxo de energia enfim esmagou os fenícios na


estreita eclusa que eles haviam reservado para seu exclusivo benefício.
Era forte demais e os fez em pedaços.

No sentido em que os engenheiros falam de carga hidráulica, os romanos


representaram uma carga de forças canalizadas. Nem por sua localização
nem por seu progresso material, nenhuma pista econômica explica sua
função. E, se fosse verdade hoje que mesmo nossa história mais recente
não serve como instrução porque vivemos num mundo que muda e
temos de lidar com condições inteiramente novas, então isso sempre
teria sido verdade. Não é verdade, nem nunca foi. O que o passado
demonstra, com provas avassaladoras, é que os imponderáveis têm mais
peso que qualquer artigo material na balança do esforço humano. Nações
não são poderosas porque possuem terras extensas, portos seguros,
grandes marinhas, imensos exércitos, fortificações, depósitos, dinheiro e
crédito. Elas adquirem essas vantagens porque são poderosas, tendo
desenvolvido sobre princípios corretos a estrutura política que permite
que o fluxo de energia tome seu curso adequado. A questão é como;
porque o gerador e as possíveis linhas de transmissão e saídas
disponíveis tanto para o benefício como para a destruição são sempre os
mesmos. A única diferença entre o passado e o presente com respeito à
energia é quantitativa, um maior potencial disponível num maior fluxo, o
que faz com que uma conexão errada seja mais terrível em seus efeitos
por uma dada proporção, tornando-se aparente literalmente numa
explosão mundial. Os princípios de conversão de energia e do
mecanismo adequado para o uso humano não podem mudar; são
universais.

Se Roma, no devido tempo, forçou as travas do Atlântico, havia uma


razão. Mesmo assim, foi um grego que atravessou sozinho. Além disso,
o caráter pessoal de Pítias é tão relevante que a ficção dificilmente
poderia inventá-lo. Ele era um cientista e um aventureiro mercante. Seu
livro se perdeu; poucos excertos e referências foram preservados na obra
de geógrafos posteriores. Eles o citam com desprezo; não acreditam nele,
uma vez que suas observações contradiziam a teoria ortodoxa sobre o
clima e as condições gerais das latitudes setentrionais. Vilhjalmur
Stefansson11 reabilitou mais tarde a reputação de Pítias no quesito
precisão. Embora seus críticos admitissem que Pítias deu contribuições
valiosas à ciência exata da astronomia, aplicada à navegação, ele foi
acusado de mentir sobre o que viu com seus próprios olhos, por homens
que nunca estiveram lá. O que deve ser ressaltado é a forma de oposição
que ele foi obrigado a enfrentar, banimento político enquanto estava vivo

11
STEFANSSON, Vilhjalmur. Ultima Thule. Macmillan. (N. da A.)

- 15 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

e censura acadêmica após sua morte. Teorias, quando adquirem


credibilidade, tornam-se direitos adquiridos. O prestígio e o sustento de
escolas e professores estão vinculados a elas; eles tendem a doutrinas
fechadas, não a se abrir a informações novas.

Pítias abriu o caminho, por onde os fenícios, com toda sua astúcia e
audácia e suas prioridades factuais, não o fizeram; porque era dotado da
rara combinação de curiosidade desinteressada, intelecto especulativo e
empreendedorismo ativo, qualidades que o impeliram a escorregar por
uma barreira oficial de extremo rigor para experimentar os riscos do
desconhecido. Pítias figura entre os descobridores notáveis, um modelo
de mente aberta. Ele não podia saber que estava olhando para a América.

- 16 -
II. O Poder das Idéias

N a perspectiva histórica, os fenícios são únicos; embora tenham


tido uma participação ativa e extraordinária nos eventos de seu
tempo, foi no papel de antagonistas. No instante em que
desapareceram, desvaneceram-se em irrealidade, sem deixar resíduo.
Não sentimos que tenham legado nada de substancial a nós, nada que
tenha se incorporado a nossos ossos, se entrelaçado na textura de nossa
vida. É extremamente paradoxal, uma vez que nossa herança da Grécia e
de Roma consiste em abstrações, enquanto os fenícios eram práticos e
tiveram sucesso com um tipo de organização internacional. Acima de
tudo, tocaram os pontos em que nossas idéias vitais se originaram. Sua
atividade estimulou a Grécia a especular e forçou Roma a se expandir;
erigiram o Templo de Jerusalém e receberam como garantia as humildes
aldeias da Galiléia. Foram transportadores e catalisadores. Porém, parece
que começamos novamente com a Grécia e com Roma. Racionalmente,
não pode ser verdade; mas a ilusão deve ter uma razão. É que os fenícios
eram intrinsecamente um fenômeno físico. Conectaram-se a um circuito
de energia ao qual seu mecanismo político não podia se ajustar. Nos
assuntos humanos, o que dura é apenas o que está no pensamento dos
homens. A humanidade como tal é um conceito intelectual. Como nação,
os fenícios se desintegraram pelo impacto de uma nova idéia. Mas três
novas idéias já estavam nascendo, que formariam a estrutura da Europa
e, mais tarde, recombinando-se, criariam o Novo Mundo. Essas idéias
complementares precisam ser relembradas.

A fama da Grécia é normalmente identificada com a arte e as letras; mas


a influência duradoura da Grécia não deriva de nenhuma das duas. A
arquitetura grega é do mais simples design, inorgânica como um cristal,
famosa pela proporção delicada e pela refinada ornamentação, mas sem
indicar nenhum desenvolvimento posterior. A escultura grega fixava um
tipo escolhido em perfeição imutável. A arte da Grécia era autocontida e
estática. Escapa dos limites pela qualidade atemporal de um momento de
beleza salvo e preservado, desafiando o fluxo eterno. Da mesma
maneira, os gregos estavam num beco sem saída em seu sistema social.
Suas divindades não possuíam ordem moral, representando, em vez
disso, o capricho indiferente da natureza em relação ao homem. Além
disso, os deuses tornaram-se distantes; para os homens educados, a fé era
diluída numa fantasia poética. Como conseqüência, os gregos tendiam a
considerar o universo como fenômeno puro. Os costumes domésticos
gregos não faziam do lar um centro de forte envolvimento emocional. O
companheirismo mental era procurado em outro lugar; restrições
normais foram afrouxadas a um grau sem precedentes. O método

- 17 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

político grego era análogo a tudo isso, como é de se esperar num lugar
em que a lógica suplantou a tradição e, mesmo assim, não encontrou um
princípio. A democracia é puro processo, consistindo em uma série de
expedientes pragmáticos, aos quais se chegava pelo voto da maioria,
pelo veredito dos números. Seus resultados são aleatórios e não há
continuidade, exceto nas pessoas envolvidas. Na verdade, funciona pela
força do costume e é, portanto, irrealizável exceto com uma pequena
comunidade de uma cultura completamente homogênea. Mesmo assim,
pelo hábito grego de pensamento, que era a livre investigação, o costume
já estava desacreditado. A democracia inevitavelmente descamba em
tirania; mas enquanto está instável, pode deixar temporariamente uma
larga margem de conduta e pensamento não regulados. Não se presume
que seja assim por direito; isso ocorre porque o poder do todo (o povo) é
teoricamente um poder plenário indiferenciado em suas partes ou
agências. O que é problema de todos não é problema de ninguém. O
poder pleno só pode ser exercido em uma economia fechada, como a que
havia em Esparta, onde realmente não havia nenhuma margem para
nada. Os atenienses, estando abertos ao comércio, por algum tempo
tomaram a liberdade de pensar. O comércio e as viagens permitiram que
fizessem observações comparativas; eram ávidos por ouvir coisas novas.
A idéia que desenvolveram, tomada por si mesma, corroeu as
instituições que possuíam; agravou o perigo em que estavam ao
enfraquecer o tecido social. Ainda assim, eles a formularam
corajosamente; e foi sua contribuição para o futuro. Pítias a encarnou. Os
gregos tiveram a idéia da ciência.

Os selvagens adquirem informações sem classificá-las em categorias


conforme os atributos ou qualidades das coisas. Sociedades mais
avançadas, mas ainda estabelecidas sobre a tradição, possuem ramos
separados de conhecimento que são basicamente considerados como
dados pela divindade. Assim, uma investigação mais aprofundada de
certas questões pode ser proibida como ímpia. Os gregos tinham as
fábulas premonitórias de Prometeu e de Ícaro. Entretanto, perceberam
que todo conhecimento poderia ser interconectado e que seria possível
ampliá-lo indefinidamente por meio da pesquisa racional. Examinaram
os processos do intelecto, aguçaram e testaram suas mentes para se
concentrarem em generalizações e na busca por axiomas. De maneira
inconsistente, desprezaram a aplicação prática. Ciência, diziam, deve ser
buscada pelo prazer intelectual de se conhecer a verdade. Essa atitude
singular surgiu das condições políticas adversas. A aplicação da ciência
à produção necessita de respeito à propriedade privada, de trabalho livre
e de tempo suficiente para que os benefícios oriundos do esforço e do
capital despendidos possam retornar. No caso dos gregos, a instabilidade
inescapável da democracia não dava nenhuma segurança ao indivíduo

- 18 -
II. O Poder das Idéias

contra a massa, nem à nação contra um ataque externo. Porém, enquanto


as idéias de um homem permanecerem puramente especulativas e o
usufruto confinado ao prazer intelectual, ele não poderá ser privado
dessas coisas enquanto viver e é assim que ele vai deixar que as coisas
fiquem. Um homem só pode pensar e trabalhar efetivamente se for por
seu próprio benefício.

Ainda assim, essa negação extraordinária pode ter tido alguma utilidade
naquelas circunstâncias, ao enfatizar o valor intrínseco do pensamento. E
é verdade que, quando os homens ficam absorvidos em dispositivos
práticos, correm o risco de estreitar seu campo de visão e perder de vista
a interconexão entre os vários ramos do conhecimento. Mais que isso,
como é o caso em questão, irão até se esquecer dos princípios mais
amplos que aplicaram e dos quais depende seu bem-estar.

Mas a implicação que os gregos deixaram de lado era, no fim das contas,
inescapável. A ciência é o governo da razão. Em vez de se resignar ao
destino inexorável do cego acaso, poderia ser possível, discernindo-se as
causas dos eventos, ordená-los segundo a vontade e realizar o que os
homens desejam. Uma abstração moverá uma montanha; nada pode
resistir a uma idéia. Os gregos encontraram a alavanca.

Aparentemente, os eventos zombaram deles. Enquanto filosofavam, a


montanha se moveu numa avalanche; Roma os conquistou. A julgar pela
aparência, dir-se-ia que foi uma vitória da substância bruta, uma
refutação da premissa oculta de superioridade da mente sobre a matéria.
Não foi; ao contrário, mesmo em sua ocorrência imediata, foi uma
vitória do intelecto. Roma também desenvolveu uma abstração, um
conceito político, que estava entre os universais. Roma teve a idéia da
lei.

Todas as nações possuem leis; os mais primitivos selvagens estão


obrigados por costumes e um costume que obriga é uma lei. Um tabu é
uma lei petrificada. Povos primitivos acreditam que suas leis são
permanentes, mesmo que arbitrárias, como “a lei dos medas e persas,
que não pode ser alterada”.1 O significado efetivo é que o costume pode
se alterar somente por graus imperceptíveis, se deve se manter válido.
Um costume não pode ser novo. A conseqüente desvantagem é que, se
um costume reinante é subitamente quebrado, não há um substituto
imediato. O que pode acontecer, por causa de guerra, peste, migração, ou
até por inovações que seriam benéficas, é um período de confusão, em
que o hábito é interrompido e são tentados expedientes; mas as

1
Daniel, 6:8 (N. do T.)

- 19 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

instituições resultantes não podem durar a menos que estejam imbuídas


de sentimentos tradicionais. É claro que o tecido da tradição nunca é
completamente destruído. Entretanto, uma vez que o costume não pode
se alterar rapidamente e, acima de um nível elementar de cultura, haverá
a necessidade ocasional de decidir um curso de ação que pode afetar o
grupo, um conselho informal e um líder são a evolução óbvia. Parece ser
suficiente para um bando de caçadores nômades. O próximo passo, seja
um grupo de pastores nômades ou agricultores primitivos, pede uma
organização mais definida de caráter permanente; para garantir a
continuidade, a posição do chefe acabava se tornando mais ou menos
hereditária, com o sistema patriarcal de clãs. O clã era uma família
permanente; muitos idiomas ainda comprovam desse conceito. Se for
necessária uma distinção entre um chefe e um rei, no uso moderno é no
grau de organização formal, marcado pela nomeação ou reconhecimento
de autoridades com cargo fixo e deveres específicos. A evolução
simultânea, junto com o governo secular, de um clero com autoridade
moral é significativa. Teve seu sentido próprio. A “divisão de poderes” –
ou seja, a existência de agências opostas de autoridade moral e poder
físico – é uma característica natural da sociedade; portanto, também é
necessária na forma de governo para garantir a estabilidade.

Mas todas essas formas de associação são efetivas apenas em condições


apropriadas e têm seus defeitos inatos. O costume não é capaz de lidar
com o inesperado. A liderança não funciona com instituições
organizadas. A monarquia torna-se despótica. Cada tipo de associação
é adequado a um determinado modo de conversão de energia e vai
entrar em colapso ou se fundir em rigidez se for obrigada a receber um
potencial maior do que pode acomodar.

Quando uma nação passa por condições em que o costume se mostra


perecível, a liderança desastrosa e a monarquia opressiva, a razão deve
definir a fonte primária de autoridade, para investi-la em uma forma
viável.

Por essa seqüência, provavelmente encurtada, Roma tornou-se um


laboratório político. O que entrou no cadinho precisa ser deduzido a
partir dos mitos, lendas, tradições e instituições que se formaram nos
obscuros séculos da história inicial da cidade. Não parece que Roma
tenha sido nunca primitivamente bárbara, se a cidade teve seu princípio
no comércio, usando dinheiro2 e tornando as terras propriedade privada;

2
A familiaridade com a função do dinheiro permitiu a Roma governar um império no
devido tempo. Diz-se que os espartanos, não sendo acostumados ao dinheiro, eram
rapidamente pervertidos quando abandonavam sua modesta economia de

- 20 -
II. O Poder das Idéias

são elementos de uma civilização avançada. E as fábulas são


freqüentemente inconsistentes, como seria o caso se fossem parcialmente
importadas e misturadas. Histórias como a de Rômulo e Remo e do
estupro das Sabinas não podem ser aceitas literalmente; nem precisam
ser de origem local. O roubo de noivas faz parte de uma cultura bárbara,
na qual não há desonra. A crença de que uma loba amamentou Roma
deve ser ainda mais antiga e pode ser derivada de um totem selvagem;
mas não necessariamente, porque quando a Europa era bárbara, um
proscrito era uma “cabeça de lobo”, uma antiqüíssima figura de
linguagem. A sugestão nas três histórias é de que Roma sempre foi mais
ou menos uma cidade aberta, admitindo refugiados, exilados ou
imigrantes. Eles trariam costumes variados que deveriam ser
harmonizados segundo regras gerais.

De toda forma, a figura do asilo certamente se incorporou ao sistema


social e legal romano e, por fim, criou o caráter especial da cidadania
romana. Caracteristicamente, era necessário nascer grego, mas era
possível se tornar romano.

Outra vez, podemos suspeitar de um resquício de antigas dificuldades


em encontrar um modo avançado de associação que funcionasse, por
causa de uma instituição peculiar a Roma. É uma instituição altamente
extraordinária num povo civilizado, porque existia completamente fora
da ordem social. Ninguém sabia exatamente qual a sua função, no
sentido em que todos sabiam o que significavam as Virgens Vestais.
Esse cargo realizou seu objetivo de maneira tão completa que o objetivo
foi esquecido. Embora famosos por sua coragem militar, os romanos não
praticavam duelos, nem toleravam a vingança privada informal. Porém,
existia um homem, que devia ser um criminoso, dedicado a uma
ocupação que tinha de ser conquistada e mantida por assassinato. Esse
homem era o Sacerdote de Nemi, “beneath Aricia’s trees”.

Those trees in whose dim shadow


The ghastly priest doth reign,
The priest who slew the slayer,
And shall himself be slain.3

subsistência. Não conseguiam manter o mínimo de honestidade em relações


contratuais, tendo sido criados no comunismo. No nível mais baixo, não eram capazes
nem mesmo de entender os limites da corrupção. (N. da A.)
3
“Além das árvores de Arícia / Aquelas árvores em cuja sombra escura / O sacerdote
espectral impera / O sacerdote que assassinou o assassino / E será ele mesmo
assassinado.” Do poema The Battle of the Lake Regillus (A Batalha do Lago Regilo),
escrito por Lord Thomas Babington Macaulay em 1842. (N. do T.)

- 21 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Quem estava incumbido desse posto sanguinário havia obtido essa


função matando o ocupante anterior. Ele nunca poderia deixar o abrigo
do bosque sagrado e estava permanentemente sujeito a ser atacado por
outro fora-da-lei que conseguisse alcançar esse santuário da morte. O
Sacerdote do Ramo Sagrado foi explicado com referências eruditas a
ritos de sacrifício, o bode expiatório que carrega os pecados do povo ou
o deus-rei que morreu e foi ressuscitado, como o sol, para garantir a
fertilidade dos campos e da tribo. Esses rituais mágicos podem ter sido
incorporados pelo sacerdócio de Nemi. Mas os romanos eram
solidamente prosaicos até em suas superstições. Suas divindades eram
principalmente úteis, com funções práticas definidas. Bem, em sua
origem, havia um uso prático para o sacerdócio de Nemi. Era
desestimular atentados contra a liderança. Não se pode imaginar uma
medida mais ironicamente efetiva para desencorajar tais ambições que a
determinação de um ponto em que os aspirantes devem enfrentar
contendores e onde o vencedor deve continuar, para sempre, sujeito ao
mesmo desafio. Que ele tenha o que pediu e fique satisfeito – o recurso à
força. Obviamente, apenas homens já banidos procurariam o santuário
terrível. São esses os termos sob os quais o homem deve existir quando
não há lei. Estando já muito avançados, tendo superado os estágios do
costume e da liderança, e sendo conscientes da ineficácia da democracia,
os romanos foram obrigados a resolver o problema do governo em
termos racionais, trabalhando com o que tinham. Tinham a família como
a unidade social, compensada pela lei contratual sobre a propriedade, o
que fazia do indivíduo a unidade política. Assim, a família não podia se
dividir numa forma realmente feudal. Tinham clãs (gentes), de antiga
linhagem local, que podiam ser reconhecidos como uma aristocracia,
mas não em ordem hierárquica feudal. Tinham uma população grande e
variada, os plebeus, palavra que significa apenas multidão, as massas;
mas não necessariamente os pobres. O elemento mais importante eram
as tribos, ou seja, a divisão da cidade em áreas específicas, que
supostamente restaram da união prévia de três comunidades. Essas
divisões eram estritamente territoriais e políticas, com fronteiras fixas; as
pessoas eram incluídas nelas por local de residência, não por
descendência. Essas tribos tinham igual representação por direito a partir
da propriedade de terras, moradia; e tinham a obrigação de suprir
contribuições iguais para a defesa militar. Representação vinculada à
área. Mudanças subseqüentes – áreas adicionais, divisões novas ou
subdivisões por razões políticas – mantiveram essa forma; havia
fronteiras regionais e representação.

Roma nunca foi um “todo” indiferenciado, uma simples agregação de


partículas, como postula a teoria da democracia. Desde o início, a cidade
de Roma foi uma federação, com a forma federal, que engloba bases

- 22 -
II. O Poder das Idéias

permanentes e estrutura, os elementos da arquitetura. Tanto os elementos


como a forma precisam de um sistema eletivo; e os romanos primeiro
tentaram um mandato vitalício para um executivo eleito. Foi
completamente insatisfatório, porque não é possível haver controle
confiável ou limitação dos poderes executivos nesse caso.4 Tendo-se
livrado de seus presidentes vitalícios (reis), os romanos tomaram
rigorosas precauções contra seu retorno por usurpação. Eles não teriam
só um executivo chefe; e, mesmo em posições mais baixas, inclinavam-
se por ter dualidade de cargos, o que funcionava muito bem no conjunto.
Os cargos políticos também eram restritos a mandatos fixos e curtos,
com rotatividade de exercício e intervalos em que um candidato não
poderia ser reeleito. Essa última disposição é correta, já que a única
razão para determinar um tempo de mandato é poder tirar o ocupante. O
principal objeto de votações, em qualquer caso, era o voto contra pessoas
ou medidas. Os romanos também suspeitavam continuamente de seus
generais, proibindo até um comandante vitorioso de reentrar na cidade
sem permissão formal. Estavam determinados a impedir a tomada militar
da autoridade civil. E foram assombrosamente bem-sucedidos,
considerando sua posição, que necessitava de uma boa porção de defesa
e constante prontidão militar. Nenhuma outra nação antiga manteve esse
controle civil sobre o exército por centenas de anos.

Os cargos políticos eram ocupados principalmente pela aristocracia e


eram em parte eletivos, em parte sujeitos a nomeação ou preenchidos por
cooptação; os diferentes métodos, com mandato vitalício apenas para
senadores, impediam a rigidez excessiva ao mesmo tempo em que
preservavam a continuidade. Também era possível que homens de
talento excepcional subissem a partir dos escalões inferiores. Nada era
absolutamente petrificado em status. A igualdade dos senadores
(diferente do que ocorre em uma aristocracia hierárquica) e a eleição de
outras autoridades não apenas permitia, mas exigia o debate público no
corpo de governo e a livre expressão de opiniões pelos cidadãos. Como
tanto os eleitores como os ocupantes de cargos públicos possuíam
propriedades, tinham um interesse sólido em manter a nação
funcionando, com a concomitante obrigação de defesa militar.

Mas o golpe inigualado de gênio político foi que o estado romano previa
não apenas o adiamento, mas o impasse concreto. O poder dos plebeus,
por meio de seus tribunos, era de obstrução manifesta. Os tribunos da

4
Uma monarquia constitucional hereditária só é possível como um desenvolvimento a
partir do verdadeiro feudalismo. A condição necessária é a sobrevivência de uma
aristocracia fundiária com herança inalienável. Quando isso desaparece, a monarquia
afunda em seguida. (N. da A.)

- 23 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

plebe não podiam propor nenhuma medida, mas podiam parar os


trabalhos; e suas pessoas eram invioláveis. Nada é mais essencial ao
bem-estar de uma nação que a restrição ao governo, por meios legítimos.
Um mecanismo sem freios, um motor sem dispositivo de corte, foi
construído para a autodestruição.

O sistema romano era duradouro porque era organizado de tal maneira


que as tensões se transformavam em força e o controle era assegurado
pela separação entre a agência executiva e o dispositivo de corte.

Essa realização se tornou possível pela definição da fonte de autoridade.


“Os romanos possuíam, desde os tempos mais antigos o conceito de jus, que é
mais amplo que o de direito positivo declarado por uma autoridade, e denota
uma ordem que obriga moralmente os membros da comunidade, tanto
humanos quanto divinos.”5

Essa idéia de direito como um conceito abstrato não é dada pelo


costume, pela liderança, por um conselho ou um rei; tampouco é
compatível com a democracia. Em todos esses casos, a autoridade é
arbitrária, tendo sido dada ou num costume particular, ou depositada em
pessoas por precedência (ancestralidade ou antiguidade) ou determinada
pelo número. Os romanos afirmaram que há uma ordem moral no
universo.

5
JACKSON, H. Stuart. Cambridge Ancient History: The Primitive Institutions of Rome.
Macmillan. (N. da A.)

- 24 -
III. Roma Descobre a Estrutura Política

N ão é necessário dizer que a realidade ficava muito aquém do


ideal. As punições da lei romana eram excessivas e cruéis. A
escravidão e os privilégios de classe eram instituições legais; se
não fossem, não poderiam existir. A igualdade perante a lei era
exclusividade dos cidadãos, ou seja, apenas dos homens livres; e um
devedor corria o risco de ser escravizado. Essa visão brutal e irracional
da dívida, uma equação falsa, algumas vezes causou perturbações sociais
alarmantes; em momentos de pressão política, um perdão de dívidas
poderia ser declarado por uma legislação ex post facto, um remédio que
em certas ocasiões era quase tão injusto quanto o problema que tentava
resolver e só um pouco menos perigoso. Sentimentalizar a lei romana e
encobrir seus aspectos cruéis e defeituosos é deixar escapar o essencial.
Sua virtude incontestável era a sua mera existência, uma vez que, no pior
dos casos, era melhor que a vontade imprevisível do rei ou do povo. Em
sua conduta ordinária, os atenienses eram provavelmente mais humanos
ou tranqüilos que os romanos; mas a qualidade da lei romana era ser
confiável. A anedota, que conta que um ateniense votou pelo banimento
de Aristides porque estava cansado de ouvir Aristides ser chamado de o
Justo, pode ter sido inventada como piada. Mas não é impossível que
algo assim ocorresse no sistema democrático. Na lei romana, para que
uma sentença fosse aplicada, um homem precisava ser acusado de um
ato específico, com penas conhecidas, e condenado por algo mais
concreto que a opinião. Ninguém poderia ser considerado culpado sem
uma causa. Um simples exemplo, expresso na mais famosa conversa
secular da história, mostra como a lei romana criou um império, o
manteve unido, tornou-o viável e o fez funcionar.

Por ocasião de uma revolta popular, o Apóstolo Paulo foi preso por
guardas romanos. Quando estava para ser açoitado, “Paulo disse ao
centurião que ali estava: ‘É correto açoitar um cidadão romano sem que
ele tenha sido condenado?’”1 (Escravos eram açoitados quando
depunham como meras testemunhas; e, aparentemente, esse
procedimento era admissível, da mesma maneira, com estrangeiros.) O
centurião informou imediatamente seu superior sobre o protesto de
Paulo. “Então, o comandante dirigiu-se a Paulo e perguntou: ‘Diga-me,
você é cidadão romano?’ Ele respondeu: ‘Sim, sou’. Então o comandante
disse: ‘Eu precisei pagar um elevado preço por minha cidadania’.
Respondeu Paulo: ‘Mas eu nasci livre.’ […] E o próprio comandante

1
Atos dos Apóstolos, 22:25. (N. do T.)

- 25 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

ficou com medo.”2 Uma vez que Paulo estava em perigo por causa de
opositores fanáticos, recebeu proteção e foi depois levado diante do
governador Pórcio Festo. Seus inimigos então tentaram, por influências,
conseguir uma condenação sumária ou que Paulo fosse entregue a eles.
Festo disse “Não é costume dos romanos entregar um homem à morte,
sem que seus acusadores estejam presentes e ele possa se defender da
acusação.”3 Foi apresentada uma acusação de sedição, mas não foi
possível acrescentar mais nada que a lei romana definisse como esse
crime. O caso era exatamente do tipo mais desagradável para uma
autoridade romana num posto provincial; mas as razões que o faziam
desagradável ao governador eram precisamente aquelas que tornavam
impossível evitá-lo ou tratá-lo arbitrariamente. Aparentemente, Festo
tentou convencer Paulo, como judeu, a se submeter à jurisdição local sob
a lei judaica. Evidentemente, o tribunal judeu não poderia julgar Paulo
por sedição; mas alguma outra acusação poderia ter sido feita, dentro de
sua competência legal, que não precisava ser assunto do governador
romano. Presumivelmente, se não encontrasse uma acusação válida,
Festo poderia simplesmente absolver o prisioneiro. Mas então, se Paulo
fosse preso pelas autoridades locais sob outra acusação, poderia exigir
ser julgado pela lei romana da mesma forma; e Festo teria o caso de
volta a suas mãos, certamente com complicações novas. Ou, se Paulo
fosse tirado do caminho clandestinamente, Festo seria suspeito de
conivência com uma perturbação política local em que um cidadão
romano foi sacrificado.

Paulo não cedeu: “Eu apelo a César.”

“Então Festo, tendo falado com o conselho, respondeu: ‘Apelaste a


César? Para César irás.’”4

O xis da questão é que um pobre pregador de rua — da classe


trabalhadora, preso e com inimigos em altas posições — teve apenas de
reclamar seus direitos civis para que esses direitos não pudessem ser
negados em nenhuma circunstância. Aqui, todo o processo histórico se
torna evidente em sua imperial realização.

É evidente o valor primário da idéia do direito, de estruturar a legislação.


Ela determina sanções morais que valem mais que a força e, ao mesmo
tempo, reconhece a falibilidade humana. Homens criaram os estatutos; e
entende-se que um estatuto pode ser injusto ou imprudente, mas uma lei

2
Atos dos Apóstolos, 22:27-29. (N. do T.)
3
Atos dos Apóstolos, 25:16. (N. do T.)
4
Atos dos Apóstolos, 25:11-12. (N. do T.)

- 26 -
III. Roma Descobre a Estrutura Política

ruim é responsabilidade dos legisladores; os estatutos poderiam ser


mudados, sem prejudicar a majestade da lei em princípio. Os meios de
revogação ou alteração eram previstos, sem que se fosse necessário
recorrer à violência. Assim, a idéia de lei atendia à razão, e era superior à
simples conveniência. Finalmente, a idéia de lei pressupõe que um
homem tem direitos que devem ser respeitados, e que ele só pode perder
por seus próprios atos. Embora nem todos os homens fossem livres, a
condição de um homem livre tinha sido definida. E, uma vez que se
descobrisse que a liberdade é inerente à ordem do universo, a lógica
acabaria por perguntar por que nem todos os homens eram livres.

O uso prático do conceito de lei na fundação do império começou com


as relações internacionais. Os hábitos mentais dos romanos faziam com
que eles fossem mais confiáveis na manutenção de tratados e mais
constantes contra revogações unilaterais. Portanto, era desejável aliar-se
a eles. Da mesma maneira, a clareza legal ajudava a especificar
condições que podiam ser aceitas. Sendo a cidadania formulada como
uma condição legal, e não um acidente de nascimento, Roma podia
concedê-la a um povo de outra nação. Esse tipo de concessão geral tinha
efeito sobre os indivíduos; a atração orbital, exercida primeiramente
sobre a massa, agia igualmente sobre as partículas separadas. O resultado
era uma verdadeira fusão ou solda, um composto químico, no lugar de
uma simples mistura ou encaixe. Era possível permitir que os
governantes locais anteriores mantivessem uma autoridade subsidiária;
nenhuma mudança de costumes era forçada sobre o povo; e o risco de
revolta era minimizado. Em situações de tensão, os cidadãos
individualmente buscariam proteção contra a tirania local agarrando-se a
Roma — como fez Paulo, já que a lei romana era supra territorial, da
mesma maneira que a lei canônica na Idade Média.

Depois que as partículas formavam uma substância homogênea, essa


substância era firme o suficiente para constituir uma estrutura duradoura.
Ao analisar ou descrever os sucessivos estágios e formas de associação
que os homens desenvolveram, é correto e consistente referir-se à ordem
representacional como arquitetura e à agência política em ação como
mecanismo. A estrutura deve acomodar o mecanismo; e cada um deve
corresponder respectivamente ao tipo de cultura e ao modo de conversão
de energia. Essas formas e mecanismos não ocorrem nem são montados
de maneira fortuita por um determinismo material. São criados pela
inteligência consciente, à luz da experiência. O progresso natural tende a
ser desigual; a incapacidade, por longo tempo, de fazer com que os
vários desenvolvimentos estejam em estágios compatíveis é a causa do
declínio e decadência das nações. Mas os métodos de produção não vão
ficar para trás das idéias políticas avançadas; mas, se uma avançada

- 27 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

economia física se desenvolve numa estrutura política que não consegue


acomodá-la, ou a produção é sufocada novamente ou destruirá a entidade
política, sendo subvertida pelos fins errados. Os gregos de fato
inventaram uma máquina a vapor rudimentar, mas foram incapazes de
aperfeiçoá-la e colocá-la em uso, por falta de uma organização política
que permitisse um potencial tão elevado. Nem o sistema romano poderia
comportá-la. A organização necessária não foi desenvolvida por quase
dois mil anos. Mas Roma sozinha, no mundo antigo, encontrou o
princípio político que acomodaria o potencial de energia já liberado.

Como arquitetura, a forma da República Romana utilizava os grandes


princípios da construção em pedra: o arco, por meio do qual a pressão
das partes opostas contribui para a coesão do peso superposto; a
cantaria5, em que unidades se sobrepõem em fileiras de tijolos; e o
arcobotante6, que dá estabilidade. As tribos cívicas, as famílias patrícias
e os membros do Senado eram os arcos e as pedras angulares7. A dupla
lealdade do cidadão, à família e ao estado, dava a sobreposição da
cantaria. A composição do exército republicano, uma milícia com cotas
fornecidas pelas tribos e oficiais do mais alto escalão pertencendo por
regra a famílias senatoriais, era idêntica, em sua estrutura vertical, ao
estado e à sociedade; assim, quando o exército era chamado a serviço,
permanecia como um arcobotante em relação ao todo.

A organização política da Roma republicana funcionava como a


seqüência mecânica de uma polia móvel8, com a linha de força subindo
uma estrutura vertical a partir de uma base fixa, para acionar um braço
extensor. Com a ascensão do Império, essa organização se tornou
inadequada ao campo de ação. O Império usava um sistema de fluxo de
gravidade com o aparato efetivo para desviar uma parte da energia para
manter o canal funcionando.

Tempo e distância são os dois fatores que necessitam de governo formal.


Por que e como necessitam? Devemos tratar disso mais tarde. Cada tipo
de governo é adequado a certas relações espaço-temporais dos

5
Cantaria: técnica de construção que consiste em sobrepor fileiras de pedras cortadas
que se encaixam. (N. do T.)
6
Arcobotante: construção em forma de meio arco, erguida na parte exterior dos
edifícios românicos e góticos, para apoiar as paredes e repartir o peso. Com ele foi
possível aumentar as alturas das edificações. (N. do T.)
7
Pedra angular: pedra central de um arco. Segura todas as outras pedras no lugar e,
se for removida, o arco desmorona. (N. do T.)
8
Polia móvel: Dispositivo que facilita a tarefa de levantar um objeto pesado. A cada
polia móvel colocada no sistema, a força necessária para erguer a carga é dividida por
dois. (N. do T.)

- 28 -
III. Roma Descobre a Estrutura Política

indivíduos entre si e destes com seu ambiente. O âmbito ou dimensão


apropriados se tornam evidentes na extensão territorial estimada com o
coeficiente da velocidade dos transportes e das comunicações.

Enquanto estava confinada a uma área apropriada, a estrutura política da


República Romana era a mais poderosa que já havia sido reunida. Essa
proporção entre forma e espaço foi bem ajustada um pouco antes e
durante as Guerras Púnicas. Ainda era possível uma extensão gradual
sobre áreas imediatamente adjacentes, não muito distantes, admitindo-se
cuidadosamente a cidadania de alguns povos conquistados e fazendo-se
alianças auxiliares; mas era necessário certo tempo para a assimilação e
certamente havia um limite territorial além do qual o sistema se tornaria
ineficaz. A força militar de Roma derivava da completa subordinação do
exército à autoridade civil; mas isso não acontece simplesmente por se
dizer que será assim. Um exército é um desvio de energia da vida
produtiva de uma nação. Modernos exércitos de massa são abastecidos
por uma única passagem de energia, mas com um longo e complexo
sistema de transmissão para a obtenção e novamente para a distribuição,
o que faz com que uma grande quantidade de energia seja usada nesse
trânsito. E, se houver uma quebra ou uma sobrecarga ou uma corrente
inadequada na linha principal, tudo vai ruir. Na República Romana, o
controle do exército era garantido pelas múltiplas conexões diretas no
controle local do recrutamento. A recompensa dos soldados por uma
campanha vitoriosa era voltar para casa. Sua lealdade ao comandante era
restrita às ordens militares, dadas por delegação do Senado. Se um
comandante fosse afastado, seus soldados obedeceriam ao Senado; era
um exército cidadão. Um comandante tinha muito pouca chance de
estacionar suas tropas e estabelecer um regime independente em uma
região estrangeira.

A aquisição permanente de províncias conquistadas mudou todo o


arranjo. Os exércitos foram engordados enormemente por mercenários e
aliados duvidosos. As despesas tinham de ser cobertas pelos impostos.
Grandes riquezas estavam à disposição de um general vitorioso numa
província distante; e se seu pagamento atrasava, os soldados olhavam
imediatamente para seu comandante. Também havia chances para
negociatas de civis com contatos políticos e sem escrúpulos. Era uma
aposta tentadora para um financista romano apoiar um general com
empréstimos pessoais para serem pagos com favores. César devia
milhões antes de conseguir seu cargo. O Senado se dividiu em interesses
de facções.

Como visto, o exército da República funcionava espacialmente como um


instrumento lateral da autoridade civil, um extensor pendurado a uma

- 29 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

junta cardã9. O extensor se enfraquecia conforme se estendia, enquanto a


carga que ele sustentava era muito maior. Quando os diversos exércitos
ocuparam as províncias, os pesos das pontas de fora, que não podiam ser
soltos nem controlados, os arrancaram das juntas e os impeliram
novamente contra o centro como gigantescos aríetes. O “exército da lei”
não era proporcional ao alcance e à ação retrativa exigidos por essa
expansão inédita de seu campo de ação.

Portanto, a súbita ascensão ao poder mundial literalmente fez Roma em


pedaços, nas guerras civis do Triunvirato. O estado não teria sobrevivido
se o princípio coesivo não tivesse continuado a agir sobre as partículas.

A República pereceu. O que houve foi que a direção primária da corrente


de energia foi revertida e, com ela, a incidência de força física também
se inverteu. A República foi formada por uma comunidade que produzia
seu próprio sustento, incluindo o fornecimento de soldados e a
manutenção do exército; a energia se originava dentro do estado.
Conseguia sustentar eventuais demandas extraordinárias de guerra
porque as despesas normais do estado não eram excessivas; e as agências
de autoridade direta eram organizadas de tal maneira que a coleta de
impostos era bastante moderada. Quando um estado depende de um
exército cidadão para defesa, a dificuldade intrínseca é encontrar uma
maneira de mobilizar e desmobilizar o indivíduo para tarefas militares
intermitentes com a mínima despesa e com o menor prejuízo para a
economia civil. O problema foi muito bem resolvido pela República,
com um mecanismo centrífugo conforme a fonte de energia exigia. Esse
mecanismo não tinha a capacidade de funcionar de maneira reversa.

Com o mundo dominado, um fluxo incalculável de energia foi despejado


sobre Roma vindo de fontes externas, uma força centrípeta, carregada
pelo dinheiro das províncias. O dinheiro é indispensável para um sistema
de energia de alta carga e de grande extensão. Deve ser usado quando
um excedente suficientemente grande está sendo produzido, que permita
uma margem para troca e que cubra o custo do transporte a distâncias
consideráveis. O dinheiro representa uma bateria carregada quando
ocioso e um modo generalizado de conversão de energia quando em
movimento, com a função de equiparar espaço e tempo.

9
Junta cardã: junção de acoplamento de um eixo que transfere o movimento em
outra direção sem modificar o sentido de giro. O nome vem do matemático italiano
Girolamo Cardano, que foi o primeiro a sugerir o seu uso para transmitir potência
motora, em 1545. (N. do T.)

- 30 -
III. Roma Descobre a Estrutura Política

Para adaptar o mecanismo quebrado de Roma ao novo potencial de


energia que vinha de fora, as peças tinham que ser novamente
intertravadas ou deslocadas por um nexo indivisível e um distribuidor
semi-automático. O melhor que se pôde conseguir numa tentativa
improvisada e desesperada foi um tipo de mastro-de-emergência.10,11 Um
homem era usado como se fosse um objeto separado e quebrável, mas
substituível. Sua nova posição não tinha relação com seu lugar anterior
no organismo social. Ele era algo como um fusível grosseiro, que pode
ser queimado; mas devemos ter em mente que a queima de um fusível é
uma medida de segurança em certas contingências. Praticamente,
qualquer homem que aceitasse o trabalho serviria; e, se um falhasse,
outro deveria ser jogado em seu lugar pela seqüência dos
acontecimentos. Ele era o imperador, enquanto durasse. Devia receber a
corrente que entrava e redistribuí-la para fora. Portanto, não devia ter
nenhuma outra função social em particular. Na primeira vez em que um
homem assumiu essa tarefa, isso aconteceu principalmente por causa
daquela qualificação negativa: ele não era um grande soldado, nem um
orador eloqüente, nem uma figura popular. Os diversos homens que
tinham esses dons — Júlio César, Cícero, Marco Antônio — morreram
de maneira violenta. Esse era seu fim natural, uma vez que
representavam os instrumentos em colisão: o exército, o Senado e o
populacho romano. Acabaram recebendo o impacto que Augusto anulou,
por não representar nenhuma parte separada. Ele não tinha um partido
visível; mas usou os novos homens ricos, ou foi usado por eles. Augusto
quebrou os patrícios por banimento, reduzindo assim o Senado à
impotência (embora mantendo sua casca); profissionalizou o exército;
comprou os plebeus com donativos; e organizou uma burocracia que
forneceu ocupações e privilégios às classes alta e média.

Há dois mil anos, o exemplo de Roma vem sendo citado erroneamente,


para a confusão das nações, como se fosse um império militar. Não era.
Nunca houve um império militar, nem pode haver. É impossível,
segundo a natureza das coisas. Quando Augusto se tornou imperador,
sua primeira medida para consolidar o domínio romano foi reduzir o
tamanho do exército. A seguir, quando Roma incluiu em suas fronteiras
a maior parte da Europa, o Oriente próximo e o norte da África, a tarefa
foi executada com menos de quatrocentos mil soldados, dos quais a
metade era de auxiliares, ou seja, regimentos fornecidos pelas nações

10
Os romanos do Império mantiveram por séculos uma vaga esperança de restaurar a
República. (N. da A.)
11
Mastro-de-emergência: em inglês, jury rig. Termo náutico que significa um mastro
de substituição provisório num veleiro, no caso de perda do mastro original. A
expressão é usada para qualquer conserto improvisado ou artifício temporário, feito
com as ferramentas e materiais que estiverem à mão no momento. (N. do T.)

- 31 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

submetidas e comandados por romanos. A comparação com a quantidade


de homens em armas na Europa durante as recentes guerras mundiais é
prova suficiente de que os exércitos romanos seriam ridiculamente
inadequados para manter um território tão vasto por seis meses por pura
força. Em sua estrita competência militar, o exército defendia as
fronteiras. Sua tarefa interna era principalmente suprimir disputas de
facções, ou seja, trabalho de polícia. Havia poucos levantes
genuinamente populares. O homem comum desejava viver sob a lei
romana. As Legiões vitoriosas eram conseqüência e não causa.

O teste para dizer se uma sociedade é militar consiste em definir qual


autoridade é reconhecida como superior, a civil ou a militar. A
autoridade civil romana era suprema, como mostra a história de Paulo,
quando o homem da espada estava “com medo” diante de seu
prisioneiro. Um império só pode existir se oferecer ao mundo algum
benefício negociável em troca do tributo. A lei romana era a commodity
de exportação de Roma. Por “um preço elevado”, as nações obtinham a
lei, mas comparando-a com os poderes arbitrários, acreditavam que valia
o que custava. É isso o que os cartagineses não tinham para oferecer e
não entenderam quando viram; nunca souberam o que os atingiu.

A evidente corrupção da Roma imperial e o poder aparentemente


despótico do imperador parecem negar a premissa básica de que a
autoridade moral consiste no conceito de lei. Uma vez que o poder do
imperador não tinha restrições expressas, podia ser chamado de absoluto;
mas não é ser minucioso demais perguntar se era assim em teoria ou na
falta de teoria. A República previa a nomeação de um ditador
temporário; mas esse cargo é mal compreendido, a menos que todo o
sistema civil seja levado em consideração. O ditador era nomeado pelo
consulado, que era auto eternizável. O cargo do ditador expirava
automaticamente depois de um mandato fixo e curto. Ele não tinha poder
para conceder cargos e, assim, barganhar apoios no Senado. Suas ordens,
portanto, tinham de ser cumpridas por uma organização preexistente, de
caráter complexo e vital, que não devia nada a ele e não esperava nada
dele. Ele devia exigir serviços e privações de todos, o que não o tornaria
popular. Finalmente, o que é peculiar à ditadura da República Romana é
que ela era simplesmente a posição do comandante-em-chefe militar; e
isso mostra que a República não tinha tal funcionário em tempos
normais. E o ditador não tinha acesso direto ao tesouro público.

O imperador, evidentemente, tinha pleno comando do exército, controle


do tesouro e cargos incalculáveis à disposição para distribuir. Além
disso, ele era a Suprema Corte em pessoa. Tal concentração de poderes
sob uma única cabeça é certamente tão próxima do absoluto quanto é

- 32 -
III. Roma Descobre a Estrutura Política

possível imaginar. Como então pode ser dito que Roma não era um
império militar? Ou como poderia a lei ainda ser respeitada? O
comportamento de Festo indica a resposta. O próprio imperador ficava
numa situação precária em meio às forças que nominalmente
comandava. Se o exército fugisse ao controle, poderia — e algumas
vezes fez mesmo isso — depor ou assassinar um imperador e nomear
outro por aclamação. Além disso, o exército tinha de ser pago com
impostos recolhidos das províncias; enquanto as províncias constituíam
uma ameaça contínua de insurreições separatistas. Mas esta contingência
tornava perigosa a posição dos governadores provinciais. Festo não
ousaria tratar arbitrariamente um humilde cidadão envolvido em um
distúrbio porque poderia ser denunciado ao imperador como
patrocinador de um golpe. Seu emprego estava em jogo e, talvez, sua
vida também; seu dever era manter a província em paz. Da mesma
maneira, o imperador tinha de manter a disciplina de um exército
permanente. As províncias e o exército eram forças “puras” agindo por
freios e contrapesos, que o imperador precisava medir com precisão para
conseguir equilibrá-las. A necessidade de que o imperador fosse
substituível se falhasse é, evidentemente, parte do mecanismo. A prova é
que o intervalo de séculos não estabeleceu o princípio de sucessão
hereditária. Da mesma maneira que Festo tinha menos chance de ter um
julgamento justo que Paulo, o fabricante de tendas, o imperador estava
menos seguro que o menor de seus súditos. Sempre que faltasse
inteligência a um imperador para compreender a realidade de sua
situação, as forças puras se desprendiam e o esmagavam; em outras
palavras, ele era morto. Assassinatos domésticos e políticos eram os
tutores imperiais, instruindo o imperador sobre onde estavam exatamente
os limites de seu poder.

Os terríveis abusos inerentes a tal compromisso — corrupção política,


desvirtuamento dos donativos do Estado aos pobres, degradação dos
padrões pessoais por causa da coleta de impostos para Roma e o
aumento do trabalho escravo originado de guerras punitivas de fronteira,
que também privavam o cidadão de responsabilidade política — indicam
que o cidadão comum deve ter tido um motivo compensador para
convencê-lo a tolerar tais males. De fato, qualquer outro sistema
conhecido de mesmo nível econômico provocava os mesmos abusos, ou
piores, com menos esperança de remédio em qualquer situação em
particular. Mas a razão positiva por que o mundo aceitou Roma foi que,
sob o domínio romano, a energia produtiva já liberada podia fluir
continuamente.

Roma se destacava pela construção de estradas, pontes e aquedutos. São


as características visíveis de um sistema adaptado ao modo de conversão

- 33 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

de energia que combina tração animal, a roda d’água, um artesanato


evoluído até o estágio da forja e da fundição e agricultura especializada.
O fluxo é o comércio, o intercâmbio de produtos excedentes,
especialmente a troca de bens acabados por matérias-primas. Roma não
erigiu barreiras de exclusividade e se absteve de decretar monopólios
formais. A lei romana assegurava a propriedade privada e, nas
circunstâncias da época, comprometia-se a ter o máximo de cuidado com
os direitos do cidadão; tudo isso levava ao individualismo.

A grande torrente de comércio era incessante. O sistema administrativo


tomava sua parcela regularmente, para fazer a máquina funcionar, mas
deixava o canal aberto. A lei era o meio isolante da corrente viva. Se a
linha caísse em algum lugar, as autoridades mais próximas teriam
problemas; enquanto o homem no centro, o imperador, enfrentava uma
parcela líquida do risco de todos os lados. A parte que cabia ao governo
se resumia aos impostos.

Obviamente, o produtor pagava os impostos e sentia o ônus. Como todas


as nações submetidas tinham a mesma queixa, seria de se esperar que
rejeitassem a autoridade central, se houvesse uma alternativa melhor.
Mas não havia. No conjunto, a vida e a propriedade estavam seguras sob
a lei romana; e a cidadania era um sólido ativo, mesmo para um homem
pobre.

Podemos questionar se é possível conseguir e preservar a lealdade em


troca de vantagens materiais, simplesmente; provavelmente, o fator
decisivo era imponderável. O senso de expansão e elevação de
personalidade indicado por Paulo ao descrever sua conversão e sua
crença de ter renascido na liberdade são expressos em frases que podiam
ser compreendidas pela analogia secular a seus direitos de cidadania. A
explicação de Paulo sobre a lei e a nova revelação, sua opinião de que os
costumes eram questão de observância local e seu apostolado aos
Gentios estão impregnados do conceito cívico romano do homem como
uma entidade. Paulo devotou sua vida à tarefa de afirmar a terceira idéia
nova, e a mais importante das três: a idéia da alma individual e imortal.
A fé como sinal de coisas não vistas pode muito bem ser compreendida
quando alguém diz: “Sou romano”, embora nunca tenha visto Roma.
Mas Paulo proclamou algo maior, a Cidade de Deus.

- 34 -
III. Roma Descobre a Estrutura Política

Figura 1: Cantaria

Figura 2: Arcobotante

Figura 3: Pedra angular

- 35 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Figura 4: Polia móvel

Figura 5: Junta cardã

- 36 -
IV. Roma como uma Demonstração da Natureza
do Governo

R oma governava o mundo. Nunca antes nem depois outra nação


ocupou uma posição equivalente, exercendo um único papel no
concerto das nações. O isolamento de um papel é a única
maneira pela qual sua natureza pode ser determinada. Roma era o poder
político cristalizado a partir da solução social pela primeira vez e, assim,
tornou-se uma demonstração histórica da natureza do governo. O que
essa demonstração revela é um curioso negativo; durante seu regime,
Roma não contribuiu em nada para os verdadeiros processos produtivos.

Isso não significa que não houvesse pessoas produtivas entre os


romanos. Na República, havia artesãos competentes e bons fazendeiros,
decididos a prosperar; se assim não fosse, não teriam desenvolvido
nunca seu agudo senso de propriedade. Mas, desde o início do Império, a
produtividade da população diminuiu em Roma, enquanto o desemprego
cresceu e se tornou crônico. E, no estabelecimento do Império, Roma era
estritamente consumidora de bens materiais.

Toda a energia que mantinha o Império funcionando vinha de fora da


cidade imperial. Mais ainda, provinha do esforço e da inteligência
privados, do empreendedorismo e do trabalho de indivíduos, que pediam
em troca uma única coisa: simplesmente serem deixados em paz. O que
Roma fazia por eles, em comparação com qualquer outra forma
conhecida de governo, era não fazer nada; a margem de benefício
consistia na limitação do governo. O poder político era impedido de
exercer atividades econômicas e, portanto, a produção era deixada ao
gerenciamento privado. O governo de Roma era melhor que o de seus
predecessores porque Roma governava menos. Esta é a primeira
demonstração do axioma de que o país que é menos governado é o mais
bem governado.

A torrente de energia brotava de inúmeras pequenas nascentes e fluía


para as grandes rotas comerciais. Veio crescendo pouco a pouco por
séculos, vencendo inúmeros obstáculos, levando de aluvião as ruínas dos
reinos. Antes que Roma encontrasse sua fórmula, não existia uma
distinção clara entre o domínio público e o privado. O Egito estava
fossilizado pela propriedade governamental da terra; o poder absoluto do
governo tornou o país uma presa impotente dos invasores. A propriedade
privada era a norma entre os atenienses; mas eles tentaram impor
monopólios sobre o comércio com suas colônias. Cartago era um estado
corporativo. Quando os empreendedores de qualquer nação abriam uma

- 37 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

fonte de comércio, imediatamente tentavam usar o poder político para


represar completamente o fluxo resultante. Isso é impossível; uma vez
que a energia é liberada, deve obedecer a suas próprias leis. A Grécia e
Cartago foram continuamente chacoalhadas e rachadas pela energia que
retornava e fazia pressão procurando uma saída; essas nações nunca
alcançaram um equilíbrio. Os fenícios foram arrastados pela trilha de
energia de Tiro até Cartago. Precisamente porque Cartago de fato
conseguiu impor um monopólio no principal canal de comércio com a
Europa, Cartago foi varrida do mapa. Mas, como os romanos não eram
primariamente comerciantes, tendo ficado ocupados com o grande
problema de encontrar o princípio político, estavam predispostos a
permitir que a torrente de energia seguisse seu curso natural.

A estrutura da República Romana era vertical e sua fonte de energia era


interna. A República ruiu pela pressão horizontal de uma avalanche de
energia vinda de fora. O mecanismo do Império trabalhava
horizontalmente, por uma absorção centrípeta de energia. Dados os
fatores existentes, era capaz de se estender amplamente; mas sua
continuidade dependia de que as partes periféricas resistissem
positivamente às agências de governo. O que de fato mantinha esse
mecanismo íntegro era a tendência separatista residual das nações que o
compunham. Enquanto o sentimento ou a aspiração por independência
permanecia nas províncias, a burocracia ficava impedida de arrecadar
impostos mais pesados do que o comércio era capaz de suportar. Como
receptor dos tributos, o governador provincial estava em perigo iminente
se arrecadasse além do razoável. Então, se Roma exigisse demais, a
próxima pessoa em risco seria o imperador. Portanto, o mecanismo era
tal que utilizava em seu funcionamento a pressão da revolta latente para
recuar, retroceder. Quando finalmente os provincianos passaram a se
considerar romanos e não mais se imaginaram voltando a ser uma
nacionalidade separada, o Império acabou. Na verdade, queimou a
cabeça do cilindro.

A oposição latente passou a ser insignificante. As exigências da


burocracia aumentavam e o número de burocratas se multiplicava. Uma
parte cada vez maior do fluxo era desviada da produção para o
mecanismo político. Quaisquer que sejam os elementos em movimento
que compõem uma corrente de energia, uma parcela mínima precisa
percorrer o circuito completo e renovar a produção. A água que corre em
um aqueduto para fazer girar uma roda de moinho é uma corrente de
energia. Também o são a eletricidade que percorre fios isolados e os
bens no processo entre matérias-primas e produtos acabados, levados por
um sistema de transporte. Se existem muitos vazamentos no canal de
água; ou se a eletricidade é desviada para cada vez mais tomadas ou se

- 38 -
IV. Roma como uma Demonstração da Natureza do Governo

os bens são expropriados gradativamente a cada estágio do processo, em


algum momento não vai sobrar o suficiente para a manutenção do
sistema. No sistema de energia constituído pela troca de bens, os
produtores e processadores têm de obter o bastante para que seja
possível continuar a produzir e a trabalhar as matérias-primas e a prover
transporte. Perto do final do Império Romano, a burocracia consumia
uma parcela tão grande que praticamente não sobrava nada para
percorrer o circuito completo.

Enquanto isso, os produtores, recebendo cada vez menos em troca de


seus produtos, ficaram empobrecidos e desencorajados. Naturalmente,
tendiam a produzir menos, uma vez que não recebiam um retorno justo.
De fato, um esforço para o qual não há retorno líquido deve
automaticamente cessar. Passaram a consumir seus próprios produtos em
vez de colocá-los à venda. Com isso, a arrecadação de impostos
começou a secar. Os impostos devem vir do excedente. Os burocratas
inevitavelmente caíram em cima dos produtores, com a intenção de
seqüestrar a energia diretamente da fonte, por meio de uma economia
planejada. Prenderam os agricultores ao solo e os artesãos a suas
bancadas de trabalho; ordenaram aos comerciantes que continuassem em
seu negócio, embora os impostos e as regulamentações não permitissem
sua sobrevivência. Ninguém podia mudar de local de residência ou de
ocupação sem permissão. A moeda foi depreciada. Preços e salários
foram congelados até que não havia mais nada para vender, nem nenhum
emprego.

“As reformas de Diocleciano, entre 260 e 268 D.C., tornaram ainda mais
pesada a já insuportável carga da cidadania.”1

Homens que haviam anteriormente sido produtivos fugiam para as matas


e montanhas como criminosos, porque morreriam de fome se
continuassem trabalhando. Com a energia lacrada na fonte, seu nível
baixou até que não havia mais o suficiente para fazer o mecanismo
funcionar. A Muralha Romana, nas ilhas britânicas, marca a maré alta.
Quando as Legiões foram retiradas da Muralha, não foi porque foram
derrotadas pelos bárbaros; foram puxadas de volta pela maré vazante de
energia, pela impossibilidade de fornecer suprimentos e reforços. Os
bárbaros não eram uma força ascendente; eles flutuaram na maré. Não
tinham objetivo nem capacidade de tomar ou construir sistema nenhum;
vieram como animais selvagens que comem em campos cultivados no
passado, onde o plantador não tem mais energia para manter suas cercas
em pé. Os comedores de impostos absorveram a energia. Um mapa do

1
SHOWERMAN, Grant. Rome and the Romans. (N. da A.)

- 39 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Império Romano nos séculos IV e V, com as rotas de migrações bárbaras


traçadas, é uma rede de linhas vagantes que mostram como os godos do
leste e do oeste, os hunos e os vândalos simplesmente seguiram as
principais rotas comerciais. Não havia nada para impedi-los. Os
produtores já tinham sido vencidos pela burocracia.

- 40 -
V. A Sociedade de Status e a Sociedade de
Contrato

O
sentido do passado, que é uma combinação de memórias, não é
uniformemente contínuo. Olhando para trás, há uma quebra onde
o conhecimento em primeira mão se fragmenta em material
secundário de boatos e, num terceiro grau, a crença é extraída do registro
escrito. Esse registro se classifica em duas divisões principais, que se
referem a pessoas muito parecidas conosco e a pessoas que quase
poderiam ser de outra espécie, tendo motivos que se tornaram
indecifráveis ou incompreensíveis para nós. Dessa gente diferente, certas
nações que viveram em eras e lugares muito distantes entre si parecem
ser do mesmo tipo; as rígidas figuras hieráticas dos egípcios, do período
bizantino e dos incas nos parecem semelhantes. A Idade Média é
enigmática, não por ser obscura — já que partes imensas da história
humana sumiram de vista — mas porque ocorreu entre intervalos
luminosos, como se tivesse acontecido enquanto estávamos dormindo.
Esses golfos de tempo não podem ser medidos pelo quadrado da
distância. Encontram-se entre dois conceitos antitéticos de humanidade,
da relação entre o indivíduo e o grupo, dois métodos de associação. A
distinção foi estabelecida claramente por Sir Henry Maine1, com os
nomes de Sociedade de Status e Sociedade de Contrato.

O axioma da Declaração da Independência, de que todos os homens são


dotados por seu Criador com o inalienável direito à vida, provavelmente
é lido hoje por muitos americanos como um truísmo que jamais poderia
ser negado. É o contrário: essa foi a primeira vez em que esse axioma foi
declarado como o princípio político de uma nação. É o postulado
primário da Sociedade de Contrato.

Na Sociedade de Contrato, o homem nasce livre e toma posse de sua


herança com a maturidade.

1
Sir Henry James Sumner Maine (1822 – 1888) foi um jurista e historiador inglês. É
famoso por sua tese apresentada no livro Direito Antigo de que o direito e a sociedade
evoluíram “do status para o contrato”. De acordo com essa tese, no mundo antigo os
indivíduos estavam fortemente ligados a grupos tradicionais, pelo status, enquanto no
mundo moderno, no qual os indivíduos são vistos como agentes autônomos, eles são
livres para estabelecer contratos e formar associações com quem quiserem. Por causa
dessa tese, Maine é considerado um dos pais da moderna sociologia do direito. (N. do
T.)

- 41 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Por esse conceito, todos os direitos pertencem ao indivíduo. A sociedade


é formada por indivíduos em associação voluntária. Os direitos de cada
pessoa são limitados apenas pelos iguais direitos de outra pessoa.

Na Sociedade de Status, ninguém tem nenhum direito. O indivíduo não é


reconhecido; um homem se define por sua relação com o grupo e
presume-se que existe apenas por permissão. O sistema de status é
privilégio e submissão. Pela lógica básica da Sociedade de Status, um
membro do grupo que não cometeu nem mesmo um delito leve pode ser
morto pelo “bem da sociedade”2 O Japão é uma Sociedade de Status; até
a metade do século dezenove, constituía, nos mínimos detalhes, um
exemplo completo e inigualado dessa ordem social.

Na Sociedade de Status, do berço ao túmulo, todos devem obedecer; a


única exceção, pela mesma lógica, é um governante cuja vontade é
suprema e que, portanto, está livre de qualquer obrigação. Ele não tem
como cometer injustiças.

A lógica do status ignora fatos físicos. As funções vitais de uma criatura


viva não esperam por permissão e, a menos que uma pessoa seja capaz
de agir por si própria, não pode obedecer a um comando. A Sociedade de
Status acredita de ter poder de vida e morte; mas, na realidade, apenas
pessoas tem o dom da vida. A crença da Sociedade de Status se baseia de
fato no poder do grupo de infligir mortes. Em conseqüência disso, as
expressões extremas e características de dois notáveis exemplos de
Sociedade de Status eram mortuárias: sacrifício humano como ritual dos
Astecas; e as pirâmides do Egito, que eram tumbas.

Entretanto, em sociedades formalmente organizadas, pode haver uma


mistura de status e contrato. (A razão pela qual foi possível imaginar que
o poder da morte deveria ou poderia determinar o princípio de
associação é importante e será discutida depois.) A República Romana
se destacava por uma divisão quase perfeita entre contrato e status, meio
a meio. Politicamente, incluía uma maior base contratual que qualquer
estado anterior ou contemporâneo dela; muito mais que as democracias
gregas, já que limitava o âmbito do poder político. No Império, a
administração da lei por uma autoridade central e os poderes outorgados
ao imperador tendiam para o status. O cidadão parou de participar
ativamente do pensamento político. Os homens têm dificuldade de
entender aquilo de cuja elaboração ou execução não participam. Quando
os selvagens conseguiam rifles, eles os usavam. Mas não possuíam a

2
Com essa crença, os cartagineses jogavam crianças pequenas nas fornalhas de
Moloch. (N. da A.)

- 42 -
V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato

compreensão dos princípios mecânicos e do contexto industrial que o


mais ignorante dos homens brancos tinha como certos. Se o suprimento
de rifles dos homens brancos cessasse, os selvagens não conseguiriam
fabricar nenhum; e, nesse meio tempo, sua habilidade para fazer arcos se
deteriorava. Com a lei imposta por Roma, era improvável que as nações
submetidas aprendessem o autogoverno.

Enquanto o Império Romano desmoronava lentamente, como não havia


uma nação sucessora capaz de assumir seu lugar resolvendo a equação
espaço-tempo, a responsabilidade política retornou para as comunidades
separadas. Apareceram combinações paliativas e variações. O Império se
dividiu em dois. O Império do Oriente retrocedeu para o antigo hábito
regional de despotismo temperado com anarquia, mas ainda com a
sombra da lei romana. Enquanto isso, a Europa, o Império do Ocidente,
desenvolveu um padrão geral de status com exceções parciais, mas com
a estrutura mais civilizada e humana possível dentro do status, porque
construída sobre a família monogâmica e sob a égide moral do
cristianismo. A Sociedade de Status trabalha em marcha mais lenta que a
Sociedade de Contrato, com um potencial de energia mais baixo e,
portanto, tende a divisões políticas menores; mas a unidade familiar tem
grande duração e estabilidade quando a estrutura política formal é
sacudida ou decai. Pode sobreviver a repetidos desastres, como uma
invasão esporádica, porque os laços familiares são persistentemente
reatados na ordem da natureza. Em termos de energia — não como uma
figura de linguagem, mas literalmente — a família é um pequeno dínamo
completamente equipado com seu próprio circuito apropriado, que gera e
usa energia, inclusive para manutenção. Uma vez que este livro é um
estudo do fluxo de energia e da natureza do governo enquanto
mecanismo, o aspecto relevante do cristianismo aqui é a organização
temporal da Igreja.

A Idade Média é quase um vazio para nós porque qualquer potencial de


energia em uso tem uma equação espaço-tempo traduzível em termos
dos nossos sentidos físicos. Com um alto potencial, podemos “ver” ou
“ouvir” através da distância e do tempo, por comunicação veloz e
notação permanente. O baixo potencial, que é tudo o que a Sociedade de
Status consegue acomodar, restringe nossa visão a um raio curto; e como
a Sociedade de Status resiste a mudanças, seus registros comumente são
escassos, com o efeito curioso de não serem datados. Ela usa uma
cronologia diferente da Sociedade de Contrato: uma cronologia local que
marca o tempo por gerações ou pelo ano de um reino, em vez de usar um
ponto no tempo sideral, marcado por um evento determinado. O
resultado é que mesmo as mais avançadas culturas de status, como a
egípcia, nos dão a impressão de tempo aprisionado.

- 43 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Mas a Igreja usava o tempo sideral. Por causa de seu contexto histórico,
costuma-se considerar que a Igreja era idêntica à sociedade medieval em
sua organização. Não era. Ao contrário, era o elemento “não status” na
Idade Média, sendo essencialmente um sistema de contrato. Talvez isso
não seja percebido imediatamente porque sua forma de contrato era
geralmente indissolúvel; um acordo feito voluntariamente, mas
obrigatório por toda a vida. Entretanto, era um contrato e determinava a
função temporal da Igreja como o canal de energia excedente para a
sociedade secular de status conhecida como feudalismo.

A produção sob o feudalismo era comparável a tirar água de um poço


num pátio. Quase tudo o que era produzido era consumido
imediatamente, no mesmo lugar, e quase tudo o que era consumido tinha
de ser produzido imediatamente, no mesmo lugar. Ainda assim, é difícil
manter as nascentes de energia humana vedadas de tal maneira que não
haja nenhum transbordamento, nenhum excedente. Nada pode fazer isso,
exceto o estado absoluto — uma laje de pedra.

A energia fluía para dentro e através da Igreja porque a Igreja


proporcionava o único meio de emancipação do status e, portanto, uma
liberação do talento individual. Na sociedade secular, o filho era
confinado à profissão do pai, independentemente de sua capacidade. Na
Igreja, o filho de um camponês poderia se tornar um erudito, um soldado
em ordens militantes, ou até mesmo um príncipe da Igreja; podia
administrar uma abadia se tivesse inclinações executivas, ou tornar-se
um núncio apostólico, ou trabalhar simplesmente num ofício do qual
gostasse. Se quisesse, o filho de um nobre podia escolher a vida
contemplativa, ou ser um jardineiro, ou um pedreiro, sem se rebaixar.
Mas, acima de tudo, na Igreja um homem podia mover-se e agir além do
estreito domínio no qual nasceu. Na vida secular, um camponês andando
numa estrada pública, se estivesse fora dos limites, podia ser preso por
estar longe de casa sem permissão; a acusação contra ele era sair por aí
como “um homem sem senhor”. (Prisão por “vagabundagem” em
tempos modernos é um anacronismo totalmente injusto, um resquício do
feudalismo; vagabundagem não significa outra coisa além de viajar.)
Certamente, os homens na Igreja estavam obrigados à obediência e eram
impedidos de se casar; mas não estavam presos a um lugar ou a uma
tarefa por nascimento; tinham uma escolha inicial; e os assuntos da
Igreja eram mundiais, envolvendo viagens e permitindo promoções. A
forma da sociedade secular é visível em um uso para o qual a Igreja
direcionou o excedente de energia: a direção ascendente das grandes
catedrais. Mas o tamanho e a magnificência das catedrais são o resultado
do mecanismo lateral da Igreja, pelo qual ela pôde acumular capital

- 44 -
V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato

líquido para grandes empreendimentos; e sua continuidade no tempo


como uma pessoa jurídica, para realizá-los até a conclusão. Era o único
sistema de longo circuito e grande capacidade para transmissão de
energia. Por essa razão também, lutaram-se as grandes guerras da Europa
cristã sob a bandeira da Igreja, nas Cruzadas.

Como uma organização extraterritorial com autoridade centralizada, a


Igreja funcionava exatamente pelo mesmo mecanismo que o Império
secular. A atração das partículas ocorria pela filiação de unidades
familiares “na casa da fé”. Com isso, a Igreja era capaz de encontrar a
resistência para a necessária ação recíproca. O impulso separatista
centrífugo era agora exercido pelas monarquias ascendentes, no lugar
das antigas províncias. A Igreja recriou um mecanismo de controle ao
eximir o clero da jurisdição secular e permitir que os leigos apelassem à
lei canônica em diversos casos que podiam surgir entre a autoridade
secular e os indivíduos, mesmo que servos. (Os feriados, por exemplo,
eram declarados pela Igreja.) A Igreja, sediada em Roma, era assim
capaz de manter a Europa unida ao colocar os senhores feudais na linha,
assim como o Império fez antes, ao permitir que o indivíduo (em sua
condição de cristão ou de cidadão) resistisse ao seu governo secular.
Para garantir-lhe uma base, a Igreja reconhecia a propriedade privada
como um direito divino, fazendo dela um artigo de fé na doutrina cristã.
Se um duque ou um rei se tornasse recalcitrante, a Igreja podia
excomungá-lo, liberando assim seus súditos de seus deveres para com
ele; e se isso não fosse suficiente para trazê-lo à razão, como último
recurso a Igreja podia baixar um interdito sobre seu domínio. O resultado
disso é que a Igreja tinha condições de causar uma revolta negativa, uma
desobediência passiva à autoridade secular, o que tinha exatamente o
mesmo efeito na garantia de ação recíproca do mecanismo
administrativo que a possibilidade de rebelião espontânea das províncias
tinha no arranjo imperial.

Num olhar superficial, pode passar despercebido que esse era o mesmo
princípio que havia sido desenvolvido pela República, por meio de uma
agência política definida. Como uma proposição da Física, consiste na
relação entre energia e massa. A propriedade da massa é a inércia. Em
Política, a inércia é o veto. Uma função ou fator só pode ser encontrado
onde está. Nenhum plano ou édito pode estabelecê-lo onde não está. O
tamanho limitado e a conexão direta do mecanismo da República
permitiam que os tribunos da plebe fossem investidos do poder formal
de veto. Quando esse era o único instrumento político específico que os
plebeus tinham, os tribunos da plebe conseguiram sustentá-lo contra o
Senado. Em uma ocasião, os tribunos da plebe “pararam toda a máquina
de governo” por alguns anos, recusando-se a aprovar e assim permitir

- 45 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

qualquer tipo de ato do governo, sem exceção, incluindo a nomeação de


magistrados curuis3 ou a convocação regular de tropas, até que suas
queixas fossem atendidas. Eram capazes de fazer isso, porque o poder
que exerciam era inerente ao grupo que representavam. Ele estava lá. Se
o povo não se mover, o governo não se moverá. Embora leis sejam
aprovadas e ordens sejam dadas, se a massa inercial estiver em oposição,
essas leis e ordens não serão cumpridas. No Império, era impossível, por
causa das condições ampliadas de espaço-tempo, continuar com a
representação direta do poder de veto do povo; mas esse poder foi
igualmente utilizado, como indicado. E também foi assim foi com a
Europa cristã e a Igreja. E as três fases sucessivas de Roma no governo
cobrem um período de dois mil anos, um recorde de estabilidade sem
paralelo. Isso foi possível por causa da função da massa, que os
engenheiros mecânicos conhecem bem e, embora seja normalmente
ignorada pelos teóricos políticos, foi entendida pelos romanos. Eles a
usaram no lugar certo para a estabilidade, vinculando-a diretamente à
parte do mecanismo adequada ao fator de inércia, o dispositivo para
interromper o motor quando necessário.

A mesma função é corretamente expressa no governo moderno quando


se concede o poder da bolsa, finanças públicas, concessão de
suprimentos aos representantes eleitos pelo povo para mandatos curtos.
O veto efetivo é exercido assim, como deveria ser, pela negação, pela
contenção dos suprimentos. Quando suprimentos ilimitados são
aprovados automaticamente em quantias massivas e desproporcionadas,
é óbvio que a função da massa, o elemento estabilizador, não está mais
incluída no governo; a conexão foi rompida em algum lugar. Os
cidadãos como tais, o povo, não tem mais nenhum representante. Seus
supostos delegados representam de fato os gastadores de suprimentos,
como acaba ocorrendo quando as eleições são realizadas por esse gasto.
Então, o poder de veto inerente pode mostrar seu peso apenas por
dispositivos informais, indicando o perigo iminente de sobrecarga do
motor que, fora de controle, se soltará da base e será esmagado. É
interessante observar esse verdadeiro poder de veto reafirmando-se
novamente pelas “pesquisas de opinião pública”. É o primeiro aviso,
mas é um péssimo agouro; porque a expressão final do veto da massa
inercial intrínseca, quando privado de representação legítima, consiste
nos homens abandonando suas ferramentas e cruzando os braços. A
loucura final dos governos é suprimir esse sinal.

3
Magistrado curul: autoridade romana como os edis, pretores, censores, cônsules e
ditadores. (N. do T.)

- 46 -
V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato

Como Roma conseguiu controlar o problema da função da massa, foi


capaz de resistir ao longo de sucessivas fases, até que a parte do
mecanismo que fazia a transmissão parou de funcionar. Na terceira fase,
a Igreja permitiu que o feudalismo sobrevivesse, com modificações
graduais, por séculos, não por louvor irrestrito, mas por desviar o
excedente de energia da produção local — que se isso não ocorresse teria
arrebentado os limites — e usá-lo em canais laterais. A defesa das
fronteiras foi mantida pela Igreja, com uma tendência expansiva, por
causa das missões para converter os bárbaros.

Tanto na cultura como na organização, a característica notável da


civilização romana ao longo de sua trajetória é que a “unidade da
Europa” consistiu em dualismo, oposição e diversidade.

A Sociedade de Status é obrigada a restringir a produção à energia


potencial que ela consegue acomodar. Isso é feito pelo coletivismo.
Fazer com que a propriedade seja grupal exige que as pessoas não
tenham liberdade. A posse coletiva da terra resulta em uma agricultura
inferior e impede a melhoria das ferramentas.4 O trabalho agrícola
medieval obtinha uma produção miserável. O baixo padrão de vida
resultante causava fomes e pragas, reduzindo assim a população e
fazendo-a mais fácil de ser controlada. Apenas a pobreza — dieta
rústica, trabalho manual, o mínimo de conforto, conveniência e prazer —
pode se ajustar a uma economia planejada; porque uma economia
planejada não pode nem ser imaginada exceto num ambiente de
submissão política. Uma economia complexa necessita da simplicidade
política do contrato livre. A imposição do poder político sobre a
produção começa instantaneamente a reduzir a economia a métodos
primitivos e, em conseqüência, a diminuir a população ótima. Por outro
lado, uma sociedade altamente produtiva emerge da ultra regulada
Sociedade de Status ao proclamar liberdade, que requer a abolição do
controle político sobre as atividades econômicas.

4
Experimentos de propriedade coletiva tentados por comunidades dentro de uma
nação de contrato, como os Estados Unidos, não podem ser comparados às condições
de um coletivo genuíno ou sociedade de status. Tais comunidades têm a propriedade
de sua terra por títulos privados, com o que é chamado de sociedade indivisível, mas
que é na verdade individualmente divisível e aberta a processos judiciais por divisão.
Além disso, os membros entram voluntariamente e podem sair sem impedimentos;
embora o grupo só admita candidatos escolhidos e possa expulsar membros; ao passo
que, numa autêntica sociedade coletiva, os membros nascem nela, não são livres para
deixá-la e devem aceitar o lugar que foi determinado que ocupassem ou são
exterminados. (N. da A.)

- 47 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Como o nível de energia na Europa cresceu novamente, sendo seu


primeiro produto os edifícios da Igreja (algumas vezes vários em uma
pequena cidade), o transbordamento mais uma vez procurou uma saída
de comércio.

Isso é normalmente descrito como a emergência de uma classe média. O


termo é completamente incorreto. Os três estamentos do feudalismo
eram os nobres, o clero e o povo; duas classes seculares e uma
coextensiva às outras ou, se formos fazer uma hierarquia, acima das
outras, o que faria dos nobres a classe média. O que é hoje chamado de
classe média não era nem é uma classe; é uma forma diferente de
sociedade, uma sociedade sem classes: a sociedade livre, a Sociedade de
Contrato. Os comerciantes e artesãos independentes não tinham as
características de uma classe. Não prestavam serviço feudal, porque
pagaram uma cessão para isso. Contribuíam para a organização política
com dinheiro, por meio de impostos, e com sua própria milícia.
Estabeleceram a soberania cívica de maneira tão inequívoca que, se um
servo conseguisse fugir para uma cidade e morar lá por um ano, obtinha
a liberdade em virtude de estar em solo livre. Toda referência feita por
membros dessa ressurgente Sociedade de Contrato à sua própria
condição ressaltava o fato de que eram homens livres. E tinham seu
próprio judiciário. Na Inglaterra, o estranho nome de Tribunal do Pó de
Torta (Court of Pie Powder) é um resquício da diferença física, real,
entre dois tipos de sociedade; por que ela foi o Tribunal dos Pés Sujos
(Court of Pied Poudre), que julgava segundo a Lei Comercial. Os
homens dos pés sujos eram aqueles que viajavam, os comerciantes, ao
contrário dos membros da sociedade estática que viviam presos a um
lugar. Os comerciantes necessariamente formavam uma Sociedade de
Contrato e viviam segundo leis contratuais. Em qualquer lugar, sempre
que se proibiu que as pessoas mudassem de lugar ou comprassem e
vendessem, o tipo de sociedade desse lugar está definido; trata-se de uma
sociedade estática.

Mas o conceito de homem livre, embora vislumbrado de maneira


imperfeita, nunca foi completamente eliminado na Europa. Um
magistrado inglês, o Juiz Herle, em 1309, prolatou a seguinte sentença:
“No princípio, todos os homens do mundo eram livres. E o direito é tão
favorável à liberdade que aquele que já foi livre e esteve em situação de
liberdade perante um tribunal de registro público deve ser livre para
sempre, a menos que algum ato dele mesmo o torne um servo.” Foi a
voz do direito romano quem falou; e o veredito, em sua implicação
plena, pôs de lado mil anos de status.

- 48 -
V. A Sociedade de Status e a Sociedade de Contrato

Comércio e dinheiro, que andam juntos na torrente de energia,


inevitavelmente derrubam os muros que cercam uma sociedade de status.
Infiltram-se por baixo das fundações e penetram cada rachadura. Na
Europa, a infiltração, sendo gradual, tem muitos efeitos fantásticos e
aparentemente contraditórios, que podem ser percebidos numa
perspectiva mais longa. A princípio, parecem fortificar o regime de
status; e a frase pode ser lida literalmente, como quando Ricardo
Coração de Leão erigiu a maior parte do Castelo Gaillard com dinheiro
emprestado pelo qual penhorou seu reino. Gaillard foi projetado para ser
inexpugnável de acordo com a técnica de combate medieval; e foi um
anacronismo desde o princípio, não servindo para nada exceto causar a
completa falência de Ricardo, já afundado nas dívidas que havia
contraído por sua participação nas Cruzadas. Do século X ao XIV, as
mudanças externas no aspecto social da Europa eram curiosamente
comparáveis ao efeito de uma grande enchente que levanta as
construções de suas fundações para depositá-las em lugares distantes e
imprevisíveis. As fortalezas de estilo normando levadas por refluxo pela
rota mediterrânea, em Malta e em Chipre, chegando à Palestina, foram
carregadas dessa maneira pelo despejo de energia da Europa nas
Cruzadas. Assim, a maré montante é bem recebida e estimulada por
aqueles em posição de autoridade, que não prevêem que ela corroerá a
ordem que os mantém.

O comércio parecia interessante a um nobre, trazendo a ele novos luxos


ou pagando-lhe o aluguel em dinheiro em vez de em espécie, quando
uma aldeia se tornava uma cidade de mercado. O dinheiro permitia que
um servo comprasse sua liberdade. O comércio podia prover navios para
que um senhor feudal embarcasse na Guerra Santa; o dinheiro estava
disponível como garantia de seu domínio para equipá-lo para o combate.
O dinheiro dava poder aos reis para dominarem os nobres; e não seria
possível convencê-los de que o comércio iria, no futuro, permitir que
parlamentos executassem reis.

A torrente de energia fluiu outra vez de um continente a outro. O império


árabe surgiu, ocupando grande parte da área que pertenceu a Cartago e
com muitos outros pontos de semelhança, especialmente o fato de não
ter estabilidade nem um centro fixo. Recapturou a Espanha e penetrou a
Europa além das fronteiras da França, até encontrar resistência. Mas o
impacto enfraqueceu o sistema europeu de status, em vez de consolidá-
lo. Nada, exceto o dinheiro, poderia prover, pagar, transportar e manter
uma defesa suficiente; nada, exceto o comércio, poderia suprir o
dinheiro. O comércio continuou em meio à guerra. Politicamente, o
império árabe não tinha estrutura e tendia constantemente a se esfacelar.
A herança romana da Europa foi reafirmada e, na adversidade, tendia à

- 49 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

coesão. O surgimento dos turcos foi um fenômeno peculiar; porque os


turcos, como conquistadores, absorveram para uso militar a energia do
Oriente e a lançaram contra a Europa. Aparentemente, eram invencíveis;
na verdade, eram um poder declinante a partir do momento em que
bloquearam as grandes rotas comerciais, por terra e por água, e cortaram
assim a linha de energia que abastecia seus exércitos. Impuseram uma
sociedade estática de um tipo singular no Oriente, exatamente quando a
Europa estava emergindo do status. A Ásia afundou em estagnação mais
uma vez. E com as rotas comerciais com o Oriente bloqueadas, a Europa
finalmente alcançou Pítias e olhou para além do Atlântico.

- 50 -
VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo

A
s idéias vêm antes da realização. Raça é um fato, até o ponto em
que isso existe. Nações e culturas são idéias. A linhagem racial,
que aparentemente preserva uma identidade, só o faz por meio
de uma idéia. Se uma idéia contiver um princípio universal, fará com que
as raças se mesclem; se contradisser uma idéia anteriormente aceita,
dividirá as nações numa discórdia fatal. Cada realização é prenunciada
pela fantasia; cada grande desastre é resultado de falta de adequação, de
erro ou de perversão da inteligência. Uma idéia pode ser concebida
originalmente como mito. A Europa foi um mito antes de se tornar uma
civilização rica e complexa; e é chamada de continente em contradição
com a geografia, porque a divisão entre Europa e Ásia foi criada pela
mente dos homens.

A América era um mito séculos antes de sua realidade física ser


verificada. Se Platão inventou a Atlântida Perdida ou se a construiu a
partir de fragmentos de folclore, sua criação é igualmente inexplicável.
Lendas européias posteriores das Ilhas Afortunadas a oeste, onde não
havia morte, da Ilha de São Brandão e de Avalon e Hy-Brasil e Tir-n’an-
Og poderiam ser explicadas por uma pequena hipótese factual nas
Canárias ou por um vislumbre dos Açores; sua felicidade poderia
consistir em serem inatingíveis. Até o final do século dezoito, era
possível dizer (como disse Babeuf1) que a felicidade na Europa era uma
idéia nova.

Como pré-requisito para a felicidade, a esperança de liberdade foi


colocada desde o início na América. De maneira apropriada, a
descoberta preliminar foi feita numa busca por liberdade. Durante o
século 10 de nossa era, alguns homens intratáveis de sangue viking se
exilaram de sua terra natal para não se submeterem à imposição de uma
monarquia feudal. Os marinheiros errantes escandinavos resumiram, em
seu desenvolvimento nacional, a história da Europa. Eram praticamente
os últimos piratas bárbaros; mas se alfabetizaram antes de pararem de
viver de saques e tinham a clareza e o tipo de mente pragmática dos
romanos. Conheciam bem o mundo civilizado e forneceram um
regimento mercenário ao Império do Oriente. Migraram da pirataria para
o comércio ao mesmo tempo em que adotaram a sociedade estratificada
de status que o comércio tende a dissolver. Em sua condição
semibárbara, a igualdade entre seus combatentes os obrigou a
1
François-Noël Babeuf (1760 – 1797), conhecido como Graco Babeuf, foi um agitador
político francês. Foi guilhotinado por sua participação na Conspiração dos Iguais. (N.
do T.)

- 51 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

desenvolver um tipo de lei contratual e um governo deliberativo local;


mas quando conquistaram a Normandia e depois a Inglaterra,
estabeleceram um detalhado sistema feudal. Nessa forma, novamente sua
tradição anterior de igualdade independente no topo os incitou a resistir
contra pretensões de absolutismo real fazendo uma rebelião bem
organizada; e voltaram à lei contratual para incorporar a capitulação em
um documento escrito, no qual o conceito de homem livre estava outra
vez implícito, para ser desdobrado no futuro. Desenharam um círculo
intelectual completo. Perto do fim, o pequeno grupo inconciliável que
resistiu para manter sua condição original fugiu para o fim do mundo,
Ultima Thule, e ocupou a Islândia, de onde os mais corajosos seguiram
para a Groenlândia. Navegando diretamente da Noruega para a colônia
na Groenlândia no ano 1000 DC, Leif Ericsson foi desviado para sul do
seu curso por tempestades e neblina, para uma estranha terra, a Costa
Maravilhosa do novo mundo. É notável que a perspectiva de Vinland2, a
Boa Terra, tenha sido abandonada depois da menor das tentativas de
colonização. Isso não ocorreu por desânimo. Os noruegueses foram
puxados de volta para a Europa por sua aceitação tardia do cristianismo.
O próprio Leif Ericsson se converteu pouco depois de sua viagem de
descobrimento. Foi como se o equipamento para a América fosse
incompleto sem essa fé; o que era verdade se eles buscavam a liberdade
como uma condição geral, não um privilégio de classe estabelecido por
braço forte; é fato que tinham escravos. A objeção que pode ser
levantada é que a Europa cristã usava a coleira de ferro da servidão, e
tolerava a escravidão aberta. Mesmo assim, o axioma da liberdade só
pode ser postulado se tomarmos por base o que a filosofia cristã afirma.
Para sua realização, os princípios seculares revelados pela Grécia e por
Roma são igualmente indispensáveis. Mas considera-se a América como
sua terra natal.

Por volta de 1560 ou 1570, Étienne de La Boétie3, o amigo de


Montaigne, cheio de desespero por causa das guerras de religião,
escreveu:

“O que vocês pensam da sorte terrível que nos levou a nascer nestes tempos? E
o que vocês pensam em fazer? De minha parte, não vejo outro caminho senão
emigrar, abandonar meu lar e ir para qualquer lugar aonde o acaso me
carregue. Faz muito tempo que a ira dos deuses me alertou para fugir —
mostrando-me aquelas terras vastas e abertas além do oceano. Quando, na
virada do século, um novo mundo emergiu das ondas, os deuses — bem

2
Colônia viking na América, estabelecida por Leif Ericsson por volta do ano 1000, onde
hoje é a província canadense de Terra Nova e Labrador. (N. do T.)
3
Étienne de La Boétie (1530 – 1563), jurista e escritor francês, é um dos fundadores
da filosofia política moderna na França. (N. do T.)

- 52 -
VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo

podemos crer — o destinaram ao refúgio, onde homens cultivarão campos


livres sob um céu mais claro, enquanto a cruel espada e a vergonhosa peste
condenarão a ruína da Europa. Lá há férteis prados esperando o arado, uma
terra sem rios intermitentes nem senhores — é para lá que irei.”4

A vida, a liberdade e a busca da felicidade — o que os homens


encontraram na América foi o desejo que haviam mandado
antecipadamente. Trouxeram com eles o conhecimento efetivo para
torná-lo realidade. Portanto, a associação de idéias permaneceu, apesar
da contradição imediata e atroz representada pelo tratamento dos índios e
pela rápida importação de escravos africanos. Montaigne mesmo, cuja
franqueza sutil desestabilizava a autoridade assim como as intempéries
derrubam uma parede de pedra, comentou: “Se alguma coisa poderia ter
tentado minha juventude, seria a ambição de participar dos perigos dessa
nova empreitada.” Mas Montaigne, assim como o seu amigo, não era um
servo, mas um lorde, desfrutando dos privilégios de classe e de um bom
patrimônio. Era sua mente que estava tentada a explorar o estrangeiro.
Ele foi a epítome de sua época, transformando sua torre medieval num
estúdio no qual ponderava tranqüilamente sobre as idéias que
destruiriam toda a estrutura.

A descoberta efetiva da América foi feita pelo capitalismo


empreendedor. Colombo foi um organizador de empresa com um plano.
Os navios eram propriedade privada, um deles fretado. Gerentes
capacitados (capitães) foram contratados. Algum capital em dinheiro foi
subscrito. A tripulação era assalariada. Tal organização hoje poderia
empreender qualquer negócio legítimo. Mas a maior parte do dinheiro
foi adiantada pela Rainha da Espanha; dois dos navios foram confiscados
pelo governo como multa; e a expedição navegou com um
comissionamento oficial. Condicionada ao sucesso de sua viagem,
Colombo recebeu a promessa do título hereditário de Almirante do
Oceano (Atlântico), e uma porcentagem de todo o comércio a ser aberto
por sua rota, para ele e para seus herdeiros. Seu objetivo era o Japão e a
China; mas mesmo que aportasse lá, a cláusula jamais poderia ser
cumprida. Um oceano não tolera o monopólio. O empreendimento,
assim, carregou consigo os dois sistemas conflitantes de status e de
contrato que estavam competindo na Europa. O continente havia sido
primeiramente civilizado e organizado pela energia fluindo por meio do
contrato; com o colapso do mecanismo, havia decaído para o status; o
contrato estava emergindo outra vez com o aumento do comércio. Mas a
Espanha estava retrocedendo, apanhada por certa onda contrária nos
Estreitos, na direção do absolutismo, exatamente quando a localização

4
LOWENTHAL, MARVIN. The Autobiography of Montaigne. (N. da A.)

- 53 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

geográfica favorável deu à Península Ibérica a primeira ligação com o


novo mundo. Obviamente, a menor distância entre a África e a América
do Sul é menor que a metade do trajeto que Colombo percorreu da
Espanha às Índias Ocidentais; mas não havia excedente de energia nem
na África nem na América do Sul. A Europa estava gerando energia; sua
rota por terra para o Oriente havia sido bloqueada. A viagem de
Colombo foi como o salto de uma faísca elétrica num arco voltaico.

A conquista dos povos americanos nativos foi uma conseqüência


determinada a priori, porque a Europa usava um potencial de energia
muito superior. A mais avançada cultura americana não empregava nem
mesmo a tração animal, não tinha ainda inventado a roda, muito menos a
roda-d’água, nem chegado à idade do ferro. Viajavam a pé e eram suas
próprias bestas de carga. Seu modo de conversão de energia era o corpo
humano e os utensílios manuais. Seu terror diante dos invasores
europeus com cavalos e armas de fogo é normalmente atribuído à
estupefação com a simples esquisitice do fenômeno. Ao contrário, foi o
entendimento inteligente de um poder maior que eles não teriam como
igualar. A ignorância primitiva não se assusta com a novidade. As tribos
selvagens eram menos submissas que as mais civilizadas, porque não
tinham noção do domínio da energia, embora estivessem igualmente
condenadas pelo potencial superior.

Pode ser estabelecido como axioma que num conflito entre duas nações
ou culturas, se uma delas usa um potencial superior de energia, deve
vencer. O diferencial está na equação espaço-temporal, que compensa
qualquer inferioridade numérica original. Cem homens podem se mover
tão rápido quanto cinqüenta e são, portanto, duas vezes mais efetivos;
mas nenhuma quantidade de homens pode se mover tão rápido como
uma bala e as quantidades são anuladas pela razão inversa de velocidade
e raio de ação.

Já entre duas nações usando o mesmo modo de conversão de energia,


alguém poderia supor que a superioridade numérica e a disponibilidade
de matérias-primas deveriam determinar a questão. Mas não é assim que
acontece; como mostrado, os resultados são tão variáveis que nenhuma
resposta apresentada até aqui serve para explicar dois casos diferentes
como uma conjectura posterior.

Se alguma vez uma nação e uma dinastia tiveram os componentes físicos


de um império atirados em seu colo por pura sorte e de uma vez, essa
nação é a Espanha. O método pacífico de ampliação de território no
feudalismo era por casamentos que combinavam as heranças. Na
Europa, a dinastia de Habsburgo, por um golpe de sorte, tornou-se a

- 54 -
VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo

legatária universal do sistema. Depois da união entre Castela e Aragão, a


Espanha se uniu ao conglomerado de nações austríaco, incluindo a
Holanda e boa parte da Itália. Ao mesmo tempo, toda a Península Ibérica
foi gradativamente incorporada, incluindo depois Portugal por um
tempo. O governante desses vastos domínios teve sua primazia sobre a
Europa formalmente reconhecida, por sua posição eletiva como chefe do
Sacro Império Romano. Presumivelmente, essa glorificação também
aconteceria se a América não tivesse sido descoberta. Por quanto tempo
teria se mantido coesa é matéria de conjecturas; mas pelo menos sua
estabilidade seria tão segura quanto a de qualquer arranjo político
contemporâneo. Assim, a Espanha controlava a parte mais rica da
Europa, com as minas espanholas e austríacas, as cidades industriais
holandesas e uma variedade de outros recursos nesse território tão
extenso. A posição dominante sobre o Mediterrâneo também é
significativa. E então toda a riqueza da América foi despejada na
Espanha.

Em comparação, a força humana e material à disposição da Inglaterra era


ridiculamente pequena; e o território inglês consistia apenas em metade
de uma pequena ilha nebulosa e uma base incerta na Irlanda. A
Inglaterra tinha o porto de Calais, mas o perdeu antes de entrar em
combate com a Espanha.

Finalmente, deve ser observado que, dentro de suas fronteiras nacionais,


a Espanha havia conseguido a unidade perfeita. Nunca um povo havia
sido tão unânime em sentimento, em pensamento, em costumes e em
moral e religião e lealdade política, como a Espanha após a expulsão dos
mouros e dos judeus. Era sólida como uma barra de ferro.

E esse era justamente o problema. Num organismo vivo, tal condição é


mais parecida com o rigor da epilepsia; se passa a ser permanente, é a
morte. Num mecanismo, que funciona pela oposição de suas peças, é
equivalente ao empenamento. Mesmo que uma nação pareça agir quando
está assim solidificada, o movimento é o de uma massa deslocada, um
corpo em queda livre. Não tem direção inteligente nem objetivo
definido.

A Espanha foi eletrocutada, consumida, ao receber uma alta voltagem


em sua estrutura política e mecanismo sem linhas de transmissão
adequadas, saídas e isolação. Ao fazer contato com a América, a
Espanha coletou uma vasta carga de energia armazenada na forma de
metais preciosos que eram conversíveis em moeda européia. Depois
disso, o país foi palco de um espetáculo quase incrível, com navios do
tesouro descarregando lingotes de ouro ano após ano em quantidades

- 55 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

inéditas e o povo se empobrecendo cada vez mais, na razão inversa, até


que estavam reduzidos à fome e à miséria. Todas as receitas
recomendadas e aplicadas hoje em nome de uma economia planejada
foram experimentadas na Espanha nesse período com o mesmo pretexto
da necessidade pública, com a conseqüência inevitável de parar a
produção. Negócios só podiam ser feitos com autorização; manufaturas e
comércio foram restringidos; minas na Espanha foram lacradas por
decreto; dinheiro real foi tomado dos proprietários privados, que foram
obrigados a aceitar papéis do governo em troca e presos ou executados
se tentaram se recusar a aceitá-los. Impostos e tarifas se multiplicaram.
Tudo foi absorvido pelo governo; e o governo estava sempre falido. E as
funções de governo, que eram o pretexto para tais medidas, eram
executadas com grotesca ineficiência. Os maiores esforços militares
resultaram nas mais desastrosas derrotas e quando a Espanha foi
vitoriosa, não conseguiu paz. A Holanda se revoltou e não se pacificou
mais. A Inglaterra também lutou um bocado no mesmo período e nem
sempre foi vitoriosa; comparado à proporção da população e à riqueza
disponível, o esforço da Inglaterra foi maior. Mas as perdas inglesas
foram repostas rapidamente e seu poder aumentado, enquanto a Espanha
passou para a infeliz posição de campo de batalha da Europa. A
condição da Espanha enquanto ainda de posse de seu império no Novo
Mundo (por volta de 1700) foi descrita assim: “Um país sem exército,
justiça ou polícia e absolutamente sem liberdade.”5 “Os nobres são
desdenhosos e desprezíveis. Não têm nada exceto orgulho, pobreza,
preguiça e varíola. Não têm educação e nenhum tipo de conhecimento.”6
O comércio e a indústria estavam paralisados, a agricultura em
decadência; e embora ainda houvesse uma receita considerável vinda da
América, não havia dinheiro em circulação.

Durante o século dezessete, o declínio da Espanha permitiu que a França


tentasse alcançar a primazia. Luís XIV conseguiu tornar sua monarquia
absoluta e assim jogou toda a energia da nação na guerra. Conseguiu
unidade expulsando os huguenotes. Para não ser incomodado com
números, “o estúpido símbolo do dólar”, conferiu a um homem,
Chamillart7, os ministérios da guerra e da fazenda. Um observador de
primeira mão disse, sem esperança: “Não haverá tesouro que chegue

5
D’ALLONVILE, Charles Auguste (Marquês de Louville). Mémoires secréts sur
l’établissement de la maison de Bourbon en Espagne. (N. do T.)
6
Carta do Duque de Saint-Simon a Michel Chamillart, datada de 23 de agosto de 1703.
(N. do T.)
7
Michel Chamillart (1652 – 1721). Estadista francês, ministro de Luís XIV. Tentou
forçar a circulação de um tipo de papel-moeda, billets de monaie, com resultados
desastrosos. Renunciou em 1707, ao perceber que toda a receita do reino para o ano
seguinte já estava gasta por antecipação.

- 56 -
VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo

para um governo descontrolado.” Quando os impostos de Luís lançaram


seus súditos na fome, adiantando vários anos de receita, desvalorizando a
moeda e deixando-o sem um centavo do mesmo jeito, o rei sentiu uma
dor na consciência e se perguntou se tinha o direito moral de extorquir
mais. Chamou um grupo seleto de professores da grande Universidade, a
Sorbonne; e eles servilmente o informaram de que, como rei, ele era
dono de toda a propriedade do reino; seus súditos eram meros ocupantes;
e se permitisse que eles retivessem qualquer parte de suas posses ou do
produto de seu trabalho, estaria fazendo um favor. Então ele extorquiu
mais impostos. Com unidade e controle total, quando envelheceu foi
obrigado a implorar por paz em quaisquer termos; e, antes de sua morte,
franceses inteligentes, como Catinat8, previram com pavor a Revolução
Francesa. Sabiam que a estrutura política e econômica estava fatalmente
desequilibrada. A unidade orgânica da família como padrão de sociedade
resistiu à tensão por cem anos, mas não poderia agüentar para sempre.
Nesse meio tempo, a Inglaterra sobreviveu a uma guerra civil e, sem
nenhuma ambição particular por um império, alcançou a posição
dominante pela qual a Espanha e a França se esgotaram em vão. A
energia em assuntos humanos tende a fluir pelas leis naturais com o
vento e a água, seguindo a linha de menor resistência, mas com pontos
intermediários determinados por matérias-primas em quantidade. Das
viagens de descobrimento, entre 1492 e 1611, apenas quatro saíram da
Inglaterra e nenhuma delas a tornou rica. Mesmo assim, o mapa-múndi
mostra que outro fator positivo interveio em seguida, direcionando o
fluxo entre a Europa e a América um pouco ao norte de seu curso
natural, ou seja, da Inglaterra para a comparativamente pobre costa
norte-americana da Nova Inglaterra até a Virgínia. Estas, outra vez se
tornaram radiais.

A cadeia de eventos correspondeu, ponto por ponto, aos desdobramentos


políticos internos da Inglaterra, da Espanha e da França. O âmbito e as
pretensões do governo na Espanha e na França cresceram
continuamente. As pretensões do governo na Inglaterra foram
persistentemente repelidas, diminuídas e condicionadas. Impérios são
construídos pela iniciativa privada.

Esta é a regra que determina a vitória entre nações rivais usando o


mesmo modo tecnológico de conversão de energia: aquela cujo governo
é mais limitado vencerá. Uma maior extensão territorial e recursos
concomitantes podem acabar se mostrando uma desvantagem para uma
nação com um governo absoluto, porque essas condições farão o
governo irresponsavelmente exorbitante contra seus próprios cidadãos, e

8
Nicolas Catinat (1637 – 1712), militar francês. (N. do T.)

- 57 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

também fornecerão lances de sorte inesperada à nação livre inimiga, que


será capaz de colocar eventuais recursos que conquiste em uso efetivo. A
maior parte da energia que a Espanha extraiu do Novo Mundo serviu
apenas para fundi-la numa rigidez agonizante, mas uma parte teve de
passar por ela e foi, assim, devolvida aos canais produtivos em outros
lugares da Europa. O dinheiro circulou e estimulou as nações rivais e as
províncias rebeldes a quebrar o monopólio espanhol, fazendo comércio
por conta própria. A energia teve um efeito duplo na Europa como um
todo, rompendo o compromisso feudal exatamente nas mais antigas
linhas de rachaduras e ao mesmo tempo integrando pequenos
principados e cidades livres em formas nacionais.

O equilíbrio de poder pendeu para a Inglaterra porque esta permitiu que


a energia fluísse de maneira mais livre, o que significa dizer que a
Inglaterra cedia a maior liberdade ao indivíduo, respeitando a
propriedade privada e abandonando gradativamente a prática de
monopólios comerciais políticos. É claro que a Inglaterra não desistiu de
uma vez de conceder esses monopólios e foi exatamente o que restou
deles que precipitou a Revolução Americana; mas a livre empresa tinha
margem de manobra suficiente para suplantar a Espanha e a França.

O teste crucial da propriedade privada é a atitude do governo em relação


ao dinheiro. Desvalorização da moeda é expropriação pura e simples. O
Império Britânico foi fundado quando o sistema monetário, que estava
depreciado, foi restaurado para um padrão durante os primeiros anos do
reinado de Elizabeth, seguindo os conselhos de Gresham9. Naquele
momento, o comércio inglês estava em situação difícil, o tesouro
nacional vazio, o crédito nacional acabado e o crédito mercantil trôpego,
a guerra ameaçava e a rebelião era uma possibilidade real. Nessas
circunstâncias, os governos normalmente recorrem à moratória, ao
confisco e ao fiat money. Em vez disso, a Inglaterra tomou o caminho
contrário. O mundo ficou sob seu domínio. O Império Britânico
terminou trezentos e cinqüenta anos depois, quando a Inglaterra outra
vez desvalorizou sua moeda, declarou moratória de suas dívidas,
confiscou a propriedade privada e aboliu a liberdade pessoal.

Estas considerações não são sentimentalistas; constituem o mecanismo


de produção e, portanto, de poder. A liberdade pessoal é a pré-condição
para a liberação de energia. A propriedade privada é o indutor que inicia

9
Sir Thomas Gresham (1579 – 1579), mercador e financista inglês, criador da Lei de
Gresham: “Quando um governo sobrevaloriza um tipo de moeda e desvaloriza outro,
a moeda desvalorizada deixará o país ou desaparecerá em reservas escondidas,
enquanto a moeda sobrevalorizada inundará a circulação.” Costuma ser resumida
assim: “A moeda ruim tende a expulsar do mercado a moeda boa.” (N. do T.)

- 58 -
VI. Liberdade, Cristianismo e o Novo Mundo

o fluxo. O dinheiro real é a linha de transmissão; e o pagamento das


dívidas completa o circuito. Um império é simplesmente um sistema de
energia de longo circuito. A possibilidade de um curto-circuito, que
resulte em vazamento e colapso ou explosão, ocorre na conexão da
organização política aos processos produtivos. Não é uma figura de
linguagem ou analogia, mas uma descrição física exata do que acontece.

- 59 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 60 -
VII. O Nobre Selvagem

A
primeira generalização abstrata feita pelos europeus sobre os
aborígenes americanos foi que as tribos menos civilizadas não
tinham governo.1 A Europa estava tão distante dessa condição
que foi tomada de assombro. O fato deu origem ao mito do Nobre
Selvagem. Hoje, esse conceito parece uma fabricação gratuita, porque
foi traduzido em forma poética e pictórica. O Nobre Selvagem era
originalmente um silogismo, uma construção lógica a partir das
premissas da teoria européia de governo. A autoridade secular residia na
sociedade, que era uma entidade; e os homens nasciam submetidos a ela.
Imaginava-se que, sem governo, a mão de cada homem se levantaria
contra seu próximo e todo tipo de crime seria cometido por todos.
Possivelmente, a memória das invasões bárbaras contribuiu para essa
crença; ao mesmo tempo, a doutrina do pecado original pode ser
interpretada de maneira a confirmá-la. E, uma vez que certamente havia
crimes sendo cometidos em profusão, parecia razoável supor que mais
crimes haveria se os indivíduos tivessem mais liberdade de ação. Como
ou por que uma sociedade composta de indivíduos ávidos por assassinar
restringiria seus membros pela força pode parecer incompreensível,
especialmente quando a Igreja exercia uma autoridade superior à da
organização secular, porque apelava à consciência individual, intervindo
em disputas armadas com prescrições morais. Mas, para explicar essa
inconsistência, apelava-se à missão divina confiada à Igreja. A ordem da
sociedade secular fazia necessário prender os homens a uma dada
localidade e a uma dada classe e, portanto, determinar o que eles deviam
ou não fazer, dizer, escrever ou pensar. Tanto o exílio como a “prisão
preventiva”, encarceramento sem julgamento (como por lettre de
cachet2) são conseqüências extremas dessa teoria.

Assim, foi um choque profundo descobrir que havia menos crime entre
selvagens sem governo que numa sociedade com um governo autoritário
que regulava detalhes da vida dos súditos. Os selvagens praticavam a
maioria das virtudes seculares: coragem, hospitalidade, sinceridade,

1
A palavra governo, como usada aqui, significa uma organização política formal de
pessoas nomeadas com funções definidas e autoridade para impor suas decisões. (N.
da A.)
2
Lettres de cachet eram cartas assinadas pelo Rei da França, contendo ordens diretas,
freqüentemente para impor ações arbitrárias e decisões judiciais contra os quais não
havia apelo. As mais conhecidas são as que condenavam um súdito à prisão,
deportação ou banimento, sem julgamento ou oportunidade de defesa. (N. do T.)

- 61 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

lealdade, talvez até a castidade. É verdade que guerreavam e eram às


vezes cruéis, mas os europeus guerreavam e haviam legalizado a tortura.

Porém, os homens não abandonam facilmente uma opinião por meio da


qual justificaram suas instituições. Portanto, só se podia concluir que os
selvagens eram peculiarmente nobres por natureza; ou, pelo menos,
assim eram os selvagens americanos.3 O Nobre Selvagem não era uma
criação inteiramente nova; Tácito havia idealizado os bárbaros da mesma
maneira, enquanto os bárbaros permaneciam a uma distância segura. Só
a racionalização era nova. Mas o Nobre Selvagem passou para a
mitologia européia sem ter obtido crédito na América. Os primeiros
colonos brancos, para quem o selvagem era um inimigo presente e
sanguinário, podiam não tomar conhecimento de suas virtudes.
Exatamente nesse ponto começou o cisma ou a divisão entre as idéias
políticas americanas e européias.

O impacto de um sistema de alta energia em outro de energia menor tem


um efeito interno sobre este último que é muito mais desagregador e
conclusivo que as conseqüências diretas da guerra. Por exemplo, se os
índios norte-americanos recebessem armas de fogo e munição para seu
próprio uso, mantendo todo o restante como era antes, seu modo de vida
seria gravemente perturbado. A população ideal que uma economia
caçadora consegue sustentar é bastante limitada. Passam-se anos
seguidos em que a caça é escassa de qualquer maneira; nesses períodos,
os membros mais fracos das tribos selvagens perecem; e em qualquer o
tempo, as dificuldades para sobreviver são muito grandes. Com armas de
fogo, seria possível aos caçadores matar mais animais, de maneira que a
população tenderia a crescer por certo tempo, à custa do suprimento
futuro de comida conforme a caça rareasse, até que um ano
excepcionalmente ruim trouxesse uma fome em grande escala. Na
verdade, algo semelhante foi acontecendo gradualmente. Não houve
grandes quantidades de índios norte-americanos massacrados por
homens brancos na guerra. Ao contrário, a economia dos índios foi
suplantada; e aqueles em contato com o homem branco se perverteram
muito antes da ocupação total do continente pelos brancos.

O desvio do Nobre Selvagem de sua virtude imaculada original não pôde


deixar de ser observado. O mito permaneceu no pensamento europeu,
mas teve de ser modificado para uma hipótese provisória de que talvez
todos os homens fossem igualmente nobres até que se corrompessem por

3
Os teóricos ignoraram os caraíbas, cujas práticas canibais são indescritíveis. E os
apaches ainda não eram conhecidos. As pessoas simplesmente estavam enjoadas de
governo demais. (N. da A.)

- 62 -
VII. O Nobre Selvagem

— por quê? Pela “sociedade”, pelo menos a partir do momento em que


ela se organizou, especialmente em sua forma política. Aproximando-se
da lei da física que diz que ação e reação são iguais e opostas, as mentes
européias começaram a balançar para este extremo, a partir de sua teoria
anterior de status.

Emigrantes para a América já haviam feito o movimento físico. Portanto,


seu pensamento tendia a procurar um equilíbrio. Na opinião dos homens
da fronteira, o único índio bom era o índio morto. Mas o homem da
fronteira também não tinha uma ligação excessiva com o governo.
Americanos informados e ponderados permaneceram conscientes do fato
de que o selvagem, em sua condição original, realmente obedecia a um
código moral, embora não tivesse governo. Tendo contato direto com as
limitações da cultura primitiva, esses homens de intelecto não tinham
nenhum desejo de regredir para a selvageria em busca de uma ilusão
sentimental; o que os interessava era a questão racional: se o governo
não impediu o crime e impôs a virtude, o que foi que o fez? Se, em
certas condições, o governo pode ser completamente dispensável, por
que e até que ponto ele é realmente necessário em qualquer condição?

As colônias americanas forneceram outro exemplo prático e campo de


provas. Nominalmente, estavam sob o mesmo tipo de autoridade que as
nações européias das quais saíram; mas especialmente as colônias
inglesas, por razões históricas, tendiam fortemente ao autogoverno, no
qual o elemento estritamente tradicional ficava diluído ou era eliminado
e a liberdade do indivíduo era considerada um fato. Mesmo assim, elas
prosperavam; as pessoas conviviam umas com as outras e, com muito
menos governo que na Europa, a criminalidade não era maior. A
existência da escravidão ao mesmo tempo só pode ser entendida se
compreendermos as duas teorias de sociedade. A escravidão ocorre no
que foi depois chamado de “economia mista”. O contrato havia se
tornado a relação predominante, mas a teoria do status não havia sido
explicitamente rejeitada pela limitação do escopo do governo. O suposto
valor moral do status é que ele dá “segurança” a todos, um lugar na
sociedade do qual ninguém pode ser tirado e do qual, reciprocamente,
ninguém pode sair. Se existia algum benefício no status, o servo
desfrutava dele tanto quanto seu senhor.4 Pela teoria de status completa e
absoluta, a terra não podia ser vendida em nenhuma hipótese, apenas
herdada; e devia ser mantida em arrendamento perpétuo; não podia ser

4
O servo não era livre para passar fome. Ele tinha de passar fome preso e passava
fome com freqüência. Fomes eram recorrentes até em regiões férteis. Os Estados
Unidos são o único país da história onde nunca houve fome desde o surgimento da
nação. (N. da A.)

- 63 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

transferida do cultivador hereditário para outra pessoa. Isso parece tão


admirável que, ultimamente, foram feitas algumas tentativas de
reinstituir a posse irrevogável, por esquemas gradativos como
antiguidade no emprego (começando pelo serviço público) e “colônias
de subsistência” estabelecidas pelo governo. Essas tentativas são aceitas
sem que se dê conta da conseqüência inevitável: é o retorno da servidão.
Se a relação de trabalho não pode ser encerrada pelo empregador de
acordo com o contrato, ou o inquilinato não pode ser encerrado pelo
proprietário quando o período de aluguel terminar, o empregado ou o
inquilino também devem perder o direito de sair do emprego ou da
locação. Submetidos ao “estado”, não terão nem mesmo o caráter
humano que o servo possuía no feudalismo, tão opressivo quanto fosse.
Não serão nada exceto peças em uma máquina.

Mas a escravidão era uma combinação monstruosa de status e contrato, a


epítome da “economia mista”. A condição desigual do escravo é status,
mas ele é comprado e vendido por contrato. Em teoria, o servo ainda era
um homem, enquanto o escravo era um objeto.

Essa anomalia fatalmente perturbaria a consciência dos proprietários de


escravos exatamente porque eles eram homens livres. Ela deixava a
liberdade dependente de uma condição acidental. O argumento fácil de
que o negro era escravo pela maldição de Cam não explicava o fato de
que homens brancos também eram condenados e embarcados para a
América para serem vendidos como escravos por crimes políticos.
Assim, todo o curso da história se repetia, era encenado outra vez, diante
dos olhos dos americanos. Um homem, durante seu tempo de vida, o
assistiria inteiro, se se preocupasse em contemplar o que estava à vista;
as teorias e os argumentos foram colocados em teste por demonstração.
Voltando a olhar para a Europa, podia ver o sistema de status ainda em
vigência ou gerando várias modificações. Podia distinguir a posição
extrema dos homens como súditos daquele estado absoluto; eram
escravos. Podia estudar a realidade da vida selvagem em seu melhor e
em seu pior, contrastada com as dificuldades, dores e recompensas da
civilização. Podia ver homens que haviam renunciado à civilização para
adotar a selvageria, afundando no pior, em vez de alcançar o melhor.
Podia ver outros que se embrenharam na natureza com a inocência de
um cervo ou de um falcão, mas cujos recursos foram suficientes apenas
para uma geração.

Podia também ver homens livres em livre associação, produzindo e


construindo, trabalhando sem mestre e, mesmo assim, diligentemente, e
relacionando-se com outros homens aproximadamente como iguais sem
desordem. Surpreendentemente, a maioria dos problemas sociais trazidos

- 64 -
VII. O Nobre Selvagem

da Europa não chegou a ser resolvida nem apaziguada; os problemas


simplesmente evaporaram. As guerras de religião minguaram para
pequenas perseguições locais. As barreiras de classe se dissolveram; e
onde pessoas de várias nacionalidades se misturaram em uma
comunidade, conviveram amigavelmente. Porém, como indivíduos, eles
não sofreram nenhuma transformação observável; continuavam sendo
seres humanos.

Evidentemente, seu comportamento e modo de associação eram viáveis e


deviam ter princípios deduzíveis, intrinsecamente diferentes daqueles da
Europa. A presença de escravos deu a resposta; as outras diferenças
estavam tão apagadas que as duas condições possíveis ficaram
completamente evidentes. Ou um homem era livre ou não era livre. E
onde se havia assumido anteriormente que os homens não se adequavam
à liberdade, agora se podia supor que somente a liberdade era adequada
ao homem.

Durante os séculos anteriores, na Europa, várias “liberdades” foram


arrancadas ou compradas da autoridade, mas tais concessões sempre
foram expressas como outorgas vindas de cima, não direitos, mas
privilégios. Quando a soma delas se tornava considerável, a Sociedade
do Contrato podia ao menos ser imaginada. Foi imaginada e projetada no
Novo Mundo. No Novo Mundo, tornou-se um fato. Finalmente, a
ocasião estava madura para afirmá-la como um conceito político, sem
restrições.

Os termos foram encontrados: todos os homens são dotados por seu


Criador com um direito inalienável à vida, à liberdade e à busca da
felicidade.

A liberdade era indivisível, era uma pré-condição. Falar em diversas


“liberdades” é usar a linguagem da Europa, não da América; é abandonar
o princípio básico sobre o qual foram fundados os Estados Unidos.

Mas, para o conceito de liberdade, a forma apropriada de governo ainda


precisava ser criada. A falácia do anarquismo ainda não havia sido
cogitada. Embora não fosse completamente claro por que algum governo
era inevitável, sentia-se que era uma necessidade. O enigma dos
selvagens — por que eles não tinham governo embora fossem sujeitos à
fraqueza humana — teve de ser deixado sem solução, embora não tenha
sido esquecido e tenha tido grande influência para confirmar a teoria da
liberdade. A mudança da base européia de governo para outra base foi
feita postulando-se que os homens nascem livres. Uma vez que
começam sem governo, devem, portanto, institui-lo por acordo

- 65 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

voluntário. Assim, o governo deve ser um agente deles, não um superior.


A vontade é uma função do indivíduo, logo o indivíduo tem o direito
prioritário. Então, mesmo que se presuma que o governo resolve
parcialmente as deficiências morais da humanidade, ainda assim ele deve
ser limitado e subordinado. Se todos fossem invariavelmente honestos,
capazes, sábios e bons, não haveria lugar para o governo. Todos
entenderiam prontamente o que é desejável e o que é possível em
determinadas circunstâncias, todos contribuiriam com os melhores meios
para seu objetivo e pela participação equitativa nos benefícios resultantes
e agiriam sem coação ou omissão. A máxima produção seria certamente
obtida dessa ação voluntária originada da iniciativa pessoal. Mas, como
os seres humanos algumas vezes mentirão, quebrarão promessas,
deixarão de desenvolver suas capacidades, agirão de maneira
imprudente, tomarão pela violência os bens dos outros e até mesmo
matarão uns aos outros por fúria ou ganância, um governo precisa ser
definido como a organização policial. Nesse caso, ele pode ser descrito
como um mal necessário. Não existiria como entidade separada e não
teria autoridade intrínseca; não poderia ser habilitado a agir exceto se um
indivíduo infringisse o direito de outro, quando imporia as penalidades
previstas. Geralmente, permaneceria como uma testemunha contratual,
mantendo um penhor das partes. Como tal, a menor quantidade de
governo seria a melhor. Qualquer coisa além do mínimo seria opressão.

Dessa perspectiva, os homens não são nem totalmente “nobres” nem


incorrigivelmente maus, mas sim criaturas imperfeitas dotadas da
fagulha divina e assim capazes de progredir, talvez no longo curso da
“perfectibilidade”. Isso é essencialmente uma aplicação secular da
doutrina cristã da alma individual, nascida para a imortalidade, com a
faculdade do livre-arbítrio, que inclui a possibilidade do pecado e do
erro, mas permite igualmente que o homem se empenhe por sua
salvação, sua herança. Qualquer pessoa que não reconheça a ligação
entre esses princípios deve tentar reescrever a Declaração da
Independência sem referência à fonte divina dos direitos humanos. Não é
possível fazer isso; fica faltando o axioma. A filosofia do materialismo
não admite nenhum tipo de direito; logo, o mais opressivo despotismo
jamais conhecido foi o resultado imediato do “experimento” do
comunismo marxista, que postulava unicamente um processo
mecanicista para sua validação.

A idéia cristã foi necessária para o conceito de liberdade. A idéia romana


foi indispensável para a forma — um governo de leis e não de homens.

A questão colocada pela ausência de governo na sociedade selvagem


teve de ser deixada de lado naquela ocasião, porque ninguém a

- 66 -
VII. O Nobre Selvagem

reconhecia como um problema de engenharia; e ela não pode ser


expressa de outra maneira. É evidentemente um problema moral, uma
vez que trata da relação entre seres humanos; mas as relações específicas
envolvidas são aquelas que incluem tempo e espaço. A organização de
ações no tempo e no espaço constitui a ciência da engenharia.

De qualquer maneira, a tarefa imediata era determinar o modo de um


governo mínimo, examinando-se e comparando-se exemplos históricos,
avaliando-se o desempenho de intenções e dispositivos. Tendo-se
postulado que a fonte da autoridade secular reside no indivíduo, a
questão então era impedir que essa autoridade fosse usurpada por seu
agente. Entretanto, um fator de engenharia foi certamente entendido — a
função da propriedade privada como a base exclusiva da liberdade. Não
é por acaso que o rascunho original da Declaração da Independência
listava a propriedade privada como um direito inalienável do indivíduo.

- 67 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 68 -
VIII. A Falácia do Anarquismo

D epois de ter afirmado que os selvagens não tinham governo,


chamar o anarquismo de falácia parece uma clara inconsistência.
Mas devemos ter em mente que o modo de conversão de energia
deve corresponder ao modo de associação. A anarquia é viável apenas
entre os selvagens. Tentou-se adotar a anarquia numa economia agrícola,
que é mais avançada, e o resultado é altamente instrutivo. A seita
religiosa dos Dukhobors1 repetiu essa experiência exaustivamente.
Dentro de seus limites, sua argumentação era completamente
consistente. Estavam determinados a não ter nenhum tipo de governo,
nem mesmo autogoverno, como o termo é entendido para descrever uma
organização formal. Um jornalista2 que estudou uma colônia Dukhobor
no Canadá pediu que um membro da colônia prometesse não queimar
algumas anotações manuscritas, se elas fossem largadas por ali. Seria o
tipo de promessa mais fácil de ser cumprida, consistindo simplesmente
em se abster de um ato que nenhuma circunstância imaginável poderia
tornar necessário. O Dukhobor respondeu que “não desejaria queimar
aquelas anotações”. O jornalista reconheceu que, sem dúvida, o
Dukhobor naquele momento acreditava que não o faria, mas e se
mudasse de idéia depois? Nesse caso, disse o Dukhobor, “se o Espírito
me induzisse a fazê-lo, então eu teria de queimá-las”.

A essência do autogoverno consiste em manter promessas; a organização


formal é instituída por acordo e seu poder é delegado com o objetivo de
sustentar o contrato que se estabeleceu pela livre vontade das partes — o
contrato encarnado na Constituição e os contratos privados entre
indivíduos. Os Dukhobors eram completamente lógicos em evitar o
primeiro passo na direção do autogoverno, uma vez que não desejavam
ter nenhum tipo de governo. Mas a seita, durante sua existência,
alternou-se entre disputas que paralisavam a produção e lideranças
autocráticas que tomavam arbitrariamente para si uma grande parcela do
que era produzido. Esse é o resultado inevitável da tentativa mais
cuidadosa de permanecer numa condição de anarquia depois que a

1
Grupo religioso de origem russa, que surgiu provavelmente no século 18. Eles
rejeitam o governo secular, os sacerdotes ortodoxos russos, os ícones, a liturgia, a
Bíblia como fonte suprema da revelação divina e a divindade de Jesus. Por suas
crenças pacifistas e pelo desejo de evitarem a interferência governamental em suas
vidas, a quase totalidade do grupo emigrou do Império Russo para o Canadá no final
do século XIX. Em 2014, a população estimada de Dukhobors é de 40.000 pessoas no
Canadá e 5.000 nos Estados Unidos. (N. do T.)
2
WRIGHT, J. F. C. Slava Bohu: The story of the Dukhobors. (N. da A.)

- 69 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

relação moral entre os membros da comunidade se estendeu no espaço e


no tempo de maneira a permitir uma economia mais desenvolvida que a
dos selvagens. Muito trabalho é perdido; e os membros da comunidade
são submetidos a infortúnios, pobreza e ignorância.

É fácil descobrir o estágio de desenvolvimento a partir do qual o governo


se torna necessário; e sua correspondência ao modo de conversão de
energia pode ser claramente percebida, ou a não-correspondência quando
a sincronização não está correta. O que ainda não foi elucidado é a
relação específica entre o mecanismo de governo e a ordem produtiva.
Isso levou a várias conjecturas conflitantes sobre a origem e a natureza
do governo. Uma teoria da história afirma que o governo surge da guerra
e, portanto, é a força em si. Isso é duplamente falso, uma vez que é o
oposto da relação real. Essa teoria foi adotada por filósofos
comprometidos com a doutrina do Estado Absoluto, porque é o único
argumento possível que parece dar a eles uma base factual; mas ela
reside unicamente no erro de post hoc, ergo propter hoc3.

Governo pela força é uma contradição em termos e uma impossibilidade


física. A força é o que é governado. O governo se origina na faculdade
moral.

A relação de subordinação da força à faculdade moral é auto evidente se


considerarmos a localização da fonte da energia aplicada nos assuntos
humanos; e essa relação pode ser demonstrada pelo mecanismo de todos
os modos conhecidos ou imagináveis de associação humana. A forma
mais antiga de sociedade, que se alimentava da extração direta da
natureza e se mantinha unida pelo instinto de espécie, é a sociedade dos
selvagens. Acredita-se que os esquimós apresentem uma cultura da Idade
da Pedra sobrevivendo até hoje, muito pouco modificada até tempos
recentes. Seu habitat não permite a acumulação de posses além de
objetos transportáveis e pequenas provisões de alimento; eles não podem
ter esperanças de melhorias em sua sorte além de uma margem
obviamente estreita. A velhice é curta; incompetência, doença ou
incapacidade grave significam a morte. O casamento é uma parceria de
trabalho facilmente dissolvida; e o comportamento sexual é
correspondentemente lasso. O processo de conversão de energia tem o
menor circuito possível, com o homem como caçador trazendo matérias-
primas e a mulher imediatamente transformando-os em bens de

3
Expressão latina que significa “depois disto, portanto em conseqüência disto”.
Falácia lógica que consiste na idéia de que dois eventos que ocorrem em seqüência
cronológica estão necessariamente ligados por uma relação de causa e efeito. (N. do
T.)

- 70 -
VIII. A Falácia do Anarquismo

consumo; esse é o circuito de manutenção, e os filhos são o de reposição.


O grupo não pode crescer demais; precisa se dispersar e vagar, e não
pode estabelecer um local regular de assembléia. Portanto, não possui
um chefe secular. Nenhum esquimó tem autoridade sobre outro; mas
Stefansson4 observa que, sem buscar essa posição, os homens mais
capazes possuem influência sem terem privilégios. Sob necessidade
extrema, que é o molde do simples costume, os esquimós realmente não
têm governo, nem estrutura política, nem qualquer tipo de agência.

Os esquimós não guerreiam. Sua energia é absorvida na luta imediata


pela existência; e seu ambiente, a desolação branca do Ártico, elimina o
possível aspecto da guerra como esporte, que consiste em surpresa, fuga
e perseguição.

Em regiões temperadas, os selvagens guerreiam; e ainda assim não têm


governo formal. Mas a guerra e a liderança, com um conselho informal,
parecem ser criações síncronas. É o que dá plausibilidade à teoria de que
o governo se origina na guerra e, portanto, o governo em si é força. O
erro só pode permanecer se rejeitarmos tanto os fatos do comportamento
selvagem como os testemunhos específicos de selvagens inteligentes
sobre o significado e o objetivo do que se chama de conselho de guerra.
O ponto significativo é que, no início, nem o chefe nem o conselho
tinham poder algum. Exerciam apenas influência reconhecida. O chefe
não tinha continuidade de mandato nem autoridade positiva. O conselho
e o chefe debatiam quando a havia probabilidade de guerra; mas a razão
manifesta de suas exortações era sugerir prudência, ou seja, falar pela
paz. Isso foi registrado por um chefe famoso, o velho Seattle5, que foi
fundamental para unir diversas tribos da costa do Pacífico. Quando os
homens brancos chegaram, ele percebeu que seu povo estava liquidado.
Num discurso de despedida, ao concordar com um tratado, explicou,
recapitulando a função do chefe simplesmente como uma questão de
fato:

“A juventude é impulsiva. Quando nossos jovens se enfurecem com alguma


injustiça real ou imaginária, e desfiguram seus rostos com pintura negra, isso
indica que seu coração está negro, e então eles costumam ser cruéis e
implacáveis, e nossos velhos e mulheres são incapazes de contê-los. Assim
sempre foi. A vingança, para os jovens, é considerada um benefício, mesmo à

4
STEFANSSON, Vilhjalmur. My life with the Eskimo. The Macmillan Company, New
York, 1912. (N. do T.)
5
Seattle foi um chefe dos índios Duwamish, também conhecido como Sealth, Seathle,
Seathl e See-ahth. Buscou formas de acomodação entre os índios e os colonos
brancos. A cidade de Seattle, no estado de Washington, tem esse nome em
homenagem a ele. (N. do T.)

- 71 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

custa de sua própria vida, mas os velhos, que ficam em casa em tempos de
guerra, e as mães, que podem perder seus filhos, não se enganam dessa
maneira.”6,7

O chefe Seattle descreveu um fenômeno físico incontestável, um desvio


do excedente de energia. Obviamente, a guerra primitiva pode ser
iniciada e realizada por impulso da parte dos combatentes. Nessas
condições, não poderia ser conduzida por nenhum outro meio. Se os
jovens estivessem com disposição militante, nada poderia contê-los,
exceto a persuasão. Eles são a força. Assim, o conselho podia ou impedir
a guerra por influência moral, ou aprová-la, ou admitir sua incapacidade
de proibi-la, preparando-se para fazer a paz depois. Em nenhuma
hipótese o conselho, os velhos, poderia aplicar a força, nem para impedir
nem para provocar a guerra. O conselho simplesmente não tinha a força.
Da mesma maneira, nessas hostilidades primitivas, nenhum comando
oficial é possível; cada homem deve lutar por si mesmo. O chefe poderia
oferecer conselhos sobre estratégia pura e dar exemplo de bravura e
habilidade. Isso era tudo. Conseqüentemente, era escolhido tanto pela
sabedoria como pela coragem. Portanto, sua posição não dependia da
força contra seu próprio povo. Isso seria impossível. Bravura pessoal não
é mais que a força de um único homem, enquanto a tribo é composta por
muitos. Onde a liberdade de movimento é necessária para a
sobrevivência, um homem forte não tem como dominar um único
inferior por intimidação; ele obviamente não consegue subjugar muitos.
O chefe e o conselho não davam ordens positivas porque não tinham
meios de obrigar a obediência. Crimes contra pessoas estavam sujeitos à
retaliação pessoal; infrações graves aos costumes podiam ser punidas por
um comitê de todos, que fariam o infrator passar por um corredor
polonês, ou o expulsariam da tribo.

Poder-se-ia sugerir que pelo menos uma minoria composta pelos mais
fortes poderia comandar pela força os membros mais fracos da tribo;
mas até para tentar isso, seria necessária uma base de concordância
adotada pela junta. A expectativa de pilhagem ou tributo requer um

6
BINNS, Archie. Gateway of the North. (N. da A.)
7
O discurso que Isabel Paterson cita teria ocorrido em 11 de março de 1854, numa
reunião convocada pelo governador Isaac Ingalls Stevens, para discutir a venda de
terra dos nativos para colonos brancos. Seattle falou na língua lushootseed. Alguém
traduziu o que ele disse para a língua chinook e uma terceira pessoa traduziu dessa
língua para o inglês. Trinta e três anos depois, Henry A. Smith publicou esse texto,
observando-se que se tratava de um fragmento do discurso. Pode ser encontrado em
http://www.chiefseattle.com/history/chiefseattle/speech/speech.htm. Não é possível
se saber realmente o que dizia o discurso original. (N. do T.)

- 72 -
VIII. A Falácia do Anarquismo

acordo sobre a divisão do espólio. “Honra entre ladrões” revela que uma
base moral continua sendo indispensável.

Para análise, é necessário separar os sucessivos estágios culturais que


utilizam diferentes modos de conversão de energia. É conveniente
chamar o passo imediatamente acima da selvageria de barbarismo. A
cultura bárbara, embora ainda nômade, possui rebanhos. É nesse estágio
que surge a necessidade de algum tipo de governo, com a extensão das
relações humanas no tempo e no espaço. Quando o problema é colocado
nestes termos, podemos pensar que os hábitos errantes dos selvagens
levam a uma relação espacial. Ao contrário, esses hábitos evidenciam a
falta dessa relação, porque nada é deixado para trás. As relações morais
entre indivíduos adultos e as relações de grupo dadas pela economia são
resolvidas imediatamente. Dois homens que desejam brigar podem lutar
ali mesmo; o espaço entra na questão apenas como uma possibilidade de
fuga. Maridos e mulheres que não conseguem concordar podem se
separar e tomar novos parceiros. Não há como conservar os alimentos,
então estes devem ser consumidos de uma vez e, portanto, serão
divididos. Não se conhece o tipo de acordo que precisaria ser executado
à distância. A relação moral dos selvagens se estende de fato no tempo,
como a que afeta pais e filhos; mas o instinto governa essa relação,
exceto em casos extremos. Quando o ônus dos idosos se torna
impossível de administrar em bases naturais, os velhos são abandonados
para morrer. Portanto, a idéia de posse, na vida selvagem, é vaga e
pragmática. Artigos pessoais estão de posse de quem os usa. O uso do
território é elástico. Em outros casos, “quem chega primeiro é atendido
primeiro” e “achado não é roubado” funcionam como regras. Na caçada,
quem vê a caça tem o direito de matá-la. Quem está ausente não pode
reclamar.

Mas a pecuária, mesmo que não seja mais que tanger os animais em
pastos selvagens, envolve uma relação de espaço-tempo entre seres
humanos. Toda propriedade é um direito que se estende no tempo. É
necessário vigiar os animais; eles não podem ser mortos nem o produto
consumido, exceto por seu dono. O fator espaço-tempo é, da mesma
maneira, introduzido pela agricultura primitiva, entre o plantio e a
colheita, impondo um direito sobre lotes de terra e sementes a serem
conservadas. Portanto, os bárbaros concedem poder positivo a seu chefe;
sua palavra tinha de ser imposta, não imediatamente, mas à distância,
enquanto estivesse de acordo com os costumes e os direitos de
propriedade.

Para evitar uma quebra de autoridade, ou seja, na relação temporal,


surgiu o princípio hereditário. Suas variações curiosas, como sucessão

- 73 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

matrilinear e, em alguns lugares, legado ao filho mais novo em vez do


mais velho (“borough English”), são o que pode ser chamado de
dispositivos de engenharia para engrenar o sistema no menor espaço e
distância pela conexão física obviamente existente. O parentesco de uma
criança com sua mãe é incontestável; e o filho mais novo ainda estaria
em casa quando os mais velhos saíssem e se tornassem independentes.
Em qualquer dos casos, a força obedece à sanção moral.

Entretanto, o sistema hereditário não pode ser invariável; a natureza


outra vez proíbe essa determinação.8 A sucessão pode falhar ou, se recair
em um infante, torna-se temporariamente ineficaz e sujeita a ser
questionada. Para essas emergências, algum recurso que lembre a
escolha eletiva deve ser postulado. Mesmo com a dinastia “divina” do
Japão medieval, embora o trono fosse reservado para uma linha de
descendência, o princípio foi obscurecido porque a monogamia era
costume; e por costume o imperador abdicava depois de um reinado
curto e nominal, quando um novo monarca era escolhido pelos grandes
nobres dentre alguns candidatos de sangue real. No Império Otomano, a
morte do Sultão significava uma súbita tomada de poder por qualquer de
seus descendentes ou parentes que tivesse apoio suficiente; então, o novo
Sultão prontamente exterminava todos os outros pretendentes,
assassinando seus irmãos, sobrinhos e tios imediatamente. Não há nada
de novo nos “expurgos de sangue” dos rivais pelos ditadores modernos.
Sempre que não se tem meios legítimos de sucessão política, esses
expurgos acabam ocorrendo. E a forma do voto não é suficiente; se a
energia da nação foi corrompida de maneira que as eleições são
controladas de cima, compradas com o dinheiro dos impostos, esse
recurso à violência logo será adotado.

Uma vez que o princípio eletivo existe na natureza das coisas, sendo a
base da monarquia, sempre que a monarquia se torna opressiva demais, o
princípio eletivo é evocado. O que quer que seja que faz os reis pode
desfazê-los. Na Europa, embora a monarquia feudal fosse o costume
prevalecente por mil anos e tivesse o suporte triplo do costume
consolidado, do comando militar e do padrão da sociedade baseada na
família, ainda assim a pretensão dos reis de governar por direito divino e
exercer o poder absoluto nunca foi admitida em teoria por nenhuma
nação, nem tolerada de fato por muito tempo sem franca rebelião. A
resistência era constante e, como último recurso, a resposta era o
assassinato. E este é uma refutação genuína à transgressão real em seus

8
Quando se argumentou que o bem do reinado exigia que Henrique VIII se desfizesse
de sua rainha e se casasse novamente para gerar um filho que herdasse o trono, um
opositor perguntou: “Quem prometeu a ele um filho?” (N. da A.)

- 74 -
VIII. A Falácia do Anarquismo

próprios termos, não menos lógico que o regicídio por deliberação legal
que indicia o rei por traição. Em teoria, o nobre (como chefe de família)
era nobre por status, tendo nascido nessa condição; o rei era rei apenas
por contrato, “o primeiro entre seus pares”. O juramento de fidelidade,
renovado para cada rei, é um contrato. O gravame da acusação de traição
contra um rei é que ele ultrapassou sua atribuição ou justa autoridade por
força usurpada. E, em termos de físicos, um homem é aproximadamente
tão forte quanto qualquer outro. Assim, a verdade inicial é novamente
exposta sempre que um cidadão ou súdito é suficientemente resoluto; a
força não pode impor a obediência na ordem social. O que ela pode
provocar é a morte, seja do súdito, seja do rei.

Quando o assassino é mentalmente sadio e age por causa de um


descontentamento estritamente político, o assassinato é um sintoma de
um grave defeito no mecanismo, uma conexão relativamente fraca, ou
um ponto de pressão desproporcional, onde ocorre uma ruptura. Em
termos de mecanismo, ele para a máquina até que a peça quebrada seja
substituída; mas não institui e não pode instituir um tipo melhor de
mecanismo. Num dado momento, o governo deixa de existir e tem de ser
retomado por um ato moral, a aceitação do novo governante. Tais
quebras repetidas naturalmente enfraquecem a sanção moral. Mas,
também nisso, evidenciam a relação do governo com a força. Um súdito
morto deixa de ser súdito; e um rei morto deixa de ser rei. Quando a
força é o árbitro, o governo cessa.

É assim por causa da natureza intrínseca do mecanismo político, que é e


deve ser o mesmo, seja qual for a forma. O governo é um instrumento
de negação, e nada mais. Quando o governo começa a depender da força
ou da intimidação, se os vários fatores envolvidos puderem ser
conhecidos com exatidão e expressos numa equação matemática
relacionada com o aumento da força, a soma informaria o tempo restante
antes que o governo ou a nação ou ambos ruíssem. O evento dependerá
do volume de energia em uso para produção e do tipo de governo
imposto, no que se refere à estrutura, mecanismo e peso morto. Se a
energia é suficiente para esmagar a estrutura e o mecanismo, isso
acontecerá (por meio de guerra, guerra civil, revolução). A menos que a
liberdade seja recuperada, o modo de conversão de energia decairá para
um nível mais baixo e a população, pela guerra e pela fome, será
reduzida a uma quantidade menor, que pode subsistir naquele nível. Esse
processo está ocorrendo agora na Europa. A causa primária foi a
introdução de um alto potencial de energia — o desenvolvimento
industrial — na Alemanha, quando a forma política não podia acomodá-
lo. Enquanto a indústria ganhava velocidade, durante o século dezenove,
as mudanças políticas foram na direção contrária, mais e mais poder se

- 75 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

acumulando no governo sob medidas “socializantes”. A explosão


presente é o resultado.

Uma tentativa de retornar a um tipo de associação adequado a um


potencial mais baixo de energia vai resultar nisso. O método de
aconselhamento informal é adequado a uma sociedade nômade
selvagem. Em tais condições, a falta de estabilidade do chefe é salutar.
Uma escolha infeliz tem conserto rapidamente. A liderança é obrigada a
se justificar diariamente. Numa sociedade assentada e produtiva, a
liderança é completamente impraticável, porque a continuidade é
necessária, com o fator espaço-tempo na economia. Os dois não podem
existir juntos, porque foi perdida a característica essencial da liderança, a
deposição sem derramamento de sangue do líder pelo abandono de seus
seguidores. Com instituições permanentes, a forma de governo deve
incluir mandatos estáveis; isso não significa pessoas irremovíveis, mas o
contrário; significa a mudança legítima das pessoas em cargos com
poderes definidos. Quando se experimenta a “liderança”, em vez disso, o
que pode ocorrer é uma manifestação degenerada e temporária, o
governo da popularidade, pelo qual as instituições permanentes são
subvertidas para tornar o líder irremovível. As características de ambos
são assim negadas, cancelando-se o elemento moral, como se evidencia
pelo fato de o líder negar suas próprias credenciais por meio do recurso
imediato à força e à intimidação.

Em termos de mecanismo, o controle é desconectado com o motor ainda


funcionando. A conseqüência é a colisão externa e o rompimento
interno, mais ou menos simultaneamente. Um regime de popularidade é
eficaz para começar uma guerra; e tem de fazer isso. Se a energia e o
mecanismo engatado são os de uma sociedade produtiva com uma
capacidade excedente considerável, o regime provavelmente parecerá
inicialmente estar tendo um enorme sucesso na agressão, a marcha de
um Alexandre ou de um Napoleão, para terminar se desintegrando em
guerra civil e possivelmente com a sujeição a uma potência estrangeira.
As duas coisas são diferentes aspectos do mesmo fenômeno físico, da
massa deslocada se espatifando pela quantidade de movimento,
esmagando qualquer coisa que esteja em seu caminho enquanto se
despedaça por causa de seu próprio peso e impacto. O império
napoleônico foi essa trilha de destruição.9 Um século antes, Luís XIV
preparou o rastilho de pólvora para ela. Seu ministro Colbert estimulou a
indústria sob monopólio, o que permitiu que Luís reduzisse a ordem

9
Como parte dessa destruição foi de instituições obstrutivas e obsoletas, não se
percebia que ela era aleatória, embora certamente fosse. Milhões de pessoas também
foram destruídas, em pilhas dilaceradas. (N. da A.)

- 76 -
VIII. A Falácia do Anarquismo

aristocrática à impotência e transferisse o mecanismo de governo a uma


burocracia. Assim, a antiga estrutura da França foi tornada obsoleta, mas
continuou como um peso morto e manteve a nação mais ou menos
estacionária, frustrando os esforços de Luís de colocar a massa em
movimento por meio de suas guerras. Em seguida, quando o peso morto
(que infelizmente não tinha outro objetivo) foi jogado fora — ou seja, a
aristocracia foi formalmente despojada de seus privilégios — a energia
acumulada foi liberada e intensificada pela proclamação de liberdade e
igualdade. Mas essa energia torrencial foi jogada numa sociedade que
não entendeu a relação entre o mecanismo e a base. O próprio Napoleão
era pouco mais que um testa-de-ferro lançado na frente da massa em
movimento. A energia dilacerou a nação, arremessou fragmentos dela
em cada canto da Europa na forma de exércitos e só se apaziguou por
desintegração e inércia. Napoleão foi o primeiro dos “líderes” modernos.
O que um potencial realmente elevado pode fazer nessa linha é
dolorosamente evidente.

Quando a palavra líder10, ou liderança, retorna ao uso corrente, ela


implica em uma recaída no barbarismo. Para um povo civilizado, é a
palavra mais agourenta em qualquer idioma.

10
Em alemão, Führer. Em italiano, duce. (N. do T.)

- 77 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 78 -
IX. A Função do Governo

U
ma vez que governo e poder sempre foram mais ou menos
sinônimos, e “política da máquina” é uma expressão popular, é
curioso que a agência política nunca tenha sido rigorosamente
examinada a essa luz, como um problema específico de engenharia.
Quando a energia é usada num mecanismo, o resultado deve estar de
acordo com o tipo de máquina. A fonte da energia pode ser conhecida; a
natureza do mecanismo é facilmente descoberta em sua ação; e é
absurdo esperar qualquer outra ação além daquela da qual as peças
combinadas são capazes. Mesmo que um dispositivo pare
completamente de funcionar ou cause apenas destruição, as leis da
energia e do mecanismo não se alteram nem variam; o defeito está no
aparelho. Mas isso ainda não foi plenamente entendido com relação aos
assuntos humanos, por diversas razões implícitas no desenvolvimento da
inteligência humana.

Primeiro, a energia é um fenômeno natural. No estágio de associação


humana no qual a opera apenas por meio das unidades e modos de
conversão encontrados na natureza, a energia não necessita de uma
definição abstrata.

Segundo, em engenharia mecânica, que trabalha com objetos


inanimados, a primeira consideração é tão óbvia que não precisa ser
postulada ou receber um valor separado no cálculo consciente. É o fator
da base subjacente. A base de todos os mecanismos é a terra física. O
engenheiro só precisa escolher um local, nivelá-lo ou solidificá-lo para
permitir que o mecanismo repouse sobre ele e, evidentemente, precisa
equilibrar, pesar ou fixar sua máquina para que ela não tombe. Mas ele
sabe que o chão está lá; todos os seus cálculos levam esse fator em
consideração como um componente distribuído; massa, peso, extensão,
tensões, volume são medidas estabelecidas a partir da base.

Terceiro, na engenharia mecânica, que é confinada a condições


materiais, a fonte da energia é determinada; uma unidade pode ser
estabelecida e a transmissão e a carga ajustadas ao fluxo. Cada fator
pode ser medido.

Por último, o ponto mais importante, porque ele obscurece a natureza do


governo: a física não tem um nome para a função exata que é
delegada ao governo. É algo que não existe em nenhuma manifestação
de energia por meio de materiais inanimados. É peculiar às criaturas

- 79 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

vivas. A energia é pré-existente no universo e não pode ser criada a


partir do nada; mas, num circuito de energia específico, é possível
determinar um ponto aproximado através do qual uma porção da energia
universal é introduzida no circuito; esse é o dínamo, gerador, conversor
ou motor. Na organização social, o homem é o dínamo, em sua
capacidade produtiva. O governo é um aparelho-fim e um beco sem
saída no que se refere à energia que usa. Em princípio, um mecanismo
composto de material inanimado, que utiliza energia, é completamente
calculável. Um motor de certa potência vai propelir determinada carga a
um determinado gradiente; se a energia for cortada, a massa e a
quantidade de movimento vão determinar seu ponto de parada, ou um
obstáculo de determinada resistência vai pará-lo. Nenhuma previsão
semelhante pode ser feita sobre as ações de um ser humano funcionando
assim. É verdade que sua força muscular pode ser medida; mas enquanto
ele se move com suas próprias forças, não é possível medir nem prever o
que o fará iniciar um movimento, parar, virar ou acelerar. Tudo isso
depende do que ele pensa; um fator não mensurável.

O ser humano tem uma faculdade para a qual não existe equivalente nos
processos da natureza inanimada. Ele inicia a si mesmo e pode inibir a
si mesmo.

A energia é o meio no qual a vida existe. Um bebê é capaz de mover


seus membros e absorver alimentação (combustível) desde quando
nasce; cresce em atividade espontânea instintiva e ganha o controle
necessário simultaneamente. Assim, “na natureza”, a energia, o
mecanismo e o controle parecem ser uma coisa só e o indivíduo pode
funcionar sem defini-los separadamente ou de maneira abstrata. As
relações sociais e econômicas dos selvagens também não precisam de
tais distinções. Contatos externos fazem funcionar esses diversos fatores
como se eles fossem um único. A necessidade é imediata; praticamente
não existem conseqüências posteriores, até onde o selvagem pode
perceber. Já que não pode guardar provisões para o futuro, é prudente se
fartar quando existe abundância de comida e, assim, armazenar alguma
energia em seu corpo. Se encontrar um urso pardo ou brigar com um de
seus companheiros, deve tomar a decisão imediata entre lutar ou fugir.
Executa sua própria justiça, se houver uma, individualmente ou por um
comitê do grupo. Se tiver algum tipo de abrigo, tem de carregá-lo
consigo. Nessas questões, está lidando com causa e efeito, que são
fatores da engenharia; mas não incluem transações no espaço e no
tempo. Por outro lado, em suas relações pessoais, mesmo um selvagem
reconhecerá que intenções, até certo ponto, qualificam a resposta ou a
retaliação apropriada. Uma intenção é um imponderável; pertence a uma
ordem não matemática de abstrações. Assim, embora seja uma

- 80 -
IX. A Função do Governo

consideração adequada nas relações humanas, ela certamente retarda a


formulação dos princípios da física ou da engenharia. A falta dessa
distinção é a principal diferença entre o pensamento primitivo e o
científico; e é uma explicação suficiente para a origem da crença em
magia. Uma vez que é possível a uma pessoa dissuadir outra ou
convencê-la a agir usando apenas palavras, não é totalmente irracional,
embora seja um erro, imaginar que as feras, os objetos, as doenças ou o
tempo possam ser influenciados por uma abordagem semelhante. Essa
suposição infeliz está quase inextricavelmente embutida nos hábitos
mentais da humanidade. A ciência começa por bani-la do campo em que
ela é irrelevante. A ciência percebe que os objetos inanimados não
ouvem o que é dito a eles, nem se importam com intenções. Ainda
assim, o nome da ciência tem sido usado para levar esse erro um passo
além, numa seqüência em que sua falsidade é ainda mais sutil e mais
difícil de erradicar, com a proposição de que o homem não é mais que
um mecanismo físico; e, já que pode ser induzido a liberar sua energia
por palavras ou compulsão, deve responder infalivelmente segundo uma
fórmula se for previamente “condicionado”, como a máquina responde
aos controles. O que se negligencia é o fato de que, mesmo se
considerado um mecanismo, o homem é uma máquina genuinamente
automática, iniciando-se por conta própria e agindo por conta própria.
Nenhum mecanismo inanimado pode ser automático dessa maneira.

O homem é assim por virtude da iniciativa e da faculdade inibitória. A


iniciativa é a própria vida. A inibição completa é a morte. Porém, uma
criatura viva incapaz de inibir a si mesma rapidamente se destruiria.

Como visto, as inibições requeridas pela vida selvagem funcionam


diretamente, assim como o resultado da iniciativa retorna diretamente ao
indivíduo. O caçador faz uma arma para usar, mantém essa arma em sua
posse, come a caça que mata; sua mulher transforma a pele em roupas.
Na civilização, os processos para conseguir comida e abrigo são
prolongados. Leva pelo menos um ano de antevisão para cultivar o solo
e colher a produção; os grãos precisam ir ao moinho, as peles ao
curtidor, os têxteis ao tecelão, antes que possam ser usados. Quando um
homem civilizado constrói uma casa, o projeto precisa ser criado e os
materiais reunidos por um período considerável. Essas coisas são pagas
com economias que envolvem a troca de trabalho com muitas outras
pessoas. Ele deve, portanto, impor restrições a si mesmo por causa de
objetivos distantes no tempo e que precisam ser dirigidos através do
espaço. Ele vive no passado e no futuro tanto quanto no presente. Sua
iniciativa será perdida, a menos que iniba a si mesmo; e, além disso, ele
precisa poder contar com outras pessoas que participam da troca, e que
também devem observar inibições de longo prazo. Num estágio ainda

- 81 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

inicial do comércio, torna-se inconveniente depender do escambo de


bens entre proprietários. Com objetos de valor desigual, ou numa série
de trocas, ou no caso de entregas em momentos diferentes, faz-se
necessário um meio de valor: o dinheiro. E, ao longo da série, uma
sucessão de inibições deve ser seguida; de outra maneira, em algum
ponto os bens seriam consumidos e não haveria retorno. O circuito de
energia seria rompido.

É por isso que os selvagens não precisam de um governo formal,


enquanto ele é necessário à civilização. Para uma economia civilizada,
que consiste em produção e trocas numa seqüência que se estende no
tempo e no espaço, deve haver uma agência para servir de testemunha
dos contratos de longo prazo. Essa agência deve garantir que os
contratos sejam cumpridos na ausência de uma das partes ou impor uma
penalidade previamente acordada em caso de descumprimento. A
autoridade apropriada para esse propósito é, portanto, delegada ao
governo.

Como a palavra indica, a faculdade inibitória é uma função do indivíduo;


falando estritamente, não pode ser delegada. Nenhuma faculdade pode
ser delegada. Um homem pode conceder o produto de seu trabalho e
talento a outro voluntariamente; um homem pode tomar o produto de
outro por força ou fraude; ou os homens podem comercializar seu
trabalho e seus produtos. Mas um homem não pode transferir sua força
ou inteligência para a estrutura física de outro homem. O que pode ser
feito, no caso em que um indivíduo não iniba a si mesmo conforme
havia concordado em fazer, ou se ele infringe a liberdade ou toma a
propriedade de outro, é obrigá-lo a uma pagar uma multa ou impor
restrições externas; e agentes públicos podem ser encarregados por
autoridade delegada de executar a cobrança. Pelos mesmos meios, esses
agentes podem tomar parte de sua produção, em impostos, para sustentá-
los e pagar as despesas de sua organização. É isso o que faz o governo e
é tudo o que ele pode fazer. O governo é uma agência proibidora e
expropriadora. Seu tipo de mecanismo necessariamente corresponde a
sua função.

Se o processo completo não for levado em consideração, é possível


imaginar erroneamente exceções à afirmação acima. A citação a seguir é
uma exposição clara e concisa do ponto em que ocorre o mal-entendido.
“O regulador de uma máquina a vapor não é meramente um mecanismo
proibitório, mas comanda mais vapor quando necessário; e os vários
controles elétricos funcionam da mesma maneira; por que o governo

- 82 -
IX. A Função do Governo

político não pode funcionar assim? A expedição de Lewis e Clark 1 e


outras expedições exploratórias patrocinadas por governos no oeste não
foram ações proibitórias. O papel que o governo desempenhou no
desenvolvimento das terras públicas do oeste não foi meramente
proibitório.”

Quando o regulador de uma máquina a vapor comanda mais vapor,


obviamente o vapor (energia) precisa estar lá para ser comandado; e foi
previamente confinado. A função do regulador não é obter o vapor, ou
seja, produzir a energia. Como mecanismo, ele é um instrumento de
liberação, o que implica em uma restrição prévia. Um mecanismo
proibitório pode ser feito de tal maneira que posteriormente ele deixe de
proibir; um freio pode ser desacionado depois que foi acionado, ou ter
efeito apenas quando alguma força se levante contra ele, de maneira que
a pressão ceda quando a força diminuir. A lei do contrato é um freio
desse tipo, que se ajusta automaticamente. Mas a função do freio é, de
toda maneira, proibitória. Num mecanismo simples desse tipo, não pode
ser atribuída uma “função” à cessação da função. O regulador da
máquina a vapor, ou o controle elétrico, são diferentes; a confusão
procede do nome “regulador”2. Se esse termo for usado, a definição
exata de sua função é que ele governa o governo; ele coloca uma
limitação no governo. Numa organização política, essa função é
realizada por uma constituição, que estabelece um limite além do qual o
governo não tem poder legítimo.

Para averiguar qual a ação do governo numa seqüência de ações como a


da expedição de Lewis e Clark, consideremos todos os fatores e
condições. A terra virgem estava lá, na ordem da natureza. Muitos
indivíduos privados haviam explorado boa parte dela. O conhecimento e
a habilidade dos dois exploradores citados foram desenvolvidos por eles
mesmos. Por que eles foram até o governo antes de fazer sua expedição?

1
A expedição de Lewis e Clark foi a primeira expedição americana a cruzar o que é
hoje a porção oeste dos Estados Unidos. Foi comissionada pelo presidente Thomas
Jefferson logo após a Compra da Louisiana, ocorrida em 1803. Composta por um
grupo de voluntários do Exército americano, foi comandada pelo capitão Meriwether
Lewis e pelo segundo-tenente William Clark. A missão partiu de St. Louis, às margens
do rio Mississipi, em maio de 1804 e retornou em setembro de 1806. O objetivo
principal era explorar e mapear o território recém-adquirido, encontrar uma rota
viável que cruzasse a metade oeste do continente e estabelecer a presença americana
nessa área, antes que a Grã-Bretanha e outras potências européias reivindicassem
essas terras. Os objetivos secundários eram científicos e econômicos: estudar as
plantas, animais e a geografia da região e estabelecer comércio com as tribos
indígenas. (N. do T.)
2
Em inglês, governor, governador. Dispositivo que regula a velocidade de uma
máquina. (N. do T.)

- 83 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Para obter fundos e um comissionamento oficial. O que o governo fez e


que Lewis e Clark não podiam fazer? Expropriar fundos de outras
pessoas privadas, pelos impostos. Os suprimentos para a expedição
vieram da produção privada. A ação do governo foi meramente
expropriadora. O comissionamento oficial foi o aviso preliminar de que
haveria uma reivindicação proibitória do território que a expedição
atravessasse. Outros indivíduos privados foram até lá depois, às suas
próprias custas, e fizeram o trabalho de tornar aquela terra cultivável. O
governo exerceu sua função proibitória para registrar e impor os termos
pelos quais um indivíduo poderia obter títulos de propriedade de
qualquer parte da terra. Foi para esse propósito que a função proibitória
foi delegada ao governo em primeiro lugar, para estabelecer títulos de
registro; mas é um poder proibitório e nada mais. Sua “concessão” é uma
liberação carimbada. Em qualquer tempo e lugar em que o governo
intervém em uma seqüência de ações, ele o faz com um ato autorizado
de proibição ou expropriação. Qualquer outra coisa que ele “faça” é
simplesmente um ato de liberação, uma cessação de função. Essa é a sua
natureza, essa é sua função, esse é seu tipo de mecanismo. Isso não é
menos verdade se dizemos que “o governo constrói uma represa”, ou
qualquer outra obra. O governo expropria recursos e contrata pessoas
para fazer o trabalho. A ação peculiar do governo é o ato de
expropriação.3 Pessoas privadas podem construir represas e de fato o
fazem. Mas não podem expropriar fundos. Governos despóticos, como o
do Egito de quando as pirâmides foram construídas, expropriam a
energia na fonte, pela compulsão de pessoas, ou seja, pelo trabalho
forçado.

Onde vários fatores operam numa seqüência de ações, a função de cada


um só pode ser definida por eliminação. Aquela que invariavelmente
ocorre quando um dado fator está presente e não ocorre em sua falta

3
A agência dos correios é normalmente apontada como o melhor exemplo de
empreendimento governamental; mas o serviço postal depende inteiramente dos
meios de transporte inventados e operados pela iniciativa privada. É a forma mais
simples de negócio que se pode imaginar, pura rotina; mesmo assim, apesar do
monopólio estatal, sempre opera no vermelho; e as nomeações lucrativas ocorrem
por favorecimento partidário, o maior de todos os empregos sendo concedido a um
homem cujo tempo é ocupado principalmente com a obtenção de votos. Boas
estradas existem apenas por causa do progresso da iniciativa privada em materiais e
maquinário. O abastecimento de água das cidades foi fornecido originalmente pela
iniciativa privada e expropriado pelo governo. Por séculos, o governo promoveu a
doença, o desconforto e a melancolia com impostos sobre janelas, impostos sobre
lareiras, impostos sobre o sal. A iniciativa privada cavou o Canal de Suez e forneceu o
maquinário, o conhecimento e a habilidade para cavar o Canal do Panamá. Sempre e
em toda parte, o progresso aconteceu exclusivamente por invenção, iniciativa,
trabalho e poupança privados, e na razão inversa da extensão do governo. (N. da A.)

- 84 -
IX. A Função do Governo

deve ser sua função. Examinemos qualquer seqüência de ações em que o


governo esteja envolvido. A primeira coisa que o governo faz e deve
fazer é emitir um decreto ou aprovar uma lei. Nenhum decreto ou lei
pode conceder a um indivíduo uma faculdade que a natureza tenha
negado a ele. Uma ordem governamental não pode consertar uma perna
quebrada, mas pode comandar a mutilação de um corpo sadio. Não pode
conferir inteligência a alguém, mas pode proibir o uso da inteligência.
Qual a primeira provisão para pôr uma lei em vigor? Deve haver uma
“cláusula habilitante”, e uma cláusula habilitante é aquela que toma
posse de valores ou materiais de impostos pagos com recursos privados,
em dinheiro, em gênero ou em trabalho. Uma pessoa privada que toma
os bens de outra é um criminoso; essa ação é reservada ao governo. Da
mesma maneira, o governo, por seu poder judiciário, pode julgar pessoas
acusadas de crimes capitais e fazê-las morrer. Faz parte dos poderes
físicos dos indivíduos matarem uns aos outros; mas não se considera que
ninguém tenha esse direito, a menos que seja em legítima defesa (da qual
se considera que a vingança seja uma extensão). Uma vez que um
homem não pode ser juiz em causa própria, considera-se adequado
delegar a autoridade de vingança e, na medida do possível, de ajuda na
autodefesa. Esse é o poder de morte. O poder de vida não pode ser
delegado. O governo, portanto, é apenas um instrumento ou mecanismo
de apropriação, proibição, compulsão e extinção; na natureza das coisas,
não pode ser outra coisa, e não pode funcionar para outra finalidade.

Sua exata definição em ação mostra o quanto era acurada a frase “um
mal necessário”. Visto sob essa luz, o governo é tão horrível — e suas
reais operações no passado foram, às vezes, tão terríveis — que é
compreensível que não se perceba que ele é necessário. Mas isso
também tem de ser reconhecido, para descobrirmos sua extensão. O
governo certamente é necessário para relações econômicas no espaço e
no tempo; essa necessidade é derivada da necessidade da faculdade
inibitória no indivíduo. Mas o erro básico da premissa autoritária ou
estatista consiste em fazer essas necessidades públicas e privadas
coextensivas. O governo é um requisito marginal, necessário apenas
quando a faculdade inibitória do indivíduo não é exercida de acordo com
o consenso e o direito natural (ou seja, liberdade). Além desse mínimo
infinitesimal, o governo é uma entronização da paralisia e da morte.
Vem daí a perversão da lógica que afirma que o cidadão existe apenas
“para o estado” e não tem o direito individual à vida. Na verdade, a vida
só pode existir por seu próprio direito; ou seja, é ridiculamente fútil para
o estado (ou para quem quer que seja) ordenar a um homem que viva, se
suas faculdades estiverem em falência; nem pode uma vida ser criada
por uma ordem. O processo criativo não funciona por meio de ordens.
Mas é possível ordenar a morte. Assim, o governo é secundário,

- 85 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

instituído por acordo; a vida, que pertence ao indivíduo, é primária. O


governo é um agente, não uma entidade.

Isto tem de ser reafirmado, porque o significado da afirmação de que os


direitos à vida e à liberdade são inalienáveis foi esquecido ou
deliberadamente obscurecido. Pessoas que não tem o costume de
vincular significados exatos às palavras dirão que o fato de que um
homem pode ser injustamente executado ou aprisionado contradiz essa
proposição. Não contradiz. O direito está com a vítima da mesma forma
e, de maneira completamente literal, não pode ser alienado, porque
alienar significa passar para a posse de outro. Um homem não pode
desfrutar nem da vida nem da liberdade de outro. Se matar dez homens,
não vai viver dez vidas nem dez vezes mais tempo, em conseqüência
disso; nem será mais livre se colocar outro homem na prisão. Os direitos
são por definição inalienáveis; somente privilégios podem ser
transferidos. Mesmo o direito de possuir bens não pode ser alienado ou
transferido, embora um dado bem possa ser. Se os direitos de um homem
são desrespeitados, nenhum outro homem os obtém; ao contrário, todos
os homens são, por conseqüência, ameaçados com a mesma injustiça.

Não existe bem coletivo. De maneira estrita, não existe nem mesmo um
bem comum. Existem, na ordem natural, materiais e condições com os
quais o indivíduo é capaz de experimentar o bem, usando sua vontade e
suas faculdades receptivas e criativas. Perguntemos: a luz do sol não é
um bem comum? Não; as pessoas não desfrutam do benefício pela
comunidade, mas individualmente. Um homem cego não pode enxergar
pela comunidade. O mesmo grau de exposição solar pode causar
insolação a uma pessoa, enquanto é benéfico para outra; embora, para
sermos precisos, não será o mesmo raio de luz solar que cairá sobre
ambos. Alexandre, o Grande, com o poder do império a seu comando,
perguntou a Diógenes: “Há alguma coisa que eu possa fazer por você?”
Diógenes respondeu: “Você pode dar um passo para o lado e parar de me
fazer sombra.” O homem, como indivíduo, é capaz de experimentar e
infligir tanto o bem como o mal, desde que tenha escolha. E também terá
a responsabilidade por seus erros de julgamento. Permitindo a
possibilidade do erro, o bem é obtido pela recepção e domínio das forças
da natureza, e por meio da associação voluntária de indivíduos por livre
escolha. Mas mesmo nessas relações voluntárias entre indivíduos, é
possível que uma pessoa tenha prazer enquanto outra experimenta dor;
não há uma soma coletiva ou uma equação do bem. “O maior bem para o
maior número” é uma frase viciosa; não existe uma unidade do bem que,
por adição ou multiplicação, possa constituir uma soma de bem a ser
dividida pelo número de pessoas. Jeremy Bentham, tendo adotado a
frase, passou o resto de sua vida tentando extrair algum significado de

- 86 -
IX. A Função do Governo

suas próprias palavras. Ele vagueia por imbecilidades quase


inacreditáveis, sem nunca perceber por que elas não podem significar
nada. Se dez homens gostam de jogar damas e apenas um aprecia uma
sinfonia, qual é o maior bem na soma? E se fosse necessária uma escolha
do que seria feito e fosse possível provar que a sinfonia seria onze vezes
“melhor” que as damas, o que fazer? O resultado seria ou o maior bem
para o menor número ou o menor bem para o maior número. Em
qualquer caso, é impossível esconder o fato de que o bem é feito apenas
para indivíduos (o “número” trai essa verdade, porque é o número de
pessoas); mas se admitirmos que o bem de uma pessoa compensa o
sofrimento de outra, isso é monstruoso. Justificaria torturas abomináveis
de uma minoria se a maioria afirmasse se beneficiar delas; se o “bem” é
quantitativo e forma um total por maioria, não pode haver juiz do que é
bom, exceto a maioria. Essa regra é, de fato, a justificativa alegada pelos
nazistas para o extermínio dos judeus e pelos comunistas russos para o
assassinato brutal dos membros mais produtivos da população. Ambos
agiram segundo a mesma teoria.

O fato de que não existe bem coletivo não contraria o fato de que o
homem tem relações sociais e naturais, que também são de ordem
espiritual. E é a expressão dessa possibilidade espiritual que a sociedade
coletivista proíbe. A sociedade cristã difere fundamentalmente das
formas anteriores de associação humana, sendo organizada para o pleno
desenvolvimento da personalidade. A clivagem é mais evidente na
instituição do casamento. No regime cristão, um casamento válido pode
ser feito pelo consentimento das duas partes e não pode ser feito sem ele;
não pode ser anulado pelos pais, guardiães ou pela comunidade, contra a
vontade do casal, porque cada pessoa nasce com o direito à sua própria
vida. E a autoridade paterna, na sociedade cristã, não pode se estender ao
poder de morte ou dano real aos filhos; é apenas coextensiva à
necessidade de criação e educação, originando-se da relação natural e da
obrigação moral assumida voluntariamente no casamento. Os direitos e
obrigações naturais, os direitos e responsabilidades pessoais, a vontade e
o senso moral são inseparáveis.

Em sociedades coletivistas primitivas, os pais têm o poder de morte


sobre seus filhos. Em reversões modernas a essa regra antinatural, o
mesmo poder é concedido ao estado. No Japão, a sociedade coletiva
absoluta, a família tem o poder de forçar os jovens ao casamento; e, na
verdade, lá não existe outra maneira. Não existe reconhecimento legal de
um casamento se não for assim. Além disso, divórcios podem ser
determinados e impostos pela família. Isso pode ocorrer simplesmente
porque os dois jovens começaram a gostar um do outro. Sua afeição
pessoal era considerada prejudicial ao interesse coletivo do clã.

- 87 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Significativamente, essa característica do coletivismo reapareceu


espontaneamente a partir do mesmo princípio, na Comunidade Oneida 4,
nos Estados Unidos. Para impedir o “egoísmo”, a promiscuidade era
praticada e, se dois jovens desenvolvessem uma forte afeição mútua, o
que era chamado de “amor especial”, isso era denunciado como anti-
social; o jovem casal era separado e convencido a mudar de parceiros
freqüentemente. A idéia é tão revoltante que parece difícil de acreditar,
mas é o que era feito. O coletivismo sempre critica as afeições e relações
naturais e sugere deslocar o objeto das obrigações pessoais para a
“sociedade”. Promete divórcio fácil, apoio do Estado para cuidar das
crianças e os prazeres da promiscuidade; termina em escravidão e
violação da personalidade.

Então, como o homem tem a capacidade de fazer ou infligir o mal


deliberadamente, um dispositivo é usado para fazer com que a ação se
retraia sobre si mesma, na medida do possível. Deve ser ou uma barreira
estática, ou um mecanismo reativo, ou ambos — proibição e penalidade.
Esse poder se origina da coletividade e é encarnado no governo, que
deve agir segundo a lei.

A confusão a respeito da ação coletiva surge do poder inicial do homem


de fazer o mal e a conseqüente natureza da lei. Ao propor uma lei
qualquer, o proponente não percebe o que está fazendo, a menos que se
pergunte: “É minha intenção impor restrições ou infligir perda ou dor a
alguma pessoa, na contingência especificada?” Porque é isso o que a lei
fará. A pergunta que segue é: “A contingência surge da ação inicial
daquela pessoa infligindo injúria ou perda sobre outra pessoa, por
intenção ou negligência?” É um erro fundamental supor que uma lei
possa fazer algum bem e não prejudique ninguém. Se faz algum bem ou
não, uma lei imposta deve prejudicar alguém. A questão correta é se essa
pessoa colocou ou não o mecanismo em movimento ao prejudicar
outra pessoa anteriormente.

“A lei, em sua majestade, proíbe tanto o rico como o pobre de dormir


embaixo da ponte”, escreveu Anatole France. Mas isso é tudo o que a lei
pode fazer, a menos que decrete que tanto o rico como o pobre não

4
A Comunidade Oneida foi uma comuna religiosa fundada por John Humphrey Noyes
em 1848, na cidade de Oneida, Nova York. Seus membros acreditavam que Jesus
voltou no ano 70, possibilitando que eles estabelecessem seu reino milenar e
estivessem livres do pecado e fossem perfeitos neste mundo, e não apenas no Céu. A
Comunidade Oneida praticava a propriedade comunal, a poligamia e tentou uma
espécie de programa de eugenia chamado de estirpecultura. Começando com 87
membros, chegou a ter 306 em 1878. Foi dissolvida em 1881 e se transformou na
gigantesca empresa de prataria Oneida Limited. (N. do T.)

- 88 -
IX. A Função do Governo

podem dormir em nenhum outro lugar, ou devem dormir na cadeia. A


pobreza pode ser causada pela lei; não pode ser proibida pela lei. O que
se chama de legislação moral deve inevitavelmente aumentar o mal
alegado. A única maneira de impedir a prostituição completamente seria
aprisionar metade da raça humana; fora isso, a lei pode tomar uma
parcela dos ganhos da prostituta, com uma multa, e assim induzi-la a
ganhar mais e a pagar por “proteção”. O tráfico de drogas se torna
rentável pela proibição e, portanto, cresce. Os atos proibidos são aqueles
pelos quais as pessoas prejudicam somente a si mesmas; portanto, a lei
pode apenas prejudicá-las mais.

Por outro lado, leis que são projetadas para atuar no caso em que uma
pessoa prejudica outra voluntariamente não necessariamente conseguem
dissuadir o perpetrador de prosseguir em seu curso. Se a lei proíbe o
assassinato, ela pode não ser capaz de impedir completamente os
assassinatos, mas é razoável supor que deve ser um meio de intimidação.
A lei também pode exigir a restituição da propriedade roubada —
embora também tenha de executar uma ação de expropriação, ao cobrar
um imposto sobre a propriedade, para permitir que os ladrões sejam
punidos. Sua limitação é que ela deve funcionar sobre uma ação
exercendo uma ação semelhante, mal por mal. Esse é o poder da
coletividade e seu uso.

Mas devemos ter sempre em mente que o elemento constituinte do


governo não é a força; é a faculdade moral que decide e cria o
mecanismo pelo qual a força deve recair sobre si mesma. E a faculdade
moral está no indivíduo.

- 89 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 90 -
X. A Economia da Sociedade Livre

A
história dentro das nações consiste na luta do indivíduo contra o
governo; e, entre as nações, da economia livre contra a
economia fechada. São dois aspectos do mesmo processo. A
vida primitiva da humanidade é uma fase ímpar da história natural,
ocupada pelo esforço do homem em dominar seu ambiente, em vez de
simplesmente adaptar-se a ele. O uso do fogo, das armas de caça e a
domesticação de animais pertencem a esse tipo de esforço. Quando o
homem obteve sucesso nesses contatos diretos, o próximo passo foi
começar a mudar o ambiente, pelo cultivo do solo, pela construção de
abrigos permanentes e locais de armazenamento e, finalmente, pela
invenção de mecanismos para a conversão de energia; essas atividades
exigem organização no espaço-tempo, pela delegação de autoridade.
Mas como essa autoridade só pode ser proibitiva, o problema é manter
essa agência repressiva subordinada à faculdade criativa. A dificuldade é
enorme; é necessário um entendimento avançado dos princípios de
engenharia para a solução desse problema. Pela falta de opções,
desenvolveu-se o sistema de classes, uma ordem que aprisiona toda a
comunidade,1 obstrui a energia na fonte e a limita a um circuito local. O
pensamento original, portanto, torna-se um crime, porque liberta energia.
Mesmo numa cultura elevada que possua um sistema de classes, o
princípio repressivo mostra seu caráter ao impor a pena de morte contra
opiniões não autorizadas, chamadas de heresia ou traição.

Vemos esse sistema retornando hoje, primeiro gradativamente e depois


por ordens generalizadas que impedem o movimento de pessoas ou as
tangem para campos de concentração. Antes da guerra mundial de 1914,
essa condição medieval de aprisionamento geral havia sido praticamente
abandonada e meio esquecida em toda a parte, exceto na Rússia Czarista,
onde subsistia uma mistura de barbarismo, absolutismo e anarquia. As
nações mais civilizadas não exigiam passaportes, mas os emitiam a
pedido de seus cidadãos simplesmente porque poderiam ser exigidos
nessas regiões atrasadas. Os ventos reacionários em direção ao governo

1
Tão recentemente como no reino de Luís XIV na França, era aconselhável a um nobre
que estivesse na corte pedir permissão até mesmo para ir para sua propriedade,
porque corria o risco ser aprisionado pela vontade do rei, por tempo indeterminado,
sem acusação ou julgamento, por lettre de cachet. Ele também poderia ser proibido
de deixar sua propriedade ou de retornar a Paris. (N. da A.)

- 91 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

do status também se percebem pelo persistente descrédito da razão e pela


corrupção deliberada da linguagem, para impedir a comunicação.2

O mau uso da linguagem é o meio pelo qual o culto marxista do


comunismo causou o dano mais grave à inteligência. Existe um
obstáculo natural ao progresso no pensamento abstrato, que muitas vezes
atrasou a pesquisa racional: um conceito errôneo ou uma teoria errônea
podem ser expressos em termos que incorporam o erro, de maneira que o
pensamento fica bloqueado até que as palavras enganosas sejam
descartadas do contexto dado. A antiga classificação de terra, ar, fogo e
água como “elementos” era um erro desse tipo, que teve de ser
abandonado antes que os elementos pudessem ser identificados e
denominados como tais. A teoria dos elementos era uma especulação
correta e perspicaz; mas os fenômenos designados estavam errados. Por
outro lado, a noção dos quatro “humores” corporais é uma teoria errônea
que atrasou gravemente a ciência da medicina. De maneira semelhante, a
teoria cartesiana dos “vórtices” e a suposição da existência de um tipo de
essência do fogo ou do calor chamada “flogisto” foram obstáculos
verbais à extensão do conhecimento da física. São obsessões infelizes da
linguagem, que os mais agudos intelectos podem criar nas fronteiras do
desconhecido. Como não podem ser refutadas até que o conhecimento se
amplie e, ao mesmo tempo, tendem a impedir o avanço, essas teorias são
um obstáculo muito maior do que afirmações que são simples e
demonstravelmente falsas; porém, ocorrem pela própria natureza das
coisas e não são imunes à razão no longo prazo.

Mas a terminologia marxista reduz a expressão verbal ao nonsense literal


com base nos fatos e no uso. Não é uma linguagem obviamente
inarticulada, nem o nonsense humorístico que algumas vezes elucida
uma dificuldade intrínseca de expressão ou indica uma falha no
conhecimento. É um arranjo de palavras de acordo com as regras da
gramática, no qual cada palavra tomada em separado possui um
significado habitual. Mas, na seqüência dada na frase, o arranjo não
significa absolutamente nada. Por exemplo, afirmemos que: “Um
triângulo isósceles é verde.” As várias palavras são de uso comum e,
como partes de um discurso, estão colocadas numa ordem apropriada;
mas a afirmação completa é absurda. Isso já é suficientemente ruim, mas
seria bem pior se alguém falasse sobre a “redondeza do triângulo”. A
frase “ditadura do proletariado” é como a “redondeza do triângulo”, uma
contradição em termos. Não tem significado. A teoria do “materialismo
dialético” é um abuso dos termos do mesmo tipo que a afirmação de que

2
Isto foi escrito seis anos antes de George Orwell publicar 1984, em que apresenta os
termos “duplipensar” e “novilíngua”. (N. do T.)

- 92 -
X. A Economia da Sociedade Livre

um triângulo isósceles é verde. Ela postula uma sucessão inevitável de


uma tese produzindo seu oposto ou antítese e a abstração fissípara3
tornando a uni-las numa síntese. Como nada na natureza passa realmente
por tal transformação grotesca, debates sem fim e sem sentido podem ser
realizados sobre quais relações sociais exibem em várias fases uma tese,
antítese e síntese, cada uma supostamente “produzindo” seu “oposto” e
combinando-se novamente em outra coisa, como o Squidgicum Squee4
que engole a si mesmo. Tolos podem argumentar solenemente que um
triângulo isósceles não é verde, mas azul, ou que um triângulo isósceles
verde produzirá um círculo azul e os dois então se sintetizarão numa
vaca púrpura ou num rombóide; ainda assim, essas afirmações são
vazias. Essa é especificamente a linguagem dos tolos; porque a
deficiência que a palavra tolo indica é a incapacidade de entender
categorias e a relação das coisas e das qualidades.

Marx era um tolo com um vasto vocabulário de palavras longas. Mas ele
tinha de fato uma necessidade não reconhecida de adotar a “dialética”
ilógica de Hegel. Sendo um pedante parasita, inepto e desonesto, queria
fazer reivindicações contra a “sociedade” apenas como consumidor.
Abraçou o comunismo porque nenhuma outra teoria, nem mesmo no
papel, poderia prometer “a cada um de acordo com suas necessidades”.
Somente um suposto “estoque comum”, para o qual toda a produção
fosse expropriada, poderia ser imaginado como disponível para o não
produtor pegar dali o que quisesse. Mas isso é pura imaginação, o sonho
do incompetente e do vicioso ou da mente infantil virgem de produção.
Por outro lado, Marx foi confrontado com o fato histórico de que no
comunismo, como regra geral, a produção nunca ultrapassa o nível da
mera subsistência. Como podia imaginar produção abundante no
comunismo? Apenas supunha que os “meios de produção”, levados a um
alto nível de produtividade pela propriedade privada e pelo livre
empreendimento individual, que é o capitalismo, poderiam ser
expropriados e continuar funcionando igualmente, administrados pelo
regime sucessor comunista. É fato que nada parecido jamais aconteceu; a
tentativa mais próxima do comunismo como norma social sempre foi
muito primitiva; mas, se ele imaginasse primeiro o “materialismo
dialético”, e então arbitrariamente chamasse o capitalismo de tese; e
designasse os que não têm propriedade como antítese proletária, poderia
depois afirmar que os dois se “fundiriam” pelo conflito e produziriam
uma “síntese”, que teria de ser o comunismo se ele assim dissesse. Já

3
Fissíparo: que se reproduz pela fragmentação do próprio organismo. (N. do T.)
4
Squidgicum Squee: criatura do folclore dos lenhadores americanos do século 19.
Muito tímido, não queria jamais ser visto. Ao ouvir ou ver alguém se aproximando,
respirava fundo e engolia a si mesmo. (N. do T.)

- 93 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

que isso nunca aconteceu, Marx podia dizer que aconteceria


inevitavelmente no futuro. Podia também, com muita facilidade, chamar
de “sistema de classes” a sociedade capitalista de contrato, embora ela
positivamente não fosse isso.

A teoria de luta de classes de Marx é puro nonsense desde sua definição;


não se refere nem a classes nem a luta, se está relacionada ao “capital” e
ao “trabalho”. É fisicamente impossível o “trabalho” e o “capital”
guerrearem entre si. O capital é a propriedade; o trabalho é o homem.
Tudo o que pode ocorrer são tumultos esporádicos e, talvez, a destruição
de propriedade, porque as próprias armas de guerra numa sociedade
industrial só podem ser produzidas e mantidas pela combinação do
“capital” e do “trabalho”.

Numa verdadeira sociedade de classes, as classes são as diversas


camadas de uma ordem estratificada; classe não é nada mais que a
posição relativa horizontal. Portanto, uma classe não pode desalojar
outra, nem aboli-la por sua ação como classe. Se e quando as classes
existem, as pessoas que ocupam uma dada posição relativa pertencem à
classe denominada. É concebível que as partículas possam ser
transpostas, mas as classes permaneceriam como antes — o que quer que
esteja em cima está em cima, e o que quer que esteja embaixo está
embaixo. Embora invasores possam depor os membros de uma classe
originalmente mais alta e ocupar a posição, nada disso alteraria o
sistema; e tal invasão não é uma luta de classes.

Mas, como o sistema de classes é imposto sobre a energia criativa para


restringir seu fluxo, é inevitavelmente sujeito a distúrbios internos. A
energia pode causar uma clivagem entre as camadas mais altas e mais
baixas, que fará com que elas entrem em oposição violenta; essa é uma
genuína luta de classes e ocorreu com freqüência.

Todavia, como tal, uma luta de classes não pode produzir mudanças e
nunca o fez. Mesmo a transposição de pessoas como partículas de uma
classe para outra raramente ocorreu por meios violentos. As repetidas
revoltas ou jacqueries na sociedade feudal eram abortivas por natureza
— já que eram conflitos reais de classe.

Deduz-se — pela afirmação de que a pólvora aboliu a Idade Média —


que o camponês era impotente contra o cavaleiro. Ao contrário, o
cavaleiro era desesperadamente vulnerável ao camponês. Um homem em
uma armadura, dependendo de um cavalo também em uma armadura
para sua mobilidade, podia ser colocado fora de ação por um ou dois
homens velozes com foices e forcados. O cavalo seria paralisado e o

- 94 -
X. A Economia da Sociedade Livre

cavaleiro derrubado. O cavaleiro mal conseguia montar sem ajuda; no


chão, era desajeitado; se caísse, não conseguiria se levantar de um salto.
Uma tartaruga humana, o cavaleiro estava equipado apenas para
encontrar outro cavaleiro. E, economicamente, não era menos
dependente. Sua armadura tinha de ser forjada pelo ferreiro, sua comida
e suas roupas fornecidas e seu cavalo sustentado pelo trabalho do
camponês. O cavaleiro não conhecia nenhuma arte útil e era inteiramente
um produto final de um sistema rígido. Se o sistema fosse interrompido
por pouco mais que um tempo muito curto, o cavaleiro fatalmente
pereceria.5

E, em muitos casos, as jacqueries obtiveram vitórias imediatas pela


violência. Em diversas localidades, os camponeses massacraram seus
senhores e tomaram seus castelos, saqueando-os e destruindo-os. Porém,
não puderam ir além e foram dominados novamente; nada poderia advir
dessas revoltas exceto repressão mais severa. Não era possível induzir a
maioria dos camponeses a elevar uns poucos dentre eles à posição de
senhores, e não era possível elevá-los todos, porque a ordem da cavalaria
precisava de camponeses para sustentá-la. Agindo como uma classe, os
camponeses não podiam ter outra coisa em que se basear, exceto o
princípio de classes, para reinstituir a sociedade. Portanto, as jacqueries
estavam destinadas a serem esmagadas, pelos mesmos princípios de
classe que uniu os camponeses em rebelião.

Quando a sociedade de contrato começou a emergir novamente e a


dissolver o sistema de classes, membros de todas as classes e grupos
lutaram em ambos os lados, com indivíduos tomando parte contra a
ordem ou a favor dela. Na Revolução Francesa, a mais obstinada defesa
do antigo regime foi feita na Bretanha rural, por camponeses da Vendéia,
obedecendo a um comandante camponês. Sua posição era insustentável,
porque as armas de uma sociedade de classes pertencem a um modo de
conversão de energia inferior ao de uma sociedade de contrato. Essa é a
importância da pólvora; é o resultado de uma economia livre, que não
proíbe a pesquisa e a invenção. É um instrumento, um efeito, não uma
causa.

5
Em tempos recentes, tem sido dito que a revolução se torna impossível quando um
governo tem tecnologia de máquinas a sua disposição, porque a população
desarmada é impotente contra armas de alto poder. Ao contrário, o exército equipado
tecnologicamente depende absolutamente do livre funcionamento ininterrupto da
ordem civil para suas armas e suprimentos. Aviões e tanques são ainda mais
imediatamente dependentes da produção fabril que o cavaleiro era do forjador. E a
produção de máquinas não pode ser mantida eficientemente por trabalho forçado.
(N. da A.)

- 95 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

A invenção do maquinário produtivo e seu uso contínuo só são possíveis


numa economia livre, sendo coerentes com seus axiomas em relação à
energia. O equivalente da ordem feudal na configuração de uma máquina
seria carregar o motor com peso morto, de maneira que ele não pudesse
funcionar até que parte desse peso fosse removida; e ajustar o freio para
que fosse aplicado sempre que o motor partisse, ou melhor,
imediatamente antes da partida. Provavelmente, a noção popular atual da
economia medieval seja que as pessoas comuns eram obrigadas a
trabalhar exaustivamente. Sem dúvida, eram submetidas a trabalho
forçado e seu trabalho era executado por métodos exaustivos, lentos e
pouco produtivos; mas a maior dureza era que eles não tinham
permissão para trabalhar de outra maneira. O trabalho podia ser
punido como um crime. Por exemplo, era ilegal construir, possuir ou
usar um moinho manual em casa. (O mesmo tipo de penalidade foi mais
tarde reintroduzido com o imposto sobre quotas agrícolas e o imposto de
processamento.) Mesmo o carro de boi medieval era tão mal projetado
que, quando o animal o puxava, o peso de alguma maneira o sufocava.
Assim era com os homens; a competência e a poupança eram
penalizadas. Aquele que arava a terra não podia ter esperanças de jamais
possuí-la; benfeitorias eram revertidas ao senhor e havia grande chance
de causarem obrigações adicionais. Além disso, quando morria um
servo, o senhor tomava parte dos bens e dos animais, como “melhor
gado”6, sempre tomando o melhor, não importando quão pouco sobrasse
para a viúva e os filhos. (A reintrodução das obrigações de morte,
impostos sobre transmissão de bens, é um retorno à obrigação medieval
do “melhor gado”. Incidindo inicialmente apenas sobre grandes
patrimônios, está rapidamente avançando sobre o menor fragmento de
herança. A obrigação do “melhor gado” era reconhecida como o símbolo
do servo.)

Na sociedade feudal, quando os homens falavam sobre direitos ou


liberdades, reivindicavam esses direitos por licença ou costume, sempre
com referência a uma concessão permissiva no passado, que deviam
provar não ter perdido por deixarem de cumprir com suas obrigações
financeiras ou de trabalho. O princípio era de que os homens deviam
pagar pela licença para trabalhar ou para ir de um lugar para outro. Por
último, a restrição ao comércio limitava os materiais disponíveis; as
pessoas não tinham muito com que trabalhar.

6
Em inglês, heriot. Era o direito de um senhor na Europa feudal de tomar o melhor
cavalo e/ou roupa de um servo, quando este morria. Surgiu da tradição do senhor
emprestar um cavalo ou armadura ou armas de combate, de maneira que quando o
servo morresse o senhor reivindicaria legitimamente sua propriedade. (N. do T.)

- 96 -
X. A Economia da Sociedade Livre

Quando o elemento produtivo finalmente reconquistou alguma liberdade


natural, lançou-se como que numa orgia de trabalho, satisfazendo uma
ânsia anteriormente frustrada. Homens livres exigiram de si mesmos
muito mais que qualquer senhor jamais foi capaz de exigir de seus
servos, e produziram três vezes mais com trabalho manual, enquanto
também desenvolviam maquinário produtivo. Essa explosão inédita de
energia foi benéfica pelo aumento de bens e de conhecimento. Mas
ocorreu na Europa enquanto parte da estrutura aristocrática permanecia
na posse de terras. Bens e trabalho estavam no mercado livre, ou seja, na
sociedade de contrato; grande parte da terra não estava lá, permanecendo
sob morgadio7 e arrendada por prazos longos. O trabalhador sem terra
não tinha onde se amparar e foi pego, por assim dizer, entre um
automóvel e uma muralha, ou jogado contra uma rocha por uma corrente
impetuosa. O assalariado nunca conseguiu uma base sólida na Europa. A
“economia mista” invariavelmente inclui as características onerosas
tanto do status como do contrato, pioradas pela combinação. No campo
da indústria, durante o início da era industrial, indivíduos
excepcionalmente astutos, vigorosos e capazes estabeleceram o ritmo
para os menos capazes e os mais fracos. Um empregador que começou
exigindo muito de si mesmo esperava um empenho extremo dos
trabalhadores que contratava. (Presumia-se que a margem de
compensação estava nas chances do futuro — mas o trabalho era feito no
presente e o empregador não podia dar garantias sobre o futuro.) Além
disso, as horas de trabalho eram um remanescente da economia medieval
e rural, em que os homens trabalhavam da aurora até a noite; mas o
ritmo medieval era comparativamente lento, com períodos de inatividade
e tantos feriados quanto os arrendatários e servos conseguiam por meio
da Igreja. A economia livre acelerou o ritmo e cortou feriados, mas
manteve o longo dia de trabalho, até mesmo estendendo-o pela
iluminação artificial. Mas a aceleração e os salários baixos ocorreram em
parte por pressão da aristocracia, o que restava do status. Na sociedade
feudal plena, os senhores tinham de manter as forças combatentes e
pagar outros custos políticos com recursos obtidos localmente; e o rei
vivia às suas próprias custas, pela produção de suas propriedades rurais.
No período de transição, o exército e a verba designada à família real se
tornaram obrigações nacionais, mantidas pela taxação geral, enquanto a
nobreza não apenas ocupava os cargos lucrativos, mas tirava recursos da
indústria pelo aluguel de terras, sem liberar terra ao mercado para
melhorias pela construção competitiva. Lorde Shaftesbury8, o famoso

7
Em inglês, entailment. Imóvel herdado que não podia ser vendido, legado livremente
ou alienado de nenhuma maneira pelo proprietário, mas que devia passar, por lei,
para os seus herdeiros legais quando ele morresse. (N. do T.)
8
Anthony Ashley-Cooper (1801 – 1885), 7º Conde de Shaftesbury, foi um político e
reformador social inglês. Foi parlamentar entre 1826 e 1851. Propôs leis para tornar

- 97 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

reformador, admitiu privadamente que acusou os industriais, embora


soubesse que a culpa era igualmente dos donos de terra, porque
precisava de um partido para aprovar suas leis. O que ele não percebeu é
que também estava agindo como um aristocrata, porque as leis de
“reforma” que criou, embora bem-intencionadas, eram leis de status
numa nova roupagem.

A pequena nobreza também abusava de sua posição, apoderando-se das


terras comuns e cercando-as. Essas terras haviam dado aos aldeões um
pouco de independência, uma base física. Em geral, embora escarnecesse
da busca de lucro por parte da indústria, a pequena nobreza nunca
deixava escapar um centavo, viesse do aluguel de um cortiço ou da
cabana de um pastor ou mesmo do subsídio de alimentação de um
soldado.

Assim, a classe alta absorvia a maior parte dos benefícios materiais da


emergente sociedade de contrato e, ao mesmo tempo, se livrava de suas
principais obrigações. O único bem que resultou ao trabalhador médio,
num primeiro momento, foi que a porta se abriu; e a América existia. (Se
a América não existisse, é impossível saber se a porta seria ou não
arrombada.) O trabalhador livre podia mudar de emprego, de lugar de
residência e até mesmo de país, se tivesse coragem para essa aventura.

Mesmo assim, no período de um século, essa possibilidade foi suficiente


para, com uma parte das pessoas aproveitando-se dela, elevar o nível dos
salários e das oportunidades, da limpeza e da conveniência, para um
padrão que teria parecido fabuloso ao senhor medieval. As horas de
trabalho foram da mesma maneira encurtadas; o esforço foi transferido
às máquinas; a liberdade produziu frutos. Agora, com o atual decréscimo
de liberdade, as horas estão se alongando até na América; a produção
está diminuindo; e a aceleração está sendo imposta outra vez sobre os
homens, em vez das máquinas.

O impasse de classe pode ser quebrado de duas maneiras. Ou


retornando-se pelo barbarismo (liderança) à selvageria ou avançando-se
para a organização política apropriada à sociedade de contrato. Mas o
avanço não pode ser feito até que uma estrutura seja erguida para
acomodar o mecanismo, incluindo o tipo de controle que é usado na
mecânica de motores por vários dispositivos de segurança, sejam freios,
reguladores ou estabilizadores. A característica essencial desses

mais humano o tratamento de doentes mentais, proibir o trabalho infantil, limitar a


jornada de trabalho, proibir o trabalho de mulheres e crianças em minas de carvão e
de crianças como limpadores de chaminés. (N. do T.)

- 98 -
X. A Economia da Sociedade Livre

mecanismos é que eles não agem (e não podem agir) até que surja a real
necessidade. São projetados para funcionar apenas se o motor ou a
transmissão funcionarem mal. Um freio pneumático ferroviário trava as
rodas se o engate se soltar; uma válvula de segurança abre no ponto de
perigo da pressão do vapor; um fusível queima com uma sobrecarga de
corrente, salvando os circuitos; um giroscópio é neutro enquanto o avião
está em equilíbrio. O que devemos ter em mente é que esses controles
não são preventivos, mas corretivos; não são primários, mas secundários.

A lei de contrato é o mesmo tipo de mecanismo na organização política.


A restrição legal não ocorre antes que indivíduos tenham feito um
contrato voluntário e uma das partes tenha descumprido seus termos. A
lei contratual não tem autoridade primária ou jurisdição, a menos que
seja invocada pelo indivíduo; então, ela pode tomar conhecimento
apenas do ponto em questão, que é determinado pelo acordo anterior
entre os indivíduos. Incontestavelmente, não é nada além de uma
agência; a iniciativa cabe exclusivamente ao indivíduo.

É o único método de organização que dá à faculdade criativa e aos


processos produtivos resultantes sua liberdade inerente e necessária. O
instrumento político deve ser de caráter secundário.

Mas qualquer tipo de organização implica em uma base permanente. Ela


deve possuir uma localidade fixa para sua estrutura. Isso é verdade até
para mecanismos expressamente projetados para mobilidade; um avião
precisa de uma base tanto quanto um antiquado moinho. A base do avião
é o campo de pouso; mas, numa visão mais ampla, o avião é parte da
linha de transmissão de um sistema de energia de circuito muito longo,
que se embasa na propriedade privada como instituição. A propriedade
privada é necessariamente individual; nem a propriedade grupal nem o
comunismo estatal podem gerar um potencial de energia tão elevado. As
nações coletivistas de hoje (Rússia, Itália, Alemanha, Japão) são aviões
funcionando com a energia extraída do fim de um circuito longo de
energia gerado pelas economias livres no passado recente.

O problema da estrutura para a organização política atrasou a fundação


de uma Sociedade de Contrato plena em milhares de anos. A primeira
estrutura política que os homens foram capazes de encontrar ou
desenvolver foi a da aristocracia. Embora deva ter começado como uma
extensão da família (não justificada na natureza), ela foi posteriormente
tratada como validada por um conceito ou teoria que tinha ainda menos
relação com os fatos. O nobre passou a ser considerado, ou a se
considerar, uma espécie superior, alçado à sua posição por uma diferença
semimística, semifísica em relação ao camponês ou ao plebeu, uma

- 99 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

diferença de “sangue” confirmada por ordenação divina. A biologia não


conseguiu descobrir nenhuma evidência para apoiar essa teoria; embora
uma família nobre possa ter sido fundada por alguma pessoa de talento
excepcional, seus descendentes retornam à média. Além disso, a linha
era rompida com freqüência e o sangue misturado com o de pessoas
saídas das classes supostamente inferiores. Finalmente, aristocracias
foram despojadas de sua posição e nenhuma divindade mística interveio
em favor delas. É impossível definir, em termos racionais, exatamente
em que consiste a qualidade aristocrática. Aquele epítome da categoria, o
Duque de Saint-Simon, que “acreditava” fanaticamente nela, descreveu
muitos de seus companheiros nobres como canalhas, imbecis, lunáticos,
covardes, mentirosos, bajuladores, alcoviteiros, imprestáveis e libertinos,
deformados, feios, medíocres, desleais e, de outras maneiras, inúteis ou
perniciosos. Mesmo assim, sua fé permaneceu inabalada.

E havia um fato além da fantasia. Embora estivesse obsoleta na França


quando observada por Saint-Simon e, por tanto, duplamente corrompida,
a aristocracia teve uma utilidade prática em seu tempo. Ela delimitava as
bases fixas para a estrutura política, pela soberania local de subdivisões
territoriais. Os títulos originais, privilégios e incumbências dos grandes
nobres estavam vinculados a áreas determinadas de terra e eram
inseparáveis delas.

Não foi a solidariedade de classe da aristocracia que permitiu que ela


servisse de estrutura, mas a separação das unidades, um sistema de
descentralização. As amargas acusações contra as aristocracias eram
bem reais; a ordem era opressiva não apenas por abuso, mas em
princípio. Embora os autores de romances medievais possam embelezar
o quadro em retrospecto, o senhor tinha o direito de extorquir dinheiro
para permitir que uma garota se casasse ou que um menino aprendesse a
ler; podia tomar uma vaca da viúva enlutada; um direito costumeiro do
senhor que arrendava terras era recolher o esterco dos animais do
arrendatário para usar como adubo. A aristocracia bloqueava a luz e o ar.
Existia para causar ódio, a expressão emocional da energia frustrada. O
mecanismo de governo que ela usava (a lei de status) é o da embreagem
preventiva. Sua atmosfera social é tingida pelo desespero; durante a
Idade Média, quando a aristocracia predominava, os homens tinham
visões de morte e do inferno e do fim do mundo, miséria aqui e no além.
Mas toleravam calados porque não sabiam o que colocar em seu lugar.
Se derrubassem os pilares da estrutura, o teto cairia sobre eles. Tinham
de ter alguma forma local de resistir tanto aos bárbaros como à
burocracia centralizada que os havia entregado aos bárbaros. A
estagnação completa só era evitada pelo fluxo de energia canalizado pela
sociedade modificada de contrato da Igreja e por algum comércio; e não

- 100 -
X. A Economia da Sociedade Livre

é por acaso que o comércio era feito sob o abrigo da catedral. A Igreja
também preservou o aprendizado, uma vez que a palavra escrita é
indispensável para um sistema de energia de circuito longo.

Assim, as forças de energia estática e cinética produziram um arranjo


incômodo, embora em constante perigo originado de dentro e de fora.

- 101 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 102 -
XI. O Significado da Magna Carta

A
Inglaterra acabou por fazer os ajustes mais bem-sucedidos no
Velho Mundo, mas não sem uma luta contínua e crises
recorrentes de violência, durante cinco séculos. O primeiro e
crucial esforço dos ingleses para estabelecer as fundações de uma
estrutura duradoura culminou com a Magna Carta, que o Rei João foi
obrigado a assinar, por seus súditos rebeldes. As provisões desse
documento extraordinário quase nunca são mencionadas atualmente,
com exceção da frase: “A ninguém venderemos, a ninguém negaremos, a
ninguém protelaremos o direito ou a justiça.” Certamente, isso é
admirável. Define de maneira abstrata o propósito essencial para o qual o
governo é instituído. Mas, dada simplesmente como uma promessa do
chefe do executivo, o rei, seria improvável que fosse cumprida, a menos
que toda a organização fosse projetada para poder funcionar contra a
vontade do rei. Mas mesmo sem conhecermos bem o contexto da época,
as características práticas da Carta ainda nos revelam quais eram as
bases existentes e as forças em movimento. A estrutura política estática
era feudal. As cidades maiores, tendo obtido suas “liberdades”,
contribuíam com o tesouro nacional por meio de diversos impostos,
diretos ou indiretos, e cobrados de maneira um tanto irregular, portanto
sujeitos a contestações. A Igreja estava numa perigosa posição
intermediária, comprometida com o feudalismo pelo sistema de
arrendamento de terras em suas imensas propriedades, enquanto, pela
doutrina, afirmava e protegia o princípio primário de contrato pelo qual o
comércio era realizado. O longo circuito de energia da Igreja, sua ligação
com Roma, era mantido por dinheiro, fundos enviados a Roma; isso não
poderia ter sido feito de nenhuma outra maneira.

A autoridade original da monarquia inglesa derivava completamente da


ordem feudal, que contém seus próprios freios e contrapesos, regulados
automaticamente pelo circuito limitado de energia; o excedente podia
apenas ser entregue ao rei em homens-em-armas e seus suprimentos.
Mas, na época do Rei João, muitas das obrigações de serviço feudal
consuetudinário haviam sido substituídas por pagamentos em dinheiro.
Essas obrigações, somadas às receitas de comércio da coroa, davam ao
rei uma receita sobre a qual os produtores não tinham controle. Não
podiam impedir o fornecimento na fonte, exceto por resistência à força,
nem exercer nenhum tipo de controle legal sobre as despesas do rei
depois que o dinheiro fosse colocado nas mãos dele. Assim, o rei podia
estabelecer e manter um exército composto de homens desvinculados de
bases regionais, ou seja, fragmentos de uma massa deslocada. A energia

- 103 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

cinética da nação era desviada para colocar essa massa em movimento.


Esta é a fórmula para guerras iniciadas aparentemente pela vontade de
um rei, executivo ou ditador; a conexão produz o resultado, e não tem
como funcionar para nenhuma outra finalidade. O Rei João possuía tal
exército mercenário, parcialmente recrutado no exterior, como indicado
pela cláusula da Carta que exige que ele “remova do reino todos os
cavaleiros, besteiros e soldados assalariados estrangeiros, que vieram
com cavalos e armas molestar o reino”.

Nas referências históricas, a conquista da Carta é normalmente creditada


aos “Barões”. Mas, na verdade, o documento foi escrito ou rascunhado
pelo Arcebispo da Cantuária, Stephen Langton; e os nomes no
preâmbulo que encabeçam todo o restante são de dignitários da Igreja: os
Arcebispos da Cantuária e de Dublin, sete bispos, o Senhor dos
Templários e o núncio apostólico. A primeira cláusula determina que “a
Igreja da Inglaterra será livre”, incluindo “liberdade de eleições” para os
cargos clericais. O objetivo era impedir que o rei fizesse nomeações para
abadias e prebendas, por meio dos quais poderia sugar as receitas da
Igreja. Evidentemente, ele vinha fazendo isso.

A seguir, o interesse da aristocracia feudal tinha de ser protegido do


poder real ou central, fixando-se as obrigações dos feudos militares pela
taxa tradicional; e atribuindo-se o estabelecimento de contribuições em
dinheiro e “ajudas” extraordinárias ao “conselho comum do reino”.
Obrigações ou ajudas similares tomadas pelos lordes de “seus próprios
homens livres” também foram limitadas. O objetivo geral era impedir a
expropriação gradual dos pequenos arrendatários pelos senhores das
terras, e dos lordes pelo rei. Ou seja, para fortalecer as bases regionais
contra a autoridade central e as bases individuais contra as autoridades
regionais. Uma vez que essas bases constituem a estrutura estática da
organização política, o problema foi pelo menos corretamente entendido,
embora não fosse expresso em nossos termos.

Mas a tributação não é o único meio pelo qual a energia cinética pode
demolir a estrutura estática. Como o único meio imaginado para manter
bases regionais era a sucessão hereditária de terras, uma cláusula da
Carta impedia que as terras mudassem de dono pela execução de uma
hipoteca. As terras podiam ser oferecidas como garantia de um
empréstimo. Mas, no caso de inadimplência, apenas as receitas da terra
podiam ser seqüestradas para pagamento da dívida. Além disso, se o
devedor morresse e seu herdeiro fosse menor de idade, os juros da
hipoteca cessavam enquanto ele não atingisse a maioridade. Obrigações
feudais, direitos de dote e provisões para os filhos do devedor falecido
tinham precedência no pagamento de uma dívida financeira, que só

- 104 -
XI. O Significado da Magna Carta

podia ser liquidada “com o resíduo”. Provavelmente, essa limitação de


dívida tinha um efeito duplo, parcialmente contrário à intenção,
especialmente com a baixa expectativa de vida daqueles tempos; tendia a
manter baixo o principal dos empréstimos e, igualmente, a elevar a taxa
de juros. A grande usura do período deve ser entendida nesse contexto.

Temos então uma cláusula curiosa, que indica o efeito centrípeto da


energia cinética jogada no canal político. A Carta contém uma promessa
do rei de que, se algum homem morrer devendo “aos judeus”, ou
emprestadores de dinheiro, “e se essa dívida cair em nossas mãos, não
tomaremos nada exceto o gado contido no contrato”. É óbvio que donos
de propriedades eram capazes de fazer empréstimos maiores do que
poderiam pagar convenientemente; e que os emprestadores de dinheiro,
tendo dificuldades em executar dívidas, especialmente contra o
patrimônio de menores, estavam descontando suas promissórias com o
rei, que podia então usar a prerrogativa real de execução. A perseguição
e expulsão dos judeus de diversas nações européias e o prolongado
ressentimento expresso pelo anti-semitismo têm origem principalmente
nessa combinação infeliz do poder do executivo e da ação da energia
cinética (dinheiro), minando a estrutura estática. Como era fácil focalizar
a raiva popular contra “os judeus” como não-cidadãos, o rei invariável e
prontamente se voltava contra eles quando era conveniente, para se
eximir de culpa e saquear sua fortuna. Mas o processo não tinha
nenhuma relação com a nacionalidade ou raça das pessoas envolvidas;
ocorreu outras vezes em outros países onde os financistas eram da
população nativa, e a fúria pública foi, da mesma maneira, facilmente
levantada contra as finanças, ou contra os financistas como grupo, pela
mesma razão intrínseca. O verdadeiro remédio para essa condição
prejudicial é fortalecer as bases regionais e limitar o controle e a
absorção das finanças nacionais pelo executivo central. É isso que a
Carta procurou fazer. Com uma sabedoria à frente do seu tempo, não
propôs a penalização ou expulsão dos “judeus” ou financistas, mas a
restrição da autoridade da coroa. Podemos dizer que, em qualquer tempo
em que as finanças estão sob ataque pela autoridade política, isso é um
sinal infalível de que a autoridade política já está exercendo um poder
excessivo sobre a vida econômica da nação por meio da manipulação das
finanças. Isso pode ocorrer por taxação exorbitante, gastos
descontrolados, empréstimos ilimitados ou depreciação da moeda.

A última e não menos vital restrição à autoridade executiva (o rei) é de


peculiar significância, porque mostra que o grupo industrial-comercial
deve ter tido forte influência na montagem da Magna Carta, embora não
tenha sido citado como parte do ato formal. Havia um terceiro método
pelo qual o rei podia encontrar um pretexto para a expropriação de seus

- 105 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

súditos de qualquer grau; pela cobrança de multas exorbitantes por


acusações forjadas. Para impedir isso, foi estipulado que as multas
poderiam ser estabelecidas apenas proporcionalmente ao delito; com a
ainda mais vital exceção de preservar para o homem livre sua posse de
terra; para o mercador sua mercadoria; e para o servo suas carroças e
outros equipamentos. O que significa que nenhum homem podia ser
privado de seu capital, e assim de seu meio de vida, por uma multa
imposta por causa de um suposto delito político. Como uma precaução
sólida, declarou-se que o valor de tais multas não poderia ser fixado pelo
rei e nem mesmo pelos juízes; mas deveria ser avaliado por um júri de
pares do acusado, nobres para nobres e “homens honestos da
vizinhança” para mercadores, homens livres e servos. Além disso, o
interesse da indústria e do comércio era resguardado por uma cláusula
tão avançada em relação aos costumes atuais que causa um choque de
surpresa. “Todos os mercadores terão sua segurança garantida ao
entrarem na Inglaterra e saírem da Inglaterra e ao permanecerem e
viajarem pela Inglaterra, por terra ou por água, para comprarem e
venderem, sem cobranças injustas.” Em tempo de guerra, mercadores
estrangeiros de nacionalidade inimiga poderiam ser “apreendidos, sem
danos a seu corpo e a seus bens”, e deveriam ser mantidos em segurança
se os mercadores ingleses nos países inimigos estivessem “em segurança
lá”. Finalmente, “será legal para qualquer pessoa, no futuro, sair do reino
e retornar a ele, em completa segurança, a menos que seja tempo de
guerra, por um curto espaço”, excetuando-se apenas “prisioneiros e
criminosos” e inimigos nacionais. Permitia-se que a energia cinética
percorresse o longo circuito; e a Inglaterra estava no caminho de se
tornar uma potência mundial.

No conjunto, é impossível imaginar uma compreensão mais sólida da


ciência de governar do que aquela que a Magna Carta revela, dado o
contexto da época. Por cinco séculos, ela foi corretamente vista como
um guia e um marco da liberdade inglesa. Seus princípios e algumas de
suas medidas práticas permaneceram em vigor em algum grau de
maneira permanente, apesar de abusos e das interrupções de tirania
temporária. Porém, como ela não encerrou realmente a guerra civil que
fez com que fosse escrita, nem impediu desordens semelhantes e
prolongadas subseqüentemente, deve ser instrutivo descobrir quais eram
os aspectos defeituosos. Pode-se dizer que, provavelmente, dadas as
circunstâncias, nada melhor poderia ter sido criado; se a Magna Carta
não chegou a ser totalmente colocada em prática na época, enunciou
alguns axiomas indispensáveis para referência futura. O defeito é a
ausência do veto de massa-inércia, como uma função nacional, tanto de
fato como de direito. A aplicação da Carta contra o rei foi atribuída a um
comitê eletivo de vinte e cinco barões que, “com a comunidade de toda a

- 106 -
XI. O Significado da Magna Carta

terra”, deveria apreender a pessoa, a família, os castelos e as terras do


rei, porém sem feri-lo (essa última condição seria naturalmente bastante
difícil em qualquer tempo e poderia ser impossível). Deveriam detê-lo
até que ele reparasse as injustiças e, então, a aliança seria retomada —
outra possibilidade duvidosa. Em termos de organização material, o que
estava errado com esse esquema é que, na ordem feudal estrita, os servos
e outros trabalhadores da terra constituíam o fator de massa, e a função
da massa era exercida passivamente, por inércia, por meio da limitação
inerente que o feudalismo impôs à produção, e que restringia o esforço
militar feudal aos recursos dos circuitos locais. O freio ao rei era um
efeito secundário.

Em resumo, se os barões eram os “pilares do estado” apoiados em bases


regionais, sua resistência deveria ser estática, para corresponder a sua
relação com a coroa. Mas isso era impossível quando o rei tinha as
grandes receitas dos juros mercantis; e uma resistência ativa por parte
dos nobres seria simplesmente guerra civil. (Pelo mesmo motivo, falta
de controle legítimo sobre os recursos que forneciam, os comerciantes
foram à guerra civil contra o rei no século 17.) De toda forma, não se
pode pensar em nenhuma medida viável na época em que a Magna
Carta foi concebida, pela qual o fator geral de massa pudesse ter sido
levado em conta para toda a nação e sua função representada
legitimamente no governo nacional. Infelizmente, mesmo a emancipação
imediata dos servos não teria suprido essa deficiência do veto-massa e
garantido a estabilidade; ao contrário, se eles tivessem simplesmente
sido libertados da terra, mais homens seriam jogados no exército
assalariado do rei, para esmagar a nação. Todo o sistema de títulos de
terra teria de ser alterado, para se instituir a propriedade individual; e
uma coisa assim não pode ser feita da noite para o dia. O procedimento
seria impossível, porque teria de ser feito por um decreto político.
Portanto, mesmo que fosse tentado nominalmente, o resultado seria
conferir o título das terras ao poder político, não aos indivíduos a quem a
transferência deveria ser feita. Ou seja, qualquer que fosse o poder capaz
de tomar a terra de uma pessoa e dá-la para outra, esse poder sempre
poderia tomar de volta segundo sua vontade e, portanto, teria o real
arbítrio sobre a terra.

Assim, os servos não ganharam com a Carta praticamente nada além da


proteção de suas ferramentas agrícolas contra multas. Mas a situação dos
nobres, comerciantes e pequenos proprietários rurais foi protegida,
conforme validado pelos costumes e leis anteriores, e os meios para que
eles oferecessem resistência foram suficientemente assegurados. Dessa
maneira, puderam persistir na oposição ao poder do rei, até que
forjassem o instrumento necessário do veto-massa. Esse instrumento

- 107 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

viria a ser a Câmara dos Comuns, com seu controle sobre impostos e a
concessão periódica de suprimentos. No decorrer dessa longa luta, a
servidão foi abolida gradativamente, até desaparecer por completo. O
dinheiro, energia cinética, acabou com ela.

Houve um desvio não previsto, um redemoinho lateral da corrente de


energia, como resultado quase imediato da assinatura da Carta. O Rei
João havia estado sucessivamente em desacordo com os nobres, a Igreja
e os comerciantes, até que todos se uniram contra ele com a Carta.
Então, o rei negociou um acordo com o Papa, pelo qual seria absolvido
de seu juramento assinado; em troca, fez um voto de fidelidade temporal
com o Papa como seu senhor feudal, por meio do qual pretendeu
submeter todo o reino, como se o reino fosse um feudo. Mas não havia
lei nem princípio do direito, canônico ou civil, que pudesse autorizar tal
transação. É verdade que dignitários eclesiásticos poderiam ser senhores
de terras, fosse por suas propriedades ou em virtude de terras da Igreja; e
havia príncipes-bispos na Europa, a quem os senhores temporais deviam
fidelidade feudal. E o homem que era Rei da Inglaterra, se também fosse
senhor de terras na Inglaterra, não tendo um superior feudal, poderia
teoricamente declarar-se vassalo do Papa. Mas essa submissão só seria
válida com relação ao seu próprio feudo. O reino era de outra natureza;
era composto por um grande número de feudos, cujos senhores tinham
jurado fidelidade ao rei. Esse juramento não poderia ser transferido pelo
rei para outra pessoa. A natureza de um voto cristão exige que seja feito
voluntariamente; e a pessoa que o faz deve estar plenamente informada
de sua extensão e conseqüências; isso decorre da doutrina de livre-
arbítrio para a salvação. Na hierarquia feudal, entendia-se que a
fidelidade de um arrendatário a seu senhor seguia a fidelidade de seu
senhor ao rei; mas nenhum dos súditos de João, nobres ou não, havia
concordado nem entendido que o rei poderia fazê-los súditos de outro
superior temporal. Em síntese, João prometeu ceder algo que era
intransferível. O acordo era tentador não em seus termos nominais
feudais, mas por causa das receitas em dinheiro. A corrente cinética era
tão forte que quase destruiu completamente a estrutura da nação,
ameaçando levantá-la e carregá-la para uma nova situação, como uma
enxurrada pode carregar uma casa.

Lamentavelmente, o papa aceitou o acordo e deixou na mão o corajoso


Arcebispo Langton e todos os outros eminentes clérigos que haviam
obtido a Carta de João. Eles haviam exercido a função histórica e própria
da Igreja de resistir ao Estado; e o chefe terreno da Igreja repudiou sua
ação. Mas nem o rei nem o papa puderam colocar o acordo para
funcionar; o resultado imediato foi a retomada da guerra civil. É no
mínimo defensável que a conseqüência tardia foi o cisma, três séculos

- 108 -
XI. O Significado da Magna Carta

depois, da Inglaterra da comunhão católica. Seqüências históricas


sempre podem ser rastreadas até causas remotas no tempo; e uma traição
assim nunca é esquecida. Material e moralmente, esse acordo deixou a
Igreja inglesa numa posição perigosa. Na luta continuada entre o rei, os
nobres e os comerciantes, qualquer que fosse a parte que vencesse
temporariamente, a Igreja acabava sempre perdendo um pouco mais a
cada vez, já que não tinha mais o prestígio de ser a agência mediadora. A
servidão obteve algumas terras da Igreja, o que fazia com que a Igreja
parecesse opressiva aos camponeses e não fosse mais identificada com a
liberdade. O rei ainda tinha receitas financeiras para sustentar seu
exército particular. Os comerciantes estavam fortes o bastante para lutar
por si mesmos, e assim representar a sociedade de contrato. O tamanho
das posses territoriais da Igreja enfraquecia os nobres, porque eximiam
os ocupantes do serviço militar feudal. Mas, como riqueza, as terras e
receitas eclesiásticas eram uma tentação óbvia à pilhagem; enquanto
qualquer partido que se aliasse à Igreja não podia ter certeza de que não
seria traído. A energia cinética fluindo para o executivo, o rei, primeiro
destruiu o feudalismo, o poder dos nobres sobre o rei; então, levou o rei
(Henrique VII) a uma aliança com os comerciantes, identificando seus
interesses; então se voltou diretamente contra a Igreja como instituição
detentora de terras, e acabou com as grandes terras das abadias, para
reconstituir uma nova aristocracia em conjunto com a nova agência de
controle que passou a funcionar, a Câmara dos Comuns. Finalmente, a
energia cinética, sob esse controle, voltou-se contra o executivo, o rei, e
acabou com a prerrogativa real. Mas, nesse processo, uma quantidade
excessiva de pessoas perdeu sua base na terra.

Ensinados pela adversidade na guerra civil do século 17 (que foi o auge


do processo que reduziu por atrito a pesadíssima carga da aristocracia
com a Guerra das Rosas, e a destruiu com a tirania centralizada de
Henrique VIII), os nobres ingleses aceitaram grande parte do mesmo
compromisso que havia sido feito pela ordem aristocrática na República
Romana. A característica hereditária foi mantida na câmara alta pelas
bases regionais; mas o veto efetivo estava nos Comuns; e a lei estava
acima da coroa. Nesse último avanço, o governo secular aprendeu com a
Igreja como estabelecer um centro, um problema que era insolúvel no
Império Romano.1 A autoridade (assim definida como infalibilidade) do

1
A única falha grave na estrutura política do Império Romano tornava essa solução
impossível. Na Igreja, a diocese era uma subdivisão regional genuína, seu
representante (o bispo) era sustentado diretamente pelas receitas locais, das quais
apenas uma pequena parte ia para Roma. Da mesma maneira, os nobres ingleses
tiravam suas receitas diretamente de suas próprias posses territoriais locais, para
sustentar funções políticas locais concomitantes. Nenhum deles dependia da
redistribuição de recursos (energia) a partir do centro. Mas as autoridades provinciais

- 109 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Papa existia apenas no concílio ecumênico e dentro de uma esfera


prescrita (da fé e da moral). Assim, na forma inglesa de governo secular,
a autoridade do rei existia apenas em conjunto com o Parlamento e
dentro do âmbito da lei. Quando Carlos I não percebeu essa distinção, foi
informado dela pela lâmina do machado.

Num mecanismo, isso é o centro fixo, que é necessário numa ação


recíproca. O rei não faz nada; é para isso que ele serve, sendo o ponto no
qual as forças se encontram. A coroa era indispensável, dado o arranjo
histórico, para a agregação de domínios, colônias e dependências dos
tipos mais diversos que formavam o Império Britânico, porque impedia
arranjos políticos entre dois deles, ou ação primária fora do centro.
Uma vez que não haviam chegado a acordos específicos, não tinham
oportunidade de discordar. No início do século 19, a estrutura interna da
Inglaterra era essencialmente a mesma da República Romana, com uma
aristocracia modificada ajustada a um sistema eletivo; e como as
colônias anglófonas foram instituídas com uma grande dose de
autogoverno, o exército não era um fator político direto e ativo no
mecanismo administrativo.

Como ocorreu antes com Roma, o mundo aceitava o Império Britânico


porque ele abria canais mundiais de energia para o comércio em geral.
Embora o governo repressivo (de status) tenha sido imposto num grau
considerável na Irlanda, com resultados muito negativos, no conjunto as
exportações invisíveis da Inglaterra eram o direito e o livre comércio. Na
prática, enquanto a Inglaterra governava os mares, qualquer homem de
qualquer nação podia ir a qualquer lugar, levando consigo seus bens e
dinheiro, em segurança.

Mas uma estrutura tradicional adaptada para acomodar um alto potencial


de energia está o tempo todo sob uma pressão enorme. A condição do
trabalhador sem-terra constitui um problema que ainda não foi resolvido.

Ele é uma partícula jogada no circuito de energia que vai aderir a uma
corrente magnética, como se fosse limalha de ferro. Então, sempre que a
indústria diminui a produção, o que significa dizer que a corrente está
mais fraca, muitas dessas partículas se desgarram. Trabalhadores
desempregados, agregados apenas pela inércia, tornam-se assim um
fragmento de massa deslocada dentro da economia. Como tais, são

do Império Romano eram dependentes dessa maneira; eram pagas pelo centro; e a
corrente de energia extraída em impostos para Roma as destruiu; não tinham caráter
representativo regional. Portanto, o ajuste no centro tinha de ser feito, como
observado, pelo encontro de “forças brutas” — o exército e o potencial de revolta. (N.
da A.)

- 110 -
XI. O Significado da Magna Carta

jogados contra a estrutura e, naturalmente, a percebem apenas como uma


obstrução. É igualmente natural, uma vez que são seres conscientes e
não meros objetos físicos, que exijam que a estrutura seja abolida; ou,
pelo menos, porta-vozes aparecerão em nome deles e farão essa
exigência, como no movimento cartista2. Um homem preso num píer de
pedra provavelmente não vai considerar se o píer é necessário para
alguma finalidade ou não, ou o que poderia ser colocado em seu lugar.
Ninguém espera que ele pense no píer nesses termos.

A grande desventura do trabalhador produtivo que não tem base é que,


quando ele é descartado pela corrente enfraquecida, cai na mesma
categoria material do habitualmente improdutivo. O peso acrescentado
faz com que o grupo improdutivo se sinta inseguro. Seu desconforto
encontra expressão emocional na raiva contra o elemento produtivo. Na
esperança de se prender mais firmemente à linha de produção, eles
exigirão então regulação restritiva à indústria e ao comércio, sob o
pretexto (como Shaftesbury inocentemente admitiu) de que é pelo
benefício do trabalhador.

Mas uma proposição assim requer a lei de status. A peculiaridade da lei


de status é que ela interrompe e desvia a energia no início do circuito,
em vez de fazer isso no fim. Faz com que o que não é produtivo seja
uma carga inicial sobre a produção, antes da manutenção. Se
examinarmos os vários impostos criados recentemente em economias
que antes eram livres, sob o pretexto de ajudar os indigentes, sua
natureza se torna evidente. Eles têm de ser pagos mesmo que o produtor
vá à falência.

Esses esquemas de taxação raramente ou nunca se originam nos


trabalhadores. São propostos por aqueles que retiram sua renda de
cobranças fixas — de propriedades de morgadio ou de instituições
mantidas por doações ou por impostos — e que, portanto, desejam ter
sua relação com a produção declarada como uma regra de governo. Mas
o trabalhador desempregado quer trabalhar, ser ativo, viver. As
exigências de lei de status e de abolição da estrutura serão, portanto,
mais ou menos simultâneas e ambas podem ser incluídas nas mesmas
medidas legislativas.

2
Movimento cartista: Foi um movimento da classe trabalhadora que pedia reformas
políticas na Grã-Bretanha, entre 1838 e 1848. Começou entre artesãos, como
sapateiros, gráficos e alfaiates, mas logo atraiu homens que propunham greves,
greves gerais e violência física, como Feargus O’Connor. Estes eram conhecidos como
cartistas da força física. (N. do T.)

- 111 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Assim, é provável que ambas entrem em vigor aproximadamente ao


mesmo tempo. O resultado é visível agora. A verdadeira causa do
fascismo, ou do nazismo, ou do comunismo, é o estado desestruturado3,
no qual toda a energia da nação, sua linha de produção, é jogada no
mecanismo repressivo de governo centralizado com lei de status. É uma
armadilha mortal.

Os problemas intrínsecos da ordem aristocrática são tão óbvios e


inerentemente onerosos, que o fato de que ela tinha uma utilidade foi
quase completamente esquecido; mas ela supria a estrutura, ao manter
bases regionais. Sempre que uma aristocracia perde essa função
representativa local, está à beira da dissolução.

3
As antigas tiranias ou despotismos eram nações que haviam desenvolvido alguma
indústria sem ter alcançado nenhum tipo de estrutura. Essa falha de sincronismo
inevitavelmente causa desencontros, violência e miséria. (N. da A.)

- 112 -
XII. A Estrutura dos Estados Unidos

O
problema que os fundadores dos Estados Unidos enfrentavam
era como manter, sem uma aristocracia, bases regionais para a
estrutura política. Não era assim que o problema era enunciado
na época, porque esta é uma descrição da solução. Eles só conheciam o
problema. De maneira semelhante, não poderia ser dito que uma pedra
angular deveria ser projetada para completar a forma do arco, ou que um
símbolo zero deveria ser criado para ocupar uma posição nos números,
até que esses dispositivos fossem encontrados; tais enunciados são
impossíveis até que o problema tenha sido resolvido. Os revolucionários
americanos enunciaram o axioma dos direitos do indivíduo, a Sociedade
de Contrato, como fundamento racional e justificação de sua
independência. Uma aristocracia nativa anularia essa intenção. Um
vestígio remanescente, na forma de morgadio (que é a raiz da sociedade
de status), foi abolido em conformidade. Os estados separados já
existiam, e não haviam cedido suas várias soberanias à frouxa federação
original. Sua resistência natural como entidades políticas existentes era
suficiente para derrubar propostas de extinguir sua autonomia, e
disfarçou os perigos futuros nessa direção. A questão apresentada de
imediato era como juntá-los em “uma união mais perfeita” — sem
escorregar para uma democracia. O que eles queriam era uma República.

A objeção à democracia era clara e fundamentada; mas por razões


opostas às do Velho Mundo. Era óbvio que a democracia dissolveria a
ordem européia de sociedade, que era hierárquica, estruturada em
classificações hereditárias. A premissa da democracia é a igualdade
natural. A Sociedade de Status afirmava que a origem de sua ordem
moral era a família, estendida por analogia para a organização política;
mas essa hipótese ignora o fato primordial de que todas as pessoas, no
devido tempo, se tornam adultas. Ao fazer essa extensão, o padrão feudal
se torna fictício; fora dos assuntos domésticos, não correspondia nem
poderia corresponder aos fatos, fosse nas relações de sangue ou na
simples superioridade em idade. Essa idéia justificava o domínio de
poucos sobre muitos, pela convenção arbitrária de descendência de
famílias “antigas”. Na natureza, uma família não pode ser “mais antiga”
que outra. A idade é pessoal. Mas a maturidade, a condição de ser
adulto, é a igualdade por definição. Por essa conclusão, os poucos não
podem ter o direito hereditário de comandar os muitos.

Por outro lado, essa é uma ordem matemática aplicada apenas à


cronologia. Descreve os homens como iguais quando atingem um dado

- 113 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

lapso de anos, o período presumido do amadurecimento. Fora dessa


única classificação, não tem significado positivo ou intrínseco.1 Os
gregos nunca foram capazes de validar sua hipótese para a democracia,
porque é um conceito materialista e o materialismo não admite a
igualdade humana, nem qualquer outro princípio de associação humana.
O materialismo considera a humanidade simplesmente como uma
espécie animal cujo comportamento é baseado e determinado pelo
instinto e pela oportunidade. Nessas bases, não existem direitos nem
questões morais; o que quer que aconteça deve acontecer, e o que quer
que deva acontecer acontece. Mas, mesmo que esse beco sem saída no
determinismo materialista seja ignorado e a igualdade seja buscada com
relação aos fenômenos, não a encontraremos nos seres humanos,
considerando-os como animais “superiores” ou como objetos da
natureza. O materialismo estrito acaba por negar que o ser humano seja
uma entidade; o decompõe em uma massa informe de material plásmico
“condicionado” a várias “respostas” ou “reações”. Em termos
materialísticos, a psicologia se torna um ramo da fisiologia: o
behaviorismo. Então, se as respostas (atributos ou qualidades) são
comparadas, podemos demonstrar que um homem é mais forte que
outro, ou dotado de alguma capacidade (música, arte, o que for) que
outro não possui, ou possui em menor grau num dado momento; mas não
há uma equação geral para os diferentes dons, mesmo que fosse possível
descobri-los plenamente. A única definição de igualdade por medida é
aquela de Euclides: coisas que são iguais à mesma coisa são iguais entre
si. Isso pede um padrão objetivo fixo, um homem perfeitamente típico,
que encarne quantitativamente todos os atributos humanos em escala e
proporção absolutas como norma, e com um inimaginável denominador
comum pelo qual tais qualidades fossem traduzíveis em números de
pontos que pudessem ser somados. Assim, os homens como são
poderiam ser avaliados por comparação e receber cada um uma “nota”.
(A teoria platônica de arquétipos, ou o Ideal, foi uma tentativa fracassada
de contornar essa dificuldade.)

1
A igualdade em si mesma não significa nada, não implica em valor algum; dois zeros
são iguais. A liberdade associa um valor a ela. Existe um argumento que diz que o
serviço militar obrigatório é correto porque se aplica igualitariamente. Isso justificaria
a tortura, se ela fosse aplicada igualitariamente. Esse argumento foi levado mais longe
por um pseudoliberal: “O sistema voluntário parece bom. Na prática, é um horror
moral… uma vez que ninguém é capaz de dizer, apenas olhando para um jovem, se ele
está fazendo seu trabalho básico de guerra, ou é casado ou tem filhos ou, talvez, não
possui boa saúde. O sistema voluntário não é voluntário. Na prática, é a pior forma de
compulsão… excelentemente projetado para tornar os jovens infelizes.” Então, a
escravidão não é escravidão, porque o mundo está povoado de imbecis morais, todos
igualmente apavorados com o olhar casual de um estranho. (N. da A.)

- 114 -
XII. A Estrutura dos Estados Unidos

Mas o axioma americano declarava a igualdade política como um


corolário do direito inalienável de todos os homens à liberdade. A
democracia era inadmissível porque ela precisa negar esse direito e
transformar-se em despotismo, como sempre aconteceu. Isso é feito de
maneira abstrata, por sua própria contradição lógica; e, na prática,
porque a lógica é uma afirmação de seqüência. Não são a liberdade e a
igualdade que são incompatíveis, mas a liberdade e a democracia.

A diferença é aquela que existe entre um princípio e um processo; a


confusão surge de uma identificação imprópria entre uma proposição
negativa e uma positiva. Admite-se erroneamente que, quando a
reivindicação de poucos comandarem muitos é refutada, a reivindicação
oposta de muitos comandarem o indivíduo é comprovada. Isso é
totalmente indefensável, exceto em termos estritamente materialistas; e,
nesses termos, o direito é completamente descartado. O direito como um
conceito é necessariamente oposto à força; se não for, a palavra não
significa nada.

A liberdade é uma condição verdadeiramente natural; a própria vida só é


possível para um ser humano em virtude de sua capacidade de ação
independente. Se uma criatura viva for submetida à restrição absoluta,
ela morre. A vida humana é de uma ordem que transcende a necessidade
determinística da física; o homem existe por vontade racional, livre
arbítrio. Por isso, os termos racionais e naturais da associação humana
são de acordo voluntário, não de comando.

Portanto, a organização adequada da sociedade tem de ser formada por


indivíduos livres. E sua igualdade é postulada sobre o simples fato de
que as qualidades e atributos de um ser humano, afinal, não estão
sujeitos a nenhum tipo de medida; um homem equivale a uma entidade
espiritual.

Mas a democracia é um termo coletivo; descreve o agregado como um


todo, e assume que o direito e a autoridade residem no todo, embora
derivados da condição adulta dos indivíduos que o compõem. Então, é
necessário supor que, em um momento desconhecido, por uma sanção
desconhecida e absolutamente sem nenhuma razão, tal direito e
autoridade foram irrevogavelmente transferidos dos indivíduos para um
grupo que não é nada além de uma soma numérica, ou partículas
fundidas numa massa. A autoridade então não está em parte nenhuma.
Nenhuma parte dela está em nenhuma parte da massa. Assim, a
democracia se dissolve em puro processo, e mesmo o processo é fictício,
porque os indivíduos não podem se fundir realmente, embora um grupo
possa exercer a função de massa para um dado propósito num dado

- 115 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

momento, por inação: um negativo. O processo fictício que se imagina


que funcione na democracia pertence a uma ordem física e matemática e
não-moral, começando com um número arbitrário delimitado pelo acaso
do local de residência ou ascendência.

Mas, se a autoridade reside num todo coletivo, é evidente que, com a


discordância de uma única pessoa, esse todo não existe ou não funciona
mais; nesse caso, nenhuma ação geral poderia ser tomada legitimamente.
A premissa básica desapareceu. Na prática, a democracia deve então
abandonar sua própria suposta entidade de todo coletivo e contar apenas
com a maioria. Mas a maioria é somente uma parte; assim, o governo da
maioria implica, de maneira inconcebível, que a parte é maior que o
todo. Além disso, às vezes não é possível se obter nem mesmo a maioria;
existe uma pluralidade de cursos de ação; nesse caso, uma minoria deve
comandar diversas outras minorias que, se somadas, são maiores que ela
em número ou peso. Essa é a contradição inerente da teoria da
democracia. Em qualquer situação, a liberdade pessoal é varrida logo no
início, com a transição teórica das partículas para a massa ou da unidade
para a soma. A escravidão de uma minoria, ou de “estrangeiros”, é
bastante consistente com o governo da maioria.2

Mas, por justiça, se um homem não tem o direito de comandar todos os


outros — o recurso do despotismo — também não tem qualquer direito
de comandar nem mesmo um outro homem; e dez homens, ou um
milhão, também não tem o direito de comandar nem mesmo um único
outro homem. Dez vezes nada é nada e um milhão de vezes nada é nada.

A objeção material à democracia é que ela não tem estrutura. Esse


defeito prático corresponde ao defeito moral. A gravidade determina os
movimentos de uma agregação de partículas separadas sobre uma dada
superfície; com cada perturbação, cada partícula é sujeita ao acaso
descontínuo das probabilidades; se uma quantidade delas se move em
conjunto pelo mesmo impulso, é uma massa deslocada. A diferença ativa
de opinião na democracia ou é o descolamento de uma partícula ou é
uma massa deslocada. Como disse Madison3: “não há remédio para os
males da facção”. Uma facção é massa fragmentária, com os diversos
fragmentos sendo jogados uns contra os outros pela força que ocasionou
a divisão.

2
O clichê moderno: “Isto é uma democracia, eu sou o governo” não faz sentido.
Mesmo como uma agência, o governo é uma organização formal com pessoal
autorizado, da qual o cidadão privado não é membro. Quando várias pessoas
contratam um árbitro, elas evidentemente não são o árbitro, embora este ocupe a
função pelo acordo delas. (N. da A.)
3
James Madison, quarto presidente dos Estados Unidos. (N. do T.)

- 116 -
XII. A Estrutura dos Estados Unidos

Em muitas ocasiões, nações diversas apresentaram certas aptidões em


um grau incomum. Diferentes períodos e lugares ficaram marcados pelo
florescimento esplêndido de talentos especiais. Tais manifestações são
creditadas de maneira vaga ao espírito da raça, mas essa frase não resiste
a uma análise. Os elementos são normalmente misturados na origem, de
maneira que uma cultura de certa maneira eclética tornou-se homogênea
pelo desenvolvimento, embora tenha permanecido aberta a idéias novas.
(Mesmo uma sociedade rigorosamente fechada como o Japão recebeu
uma inspiração estética da China.) Mas o pré-requisito deve ser a
existência de condições, ou de um modo de associação, que não
impeçam esse desenvolvimento de faculdades inatas.

Se examinamos as obras e pensamentos dos homens que fundaram os


Estados Unidos, fica evidente que eles tinham um senso estrutural
altamente desenvolvido, um notável sentimento e entendimento de
forma, proporção, perspectiva. Eram uma nação de arquitetos e
pensavam em matemática tão “naturalmente” como em palavras. São
indicações do contexto intelectual do período, de forma alguma
acidentais, que George Washington fosse agrimensor (embora de família
nobre); que Thomas Jefferson, advogado por profissão, fosse
apaixonadamente interessado em arquitetura; ou que Benjamin Franklin,
comerciante e artesão sem experiência náutica, fosse dado à
experimentação científica e não visse nenhum problema em se propor a
desenvolver sozinho uma fórmula para encontrar uma posição no mar.
De fato, o livro-texto padrão sobre navegação foi composto por um
cidadão da Nova Inglaterra, Nathaniel Bowditch, que não teve educação
formal avançada e não era navegador. Essa predisposição não era de
modo algum excepcional. Roger Sherman, formado na humilde
profissão de sapateiro, estudou matemática por conta própria a tal ponto
que conseguiu calcular um eclipse lunar. Uma ocasião, foi convidado a
discursar na inauguração de uma ponte.4 Caminhou cuidadosamente por
sobre a estrutura e disse uma única frase: “Não vejo, mas a ponte está
firme.” Quando os habitantes da Nova Inglaterra usavam habitualmente
a expressão “eu calculo”, é o que queriam dizer. Eles calculavam. Roger
Sherman foi responsável pelo método dual de representação nas casas do
Congresso — pelo voto popular na Câmara, com deputados distribuídos
proporcionalmente à população, e por igualdade entre os Estados no
Senado. Seu senso estrutural era sólido; conseguiu as bases regionais e a
função de massa-veto de uma vez. Ele sabia o que ficaria firme.

4
HENDRICK, Burton J. Bulwark of the Republic. Little, Brown & Co. (N. da A.)

- 117 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Para entender porque as bases não podem ser estabelecidas por sufrágio
popular sem qualificação de propriedade, é necessário apenas tentar um
equivalente com qualquer outro material físico. Seja a substância em que
a estrutura deve se apoiar composta de partículas separadas de igual
tamanho e peso, cada uma com possibilidade de se mover. Obviamente,
nada pode se firmar sobre ela. Um pilar ou alicerce não pode ser fixado
num amontoado de munição ou num monte de areia. Deve haver algo
sólido, auto contido e imóvel. Uma área regional corresponde a essa
descrição e sustentará uma base permanente de representação política. A
área deve estar claramente circunscrita e a representação deve pertencer
a ela e não aos móveis habitantes, que podem vagar por aí e cruzar as
fronteiras quando quiserem.

O não entendimento de que uma organização política é composta de


estrutura e mecanismo, ou seja, uma base fixa sobre a qual agências de
ação são acopladas, causou inúmeros desastres ao longo dos tempos.
Esses componentes foram lamentavelmente confundidos na teoria
feudal, na qual as áreas regionais eram a base estrutural real, mas se
acreditava que a família cumpriria essa função. Quando se chegou ao
ponto em que não havia herdeiros para uma família territorial, outra
sucessão foi estabelecida; mas ainda assim os homens não entenderam a
questão. Precisando de uma base imóvel, sua solução incrivelmente
irracional foi prender os homens à terra, esmagando corpos vivos sob o
peso dos pilares. Mas tudo o que deveria ter sido feito é distribuir a
representação conforme a área. Para fazer isso, entretanto, a área precisa
ser estabelecida como uma entidade política, e ser assim representada;
isso só pode ser feito nomeando-se o representante pela organização
política local, e não pelo voto popular. Deve haver soberania local
delimitada na área.

Por outro lado, a representação direta dos votantes numa agência


definida de governo é necessária para utilizar a função da massa, ou seja,
da população agregada. A representação da massa pode ser efetivada
apenas por delegados em proporção à quantidade de pessoas,
independentemente das diversas áreas que formam as bases.

Assim, usando os materiais disponíveis, de acordo com princípios


arquitetônicos e mecânicos, os fundadores dos Estados Unidos
resolveram o problema pelo qual o Império Romano fracassou. A
Constituição dos Estados Unidos é um croqui arquitetônico e mecânico,
no qual o projeto é traçado em seus princípios mais gerais. São tão
simples como o projeto de uma fundação, de um arco, de um cilindro de
pistão ou de uma transmissão excêntrica; e, como esses fundamentos,
encarnam relações; e são, portanto, capazes de aplicações de infinita

- 118 -
XII. A Estrutura dos Estados Unidos

complexidade. Mas o projeto intrínseco deve ser mantido sempre. Se


as fundações forem removidas, ou a pedra angular retirada, o arco cairá;
se a cabeça do cilindro do pistão for queimada, a ação cessará; se for
solta uma ponta da haste excêntrica, ela só poderá sair batendo em tudo e
esmagar o mecanismo inteiro. Um maior volume de energia não altera,
nem pode alterar, as relações necessárias envolvidas. A crença de que
alteraria é a ilusão fatal da atualidade. Um maior volume de energia
tornou-se o pretexto para destruir as bases regionais, quando elas
deveriam ter sido fortalecidas.

Examinemos a Constituição como ela foi originalmente criada, incluindo


o Bill of Rights, estritamente de acordo com seus méritos e à luz de seus
resultados, como um plano arquitetônico e um aparato mecânico de
outros tempos pode ser estudado hoje por arquitetos e engenheiros
modernos. Descobriremos que ela é fantástica em sua correção, no
respeito à relação entre massa e movimento, que funciona por meio da
associação entre seres humanos; e com relação à liberação e à aplicação
de energia.

O Bill of Rights e a cláusula de traição tomados juntos estabelecem o


indivíduo como o fator dinâmico. O Bill of Rights protege
completamente do controle político as faculdades e os instrumentos da
iniciativa e do empreendedorismo. Nenhuma lei pode ser aprovada
contra a liberdade da mente, seja na religião, no discurso ou na imprensa;
nem para restringir o intercâmbio de idéias em reunião pacífica; nem
para impedir a expressão da opinião particular de indivíduos ao governo,
por petição. Nenhuma lei pode privar o indivíduo do direito de portar
armas. Soldados não podem ser aquartelados entre os cidadãos em tempo
de paz; nem mesmo em tempo de guerra, exceto sob regulação civil. Não
se pode entrar na casa de nenhum homem, exceto com um mandato
formal, por causa de uma acusação específica autorizada por lei e restrita
ao propósito expresso. Ninguém pode ser julgado a menos que tenha
sido indiciado por um crime, nem condenado por julgamento secreto ou
sem testemunhas e advogado. E o mais importante para a manutenção
desses direitos, a propriedade privada não pode ser tomada para uso
público sem justa compensação. Finalmente, tentativas da parte do
governo de anular essas salvaguardas por meios indiretos, fiança
excessiva, multas excessivas e tortura (punições cruéis e incomuns)
foram proibidas. (Fiança excessiva só pode significar fiança fixada em
uma soma que estaria além dos meios de uma pessoa média conseguir.
Uma multa excessiva seria uma soma maior do que o delito poderia

- 119 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

envolver; se isso não fosse proibido, uma multa seria uma maneira fácil
de confiscar a propriedade de qualquer um ao menor pretexto.)5

A cláusula de traição permanece singular em todo o longo registro de


instituições políticas. Em primeiro lugar, ela declara que não existe o
crime de traição em tempos de paz. “Traição contra os Estados Unidos
consistirá apenas em mobilizar para a guerra contra eles, ou aderir a seus
inimigos, dando-lhes auxílio ou conforto.” Nada, exceto rebelião armada
ou unir-se a uma nação inimiga — e nações, por definição, só são
inimigas quando em guerra —, pode ser traição. Nenhum tipo de
oposição pacífica ou pessoal ao governo ou a membros do governo pode
ser classificado como traição. Mesmo o ataque forçado ou resistência de
uma única pessoa como tal (não tendo conexão ou acordo com outras
pessoas ou com um governo estrangeiro para o mesmo fim), dificilmente
poderia ser interpretada como “traição”, uma vez que não constituiria
“mobilizar para a guerra”. A traição também deve ser “um ato
manifesto”, não uma mera expressão de opinião; e a condenação não
pode ser baseada em evidências circunstanciais; são necessárias duas
testemunhas do ato. Na teoria européia, era traição atacar a pessoa do rei,
mesmo por um motivo não político. O homem e o cargo eram
considerados inseparáveis. Um atentado semelhante contra um membro
de um governo republicano verdadeiro é um delito criminal estritamente
pessoal. Por essa inédita limitação da traição, o governo ou a
administração são impedidos de impor silêncio quando cometem
transgressões. Os meios de represália contra críticas ou exposição não
são permitidos a seus membros.

Mas a cláusula de traição também contém uma provisão significativa e


singular. “Nenhuma condenação por traição causará corrupção de
sangue; nem confisco, exceto durante a vida da pessoa condenada”. É
duvidoso se um americano médio de hoje entenderia prontamente o
significado da expressão “corrupção de sangue”, ou a limitação do
confisco ao tempo de vida da pessoa indiciada por traição. Mas a
primeira restrição definiu a culpa como pessoal; e a segunda definiu a
propriedade privada como pertencente a indivíduos. Ambas contradizem
a teoria coletivista do grupo como superior ou antecedente ao indivíduo.
É evidente, pelos comentários espantados de nossa imprensa
contemporânea, que os americanos se esqueceram completamente do
fato de que, antes de os Estados Unidos virem a existir, as leis da Europa
permitiam a punição de todos os membros de uma família pelo crime de

5
A proibição constitucional a multas excessivas foi completamente ignorada pela
legislação recente, sem uma palavra de protesto dos cidadãos e sem nenhuma
tentativa de apelar aos tribunais. (N. da A.)

- 120 -
XII. A Estrutura dos Estados Unidos

qualquer um de seus membros. Uma vez que a família era a unidade


política, as honras eram herdadas e o privilégio pertencia em algum grau
a todos os membros da família, parecia justo e lógico que toda a família
sofresse proporcionalmente pela delinqüência de qualquer membro. A
pena capital raramente era aplicada a todos, mesmo nos tempos mais
remotos. Mas penas menos extremas, como o exílio, o aprisionamento
ou o rebaixamento de status, não eram incomuns por mero parentesco;
da mesma maneira, a propriedade da família era sujeita ao confisco total
por um delito do seu chefe, mesmo que ele fugisse da jurisdição ou
morresse antes de ser julgado. Tudo fazia parte do mesmo pacote, honras
familiares, propriedade familiar, culpa familiar e confisco familiar. Era
naturalmente difícil manter a doutrina eclesiástica de propriedade
privada contra a ameaça do estado, embora a Igreja nunca tenha
abdicado dessa posição. A propriedade familiar é evidentemente
propriedade privada, diferenciada da propriedade estatal ou comunal
como norma; também segundo a doutrina cristã, a culpa é pessoal. Mas,
com uma acusação de traição, o governante secular podia usar a unidade
familiar como pretexto para confiscar toda a propriedade da família; e,
sob a cobertura desse procedimento, recuar ao sistema político do
feudalismo e alegar que a propriedade não era realmente privada, mas
mantida sob posse com usufruto da coroa ou do chefe supremo, e que a
posse deixaria de existir se a lealdade do possuidor não se mantivesse.
Títulos de terra vinham de tanto tempo atrás e foram usados tão
freqüentemente e por tanto tempo dessa maneira, emitidos por senhores
locais ou conquistadores, que a questão era extremamente complexa.

Por outro lado, durante o período de estabelecimento das colônias


americanas, a prática de punir severamente famílias pela culpa de um
membro foi caindo em desuso, especialmente na Inglaterra, de onde foi
desaparecendo junto com a servidão. Mas, mesmo na Inglaterra, a
traição podia ser imputada por uma ampla gama de ações, ou por meras
palavras; e o confisco podia ser feito após a morte.

Mas a Constituição Americana dizia, por meio de sua cláusula de


traição, que a propriedade privada pertence aos indivíduos por título
irrevogável. Se uma pessoa indiciada ou condenada por traição fugisse,
suas propriedades poderiam ser seqüestradas (em confisco) enquanto ela
estivesse viva como fugitiva da justiça; mas, no momento de sua morte,
o título passaria desimpedido para seu herdeiro legal. Nenhum membro
de sua família poderia ser punido por mero parentesco; ninguém pode
ser considerado culpado pelo feito de outra pessoa. Esse é o significado
da proibição da “corrupção de sangue”. Antes do ressurgimento do
comunismo, até a Rússia havia em grande medida adotado a prática

- 121 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

americana; mas foi a América quem primeiro declarou o princípio como


absoluto.

Esse dispositivo também impedia o Estado de possuir um poder invisível


e inespecífico sobre um acusado por meio de ameaças contra sua família.
Um homem íntegro pode enfrentar sua própria morte com serenidade,
mas ceder ante o prospecto de tortura ou mesmo de penúria para sua
mulher, seus filhos, seus pais ou irmãos. É vergonhoso para nossas
instituições educacionais e para a inteligência política dos americanos
que, durante a discussão dos famigerados “processos de Moscou”, não
tenha havido um comentário indicando conhecimento da salvaguarda
constitucional americana contra julgamentos daquele tipo, e da base
daquela salvaguarda na propriedade privada individual; nem mesmo da
teoria política coletivista que admitia o procedimento russo até que o
exemplo dos Estados Unidos fizesse com que este caísse em desuso, por
vergonha.

Para os americanos e pelo axioma moral do seu sistema político,


julgamentos como os de Moscou são uma perversão abominável da
justiça. Mas, com o retorno do coletivismo, a imputação legal de culpa
coletiva também retorna inevitavelmente.

Todas essas provisões do Bill of Rights e da Constituição são de extrema


importância para o fluxo de energia; o fato que elas expressam é a causa
da expansão sem precedentes dos Estados Unidos em extensão territorial
no tempo dado, por ter provocado a ainda mais extraordinária extensão
do campo da ciência física e da invenção mecânica. Em cento e
cinqüenta anos, os homens subitamente ampliaram e corrigiram seu
conhecimento de princípios científicos que tinham levado muitos
milhares de anos para serem apenas descobertos; e desenvolveram meios
de aplicação que possibilitaram um simultâneo crescimento populacional
e uma elevação do padrão de bem-estar além dos sonhos da humanidade
no passado. Nada desse tipo jamais havia ocorrido no mundo antes; a
história não revela nada comparável aos Estados Unidos como nação.
Pode-se argumentar que as contribuições ao conhecimento científico e à
invenção prática não se originaram apenas nos Estados Unidos. Mas foi
a existência dos Estados Unidos e a conseqüente demonstração e difusão
da liberdade que possibilitaram as conquistas da ciência na Europa.

O que aconteceu foi que o dínamo da energia usado na associação


humana foi encontrado. Está no indivíduo. E foi protegido da
interferência política por uma reserva formal, junto com os meios e
materiais pelos quais pode organizar o grande circuito mundial de
energia. O dínamo é a mente, a inteligência criativa, que nosso Bill of

- 122 -
XII. A Estrutura dos Estados Unidos

Rights e nossa a cláusula de traição declararam livres de controle


político. Os meios materiais sobre os quais a inteligência se lança pela
iniciativa é a propriedade privada. Nada mais serve.

Da mesma maneira, a estrutura de governo foi estabelecida sobre uma


base duradoura, sem prender os homens embaixo da fundação. Áreas
regionais foram delimitadas e os instrumentos de ação política foram
vinculados a elas, sem que a lei confinasse ninguém em uma dada área;
sem que o poder de governar tais instrumentos fosse confiado a pessoas
por direito hereditário; e sem que tal poder fosse tornado ilimitado. Os
instrumentos foram devidamente definidos como agências. Pertenciam
aos diversos estados como tais. Esse efeito foi garantido pelo método de
nomeação ao Senado. Os senadores eram escolhidos pelos corpos
legislativos dos estados; ou seja, seu cargo era vinculado ao estado,
sendo derivado do estado; diferentemente dos governadores provinciais
romanos que eram nomeados pela autoridade central. O impulso era
contra o centro, em vez de ser a partir do centro; portanto, se opunha ao
peso da superestrutura. Por outro lado, o senador não tinha nenhuma
função política dentro do estado que representava. Assim, o cargo não
teria nenhuma tendência intrínseca de separatismo. Tinha efeito apenas
no centro. As pressões eram duplamente equalizadas. Os diversos
estados também preservavam sua integridade política ao manterem a
autoridade primária de qualificar eleitores para as eleições federais.6 Em
todo caso, a cidadania, como condição geral, era um atributo federal; ou
seja, um cidadão de qualquer estado tinha direitos de cidadania em todos
os outros estados. Isso dava coesão às partículas para formar uma nação,
sem prejuízo às bases regionais. Os estados eram limitados a uma “forma
republicana de governo” pela autoridade federal.

Os cidadãos, pela instituição da propriedade privada, tinham resistência


contra todas as agências de governo. A propriedade privada é a base
permanente do cidadão; não existe outra. O estado tinha de ser uma área
regional com representantes. Para preservar sua função básica, também
era necessário que os cidadãos tivessem voto direto para o veto de massa
inercial; por isso as duas casas legislativas, o Senado para os Estados e a
Câmara dos Deputados para os cidadãos como indivíduos. A
possibilidade de legisladores usarem seus cargos para uma tomada direta
de fundos públicos era evitada ao proibi-los dessa ação com respeito ao
mandato corrente.

6
A proposta de abolir, por lei federal, o imposto de capitação (em inglês, poll tax)
determinado por alguns estados do sul como qualificação do direito de voto é
absolutamente inconstitucional. (N. da A.)

- 123 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

O Senado, tendo o mais longo dos mandatos e representando os estados


como entidades permanentes, tinha o controle das relações exteriores
pela ratificação, com as negociações atribuídas ao executivo. O
executivo não tinha nenhum meio específico de propor legislação
doméstica e apenas um veto provisório ou protelatório.

A Câmara dos Deputados, eleita por voto direto dos cidadãos, tinha o
poder de expressar a propriedade e a função da massa, o veto final pela
negação, tendo a atribuição da iniciativa de estabelecer tributos e
conceder suprimentos. Todos os suprimentos deveriam ser concedidos
apenas em quantias determinadas para objetivos designados; qualquer
concessão deveria, portanto, ser usada no tempo especificado e teria de
ser concedida novamente. Se essa concessão não é dada, o veto da
inércia está em vigor. É necessário apenas não fazer nada.

Para impedir que os estados maiores, mais ricos ou mais populosos


jogassem seu peso contra os estados menores, sua representação como
estados era igual. Para impedir que os estados menores ou mais pobres
se alinhassem e espoliassem os estados mais opulentos — jogando seu
peso conjunto — a representação popular era proporcional ao número de
cidadãos. Para impedir que a autoridade central extorquisse os estados
mais ricos para comprar os mais pobres, determinava-se que o imposto
federal sobre as pessoas podia ser arrecadado apenas em proporção à
população; enquanto tributos sobre bens (tarifas alfandegárias, impostos
sobre o consumo, taxas) deveriam ser uniformes em todo o país. Ou seja,
não poderia haver favorecimento de nenhum estado com respeito a
manufaturas, taxas portuárias, etc. Isso impedia os monopólios políticos
que eram a ruína da Europa. E os estados não podiam, de maneira
nenhuma, estabelecer tarifas de fronteira ou portuárias.

Os diversos estados foram proibidos de cunhar moeda ou emitir papel-


moeda (“bills of credit”), ou de fazer qualquer coisa, exceto ouro ou
prata, moeda corrente. Portanto, a linha de transmissão de energia não
poderia ser cortada ou desviada pela agência política de nenhum estado.
E o governo federal não foi autorizado a emitir papel-moeda. Embora
ele tenha feito e faça isso, a autoridade não está na Constituição. É
expressamente estabelecido pela Constituição que os poderes que não
foram delegados à autoridade federal não podem ser exercidos por ela.
Também não foi concedido ao governo federal o poder de cancelar
contratos, embora ele tenha feito isso recentemente; mas os estados
foram proibidos expressamente.

O Judiciário federal deveria ser nomeado vitaliciamente (sujeito a


impeachment por abuso do cargo) para ser um freio aos ramos

- 124 -
XII. A Estrutura dos Estados Unidos

Legislativo e Executivo. A questão infindavelmente debatida de “revisão


judicial” é mera estultificação; a jurisdição da Suprema Corte é
especificada apenas sobre casos “levantados sob esta Constituição, as
leis dos Estados Unidos e os tratados feitos sob a autoridade delas”,
enquanto “esta Constituição, e as leis dos Estados Unidos que devem ser
criadas em conseqüência dela, serão a lei suprema da terra”. Nenhum
sofisma pode fugir da proposição de que a lei suprema deve governar o
veredito; é isso que supremo significa. Mas, depois de discutir por cem
anos contra essa função adequada e indispensável da revisão judicial, os
pseudoliberais inventaram uma perversão hipotética particularmente
viciosa dela. O juiz Frankfurter a expressou, escrevendo sobre “os
perigos e dificuldades inerentes no poder de rever a legislação. Porque é
uma tarefa sutil decidir, não se a legislação é sábia, mas se os
legisladores estavam certos em acreditar que ela era sábia.” A tarefa da
revisão judicial não é decidir se a legislação é sábia ou se os legisladores
estavam certos em acreditar que ela é sábia. A revisão judicial limita-se a
determinar se uma dada lei contraria a Constituição, a lei suprema; e ela
o faz se uma legislatura ultrapassa seu poder constitucional ao aprovar a
lei em questão — a legislatura não tem nenhuma autoridade fora da
Constituição.

A determinação constitucional para a defesa armada era coerente com a


estrutura política. A autoridade original do governo federal era suficiente
para alistar e fornecer um exército permanente, sem referência direta aos
diversos estados; mas os suprimentos só poderiam ser apropriados por
um período de dois anos. Isso tenderia a manter o exército profissional
num tamanho razoável. Como o método original era o alistamento
voluntário, obviamente a intenção era essa. Por outro lado, o direito
primário de portar armas e formar companhias milicianas era reservado
aos cidadãos; mas, se tais corpos milicianos devessem servir numa
guerra declarada, seus oficiais deveriam ser nomeados pelos estados;
depois disso eles estariam sujeitos à convocação pelo governo federal.
Por toda parte, a iniciativa permanecia com o indivíduo, como homem
livre; mas a ação formal repousava sobre as autoridades políticas, que
possuíam o poder inibitório formal. Embora uma guerra defensiva seja
justa e necessária, a guerra envolve destruição; por isso, o poder
inibitório deve regulá-la. Mas a ação criativa deve ser livre.

Por sua percepção dessas relações morais e por encarná-las


estruturalmente, a Constituição dos Estados Unidos foi descrita, de
maneira justa, como o mais notável documento político criado de uma
vez pela mente do homem.

- 125 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 126 -
XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura

A
s três grandes idéias foram reunidas afinal sem obstáculos; a
alma individual e imortal, exercendo o autogoverno pela lei e
livre para buscar o conhecimento por meio da razão. Depois de
dois mil anos, os recursos da ciência foram liberados para a aplicação
produtiva. A Declaração da Independência e a Constituição foram os
instrumentos temporais desse evento.

Mas, em seu projeto original, a Constituição teve de admitir um defeito


primordial, uma contradição irreconciliável. A escravidão era uma
instituição existente. Qualquer que fosse a forma de governo adotada
pela União, ela devia extinguir a escravidão ab initio (como um fato
oposto à ordem moral do universo) ou tolerá-la, desviando-se dessa
declaração axiomática. Aqui, a forma federal, que é indispensável para a
estabilidade, infelizmente admitiu um expediente ambíguo. Foi possível,
temporariamente, deixar a escravidão para a jurisdição estadual. Sem
dúvida, a opinião dos donos de escravos estava lastreada em sua posse
iníqua; mas havia também um pretexto plausível para o adiamento.
Havia um temor sincero de que os negros, muitos recém-trazidos da
África, pudessem constituir um ônus e um perigo se libertados
imediatamente. Não havia então a questão do voto, resolvida pela
qualificação de propriedade. Apenas a dificuldade de assimilar à vida
moderna, fora de uma relação servil, pessoas trazidas das selvas.
Ninguém sabia exatamente como isso poderia ser feito, se por educação
gradual dos negros ou se eles deveriam ser mandados de volta para a
África. Enquanto isso, como o governo federal deve controlar as
fronteiras externas, tinha autoridade para proibir a importação de
escravos do exterior, e essa intenção foi indicada indiretamente. O
sentimento implícito era contrário à escravidão. Por outro lado, a
escravidão fez com que fosse incluída uma cláusula na Constituição
provendo a extradição de escravos que fugissem cruzando fronteiras
estaduais. Que o assunto era embaraçoso, observa-se pela linguagem; as
palavras escravo e escravidão não são usadas. A expressão é uma
“pessoa mantida em serviço ou trabalho”. (Na época, a descrição
incluiria aprendizes brancos livres durante o período de aprendizado.)
Escravos então eram pessoas, pelo menos; e também eram contados
como pessoas na distribuição proporcional para a Câmara dos
Deputados. Mas permanecia o fato inegável de que eram escravos; e a
Constituição não os declarava livres por direito.

- 127 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

O dano permanente infligido pela inclusão da escravidão é que ela


corrompeu o princípio sobre qual a nova nação se criou. A emancipação
pelos senhores de escravos como um ato de generosidade ou pelos
estados como um ato de autoridade não poderia jamais equivaler a
iniciar com a liberdade como o direito universal do qual a autoridade se
origina.

Além disso, a continuidade da escravidão tornava impossível que o Bill


of Rights limitasse os governos estaduais como fazia com o governo
federal. A existência da escravidão necessariamente prejudica o
exercício dos direitos dos homens livres. Se o poder do estado faz de um
homem um escravo, evidentemente ele o priva de sua liberdade de
expressão e reunião, de segurança pessoal e do direito à propriedade;
portanto, fica difícil proibir que esses abusos sejam cometidos contra
qualquer pessoa. A suposta diferença entre “direitos humanos” e
“direitos de propriedade” é uma confusão verbal; direitos de propriedade
são direitos humanos. A questão verdadeira é entre o individual e o
coletivo. Os únicos argumentos apresentados para defender a escravidão
apelam para o coletivo, seja raça ou estado, para autoridade e coação; ao
passo que, se os direitos são inerentes ao indivíduo, nenhum homem
pode ser propriedade e todos os homens devem ter o direito de ter
propriedade.

Esse defeito moral causou um defeito estrutural, como não poderia


deixar de acontecer. A lógica foi invalidada, de maneira que qualquer
discussão era menos que uma futilidade. Os estados escravagistas
alegavam que sua soberania de estados era suficiente para fazer de um
homem um escravo. Então, a mesma soberania num estado livre deveria
libertar qualquer pessoa que cruzasse a fronteira. Mas a cláusula de
extradição negava esse atributo; porque a extradição de um escravo
como tal é completamente diferente da extradição de um criminoso. O
criminoso não se torna menos culpado depois que cruza a fronteira, ao
passo que se presume que o escravo se torna livre; ao devolvê-lo, o
estado livre é obrigado a violar sua própria lei básica.1 É verdade que os
estados livres aceitaram a condição injusta, para começo de conversa; a
união parecia tão desejável que eles capitularam sobre esse ponto. Os
estados escravagistas podiam dizer que os estados livres poderiam ter e
poderiam extraditar escravos se quisessem. Porém, todos os estados
tinham lutado por liberdade. Ambos os lados comprometeram

1
Nações civilizadas não permitem a extradição de criminosos políticos, porque o
delito é estritamente local; um estado que entrega um refugiado político está assim
atuando como agente do outro estado, em detrimento de sua própria soberania; ao
passo que, ao extraditar um criminoso, atua como agente da justiça. (N. da A.)

- 128 -
XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura

irreversivelmente sua posição moral. Se os estados livres diziam que a


escravidão era errada, continuariam a encorajá-la ou denunciariam a
Constituição? Mas os estados escravagistas deviam amparar seu pleito
na Constituição e a Constituição estava aberta para revisões. Se uma
revisão chegasse a acontecer, eles aceitariam a mudança?

O conflito ficou suspenso, enquanto permanecia a esperança de que a


escravidão fosse gradualmente extinta. Mesmo assim, desde o início
havia uma apreensão sobre a permanência da União. Isso ficou evidente
no processo contra a nebulosa conspiração Burr-Blennerhasset2, que foi
uma energia tão forte na direção oeste que ninguém sabia exatamente
qual era a intenção, nem mesmo os supostos conspiradores. O impulso
continuaria até alcançar o Rio Grande e a Costa do Pacífico, chegar a
Puget Sound e saltar para o Alasca. E a premonição estava certa; rasgou
a nação no meio.

Mas onde estava o verdadeiro ponto fraco? A menos que a questão seja
colocada nos termos relevantes, não pode existir resposta. Embora a
Guerra Civil tenha ocorrido há mais de setenta anos, a controvérsia
continua aberta; o rompimento se deu por causa da escravidão, dos
direitos dos estados ou da clivagem entre uma economia agrária e outra
industrial? Os estados exigiram soberania em excesso? Se exigiriam, foi
por causa da escravidão?

A divisão dos poderes soberanos entre um governo federal e seus estados


componentes não é uma questão simples; o passado está cheio dos
destroços de ligas e federações. A questão completa da soberania é
complexa demais. Na prática, sempre existe uma margem de discussão.
A soberania territorial é delimitada por fronteiras. Essa é a virtude do
nacionalismo; é uma restrição espacial do poder político, uma última
salvaguarda para o indivíduo, uma chance de fugir da tirania local. O
avanço do “internacionalismo” sempre implica num correspondente
prejuízo à liberdade pessoal; mas isso é feito tirando-se a soberania de
toda parte. A soberania se sustenta na nação; seus poderes são exercidos
pelo governo. De ordinário, todos os poderes estipulados são
considerados força num governo; e a ausência de qualquer poder no
governo é considerada um grau de fraqueza. A verdade é que poderes
que são essencialmente impróprios, porque contrários à ordem moral do
universo, são fraquezas; e, da mesma forma, poderes concedidos a uma

2
Em 1807, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Aaron Burr, foi acusado de
traição pelo presidente Thomas Jefferson. Ele havia reunido uma expedição de cerca
80 homens, baseada na ilha particular de um rico anglo-irlandês chamado Harman
Blennerhasset. O objetivo declarado da expedição era colonizar uma área na
Louisiana. A acusação contra ele nunca foi muito clara, e ele foi absolvido. (N. do T.)

- 129 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

agência inapropriada. Impõem peso, estresse ou pressão de maneira que


nenhuma estrutura consegue suportar. Quando está em questão um
governo “fraco” ou “forte”, a conotação habitual dos termos se relaciona
apenas à superestrutura; e o procedimento comum é mais centralização
de poderes, que é o mesmo que um aumento no volume da
superestrutura e um maior desvio de energia para ela. Além das forças e
proporções corretas, isso é fatal; a menos que a resistência da base seja
maior que o peso ou esforço da superestrutura, o conjunto vai
desmoronar. Governos fracos são aqueles que não possuem uma
oposição adequada e com instrumentos legítimos a partir das bases
regionais e do veto de massa. A incompetência absoluta do governo é
finalmente alcançada por aquilo que se chama de poder político
absoluto, seja sob o nome de democracia ou de sincero despotismo.3

Então, tanto os estados como o governo federal eram fracos demais, por
exigirem poderes impróprios ou a distribuição imprópria de um poder
legítimo. O último erro anulou um atributo vital da soberania, sua
dimensão espacial. A menos que essa diferença entre poderes estipulados
e força intrínseca seja entendida, não é possível uma discussão relevante
sobre o assunto.

A função dos estados numa federação é fornecer bases e estrutura


vertical; essa função é estática. Espera-se que eles resistam contra
pressões de cima, que tendem a separá-los, curvá-los para fora. De
maneira estrita, não é possível que uma parte de uma fundação ou das
estruturas verticais sobre ela tenha força estática em excesso, verdadeira
autonomia local. Uma estrutura desmorona por sua fraqueza, não por sua
força. Se ela se rompe violentamente, deve ser por pressões e estresses
desbalanceados. Isso pode ocorrer por bases desiguais, conexões
cruzadas defeituosas, ou uma superestrutura excessiva distribuída
desigualmente. Se a escravidão não tivesse sido admitida na
Constituição por tolerância, seu projeto original seria maravilhosamente
sólido; mas sua inclusão introduziu os três tipos de defeito. Primeiro,
tornou as bases desiguais. Com isso, causou pressões cruzadas
desbalanceadas, já que a cláusula de extradição de escravos dava aos
estados escravagistas um ponto de pressão sobre os estados livres. E, no
longo prazo, a escravidão tornou-se uma desculpa para acrescentar peso
excessivo à superestrutura e distribuí-lo desigualmente.

Assim, todas as três causas alegadas da Guerra Civil fazem parte dessa
única causa. E, como coroação dos males, mais uma vez o problema

3
Exemplificados no colapso do velho regime na França, na Rússia czarista, na Turquia,
etc. (N. da A.)

- 130 -
XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura

aparente mascarou o problema real. O problema aparente era a


preservação da União. Mas a condição antecedente da união federal é a
existência de estados. O problema real era a preservação dos estados. Se
isso não fosse possível, a União deveria ou se desintegrar ou se
solidificar numa massa.

Se a estrutura é defeituosa, o fato de que ela é o melhor que os


construtores puderam fazer, ou pensaram que poderiam fazer, não vai
evitar as conseqüências físicas. Mas, como os assuntos humanos
pertencem ao reino da lei moral, que é de uma ordem mais elevada que a
lei mecânica, o resultado pode confundir todas as probabilidades
mensuráveis. Uma vez que uma máquina foi concebida, é possível
calcular seu desempenho. Mas não é possível estimar previamente quais
máquinas o homem pode inventar. As máquinas não possuem existência
ativa independente e, sendo criações da mente humana, o sistema em que
operam deve corresponder à natureza do movedor primordial. É um
clichê popular hoje em dia que o motor de combustão interna produziu
ou exigiu de alguma maneira um novo princípio de organização política.
Isso é ridículo. O próprio homem é um motor de combustão interna; ele
é o determinante e seus dispositivos são apenas múltiplos de suas
próprias capacidades e poderes. O motor de combustão interna aumentou
o volume de produção e de energia num longo circuito que já existia,
isso é tudo. As relações não se alteram. A linha de transmissão
necessária é a mesma: a propriedade privada. A condição necessária dos
seres humanos é a mesma: a liberdade. A única mudança é de grau, que
pode envolver apenas um requisito de mais do mesmo, segurança
absoluta da propriedade privada, liberdade pessoal plena e bases
regionais firmemente autônomas para uma estrutura federal. Por essa
razão, o potencial de uma nação não pode ser avaliado
quantitativamente. Consiste em idéias abstratas, nos axiomas de relações
humanas expressos na organização, não na riqueza material computada
em uma determinada data. A Guerra Civil exemplifica esse princípio.

Nos primeiros anos da República, todos os fatores mensuráveis eram


preponderantemente favoráveis aos estados escravagistas do sul. Eles
tinham amplos e variados recursos naturais. Seus principais produtos
agrícolas, algodão e tabaco, tinham forte demanda no mercado mundial,
gerando dinheiro e crédito. O prestígio legado por seus grandes
estadistas era um patrimônio político. Praticamente, tinham o governo
federal, a riqueza e a alavancagem legal.

O norte tinha o empreendedorismo pessoal de uma população livre.


Conforme a indústria do norte prosperava, parecia contribuir para a
dominância do sul, pelo comércio e invenções que aumentavam os

- 131 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

lucros dos donos de escravos e permitiam que eles estendessem o


território escravagista.

Essa aparência era ilusória. Subitamente, a economia livre se expandiu e


começou a ocupar um território maior que a área reservada para a
escravidão. A riqueza e o poder dos estados livres aumentavam em
progressão geométrica, dobrando e redobrando. Logo antes da Guerra
Civil, William Tecumseh Sherman4 advertiu seus amigos sulistas a não
provocarem a guerra, dizendo que uma economia agrária não pode
competir com uma economia industrial num conflito armado. Mas a
verdade é que o sul também não era uma verdadeira economia agrária;
não tinha economia própria de nenhum tipo, não possuindo um gerador
para o circuito local. Olhando além dos acasos de uma guerra específica,
era incapaz de se tornar uma nação independente naquelas condições.

O sul perdeu a Guerra Civil, como era fatal que acontecesse; e a questão
da soberania dos estados foi descartada como uma tecnicalidade, deixada
de lado pelo veredito sobre a escravidão. Ao recorrerem a guerra, os
estados escravagistas cometeram o erro moral de repudiar um contrato
depois de obter vantagens especiais por meio dele. O governo federal
estava claramente obrigado a se defender da agressão e do separatismo.
Tendo recebido sua autoridade por delegação, não teria o direito de
abandonar suas funções delegadas, a menos que fosse legitimamente
dissolvido pelos mesmos meios que o instituíram. O benefício da união
para todos os estados é tão avassaladoramente evidente que sua
dissolução, então ou agora, assume o aspecto de insânia violenta; mas se
os eventos fossem descritos como puros fenômenos, um observador
inteligente perceberia que deve ter havido algum defeito na estrutura,
como numa casa que desmorona.

Assim, a operação e as conseqüências do Ato de Reconstrução5 devem


levantar sérias dúvidas de que pudesse haver autoridade moral para
perpetuar pela força uma união de origem voluntária. Também não é
justificável alterar os termos de um contrato quando uma das partes está
sendo coagida.

Sendo feita à força, a estrutura reconstruída ainda continha um defeito


físico correspondente ao defeito moral. O Ato de Reconstrução era a
evidência imediata; varreu os estados como entidades políticas.

4
General do exército da União na Guerra Civil Americana. (N. do T.)
5
Os Atos de Reconstrução foram as condições impostas aos estados confederados
para que fossem readmitidos na União. (N. do T.)

- 132 -
XIII. Escravidão, o Defeito na Estrutura

Embora o Ato fosse transitório e tenha deixado de existir no tempo, o


dano estava feito. Na organização política, o ato específico implicou em
um poder continuado. Mesmo que seja denominado como exceção,
como expediente temporário, foi estabelecida a regra de que tais
expedientes podem ser usados. Os estados do norte não poderiam
consentir com qualquer extensão do poder federal sobre os estados do
sul sem se sujeitarem à imposição do mesmo poder sobre eles no futuro.

Não foi a libertação dos escravos que extinguiu a soberania dos estados.
A liberdade é uma pré-condição, um universal, que a Constituição
deveria ter reconhecido como primária. A destruição foi feita pela
usurpação dos poderes dos estados pelo governo federal como que por
direito de conquista.

Se o governo federal lutou e venceu uma guerra de conquista, então os


estados do norte e do sul perderam essa guerra. No lugar de genuínas
bases regionais, a Guerra Civil resultou numa divisão artificial com
interesses faccionários que iriam inevitavelmente tentar usar o poder
federal para ganhar vantagens partidárias. E, nessa lição, os estados do
oeste tiveram seu primeiro treinamento político.

- 133 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 134 -
XIV. A Virgem e o Dínamo

E ra certo que os Estados Unidos afetariam a mente da Europa,


porque eram uma projeção da experiência e das esperanças
européias, postas à prova em supostas condições naturais, como
um caso de teste contra a tradição. Os primeiros colonos trouxeram a
este país suas habilidades e ferramentas, artes e letras, teologia, moral e
ciência, seus costumes e leis; mas deixaram para trás quase todo o
aparato de imposição das leis. Não trouxeram a economia fechada nem a
religião sacramental; e a natureza fornecia recursos suficientes contra
que sobrou de autoridade oficial. Podemos assumir que qualquer coisa
que tenha sobrevivido por si mesma foi validada. A liberdade emergiu e
triunfou.

Uma crítica sutil disse: “A Declaração da Independência tirou da Europa


sua base moral”.1 A frase é perfeita; a Europa não foi colocada em uma
nova base. A idéia americana jamais chegou à Europa (como, em
circunstâncias semelhantes, a idéia da lei romana nunca foi
compreendida na Ásia). Em vez disso, os fenômenos resultantes foram
profundamente mal interpretados, acabando adaptados a uma teoria
européia divergente. As conseqüências físicas dessa discrepância moral
se tornaram evidentes imediatamente na Revolução Francesa, com o
Terror e a explosão napoleônica; mas o efeito pleno foi adiado até este
século. Em um passo, os Estados Unidos causaram a atual explosão e
desintegração da Europa. Nenhuma parcela desse dano foi feita por
inimizade. Pelo contrário, enquanto persistiu o antagonismo indicado
pela Doutrina Monroe2, a Europa tinha uma chance de se ajustar. A
amizade da América, que despejou uma torrente de energia, foi fatal.

Enquanto os Estados Unidos estavam começando a existir, como um


punhado de colônias alegremente desprezadas, algo estranho aconteceu
no pensamento europeu; por causa da ciência, ele retrocedeu ao
determinismo nas esferas social e política.

1
COLUM, Mary. From These Roots. (N. da A.)
2
A Doutrina Monroe foi uma política americana estabelecida em 1823 pelo presidente
James Monroe. Segundo ela, qualquer esforço de nações européias para colonizar
novas terras ou interferir em Estados na América do Norte ou do Sul seria considerado
um ato de agressão, exigindo intervenção dos Estados Unidos. Porém, os Estados
Unidos não interfeririam em colônias européias existentes nem em conflitos internos
na Europa. (N. do T.)

- 135 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

O livre arbítrio como doutrina positiva era a afirmação original do


Cristianismo. A morte é o único evento inevitável em toda vida humana;
portanto, foi tomada pelo mundo pagão como prova definitiva de que “o
destino de cada homem está marcado em sua testa”. Quando a morte
passou a ser considerada um evento no tempo que emanciparia a alma da
temporalidade para uma esfera mais ampla, o livre arbítrio passou a fazer
parte da fé. (As principais heresias do Cristianismo sempre pularam de
volta para o fatalismo.)3 O Cristianismo tendeu para Roma como seu
centro de organização, porque no sistema político romano o livre arbítrio
era considerado legítimo, não em uma margem precária, mas como o
princípio operativo, em contraste com o determinismo de massa da
democracia grega ou o beco sem saída do despotismo asiático.

Mas os mil anos de regime de status na Europa, apesar da modificação


preservada pela Igreja, cultivaram em seus súditos uma fadiga profunda.
Era difícil esquecer a queda do Império Romano, uma vez que os
homens lutaram inutilmente para mantê-lo funcionando; seu fracasso fez
com que perdessem a confiança em suas próprias capacidades e
habilidades. A figura do Nobre Selvagem sinaliza o descrédito do
governo de status, mas apenas por negação. A fusão gradual entre Igreja
e Estado — que ocorreu tanto nos países católicos como nos protestantes
— tirou da Igreja sua função de oposição à administração secular e
facilitou o surgimento do Estado Absoluto. Ao mesmo tempo, a
explicação de Galileu para o sistema solar, à primeira vista, levou a uma
filosofia mecanicista. A ciência aplicada à invenção mecânica parecia
confirmar essa implicação; e foi levada a especulações sobre as relações
sociais, incluindo a economia política. No conjunto, o livre arbítrio
praticamente desapareceu do contexto intelectual da Europa.

Não de maneira consciente, mas no fundo de sua mente, os europeus


sentiam que haviam tentado tanto a política como a religião e nenhuma
“funcionava”. Esse é o sentido sugerido das reflexões aparentemente
sem opinião de Montaigne. Ele não chegou à conclusão, mas parou no
ponto de inflexão. Nunca atacava nem a Igreja nem o Estado

3
Essa tendência pode não ser evidente à primeira vista, mas é conseqüência de uma
aberração secundária da lógica. A doutrina mais ampla do Cristianismo engloba tanto
a Lei Divina como a lei natural agindo sobre um princípio geral superior e um
Intercessor para moderar a justiça com a misericórdia, em consideração à imperfeição
humana e ao esforço humano na direção da verdade e do bem. O salto para o
fatalismo pode ocorrer nas duas direções; o dualismo explícito da heresia maniqueísta
entregou este mundo ao domínio do mal; por outro lado, o unitarismo absoluto pode
ser interpretado como uma visão mecanicista do universo. Mesmo a visão jansenista
da doutrina da graça faz com que a graça se torne uma compulsão, em vez de uma
oportunidade de libertação pela escolha e aceitação. (N. da A.)

- 136 -
XIV. A Virgem e o Dínamo

diretamente; procurava, em vez disso, um desvio; sua aparência exterior


de conformidade era uma fuga tácita. Quando disse que, se fosse
acusado de roubar as torres de Notre Dame, fugiria do país antes de
tentar defender sua inocência num tribunal, a conclusão é evidente: não
era possível ter justiça pela lei. A atitude é legítima como um ponto de
partida para uma investigação, mas racionalmente deveria levar a um
exame do sistema legal existente e dos corretos axiomas do direito, um
caminho que seria trilhado em seguida com resultados úteis. O que
Montaigne fez foi montar, pedaço por pedaço, fragmentos de evidências
do comportamento humano a partir dos quais o homem “natural”
pudesse ser sintetizado. Mas ele também nunca disse isso; embora suas
evidências tendam a indicar primordialmente que o homem é um produto
do ambiente. Mais tarde, quando a teoria do homem “natural” foi
formulada, a teoria mecanicista do universo havia conquistado
credibilidade na filosofia européia. Deus era um matemático; Descartes e
Newton eram Seus profetas. Na verdade, Descartes admitia que o
homem era uma exceção em sua filosofia matemática, estando
“continuamente em contato com a Idéia Divina”, mas os cartesianos de
uma geração posterior chegaram a afirmar que os animais eram meras
máquinas, incapazes de sentir dor.4 Um passo a mais e o homem
estritamente “natural” também foi reduzido a um mecanismo nesse
universo mecanicista.

Nesse ponto, alguns pensadores sociais afirmaram que, se as restrições


artificiais da sociedade fossem abolidas, o homem como mecanismo
funcionaria perfeitamente e precisamente conforme projetado. Mas não
tentaram explicar como um mecanismo absolutamente natural num

4
Foi relatado sobre um grupo de cartesianos em Port Royal (o centro jansenista):
“Eles espancavam seus cães sem remorso e riam daqueles que sentiam pena dos
animais quando estes ganiam. ‘Puro mecanismo’, respondiam, dizendo que os ganidos
e gritos eram resultado de uma pequena mola escondida dentro deles, que eram
totalmente destituídos de sensações.” Seguindo essa opinião, eles vivissectavam
animais para estudar a circulação do sangue. Esses eram extremistas. Um pesquisador
moderado protestaria dizendo que era necessário apenas que uma pessoa observasse
seus cães de espeto [Em inglês, turnspit dogs. Pequenos cães criados e treinados para
correr dentro de uma roda que girava um espeto de carne enquanto esta era assada.
Normalmente, as pessoas tinham pares de cães, para que trabalhassem
alternadamente. Os cães de espeto foram extintos no século 19. (N. do T)] — um,
preguiçoso, se esconderia quando fosse sua hora de trabalhar, enquanto o outro iria
atrás do delinqüente e o traria para executar sua tarefa — para perceber que a
questão envolvia algo mais que mecanismo… Quando Berkeley se perdeu em um
labirinto de argumentos sobre se alguma coisa existia objetivamente, o Dr. Johnson
fez um apelo semelhante ao senso comum, com exasperação compreensível,
chutando uma pedra como refutação. Foi uma resposta concludente; subjetivo é o
meu pé. O subjetivo é inconcebível sem o objetivo. (N. da A.)

- 137 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

universo estritamente mecanicista poderia ter desenvolvido e imposto


restrições “artificiais” a si mesmo, contrárias à sua própria natureza e
maquinaria. Quando a questão foi colocada, como pôde a escola
rigidamente mecanicista negar que “o que quer que seja, é o certo”,
porque não poderia ser de outra maneira? Porém, se eles desejavam
mudar a “sociedade”, deveriam supor que alguma coisa estava errada
com ela. Naquele momento, foram obrigados a ignorar essa dificuldade;
e, quando Marx avançou contra ela mais tarde com seu materialismo
dialético, sua suposta solução simplesmente asfixiou a questão,
postulando que algumas partes do mecanismo poderiam obedecer o
conselho da merluza ao caracol5, e mover-se um pouco mais rápido se
quisessem, ou retardar-se, se fossem teimosas. A máquina universal
absoluta e perfeita tinha uma propensão a ficar maluca.

Enquanto isso, é extraordinário que os colonos ingleses na América, de


origem puritana, que eram fatalistas por religião, defendessem o livre
arbítrio em seus assuntos seculares, contra a corrente da Europa. Mas foi
o que eles fizeram. Foram capazes de alcançar essa façanha intelectual
restringindo a predestinação a seu significado exato e literal de um
destino final, céu ou inferno. Nesta terra, haviam conseguido chegar à
América por seu próprio esforço, confrontando a autoridade ou
escapando dela. Então, superaram as enormes dificuldades da terra
selvagem, acabando por estabelecer um governo local. Portanto, tinham
fundamentos para acreditar no livre arbítrio político ou temporal; e, em
boa hora, provaram essa convicção, com a grande demonstração que foi
a revolução. (Não estou dizendo que somente os puritanos ou seus
descendentes contribuíram para esse resultado; mas fizeram sua parte, ao
passo que, na Europa, homens que eram originalmente da mesma fé
concordaram que a doutrina determinista servisse ao Estado Absoluto.)

A filosofia mecanicista é uma importação muito posterior na América; e


é completamente importada. Não decorre de nosso maquinário e
absolutamente não criou a era das máquinas. Quando os americanos
começaram a inventá-las e usá-las, eram da firme opinião de que
produziam e faziam funcionar aqueles dispositivos a seu bel-prazer, sem
nenhuma bobagem de que as máquinas “determinavam” ou “criavam”
coisa nenhuma. Máquinas, para um americano, ainda são uma expressão
do livre arbítrio. É difícil para um americano viajar num carro como
mero passageiro; mentalmente, ele o dirige.

5
Referência ao primeiro verso do poema nonsense A Quadrilha da Lagosta, em Alice
no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. (N. do T)

- 138 -
XIV. A Virgem e o Dínamo

Mas o que os europeus queriam era algo que funcionasse e fizesse a


humanidade funcionar junto, sem precisar de mais nada dos homens
exceto sua submissão passiva. Recusando-se a reconhecer que até
mesmo a vida de um selvagem exige uma adaptação voluntária e
extremamente ativa, os europeus se imaginaram abaixo da selvageria. A
“Natureza” se personificou no “despotismo esclarecido”; antes do final
do século 18, a Europa estava pedindo abertamente por um ditador.

“A pista central para o programa de reforma dos filósofos era sua fé na lei
natural. […] Tudo o que era necessário para destravar o milênio era um
legislador supremo, um Euclides das ciências sociais, que descobriria e
formularia os princípios naturais da harmonia social. As generalizações
matemáticas que formaram as bases da física foram propostas por poucos
pensadores audazes, e parecia uma suposição razoável que as leis
fundamentais da sociedade humana fossem, da mesma maneira, descobertas
por algum gênio inspirado, em vez de por uma assembléia parlamentar.”6

Apesar de falarem em nome da ciência, não se deram ao trabalho de usar


o método científico de definição de termos; usavam as palavras
monarquia, democracia e república de maneira permutável e da forma
mais conveniente para qualquer ditador que pudesse se aproveitar de sua
oferta. Napoleão foi a resposta. “Ao deixar indefinida a forma ideal de
governo, possibilitaram que Napoleão unisse as tradições republicana e
monárquica numa fórmula de despotismo democrático.”

Napoleão foi a criação dos planejadores acadêmicos. Mas não foi, de


modo algum, a primeira tentativa, embora normalmente seus
predecessores não sejam reconhecidos. A consorte de Jorge II7, a Rainha
Carolina, defendia a mesma doutrina e acreditava que estava colocando-
a em prática, sem o conhecimento de seus súditos, com Walpole8 como
seu agente. Mas nenhum dano ocorreu, uma vez que Walpole precisava
de que suas políticas fossem executadas pelo Parlamento. O método
indireto, pelo qual Carolina manipulava Jorge e Walpole manipulava
Carolina, simplesmente completou a transferência de poder da Coroa
para os Comuns, embora a aristocracia agrária ainda retivesse, durante o
processo de transição, a maior parte dos cargos executivos. A fonte da
idéia de “despotismo benevolente” para Carolina foi a avó de Jorge II, a

6
BRUUN, Geoffrey. Europe and the French Imperium. (N. da A.)
7
Jorge II (1683 – 1760): Rei da Grã-Bretanha de 1727 a 1760. Foi o último rei britânico
nascido fora do país. Nasceu e foi criado na Alemanha. (N. do T.)
8
Robert Walpole (1676 – 1745): estadista britânico, considerado normalmente o
primeiro homem a ser Primeiro-Ministro do Reino Unido. Esse cargo ainda não existia,
mas pode-se dizer que Walpole o ocupava de facto por causa de sua influência com o
Gabinete. (N. do T.)

- 139 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Eleitriz Sofia9, que a aprendeu com Leibniz10. Por outro caminho, a


mesma idéia foi passada para Jorge III11, que tentou encarná-la como o
“Rei Patriota”. Seus esforços bem-intencionados eram incompreensíveis
e exasperadores para os ingleses, que não tinham dissociado a razão do
senso comum; e quando Jorge tornou-se certificadamente louco,
ninguém se surpreendeu.

Mas, no continente, foi em concordância com essa teoria de um


legislador autocrático inexplicavelmente incumbido de ministrar a “lei
natural” que Voltaire se aproximou de Frederico, o Grande12, e Diderot
de Catarina, a Grande13; e Madame de Staël14 estava ansiosa por adular
Napoleão e disse a Alexandre da Rússia15: “Seu caráter, Majestade, é
uma constituição.” Atribui-se a Turgot16 a frase: “Dêem-me cinco anos
de despotismo e a França será livre.” Uma vez que a França já tinha tido
cem anos de despotismo e não era livre, parece que a única objeção que

9
Sofia de Hanover (1630 – 1714): casada com o Eleitor de Hanover. Foi declarada
herdeira do trono inglês, embora nunca tenha estado nos domínios da Grã-Bretanha.
Morreu menos de dois meses antes de poder se tornar rainha, e o trono passou a seu
filho Jorge I. Mecenas das artes, patrocinou os filósofos Gottfried Leibniz e John
Toland. (N. do T.)
10
Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646 – 1716): matemático e filósofo alemão.
Desenvolveu o cálculo infinitesimal, ao mesmo tempo que Isaac Newton e de maneira
independente. Junto com Descartes e Spinoza, foi um dos três grandes racionalistas
continentais. (N. do T.)
11
Jorge III (1738 – 1820): Rei da Grã-Bretanha de 1760 a 1820. Terceiro monarca
britânico da Dinastia de Hanover, foi o primeiro dessa linhagem nascido no país e que
tinha o inglês como língua materna. Durante seu reinado ocorreram diversos conflitos
militares, como a Guerra dos Sete Anos, a Revolução Americana e guerras contra a
França revolucionária e napoleônica. No final da vida, sofreu de uma doença mental
recorrente e depois permanente. A partir de 1810, seu filho Jorge, Príncipe de Gales,
foi declarado regente. (N. do T.)
12
Frederico II, o Grande (1712 – 1786): Rei da Prússia entre 1740 e 1786. Patrono de
artistas e filósofos, foi um dos propositores do absolutismo esclarecido. Um encontro
com Johann Sebastian Bach, em 1747, fez com que o músico escrevesse, em
homenagem ao rei, a Oferenda Musical. Teve uma amizade turbulenta com Voltaire.
(N. do T.)
13
Catarina II, a Grande (1729 – 1796): Imperatriz da Rússia entre 1762 e 1796.
Exemplo notável de déspota esclarecida, foi correspondente de Voltaire, Diderot e
d’Alembert. (N. do T.)
14
Anne Louise Germaine de Staël-Holstein (1766 – 1817): literata francesa. Tornou-se
grande opositora de Napoleão. (N. do T.)
15
Alexandre I da Rússia (1777 – 1825): Imperador da Rússia entre 1801 e 1825. Na
primeira metade de seu reinado, tentou introduzir reformas liberais. Na segunda
metade, tornou-se cada vez mais arbitrário, revogando a maior parte das reformas
anteriores. (N. do T.)
16
Anne-Robert-Jacques Turgot, Barão de Laune (1727 – 1781): economista e estadista
francês. (N. do T.)

- 140 -
XIV. A Virgem e o Dínamo

os filósofos tinham contra os Bourbons é que eles não foram


suficientemente despóticos. Esta é a vanguarda dos modernos
“progressistas”.

A Europa nunca desistiu dessa fantasia do deus ex machina; ela


reaparece a cada reviravolta dos eventos. Revela-se nas palavras da
Imperatriz Eugênia17, falando do Império efêmero de Maximiliano18, no
México, quando ela disse que Maximiliano deveria ter estabelecido uma
ditadura no padrão daquela de Napoleão III, “uma ditadura que trouxesse
liberdade e um homem suficientemente capaz para manter as duas lado a
lado”. As palavras não significam absolutamente nada; ela falava por
força do hábito. O próprio Maximiliano explicou que “precisava de uma
grande força para impor reformas e melhorias; o povo aqui tem de ser
obrigado ao que é bom”. Sua imperatriz Carlota, quando enlouqueceu,
sonhava que Maximiliano era “rei da terra e soberano do universo”.

Durante a Revolução Francesa, Burke19 comentou sobre os monarquistas


franceses exilados na Inglaterra que, exceto por declarações de afeto às
pessoas do Rei e da Rainha da França, esses refugiados aristocráticos
“falavam como jacobinos”. Obviamente, eles não estavam conscientes
disso; e Burke diria a verdade se acrescentasse que os jacobinos, em
companhia da maioria dos revolucionários europeus dos séculos 18 e 19,
falavam como monarquistas absolutistas. O slogan dos cartistas ingleses
era: “Poder político nosso meio, felicidade social nosso fim”. A
“ditadura do proletariado” de Marx, a partir da qual “o Estado se
desmancharia”, foi uma repetição posterior. A versão atual desse
disparate fatal foi ecoada por um jornalista americano depois de uma
visita à Rússia comunista; na versão dele, “a Rússia está lançando as
bases de uma sociedade evolucionária, que vai passar por estágios
previstos e planejados de crescimento, por meio do industrialismo, de

17
Imperatriz Eugênia de Montijo, esposa de Napoleão III. (N. do T.)
18
Imperador Maximiliano I do México (1832 – 1867): Único monarca do Segundo
Império mexicano, entre 1864 e 1867. Irmão mais novo do imperador austríaco
Francisco José I, Maximiliano foi convidado por Napoleão III a estabelecer uma
monarquia no México. Chegou lá com um exército francês e, apoiado por
monarquistas mexicanos, declarou-se imperador. Poucos países reconheceram seu
governo. As forças do presidente Benito Juárez lutaram para restabelecer a república
e, com auxílio dos Estados Unidos, derrubaram o Império. Maximiliano foi preso e
executado. (N. do T.)
19
Edmund Burke (1729 – 1797): político e filósofo britânico. Foi membro da Câmara
dos Comuns entre 1765 e 1780. É considerado o fundador filosófico do
conservadorismo moderno. Sua obra mais importante é Reflexões sobre a Revolução
na França, na qual previu, num momento inicial dos acontecimentos, que a Revolução
Francesa iria resultar em violência descontrolada, em opressão governamental
extrema e num futuro governo militar. (N. do T.)

- 141 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

uma ditadura política absoluta para a liberdade, democracia e paz…


Uma cultura científica, não uma cultura moral.” O massacre e a inanição
de milhões de pessoas, escolhidas como vítimas especificamente por
causa de seu caráter produtivo e inteligência livre, foi o resultado de
longo prazo da teoria mecanicista do universo. E o séquito do
Juggernaut20 sagrado forma uma procissão notável: Frederico, Catarina,
Carolina, Madame de Staël, os dois Jorges, os dois Napoleões, Eugênia,
Carlota, Marx, Lênin e uma trilha servil de jornalistas.

Enquanto isso, John Stuart Mill, declarando-se o paladino da liberdade,


vendeu-a baratinho outra vez para a “sociedade”. Ou seja, admitiu que a
liberdade pessoal só se justifica se servir ao bem coletivo. Então, se for
possível formular um argumento plausível que negue que ela sirva — e
tal argumento parecerá plausível porque não existe bem comum —,
obviamente a escravidão será correta.

Os sonhos persistentes da humanidade são juventude e beleza eternas e


poder absoluto. Os dois primeiros devem ser buscados por si mesmos,
uma vez que não podem ser disfarçados por um pretexto moral. Nas
mitologias mais antigas, são imaginados como presentes dos deuses para
alguns mortais afortunados. Com a aurora da ciência, a esperança foi
transferida para a expectativa de um Elixir da Vida, a ser descoberto pela
pesquisa. Nenhum desses desejos pode fazer grande mal. O Bispo
Berkeley, o filósofo, estava misteriosamente convencido de que a água
de alcatrão era uma panacéia para quase todos os males do corpo. Pode-
se adivinhar porque ele dotou essa prescrição irrelevante de tais
propriedades mágicas; ele não tinha um motivo mais profundo. O ponto
significativo não é simplesmente que a água de alcatrão não pode fazer o
que Berkeley acreditava que podia. Nada pode. O que ele desejava é
irrealizável na natureza das coisas. Existem drogas mortíferas mas não
existe um elixir da vida para o corpo físico. Mesmo assim, esse desejo
tem uma inteligência residual, que leva a resultados benéficos na
melhoria da saúde e da beleza por meio do estudo racional da biologia e
da higiene.

Na mecânica, imaginou-se uma impossibilidade semelhante, um Moto


Perpétuo. Aqui, a ciência genuína enfrenta uma dificuldade, até aqui não
resolvida, em definir o que é energia ou descobrir suas propriedades
definitivas. A ciência estrita é confinada a medições; suas descobertas

20
Juggernaut, em inglês coloquial, é uma força literal ou metafórica considerada
impiedosamente destrutiva e irresistível. O termo é uma referência ao carro templo
Ratha Yatra, que se acreditava erroneamente que esmagasse os devotos sob suas
rodas. Deriva-se do sânscrito Jagannatha, “senhor do mundo”, um dos nomes de
Krishna. (N. do T.)

- 142 -
XIV. A Virgem e o Dínamo

têm de ser quantitativas. Trabalhando com matéria inorgânica, a ciência


postula a Segunda Lei da Termodinâmica, que diz que a energia “decai”,
pela conversão de uma manifestação cinética para estática. Os dois
aspectos da energia são exemplificados num homem andando, movido
pela energia cinética e colidindo contra uma parede de pedra, onde
encontra energia estática. A parede tem resistência, que é mensurável em
termos de energia pela força necessária para rompê-la; e a energia
cinética, reciprocamente, é medida pelo que ela pode mover, em forma
estática.

Agora, se considerarmos que a energia do universo inteiro, pela qual ele


se move, está completamente definida em termos de suas propriedades
manifestas por meio da matéria inorgânica, a energia universal deve
existir numa quantidade fixa; e deve também estar sujeita à Segunda Lei
da Termodinâmica, pela qual o universo inteiro está fadado a “decair”
finalmente, e tornar-se uma massa escura, congelada e imóvel,
absolutamente estática, e permanecer assim para todo o sempre.
Certamente, a Segunda Lei da Termodinâmica é válida com respeito à
energia utilizada por meio de materiais inanimados; a engenharia e a
mecânica devem ser governadas por este princípio para chegarem a
resultados. Mas, se assumíssemos que o mesmo princípio governasse a
energia universal como tal — em vez de ser simplesmente uma fase de
sua transmissão através de certos elementos inorgânicos — ele evocaria
um fenômeno inicial, a “partida” do mecanismo universal em primeiro
lugar, pela existência primária de uma quantidade fixa de energia
cinética: como ou de onde a hipótese não pode pretender explicar e nem
mesmo contemplar.

A hipótese religiosa na natureza do universo é, na verdade, muito mais


racional, postulando um Primeiro Princípio (Deus), a Fonte de energia,
que não “decai”, não é mensurável e se apresenta às nossas faculdades
racionais tanto em aspectos eternos como temporais, pelos fenômenos
mensuráveis da matéria inorgânica e pela própria faculdade racional, que
é de ordem não mensurável, indicando um elemento divino no homem, a
alma imortal. A partir desse Primeiro Princípio, o universo não precisa
decair; as fases dos elementos inorgânicos que estão sujeitas à Segunda
Lei da Termodinâmica seriam secundárias em relação ao Primeiro
Princípio Criativa que completa o circuito eterno, se renovando
eternamente, por meio de outros processos nos quais o homem ainda não
penetrou.

Agora, a partida do “moto perpétuo”, de maneira confusa, está se


aproximando do absurdo da visão mecanicista estritamente quantitativa
do universo, que implica que, de alguma maneira, a maquinaria cósmica

- 143 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

foi configurada em potencial e, então, posta em movimento com uma


dada quantidade de energia cinética que devemos supor que já “estava
lá”; depois disso, continuou funcionando “por si mesma”, sem nenhum
suprimento posterior, e deve continuar assim até que decaia totalmente,
pela exaustão da quantidade. Assim, a partida do moto perpétuo,
aproximando-se do suposto problema, admite que seu mecanismo
precisa ser iniciado pela introdução normal de energia de uma fonte
externa. Depois disso, diz-se, ele continuará funcionando por si mesmo
indefinidamente.

Essas são a alegação e a exigência feitas por todos os que prometem a


felicidade final por meio de um despotismo inicial. Poucos anos de força
externa, a ditadura do proletariado ou da elite, governo absoluto — e,
então, nada mais de esforço, nada mais de necessidade de inteligência,
uma máquina funcionando continuamente — até o fim. A teoria do
comunismo marxista é exatamente a da Máquina de Moto Perpétuo,
ponto por ponto, porque ela estipula que o sistema produtivo criado pela
livre iniciativa é um pré-requisito, que será tomado pela máquina
comunista.

Assim, o sonho de poder também é suscetível a duas interpretações, uma


incalculavelmente benéfica e a outra viciosa, causa de miséria infinita.
Quando direcionado ao domínio da natureza, o ordenamento da matéria
inorgânica pelo conhecimento da lei natural, é criativo, não apenas em
bens materiais mas no enriquecimento da personalidade humana. O
desenvolvimento mais recente ocorre porque no homem, o ser pensante,
a razão é o atributo individualizante. Observadores argutos
descobriram que povos primitivos, como os esquimós, manifestam uma
psicologia “coletiva”, a tal ponto que, em ações em grupo, a consciência
da individualidade fica obscurecida. A razão envolvida na ação se funde
com o instinto pelo hábito. Não é a ação conjunta nem o pensamento
semelhante em termos racionais conscientes que induzem essa “unidade”
coletiva; é o fato de não pensar naquele dado momento. O exercício do
intelecto no raciocínio abstrato leva os homens inteligentes a conclusões
semelhantes por meio de seqüências lógicas e, ao mesmo tempo,
desenvolve sua individualidade; porque pensar é uma função individual.

Portanto, o coletivista, para alcançar seu objetivo, o estado ou sociedade


coletivos, busca o único tipo de organização, a agência política, que é
diretamente proibitória e tende a fazer com que os homens parem de
pensar. Esta é a interpretação maligna do sonho de poder sua perversão
na luxúria por poder sobre outros homens, em vez do domínio da
natureza.

- 144 -
XIV. A Virgem e o Dínamo

A luxúria pelo poder é muito facilmente disfarçada sob motivos


humanitários ou filantrópicos. Apela naturalmente a pessoas que sentem
um desconforto emocional pelos infortúnios dos outros, misturado a uma
ânsia por aprovação imerecida, ainda mais se não são produtivas.21 Uma
criança amável, que deseja um milhão de dólares vai normalmente
“pretender” distribuir metade de sua riqueza ilusória. A guinada do
motivo se mostra pelo fato de que seria igualmente fácil desejar que essa
sorte inesperada fosse diretamente para os outros, sem se imaginar como
intermediária de sua felicidade. A criança pode imaginar que ganha o
dinheiro trabalhando, embora mesmo assim a imaginação também
pudesse incluir os outros ganhando dinheiro trabalhando; mas, como
regra, o dinheiro viria de um suprimento indeterminado disponível sem
esforço e já existente — uma máquina de moto perpétuo. A criança nem
se dá conta de que pessoas que precisam de ajuda também podem
imaginar por si mesmas um milhão de dólares. A gratificação dupla, das
necessidades pessoais e do poder por “fazer o bem”, é estipulada
inocentemente. Levada aos anos adultos, essa autoglorificação ingênua
se transforma em ódio positivo a qualquer sugestão de que as pessoas
ajudem a si mesmas por seu próprio esforço individual, por meios não-
políticos que não impliquem em poder sobre outros, sem um aparato
compulsório. O ódio tem um motivo profundo por trás de si; é verdade
que nada, exceto meios políticos, pode produzir adulação pública
imerecida. Perguntemos como uma pessoa completamente desprovida de
talento, habilidade, realizações, sabedoria, beleza, charme ou mesmo da
capacidade prática de ganhar a vida com um trabalho rotineiro pode se
tornar objeto de atenção bajulatória, ser saudada com aplauso e ter suas
mais medíocres futilidades apreciadas — obviamente, a única resposta é
uma posição política. Uma grande fortuna privada pode granjear um
círculo privado de sicofantas; mas apenas o decreto imperial poderia dar
a Nero uma audiência para seu canto ou arrebatar aplausos da multidão
para Calígula.

Mas o sonho racionalizado do Estado Absoluto tem uma implicação


histórica especial em sua repetição. Os períodos em que se cristalizou na
literatura são imensamente significativos.

Os três mais famosos esquemas de papel desse tipo são a Politéia, ou o


estado ideal, de Platão, traduzida erroneamente como A República22, a

21
Os coletores de impostos na França patrocinaram os proponentes de sistemas
políticos rígidos, como os fisiocratas e outros teóricos absolutistas que causaram o
Terror. Conseqüentemente, pelo menos alguns dos coletores de impostos foram
enforcados em postes de luz quando o Terror se espalhou — mas só alguns. (N. da A.)
22
Se a linguagem deve ter algum significado, é por causa das distinções. Roma
forneceu a forma e o significado da República com a palavra; e os gregos da

- 145 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Utopia de Thomas More e a Terra Prometida sem nome de Marx, que


surgiria depois da destruição do capitalismo. O que elas têm em comum
em sua forma é que todas são finais; são arranjos nos quais os seres
humanos se encaixam como partes especializadas de um padrão. Suas
relações sociais e econômicas não admitem nem a ordem biologicamente
natural mas matematicamente irregular e entrelaçada da família, nem a
faculdade criativa imprevisível do indivíduo. A fôrma é colocada para
impedir variação ou mudança. São sociedades estáticas. Platão e More
fizeram o indivíduo súdito da organização cívica e Marx o fez súdito da
indústria mecanizada.

Mas o que elas têm em comum com respeito a época em que foram
imaginadas revela seu significado verdadeiro. Cada uma marca uma era
em que novos desenvolvimentos já haviam ocorrido que tornaram
impossível uma sociedade estática. Os homens que escreveram esses
sonhos eram sismógrafos. Sentiram a mudança iminente, como se a terra
se mexesse sob seus pés; e sua mente procurou refúgio numa fantasia de
um mundo não sujeito à mudança. Platão viveu numa época em que os
gregos formulavam os princípios básicos da ciência. Sir Thomas More
viveu nos anos perigosos do Renascimento, o reviver da ciência. Marx
testemunhou a revolução industrial, a aplicação da ciência. As três
fantasias são reações da Era da Energia.

Platão era um literato; seu senso artístico de forma estava inquieto e ele
tentou compensar isso com um planejamento rigoroso. More era um
homem inteligente e um sábio; ele rotulou sua criação francamente pelo
que era: Utopia significa Lugar Nenhum. Marx era um tolo; ofereceu seu
esquema como uma previsão do futuro.

É por meio desse modelo imposto de mecanismo que a Europa observou


os Estados Unidos desde o início; a estultificação não poderia ir além. O
princípio da harmonia social é a liberdade, os direitos do indivíduo; essa
é a lei natural do homem, que os Estados Unidos descobriram e
formularam, antes da Revolução Francesa.

democracia. O modelo de organização de Platão é o coletivo espartano, um Estado


Absoluto militar democrático. A distinção entre uma República e uma Democracia é
evidente pelas palavras; democracia significa literalmente o governo do povo, um
conceito que não admite qualquer limitação no poder político. República significa uma
organização que trata de assuntos que se referem ao público, implicando assim que
existem também assuntos privados, uma esfera de vida social e pessoal, com a qual o
governo não está e não deve estar envolvido; estabelece um limite ao poder político.
Os fatos, em cada caso, corresponderam ao significado das palavras. (N. da A.)

- 146 -
XIV. A Virgem e o Dínamo

Henry Adams23, que testemunhou a Era da Energia depois que ela já


havia avançado muito, passou a vida empenhado em descobrir a ligação
entre o último século da Idade Média e a moderna explosão de energia
nas aplicações cinéticas. Ele encontrou a pista, analisou-a e deixou-a
escapar. Qual a relação, perguntou ele, entre a Virgem e o Dínamo? Sua
pergunta não era irreverente nem irrelevante. Adams percebeu que
depois que a majestade da Lei Divina foi estabelecida na filosofia
medieval por lógica rigorosa, a imagem da Virgem tornou-se mais
proeminente na religião, como objeto de honras e petições. Reconheceu
que isso se devia ao fato de que a Virgem representava um elemento não
constrangido, graça ou misericórdia, que implica no livre arbítrio do
homem, disponível para decisões contínuas. Então, o homem não estaria
preso a uma seqüência determinada de maneira irrevogável, como é o
caso de uma máquina. O homem não é uma máquina. Mas, nesse ponto,
Henry Adams não percebeu que é pela liberdade da vontade pessoal que
o homem é capaz de perseguir seus questionamentos intelectuais e
produzir suas invenções. Essa é a gênese do dínamo. Construído de
acordo com as leis da mecânica, o dínamo é determinístico; ou seja,
deixado a si mesmo, ele para. Então, se ele vai funcionar, deve ser pela
vontade e inteligência do homem. Uma economia de máquinas não
pode funcionar com base em uma filosofia mecanicista.

23
Henry Brooks Adams (1838 – 1918): historiador americano. Propôs uma teoria da
história baseada na Segunda Lei da Termodinâmica e no princípio da entropia. (N. do
T.)

- 147 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 148 -
XV. As Emendas Fatais

O
s Estados Unidos são a Era do Dínamo. Quando levaram o
axioma do livre arbítrio da doutrina religiosa para a doutrina
política, um Niágara de energia cinética foi liberado. O fluxo
crescente precisa da máxima firmeza das bases, de força elástica na
estrutura e que a ação e a forma sejam tão pouco obstrutivas quanto
possível. Infelizmente, com exceção de duas, cada alteração na
Constituição depois do Bill of Rights1 foi um retrocesso.

O teste pode ser aplicado a qualquer emenda por estas perguntas


simples: A emenda nega direitos do indivíduo? Enfraquece as bases,
debilitando os estados como entidades políticas? Aumenta o peso bruto
ou contribui para uma distribuição imprópria do peso da superestrutura?
Se a resposta para qualquer dessas perguntas for positiva, a emenda
transforma a operação benéfica do sistema de alta energia em um perigo
de igual magnitude.

Além disso, todos esses efeitos perniciosos interagem; uma emenda pode
causar um duplo dano; e um prejuízo pode ensejar ou servir de pretexto
para outro. Conforme a estrutura racha, cede ou treme, desorganizando a
economia privada, o ataque alternado dos fervorosos emendadores será
mais furioso. Há um aumento progressivo na freqüência cronológica de
emendas à Constituição. E as conseqüências finais são combinadas e
cumulativas, mostrando seu resultado de uma vez, depois de um lapso de
tempo, num desmoronamento geral. A situação também é agravada por
um desvirtuamento simultâneo em decisões judiciais e por extensões do
poder político por simples usurpação. Um ato de sedição é um exemplo
dessa usurpação; não há autoridade para ele na Constituição. Houve
protestos raivosos na primeira ocasião; hoje, é aceito casualmente, quase

1
O Bill of Rights é integralmente parte da Constituição original, sendo “o preço da
ratificação”. É uma salvaguarda, em itens, de direitos do indivíduo e da soberania dos
estados. A única objeção contra ele, na ocasião, foi que a enumeração de direitos
individuais poderia ser interpretada como a limitação dos direitos aos pontos
nomeados ou como uma afirmação de que o direito primário do indivíduo não é
abrangente — a idéia européia de “liberdades”, em vez da liberdade americana. O
argumento parecia forçado; foi, na verdade, premonitório, porque ultimamente
aquela exata perversão vem sendo proposta, numa paródia barata, com as expressões
“liberdade da necessidade”, “liberdade do medo”, etc. Entretanto, é impossível criar
um instrumento totalmente seguro e o Bill of Rights vem funcionando
admiravelmente em sua aplicação prática. (N. da A.)

- 149 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

sem comentários, exceto pelas sugestões de ampliá-lo, freqüentemente


sob o comando dos supostos “liberais”.

Uma usurpação inicial há muito tempo esquecida, porém ainda em vigor,


fez efeito depois de mais de um século, em 1933, com o confisco da
propriedade privada em ouro. Quando John Jay era presidente da
Suprema Corte, o primeiro a ocupar esse cargo e um dos autores de O
Federalista, profundo conhecedor da natureza da Constituição, deu um
veredito sustentando o direito do cidadão de processar o governo. Jay
disse que a teoria, a origem e forma de governo dos Estados Unidos
discordavam da idéia européia sobre a questão do direito precedente do
cidadão sobre o estado. Pela teoria americana, disse Jay, o governo é o
agente do cidadão, tendo apenas autoridade delegada; e é absurdo
sustentar que uma pessoa não possa processar seu agente. Depois disso,
a posição de Jay foi vencida, embora não possa ser refutada. Mas, desde
então, o cidadão ficou à mercê do governo nos Estados Unidos como se
fosse súdito de um rei; não pode nem pleitear a reparação de injustiças
do governo contra ele, sem permissão. E exatamente a primeira emenda
(Artigo XI) depois do Bill of Rights estendeu essa prerrogativa usurpada
aos diversos estados contra os cidadãos de outros estados. A emenda
seguinte (XII) é técnica.

Sessenta e dois anos se passaram sem outras alterações, até que a única
emenda benéfica foi criada, a Décima Terceira, que limita o poder
político ao proibir a escravidão. A Décima Quarta Emenda confirmou a
cidadania federal e os direitos civis dos cidadãos por toda a União. Mas
teria sido melhor se o Bill of Rights tivesse sido explicitamente estendido
para se aplicar aos governos estaduais. Se fosse dessa maneira, diversas
questões posteriores não teriam sido encaminhadas a “poderes
implícitos”, um subterfúgio ignóbil e perigoso.

A Décima Quinta Emenda perpetuou definitivamente o dano causado


pelo Ato de Reconstrução. Privou os estados de um atributo
indispensável de soberania, o poder exclusivo de determinar as
qualificações dos eleitores, originalmente reservado a eles pela
Constituição.

Qual o uso adequado de um poder necessário e qual a agência adequada


para seu uso são questões inteiramente diferentes. O controle das
fronteiras externas da nação pertence acertadamente ao governo federal,
que é a organização que representa a extensão territorial plena. O
governo federal claramente já praticou discriminação racial nas cotas de
entrada. A regra adotada era moralmente errada; seria injustificável até
para rejeitar refugiados. As grandes nações sempre foram liberais na

- 150 -
XV. As Emendas Fatais

admissão de pessoas. Contudo, é necessário que o governo federal tenha


o poder sobre as fronteiras; caso contrário, a nação não continuaria
existindo.

Para formar uma federação verdadeira e funcional, os estados


componentes devem ceder o atributo da soberania sobre as fronteiras.
Mas devem reter o controle legítimo sobre a admissão ao corpo político
do estado, para se preservar como entidades políticas. É o poder de
conceder o direito ao voto. Raça, cor da pele ou condição prévia de
servidão são irrelevantes. Não deveriam desqualificar ninguém. As
qualificações corretas são o local de residência, a lealdade e a
propriedade real. Só se pode encontrar um princípio moral nesses
requisitos. Se o direito ao voto exige alguma qualificação, ele é
claramente condicional, não absoluto. Desde que as condições sejam
práticas, elas devem se relacionar à função do instrumento. A ação é de
extensão medida a partir de uma base permanente, portanto deve estar
ligada à propriedade imóvel local. Capital líquido não serve.2 Essas
qualificações são morais e materiais, estando todas dentro da
competência do indivíduo; uma pessoa responsável pode atendê-las por
sua própria escolha e seus próprios esforços. Mas é absolutamente
necessário que o poder de designar as qualificações pertença aos estados.
Se o governo federal tem o poder de determinar ou alterar qualquer
detalhe, mesmo que negativamente, passa a ter o pleno poder final de
determinar todos os requisitos a partir dos detalhes. E um defeito
espalhado por toda a estrutura é muito mais grave que um erro
localizado.

A interferência neste caso é por decomposição. Passaram-se quarenta


anos antes que a decomposição das bases se tornasse totalmente visível;
mas isso viabilizou o ataque seguinte, quando uma função nacional foi
anulada, pela emenda do imposto de renda. Anteriormente, nenhum
imposto direto ou pessoal podia ser estabelecido, exceto em proporção à
população. Então, a ação seria equiparada em cada eleitor e
representante. Se um imposto fosse proposto, cada um saberia que teria
de pagar uma parcela proporcional; enquanto que, se alguma região
fosse receber uma parcela extra de gastos (como em obras num rio ou
num porto), sua influência seria muito maior que a de outras áreas. A
inércia de massa é a função estabilizadora; é inerente a qualquer material
pesado; mas é mais bem entendida quando fornecida separadamente,
como em lastro. O peso (gravidade) é a força; seu uso está em relação

2
A propriedade e residência numa cabana de madeira com uma horta de batatas é
uma qualificação legítima para o voto, enquanto a propriedade de todas as ações da
Standard Oil Company não é. (N. da A.)

- 151 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

constante com um centro de gravidade. Quando o interesse de cada


eleitor deve ser praticamente o mesmo, o centro de gravidade é
constante, mesmo que as partículas de lastro sejam móveis. Mas quando
o governo federal passou a poder extrair impostos de um estado rico de
maneira desproporcional à população para subornar um estado pobre
com gastos desproporcionais à população, o equilíbrio desapareceu. O
veto de inércia-massa se perdeu. (O peso, o interesse, a partir daí passou
a ser um fator de desequilíbrio, como lastro líquido não
compartimentado oscilando de um lado para outro, massa deslocada.)

Provavelmente, a maioria das pessoas não compreendeu que essas


relações foram alteradas. Pensaram apenas, em termos simples, em taxar
os ricos, talvez com uma expectativa vaga e infantil de que as receitas
seriam “dadas aos pobres”. O dinheiro obtido dos ricos de qualquer
forma que não seja salários nunca é dado aos pobres. Se for tomado por
um assaltante comum, vai para o assaltante. Se for tomado por uma
organização filantrópica, vai para a organização. Se for tomado pelo
governo, vai para os políticos. O aumento da taxação dos ricos nem
mesmo diminui a taxação dos pobres; acaba aumentando toda a taxação,
expandindo-se gradualmente até que exproprie uma porção não apenas
do último dólar de um homem pobre, mas do primeiro dólar que ele
consiga ganhar. O imposto terá de ser pago antes mesmo que ele toque
em seu ganho. A taxação atual sobre os salários, precisamente descrita
como “a safadeza da seguridade social”3, não poderia ter sido imposta de
acordo com a Constituição original; só é validada pela emenda do
imposto de renda. Não há meios pelos quais “os ricos” possam ser
taxados sem que isso acabe taxando “os pobres” de maneira muito mais
pesada. E um imposto tende a aumentar todos os outros impostos, em
vez de diminuí-los, porque os gastos governamentais vão para coisas que
exigem manutenção e não geram retorno (edifícios públicos e empregos
políticos). A energia cinética é convertida em formas estáticas, que então
necessitam do desvio de mais energia cinética para carregar o peso
morto.

O golpe formal e final para desconstituir os estados foi a Décima Sétima


Emenda, que tirou a eleição dos senadores da Legislatura Estadual e a
passou para o voto popular. Desde então, os estados não têm mais
ligação com o governo federal; a representação em ambas as Casas do
Congresso se apóia apenas na massa deslocada. A abdicação simultânea
de ambas as Casas em 1933 foi o resultado. Elas não foram separadas à
força, nem mesmo se desmantelaram, porque já não tinham nenhuma
relação estrutural nem com a massa, nem entre si, nem com a

3
Em inglês, “the Social Security swindle”. (N. do T.)

- 152 -
XV. As Emendas Fatais

superestrutura. Simplesmente, tinham parado de funcionar. O


aparecimento imediato de uma burocracia imensa foi o fenômeno natural
de uma nação sem estrutura.

Ao mesmo tempo e pela interação com esses eventos políticos, a


economia produtiva foi distorcida e a energia desviada para o canal
político. A Guerra Civil precipitou a seqüência. A pilhagem dos estados
sulistas derrotados (sob o comando de filantropos, como sempre em
colaboração com trapaceiros), foi particularmente prejudicial porque o
poder político procurou legitimar atos de extorsão. Canalhas eram
imunes dentro da lei, enquanto homens honestos foram forçados a
retroceder para modos de associação pré-legais primitivos: o chefe, o
conselho informal e a posse comitatus.4 Não havia governo, apenas
força. O controle moral havia sido desconectado. As pessoas
continuavam vivendo pela ordem moral; não poderiam sobreviver de
outra maneira. Mas a antiga e errônea identificação do governo com a
força se tornou plausível novamente. Da mesma maneira, a política se
tornou lucrativa.

De maneira geral, até a Guerra Civil, qualquer homem que desejasse


honras políticas esperaria consegui-las à custa de perdas financeiras;
vivia por seus meios privados. Apenas quando essa condição prevalece é
que homens de inteligência, integridade e bom gosto — o caráter
produtivo — se inclinarão a entrar na vida pública. Lord Acton se referia
ao poder político quando disse: “Todo poder corrompe e o poder
absoluto corrompe absolutamente.” O poder político tem esse efeito por
sua relação com a produção. O homem produtivo tem consciência de que
o gasto político é uma carga sobre a produção, gasto líquido. Não gosta
de viver à custa dos outros. Se for obrigado a abdicar de ganhos
particulares num valor maior do que recebe como remuneração por seu
cargo, mesmo que não tenha certeza de que seu trabalho vale o que
ganha, saberá que não procurou o cargo como um parasita. Deve-se
observar que os homens que hoje recusam pagamento por posições de
governo são, sem exceção, aqueles que estiveram mais ativamente
envolvidos na produção, dirigentes industriais. Os antigos “trabalhadores
sociais”, políticos profissionais e pessoas com ganhos imerecidos se
destacam pela ânsia com que se prendem à folha de pagamento política,
ou como mudam de posição política em troca de ganhos suplementares.
Não têm nenhum objetivo na vida política exceto o parasitismo. A visão
parasitária da política foi formulada inconscientemente quando começou

4
Posse comitatus: Autoridade estabelecida pelo direito comum (common law) que
permite que um xerife convoque qualquer cidadão fisicamente habilitado para auxiliá-
lo a manter a paz ou capturar um criminoso. (N. do T.)

- 153 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

a ser ouvida a discussão de que maiores salários, mordomias, mais


ostentação em prédios públicos, embaixadas e uniformes precisariam ser
fornecidos para manter a dignidade do cargo. Se uma posição é
considerada de acordo com seu gasto ou ostentação, obviamente a
dignidade e o valor intrínsecos estão faltando. Os embaixadores que
temem que, em roupas ordinárias, possam ser confundidos com garçons
provavelmente têm razão. Ninguém tomaria Franklin, Adams ou
Jefferson por um criado.

É dessa inversão de valores que o homem produtivo se ressente. Além


disso, ele sabe que será constantemente importunado por solicitações que
não tem o direito de atender, por parasitas que nunca encontraria na vida
produtiva. Por isso, os melhores homens só se acham na vida pública
quando é perigoso, difícil e à custa deles próprios.

O custo e a ostentação do governo são sempre inversamente


proporcionais à liberdade e à prosperidade dos cidadãos, como acontecia
com a nação depauperada e a monarquia grandiosa de Luís XIV. Hoje,
quando nossa agricultura enfrenta sérias dificuldades, o Departamento de
Agricultura cresce como um fungo monstruoso. O imenso Departamento
de Comércio cresceu quando o comércio internacional definhava e o
comércio interno mergulhava na depressão.

Além disso, o poder político possui um efeito catraca; só funciona em


uma direção, para aumentar a si mesmo. Ocorre uma transferência pela
qual o poder não pode ser retraído depois que é concedido. No exemplo
mais simples, um candidato a um cargo pode prometer aos eleitores que
vai reduzir os impostos ou o número de cargos ou os poderes do cargo.
Mas, uma vez que é eleito, pode usar os impostos, os ocupantes dos
cargos ou os poderes para garantir sua reeleição; portanto, o motivo da
promessa não funciona mais. Se cortar os gastos, ou o número de cargos
ou a corrupção, certamente criará inimigos. Portanto, o motivo inverso,
que o impele a descumprir sua promessa, é duplicado. O eleitor pode
apenas evitar reelegê-lo; mas o próximo ocupante do cargo vai encontrar
esses poderes aumentados e será ainda mais difícil livrar-se deles. A
dificuldade de tomar de volta poderes uma vez concedidos se mostra na
abolição da Emenda da Lei Seca; embora essa medida fosse exigida e
apoiada pelo sentimento avassalador dos cidadãos, o artigo de abolição
continha um dispositivo que mantinha inúmeros empregos federais; foi
impossível fazer uma limpeza de todo o poder pernicioso usurpado. A
Emenda da Lei Seca é uma afirmação de governo absoluto, a indicação
da completa decomposição do corpo político. A emenda do “pato

- 154 -
XV. As Emendas Fatais

manco”5 é uma trivialidade que indica apenas a degradação da carta, um


rabisco à margem.

5
Emenda do pato manco: a Vigésima Emenda à Constituição dos Estados Unidos
mudou o início e o final dos mandatos do presidente e do vice-presidente de 4 de
março para 20 de janeiro e dos membros do Congresso de 4 de março para 3 de
janeiro. O presidente em final de mandato é conhecido como “pato manco” (lame
duck). (N. do T.)

- 155 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 156 -
XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status

E nquanto o poder político se expande, o sistema de produção é


desorganizado direta e indiretamente. A Guerra Civil teve
conseqüências de longuíssimo prazo na vida econômica. A
“reconstrução” do Sul sobrecarregou os estados sulistas com dívidas
contraídas pelos sequazes do governo conquistador, a administração dos
aproveitadores. A conseqüência foi recusarem-se a pagar;
independentemente da solvência, os sulistas não se sentiam moralmente
obrigados. Não é difícil entender seu ponto de vista. Mesmo assim, eles
erraram; o repúdio a dívidas aterra a linha de transmissão de energia. O
Sul continuou prostrado economicamente, enquanto o restante da nação
progredia.

A Guerra Civil também levou o governo federal a financiar ferrovias,


por concessões de terra e subsídios em dinheiro. Com isso, iniciou-se a
era em que as empresas são acusadas de corromper a política. Mas
empresas não podem corromper a política. De maneira leviana, seria
possível dizer que a corrupção não pode corrompida. Mas, dentro de
limites corretos, a organização política não é corrupção. Esses limites
são indicados, de maneira aproximada, pela margem onde começa a
suposta corrupção pelas empresas. É claro que é a política que corrompe
as empresas. Ela corrompe até o grau em que foi ampliada além do seu
campo próprio. Negócios consistem em produção e comércio. São
atividades espontâneas, que são necessariamente executadas em
liberdade. Por isso, a propriedade privada individual é a condição
indispensável para um sistema de alta energia; o proprietário não tem de
esperar por uma permissão para colocá-la em uso. O campo dos negócios
é primário.

A política consiste no poder de proibir, obstruir e expropriar. Seu campo


é marginal. Mas, por essa razão, ela sempre tende a invadir o campo
primário da liberdade, de tal maneira que o produtor pode ser obrigado a
obter permissão para conseguir trabalhar. Onde é exigida permissão ou a
expropriação é possível, um pagamento pode ser extorquido. O elemento
da corrupção é inerente aos negócios ou à política?

É errado produzir alguma coisa ou comprar e vender produtos? Não.


Então, isso não pode levar a corrupção a algum outro lugar. É errado
restringir, obstruir ou tomar os bens de outra pessoa? Sim. É sempre
errado se for feito por ação originária (em vez de por reação). O
potencial de corrupção então reside na política, não nos negócios.

- 157 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Quando a política é notavelmente corrupta, isso é um indicativo infalível


de que existe poder político excessivo, que se estende além de seu
campo de ação marginal próprio.

O poder político, tanto de obstruir como de expropriar, foi assim


estendido no caso das ferrovias. Para integrar o oeste, o governo federal
concedeu vastas áreas de terra e deu subsídios em dinheiro para uma
ferrovia transcontinental. Se a Guerra Civil não tivesse acontecido,
provavelmente o governo federal não teria tomado essa ação. Nessa
hipótese, ninguém pode dizer quanto tempo levaria para que uma linha
transcontinental passasse a existir, se é que existiria; mas, sem nenhuma
dúvida, haveria alguns anos de atraso. Eis aqui a combinação de
circunstâncias e a seqüência de eventos que dão plausibilidade ao
argumento de que é correto que a ação política se estenda ao campo
primário da economia. Não houve um ganho positivo, pelo menos no
tempo? De fato, como uma linha transcontinental poderia ser construída,
atravessando a longa extensão selvagem, sem subsídios federais?

Vou responder primeiro a última questão. Se o poder político


simplesmente tivesse permitido que qualquer um que quisesse construir
uma linha transcontinental adquirisse os títulos para o necessário direito
de passagem nos mesmos termos que qualquer colono no território
virgem, fosse por compra ou por posse, uso e registro, uma estrada de
ferro teria sido construída tão logo existisse uma perspectiva razoável de
tráfego suficiente, ou talvez um pouco antes disso.

Mesmo assim, nas circunstâncias existentes, houve o “ganho de tempo”


cronológico. O desenvolvimento pelo capitalismo privado funciona
numa equação auto-ajustável de espaço e tempo entre os circuitos de
energia locais e o longo circuito. O solitário caçador na fronteira era um
capitalista de vanguarda. Podia trazer uma carga de peles para vender
apenas uma vez por ano; então, essa carga viajava num carroção fretado.
Pode-se dizer que havia uma distância de um ano ou mais entre ele e seu
mercado. Por outro lado, seu tempo de produção e venda era mesmo de
um ano, aproximadamente; ele podia agüentar dois anos, se necessário.
Mas se os preços das peles e as tarifas dos fretes permitissem, um
transporte competitivo seria atraído, em um ano ou dois.

As fazendas também avançaram pelo território selvagem pela iniciativa


privada, num ritmo que se ajustava, conforme o excedente de produção
compensasse o tempo e a distância (transporte). Se um grupo de
fazendeiros tivesse “ganho” tempo, em termos de distância, para dentro
do território selvagem, isso seria na verdade uma piora em sua situação.

- 158 -
XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status

Por toda a economia privada, os custos e riscos são evidentes por si


mesmos e as condições são abertas à escolha. Erros são autodestrutivos.

Havia uma peculiaridade na economia escravagista. Ela era incapaz de


pioneirismo, não conseguindo ir além dos limites da autoridade política
estabelecida, do seu tipo singular. Se um senhor obrigasse seus escravos
a carregar a si e a seus bens além dos limites do poder coletivo por meio
do qual impunha seus comandos — e que, de fato, os fazia escravos —
não teria mais controle sobre eles. Não voltaria, nem traria seus bens de
volta da maneira como foi. Aconteceria o mesmo a qualquer pessoa que
usasse escravos da mesma maneira, por concessão do proprietário.
Viajantes na África relataram como receberam carregadores sob o
comando de algum chefe nativo; os carregadores levavam a carga até
certa distância e, então, passavam a ignorar qualquer ordem. Só podemos
saber se os viajantes “ganharam tempo” ou não se calcularmos o tempo
que levaram para encontrar algum outro meio de transporte para sair
dessa encrenca.

A situação peculiar dos fazendeiros do oeste fica clara quando


examinamos suas reclamações. Os fretes ferroviários eram tão mais
baratos que os fretes de carroça, pela mesma distância, que não há
comparação. As viagens também eram dez vezes mais rápidas. Mesmo
assim, os fazendeiros denunciavam as ferrovias por tarifas excessivas; e,
se ocorria um atraso, isso causava grande irritação. Se alguém sugerisse
a um fazendeiro do oeste que, se ele achasse os preços excessivos, devia
usar alguma linha concorrente ou algum outro método de transporte, o
fazendeiro ficaria indignado. Não havia nenhum, e ele não podia
esperar até que a concorrência surgisse. O tempo e a distância que
pareciam ter sido “ganhos” eram simplesmente a medida da distância no
tempo para a concorrência; o que significa para o mercado. O poder
político interveio e foi esse o efeito inevitável. Os fazendeiros do oeste,
que voluntariamente aproveitaram o que parecia ser uma vantagem, ao
fazê-lo renunciaram ao poder de escolha por tempo indeterminado. A
intervenção do poder político criou um monopólio. E mesmo seus
supostos beneficiários o achavam odioso.

Curiosamente, as pessoas faziam a diferenciação correta


emocionalmente, embora não conseguissem traduzi-la para a razão.
Existe uma forte ambigüidade no sentimento despertado pelas ferrovias.
A visão e o som de uma locomotiva ainda evocam, para os americanos,
prodígio, romantismo e expectativas esperançosas. Em distritos rurais e
pequenas cidades, todos gostavam de viajar de trem. As pessoas iam às
estações para ver o trem chegar. Conheciam os expressos pelo número,

- 159 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

ouviam o apito como um som amigo, acenavam quando os trens


passavam. Odiavam “a ferrovia” apenas como uma abstração.1

Mas o que exatamente eles odiavam? Certamente, não pretendiam abolir


as ferrovias e nunca mais ver nenhuma. A diferença aparece claramente.
Tudo o que era criação da iniciativa privada nas ferrovias trazia
satisfação. A iniciativa privada minerou, fundiu e forjou o ferro,
inventou a máquina a vapor, desenvolveu instrumentos de controle,
produziu e acumulou capital, organizou o esforço. Na construção e
operação de estradas de ferro, tudo o que pertence à esfera da iniciativa
privada foi feito com competência. A primeira linha transcontinental foi
o maior problema de engenharia resolvido de uma vez até então. Foi
construída com uma velocidade inédita do longo circuito de energia de
alto potencial ao qual pertencia. A mesma competência para organização
de sistemas de alta energia se incorporou à operação das linhas. Nenhum
tipo de negócio anterior precisava de um décimo da habilidade desta
atividade; os horários precisavam ser exatos, contínuos e, mesmo assim,
instantaneamente ajustáveis em cada detalhe, no tempo e no espaço,
lidando com quantidades imprevisíveis de pessoas e unidades de bens
em trânsito entre milhares de pontos intermediários num sistema
ramificado, em todas as direções, na máxima velocidade. Provavelmente,
as ferrovias ainda representam o pico de eficiência em gerenciamento
operacional, porque nenhuma demanda maior foi feita ainda em qualquer
outro tipo de negócio. E, no conjunto, o público respeitava essa
realização.

O que as pessoas odiavam era o monopólio. O monopólio, e nada mais, é


a contribuição política.

Mesmo em sua aplicação adequada, o poder político tende a causar


irritação — muito mais quando ela é indevida. A vida protesta
instantaneamente contra a compulsão, o aprisionamento ou a
expropriação de seu produto criativo. A nuvem negra de puro ódio,

1
Exceto talvez na Califórnia, especialmente em São Francisco, onde não é exagero
dizer que as pessoas detestavam até o trem, os trilhos e a estação ferroviária, com
hostilidade concreta. Existem razões para esse sentimento local. A Califórnia tinha
existência independente antes do surgimento das estradas de ferro. Então, alguns
magnatas ferroviários moravam lá, visivelmente desfrutando de imensas fortunas
ganhas pelos subsídios políticos que foram dados as linhas férreas. Além disso, houve
casos locais flagrantes de fazendeiros positivamente espoliados por uma companhia
ferroviária em contratos de terra e que nunca foram ressarcidos; aqui, outra vez, o
poder político foi usado para perpetrar a injustiça. Homens foram mortos por
defender seus direitos de propriedade. A mistura de poder político à vida econômica
teve o costumeiro efeito de corrupção insolente. (N. da A.)

- 160 -
XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status

desespero vingativo, que obscurece o mundo civilizado neste momento,


é evocada pela onipresença de agências políticas. A Gestapo e a Ogpu ou
Cheka2 são as crias gosmentas do Estado Absoluto.

A conseqüência direta da intromissão do poder político no campo


primário da livre iniciativa, com respeito às ferrovias, foi que novos
Estados foram admitidos na União antes que tivessem tempo de
desenvolver verdadeiros interesses regionais e entidades políticas. Em
um caso pelo menos, um Estado foi designado apenas para garantir uma
maioria política na nação. Sendo de fato criações do governo federal e
não dos seus cidadãos, os novos Estados tendiam a buscar no governo
federal legislações especiais, inclusive de caridade.

A conseqüência indireta é igualmente ruim. Obviamente, se recursos


públicos foram concedidos para qualquer coisa que se imagine, com o
pretexto de que é para o benefício geral dos cidadãos, todo cidadão deve
ter o direito de usar o que foi criado com esse dinheiro em igualdade de
condições. (Ele pode absolutamente não querer usar; pode até ter sido
arruinado financeiramente em seu patrimônio por não conseguir
competir com a companhia mantida pelo governo, mas ninguém
pergunta isso a ele.) Então, o governo deve ter autoridade para impor
essa igualdade. (O governo já destruiu o poder natural do indivíduo de
fazer com que a companhia aceite condições pela competição.) Uma
“regulamentação governamental” é imposta. Na verdade, isso não trará
qualquer bem ao cidadão; o resultado é que as estradas de ferro não
podem fazer as melhorias desejáveis ou descontinuar gastos inúteis.3
Mas o poder está lá, e fatalmente será usado. (Não traz nenhum bem
simplesmente porque a “economia mista” não deixa nenhuma base para
a justiça; não existe nenhuma razão ética pela qual alguém teria o direito
a um subsídio de dez dólares vindo de recursos públicos, quanto mais
um subsídio de um milhão de dólares.)

O gerenciamento bem sucedido e a iniciativa produtiva sempre foram


admirados e respeitados, como devem ser; atualmente, tornaram-se
objeto de suspeita e de ressentimento. A mudança de sentimento pode
ser facilmente rastreada até a origem. Se alguma empresa pode ser
identificada, depois das estradas de ferro, tendo incorrido nessa desonra,

2
Gestapo: polícia política da Alemanha nazista. Ogpu e Cheka: nomes da polícia
política soviética, depois chamada de KGB. (N. do T.)
3
A melhoria verdadeira do serviço de ferrovias e a economia de gerenciamento
permaneceram no ritmo do desenvolvimento de métodos competitivos de transporte,
com automóveis e aviões. Ao mesmo tempo, as ferrovias não foram suplantadas,
porque os diferentes meios de transporte alimentam-se mutuamente, cada um
possuindo uma função específica. (N. da A.)

- 161 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

foi a Standard Oil Company. Porém, assim como as estradas de ferro,


essa empresa, por suas operações comerciais normais, aumentou
continuamente o conforto e a conveniência da existência na América —
de lâmpadas a óleo a postos de gasolina. É gerenciada com fantástica
competência; cumpriu todas as suas obrigações financeiras mesmo em
tempos difíceis e se manteve solvente; seus produtos são excelentes e
confiáveis. Poderia ser citada como uma empresa modelo — se não
tivesse usado o poder político, em certo momento, recebendo incentivos
fiscais nas taxas de fretes ferroviários. A acusação de arruinar
competidores não teria sentido, exceto pelos meios empregados, que
foram considerados desleais, e certamente eram mesmo. Se uma loja de
departamentos prospera e outra fecha, o público percebe corretamente
que a loja bem-sucedida foi estabelecida ou gerenciada com maior
competência e não há nenhuma razão sensata para que esse público
subsidie a falta de competência. Sabe-se que a competição de
capacidades não tende a extinguir a competição, mas aumenta o
mercado; o que as pessoas desejam é a possibilidade de escolha. Mas o
contribuinte individual não tem escolha sobre dar ou não incentivos
fiscais sobre um “serviço público” subsidiado por impostos. A Standard
Oil usou os meios políticos; tornou-se um objeto de execração. Pode-se
demonstrar que não houve outra causa de antipatia, uma vez que as
pessoas que a denunciavam ainda compravam seus produtos de boa
vontade. Aprovavam a Standard Oil como empresa; estavam revoltadas
com suas ligações políticas.

O único remédio para o abuso de poder político é limitar esse poder; mas
quando a política corrompe os negócios, os reformadores modernos
invariavelmente exigem a ampliação do poder político. Houve um tempo
em que as pessoas tinham mais sensatez ou mais honestidade; mas talvez
simplesmente não fosse possível interpretar erroneamente a questão, da
maneira como se apresentava. A forma corporativa obscurece a
transação. Antigamente, os monopólios eram concedidos pelos reis a
seus favoritos. Era evidente que uma lei escrita para indivíduos era
absurda; a solução efetiva era proibir que o poder político concedesse
monopólios. Mas a proposta de “regular” as grandes empresas para
impedir monopólios parece plausível. Se fosse simplesmente uma tolice,
não pioraria as coisas; mas ela continha outro elemento pernicioso:
reintroduziu a lei de status.

Isso foi feito desviando-se a atenção da causa para o efeito e, então,


legislando-se contra o processo natural que havia sido desvirtuado —
uma perversão tripla.

- 162 -
XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status

Como legislação aberrante, as leis antitruste são um caso singular.


Ninguém sabe o que elas proíbem. Seu objetivo declarado é impedir ou
dissolver (com penalidades) “combinações que restrinjam o comércio”.
O que é uma combinação que restringe o comércio?

As ferrovias não poderiam ser acusadas desse crime imaginário a menos


que duas ou mais empresas ferroviárias fizessem uma combinação; mas
seus monopólios existiam de qualquer maneira e nunca restringiram o
comércio de nenhum modo. Elas tomavam todo o tráfego que
conseguiam e faziam o possível para criar tráfego, propagandeando a
imigração.

A Standard Oil não restringia o comércio; ia até os confins da terra para


criar um mercado. Será que uma empresa pode ser acusada de “restringir
comércio” quando o comércio que ela supre não existia antes que ela
produzisse e vendesse os bens? As montadoras de automóveis
restringiram o comércio no período em que produziram e venderam
cinqüenta milhões de carros, onde antes não havia carro nenhum? Ou as
ferrovias restringiram a indústria automobilística? Não teriam como
fazer isso; o que fizeram de fato foi trazer as matérias primas para as
montadoras de automóveis e depois transportar os veículos produzidos
para serem vendidos em toda parte.

Se duas empresas fazem uma combinação e realizam juntas as operações


que ambas faziam anteriormente, ampliando-as se possível, estão
restringindo o comércio? A acusação feita contra as grandes empresas é
que elas não produzem mais do que o que elas acreditam que serão
capazes de vender com grande esforço. Isso é “limitar” e, portanto,
“restringir” o comércio. Mas, em primeiro lugar, qualquer produção num
período é intrinsecamente limitada pelo capital disponível, assim como
pela expectativa de mercado; e, em segundo lugar, se elas esticassem
esse limite ao máximo num período e não vendessem toda a produção
com lucro líquido, não seriam capazes de produzir nada no ano seguinte.
Iriam à bancarrota. Não podem nem mesmo consumir seu capital
gradativamente, um tanto por ano. Geralmente, seu capital líquido está
no prédio e nos equipamentos; enquanto os materiais em processo de
manufatura ou em estoque representam crédito (empréstimos bancários
ou títulos a pagar). Mesmo que um fabricante operasse estritamente com
capital próprio, não devendo nada a ninguém e com dinheiro no banco,
seu estoque é capital líquido; e estaria exaurido no segundo ano. Com
relação ao capital emprestado, crédito, se os juros não forem pagos e as
contas das matérias-primas vencerem, os empréstimos serão suspensos e
nenhuma matéria-prima será entregue; então, o negócio inteiro para de
uma vez; não em percentagens sucessivas; e a instalação passa a ser

- 163 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

improdutiva. Se os diretores da empresa desconsiderassem esses


imperativos, seriam candidatos ao Matteawan4. É difícil acreditar que
alguém possa sugerir isso de boa-fé.

Então, o que seria esse delito? Outras queixas contra as empresas


continham uma contradição tripla. Elas foram acusadas, de maneira
variada, de cobrar demais, de vender a preços inferiores aos dos
concorrentes e de fixação de preços (combinação de preços com os
concorrentes).

Quanto exatamente, em comparação com o que, é “demais”? É demais


se um proprietário pede mais do que outra pessoa deseja ou é capaz de
pagar? Então, a grande maioria de nós teria razões para processar a
Tiffany’s5. É pedir mais que outra pessoa pelo mesmo tipo de bens?
Então, a outra pessoa é culpada de “vender a preços inferiores”; ambos
deveriam ser levados ao tribunal. Mas, se concordarem em estabelecer o
mesmo preço, seriam criminosos fixadores de preços. Também não seria
um procedimento inocente para eles não vender mais nada e morrer de
fome pacificamente; estariam certamente “limitando o mercado” se
segurassem seus bens ou não continuassem produzindo.

De modo geral, os únicos atos dos quais as empresas podem ser acusadas
em suas transações comerciais são simplesmente os atos necessários de
produção e trocas; o homem neolítico que lascava uma pedra para fazer
uma ponta de flecha e a trocava por um ornamento de concha era
culpado do mesmo crime — com exceção da acusação de “combinação”
entre duas ou mais empresas. Mas teria sido possível aprovar uma lei
específica para impedir essas fusões; bastaria limitar suas licenças de
funcionamento, proibindo que uma empresa comprasse outra, ou
qualquer parte de outra. Uma lei assim seria sem sentido ou prejudicial;
certamente constituiria uma restrição ao comércio, mas o poder político
é restritivo; e a lei seria específica ao determinar o ato proibido.

É a única coisa que os legisladores não iriam fazer. Fariam qualquer


coisa exceto admitir o nome do verdadeiro crime — o uso do poder
político. Seu objetivo era conseguir o controle das grandes empresas.
Isso foi feito usando-se uma expressão que pode ser interpretada como
qualquer tipo de transação comercial em que uma empresa estivesse
envolvida; com a implicação de que tais atos seriam considerados

4
Matteawan State Hospital: hospital psiquiátrico estabelecido no estado de Nova York
em 1892. Funcionou até a década de 1970. (N. do T.)
5
Tiffany’s: rede multinacional de lojas de artigos de luxo, com sede em Nova York. (N.
do T.)

- 164 -
XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status

crimes, em situações particulares, de acordo com seus efeitos, embora


esses efeitos não pudessem, em nenhum caso, ser mostrados ou
provados. Pegue qualquer caso, real ou imaginário, e faça a seguinte
pergunta: Exatamente onde, quando e como o comércio foi restringido?
O volume de comércio diminuiu? Alguma pessoa foi de fato impedida
de oferecer um artigo para ser vendido ou de comprar um artigo
oferecido, depois de ter decidido fazê-lo? Qual artigo? E qual pessoa?

Quando um indivíduo é indiciado por apropriação indébita, roubo ou


qualquer delito semelhante, o dinheiro ou os bens envolvidos precisam
ter existência real e o proprietário precisa ser indicado; com o ônus da
prova pertencendo à acusação, basta ao acusado refutar a evidência
apresentada, se ele é inocente. Se uma pessoa fosse simplesmente
acusada de “desonestidade” ou “imoralidade” e fosse exigido que ela
desse conta de sua vida inteira, que apresentasse toda a sua
correspondência ao tribunal e provasse uma negativa geral, estaria
sujeita ao mesmo tipo de lei que as leis antitruste. Indivíduos foram
submetidos a esse tipo de lei na Sociedade de Status. Seu nome moderno
é Legislação Administrativa. Durante o século 19, essa prática
sobreviveu apenas na Rússia, sob os Czares (e era chamada por lá de
legislação administrativa; viajantes de nações livres ouviam sobre ela
com espanto e indignação). Ainda é a lei na Rússia comunista, mas não
está mais confinada apenas à Rússia.

Sem dúvida, se fosse feito um esforço honesto para decidir qual a


acusação mais imbecil possível contra alguém — algo como prender um
coelho pela prática de controle de natalidade, ou um campeão de
maratona durante a corrida por vagabundagem, ou Brigham Young6 por
celibato — não seria possível imaginar nada mais absurdo que pegar as
empresas americanas, que criaram e ampliaram, numa magnitude sempre
crescente, um volume e uma variedade de comércio tão vastos que
fizeram com que tudo o que era produzido e vendido anteriormente
parecesse uma barraca de beira de estrada rural, e chamar esse
desempenho de “restrição de comércio”, estigmatizando-o como um
crime!

Outro aspecto da imposição da “regulação” política sobre um esforço


econômico é o pretexto de que as empresas têm poder demais, um poder
econômico que também influencia a política. Isso é imputado da mesma
maneira às grandes fortunas privadas como justificativa para pesados
impostos sobre a herança. Na verdade, o perigo inerente às grandes

6
Brigham Young (1801 – 1877): segundo presidente da igreja mórmon, casou-se 55
vezes. (N. do T.)

- 165 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

fortunas é sua fraqueza diante do poder político. Mas, se fosse provado


que as grandes empresas têm esse poder indevido e o exercem, e se
alguém quisesse fazer uma proposta séria para corrigir essa condição
entregando o governo à direção das empresas, isso não seria uma
maluquice? Porém, é esse o resultado da regulação governamental, para
além da exigência do cumprimento da lei contratual, porque ela se aplica
a qualquer transação comercial entre pessoas privadas. Os poderes
políticos e econômicos se fundem num único controle. Daí em diante, é
irrelevante qual o grupo de pessoas que exerce esse poder conjunto
(embora os políticos inevitavelmente consigam a posição mais alta); a
soma de poderes será a mesma. Se somarmos três com dois ou dois com
três, o resultado é cinco. “Governo totalitário” não é nada mais que o
controle político sobre a vida econômica. As queixas contra a
“competição”, a expressão sem sentido “produção para uso e não para
lucro” — como se fosse possível ter lucro se o produto não é usado; a
Standard Oil despejou seus produtos no ralo? ou a direção da General
Motors usava seus produtos em correntes de relógio? — são passos para
estabelecer o controle político e a tirania absoluta. A competição não
pode ser erradicada; no esforço produtivo ou criativo, ela é benéfica. Se
for penalizada nessas formas desejáveis, vai encontrar meios vis e fúteis
para se manifestar. Nas cortes reais, onde o status é rigidamente definido
e não há campo produtivo, insignificâncias tornam-se objeto de
competição; cortesãos ficarão em pé durante o dia todo, de maneira que
sentar-se torna-se um privilégio; príncipes discutirão ignominiosamente
pela honra de passar primeiro por uma porta. Um homem que faz um
carro melhor que outro, ou mais barato, está competindo de maneira útil;
mesmo um homem que quer ganhar mais dinheiro que seu vizinho,
numa sociedade livre, descobrirá que a maiores fortunas são ganhas pela
produção em grande escala. Apenas no campo político é que a
competição é por poder sobre outros homens, até mesmo por matar uma
quantidade maior na guerra. Somente o individualismo dá uma aplicação
legítima e criativa ao instinto competitivo, ampliando e melhorando a
produção.

O governo não pode “restaurar a competição” ou “garanti-la”. Governo é


monopólio; tudo o que ele consegue fazer é impor restrições que podem
resultar em monopólio, quando chega ao ponto de exigir permissão para
que o indivíduo participe da produção. Essa é a essência da Sociedade de
Status.

O retrocesso à lei de status na legislação antitruste passou despercebido.


Provavelmente, os políticos não sabiam exatamente o que estavam
fazendo; mas sabiam o que queriam. Aprovaram uma lei pela qual se
tornou impossível ao cidadão saber de antemão o que constitui um crime

- 166 -
XVI. As Grandes Empresas e a Lei de Status

e, portanto, tornou qualquer esforço produtivo sujeito a processo


judicial, ou condenação inescapável. Como isso foi imposto
primeiramente às grandes empresas, sua real incidência não foi
percebida. Quem disse que “uma empresa não tem nem corpo para ser
chutado nem alma para ser perdida” vislumbrou a verdade: toda e
qualquer lei se aplica a pessoas. Os atos de uma empresa são
necessariamente realizados por pessoas; os bens de uma empresa
pertencem a pessoas; a punição deve cair sobre pessoas. E se esses atos
são sujeitos a penas, a lei rapidamente será ampliada para incluir o
esforço estritamente individual em seu campo de ação.

Nessa extensão é que o propósito exposto se torna evidente. A


conseqüência final de qualquer ampliação do poder político consiste no
campo de ação que ela cobre, não no ato particular primeiramente
proibido. Ou seja, se o governo é moralmente competente para proibir a
venda de bebidas alcoólicas, deve ter o poder de prescrever todos os
itens da dieta aos cidadãos. Depois de séculos de liberdade, essa
afirmação parecerá vagamente absurda; mas foi posta em prática em
Esparta. O campo de ação que as leis antitruste invadiram foi o da
produção e do comércio; o primeiro crime alegado foi “restrição ao
comércio”. Mas o poder invocado era necessariamente abrangente; e,
quando foi aplicado aos indivíduos, a acusação foi “superprodução”!

Mais uma vez, o ato de trabalhar foi criminalizado, o ato de produzir foi
criminalizado. Tornou-se crime até mesmo doar comida plantada pelo
doador em sua própria terra, por seu próprio trabalho. Ainda não é um
crime específico um homem comer a comida que ele mesmo produziu —
como acontece na Rússia — mas esse é o próximo passo inevitável. O
direito primário dos seres humanos à mera existência já foi negado; uma
vez que cotas agrícolas, prioridades e cartões de racionamento envolvem
todos os processos de produção e comércio, pelos quais a existência é
mantida, a vida passou a depender de permissões diárias e horárias.

No famoso caso Dred Scott7, que os homens corretamente entenderam


como definidor das questões pelas quais a Guerra Civil foi
desencadeada, a decisão se baseou num axioma declarado; e o axioma
repudiava a Declaração da Independência. Tecnicamente, decidiu-se que
a Suprema Corte não tinha jurisdição; e a razão apresentada foi que um
negro não podia ser cidadão, nem mesmo por nascimento, nem mesmo

7
Dred Scott (1795 – 1858): escravo americano que tentou obter liberdade na justiça,
para si mesmo e para sua esposa. Alegou que, embora fossem escravos, viveram com
seu dono em estados e territórios onde a escravidão era ilegal. Por 7 votos a 2, a
Suprema Corte decidiu que nenhuma pessoa com ancestralidade africana poderia
reivindicar cidadania americana. (N. do T.)

- 167 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

se seus pais não estivessem formalmente em escravidão. Ele de fato


podia ser autorizado a residir no país e possuir bens, mas apenas como
um favor, não como um direito. Se não era um cidadão, estava sujeito a
ser deportado. Porém, tendo nascido nos Estados Unidos, não tinha outro
país ou lugar em que pudesse ser admitido. Portanto, não havia um lugar
em que ele pudesse usufruir do primeiro benefício da propriedade, que é
um chão para viver. Não existia um lugar na face da Terra onde ele
tivesse o direito de existir; o que é o mesmo que dizer que ele não tinha
o direito de existir, se essa decisão contivesse a verdade.

No caso de Dred Scott, sua condição material foi deduzida de uma


premissa primária, uma negação do direito natural de um ser humano.
Pela abordagem contrária, quando a aquisição, posse e uso de cada
objeto material depende de permissão, então toda ação produtiva de que
um homem é capaz passa a ser realizada apenas por permissão. Como
essas ações constituem o modo de ser do homem, a premissa primária
fica implícita; ele foi reduzido à situação inominável de Dred Scott. Se
não tem o direito de agir, de produzir, de comerciar, não tem o direito
de existir.

Portanto, a sentença de Dred Scott foi pronunciada sobre toda a


humanidade, pela negação de todos os atributos do direito natural.
Presume-se que os homens só existem mediante permissão. Finalmente,
o persistente objetivo dos improdutivos foi alcançado, sem reservas, sem
limitações; e, de maneira ainda mais extraordinária, sem nenhuma outra
justificativa exceto a de sua própria incompetência. Conseguiram colocar
uma canga nos produtores.

- 168 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

A
linguagem é a faculdade que diferencia o homem dos animais
inferiores. Também é um bom indicador do nível intelectual de
culturas e pessoas. A confusão e a ambigüidade de termos
sempre encontradas nas teorias coletivistas não são acidentais;
constituem um retorno às limitações mentais e verbais da sociedade
primitiva que essas teorias defendem, ou seja, a incapacidade de pensar
em termos abstratos. Esse defeito é flagrantemente evidente nos
argumentos coletivistas sobre a propriedade.

Propriedade é a condição de pertencer a alguém. Coisas que não são de


ninguém não são propriedade, são simplesmente objetos na natureza. A
expressão mais vazia de sentido cunhada até mesmo por um coletivista é
provavelmente aquela de Proudhon: “Toda propriedade é um roubo”. É
realmente notável à sua maneira, pela variedade de erros comprimidos
em tão breve enunciado. Em cinco palavras, confunde objetos, atos,
atributos, valores morais e relações, como se fossem intercambiáveis.
Um roubo pressupõe uma propriedade legítima. Um objeto precisa ser
propriedade antes de poder ser roubado.

Os selvagens e os coletivistas são notavelmente ignorantes do ramo


estritamente lógico da linguagem que é a matemática. O selvagem não
vai além da simples soma e subtração contando nos dedos. O coletivista
pode decorar fórmulas, mas não consegue compreender os princípios de
sua aplicação aos fenômenos físicos. Um coletivista avalia processos e
pensa chegar a resultados que só poderiam ser obtidos a partir de um
fator que ele, por sua teoria, excluiu do problema que pretende resolver.
O problema é definir as condições necessárias para uma sociedade
produtiva. Essas condições devem responder ao mundo da realidade
física; não se pode assumir que exista na realidade física algo que de fato
não existe; também não se pode excluir nenhum aspecto dos fenômenos
físicos que irá inevitavelmente interferir nas condições da realidade.
Mas, quando o coletivista exclui a propriedade privada de sua economia
teórica, tira dos fenômenos materiais o aspecto que os matemáticos
chamam de terceira dimensão. “As três dimensões de um corpo, ou do
espaço comum, são o comprimento, a largura e a espessura; uma
superfície tem apenas duas dimensões; uma linha, apenas uma.”1 Com a
terceira dimensão, a medida cúbica é possível; e a construção se torna
capaz de conter algo sólido. Não teria sido possível conceber a medição

1
Extraído da definição de “dimensão” do Oxford English Dictionary. (N. do T.)

- 169 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

de maneira abstrata, sem a realidade preexistente e o conceito de unidade


de medida. A unidade de medida da energia física é estabelecida a partir
dos sólidos, em termos de tempo, espaço e resistência de massa ou
deslocamento (gravidade). A energia física real não pode existir, exceto
num mundo tridimensional, e não poderia ter sido concebida de maneira
abstrata sem que existisse na realidade.

Dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Esta é
a razão pela qual a propriedade privada pertence ao homem como ser
criativo (um direito tanto natural quanto divino). A propriedade
individual responde exatamente às condições dos fenômenos físicos. A
propriedade pública é fictícia; seus termos verbais não correspondem à
realidade, nem às características dos objetos físicos, nem às condições do
tempo e do espaço. Várias pessoas podem morar na mesma casa, mas
apenas pela distribuição de objetos entre elas, no espaço e no tempo,
especificamente ou por precedência. Ninguém poderia viver em uma
casa se o público em geral tivesse o direito de entrar e sair, de sentar nas
cadeiras, de dormir nas camas, de usar a cozinha. Dez homens podem ser
legalmente os iguais proprietários de um campo, mas nenhum deles pode
obter nenhum bem dali, a menos que a ocupação e o uso sejam
distribuídos entre eles por medidas de tempo e espaço. Nenhum acordo
pode suplantar essa necessidade. Se os dez homens quisessem fazer
exatamente a mesma coisa, ao mesmo tempo e no mesmo ponto, isso
seria fisicamente impossível, com ou sem consenso. A propriedade
privada em grupo se transforma necessariamente no gerenciamento por
uma pessoa, com a divisão do produto, e pode levar à divisão da
propriedade em si, no caso de um desacordo irreconciliável.

Teoricamente, a propriedade pública pertence a todas as pessoas


igualmente, indivisivelmente e simultaneamente, o que é absurdo. Se
essa premissa fosse aplicada, o resultado seria que qualquer pessoa que
se apresentasse para usar a propriedade teria de responder à pergunta:
“Você é todas as pessoas?” e seria obrigado a dizer: “Não”. Sendo assim,
não poderia reivindicar o uso de qualquer divisão específica da
propriedade. O uso real da propriedade pública pelo público é, portanto,
limitado aproximadamente a duas condições dimensionais, nas quais a
medida cúbica não precisa ser levada em consideração. Assim, cada
homem é considerado um ponto em uma reta, que pode ser dividida em
infinitos de pontos e estar no cruzamento de infinitas retas numa
superfície plana. Assim, é possível — independentemente se isso é ou
não necessário ou aconselhável — fazer com que as estradas sejam
propriedade pública, porque a maneira de se usar uma estrada é viajar
por ela. Embora o usuário de fato ocupe um dado espaço num dado
instante, a duração é desprezível, de maneira que o tempo e o espaço não

- 170 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

precisam ser levados em consideração, exceto por negação, proibição: o


passageiro não tem o direito de permanecer por tempo indefinido em um
ponto da estrada. A mesma regra se aplica aos parques e aos prédios
públicos. A viabilidade desse arranjo torna plausível a ficção da
“propriedade pública”. Na verdade, mesmo no uso de uma estrada, se
uma quantidade excessiva de membros do público tentar se mover por
ela de uma vez, a regra regride para “quem chega primeiro é atendido
primeiro” (divisão no tempo e no espaço), ou as autoridades podem
fechar a estrada. O público não tem o direito essencial de propriedade de
ocupação contínua e definitiva.

A “propriedade pública” que é usada para outras finalidades (diferentes


da simples passagem) não está disponível ao público de maneira
nenhuma. Parte da Mansão Executiva está aberta ao público para
visitação em parte do tempo; mas as condições foram demonstradas
claramente quando duas crianças entraram no prédio sem permissão e
invadiram uma área proibida. A esposa do Executivo Chefe considerou
recomendável imprimir um aviso de que essa conduta não é segura; as
crianças poderiam ter sido baleadas por um segurança. “Domínio
público” que é alugado por dinheiro é usado pelos locatários como
pessoas privadas e o aluguel não é distribuído aos membros do público;
é usado pelas autoridades. Seja qual for a forma de posse ou usufruto de
uma propriedade “pública”, as autoridades a ocupam ou consomem o
usufruto, enquanto o público paga pela manutenção. Nenhum “serviço
público” está disponível ao público como se este fosse o proprietário.
Qualquer cidadão que deseje obter eletricidade de uma usina municipal
tem de pagar com seus recursos privados pela quantidade de energia
medida que usar. Ele não é o proprietário: um proprietário não precisa
comprar o produto de sua propriedade. Ao mesmo tempo, um cidadão
que não use eletricidade nenhuma é cobrado indiretamente, da mesma
maneira, porque o custo de manutenção é pago por impostos, embora o
cidadão não possa exercer nenhum direito de propriedade na usina. Ele
não tem nem sequer o direito de entrar nas instalações, o que é a
primeira prerrogativa de um proprietário.

A propriedade pública então admite o uso pelo público somente de


passagem, não para produção, comércio, consumo ou para segurança
como base de terra. Onde toda a propriedade é “pública”, no comunismo,
as autoridades se apropriam para uso pessoal de qualquer coisa que
queiram, com dinheiro público para manutenção; enquanto o público
existe condição perpétua de passageiros de uma estrada, não tendo
direito de permanecer em nenhum ponto ou de usar nenhum objeto;
todas as atividades dos membros do público são por permissão ou por
compulsão.

- 171 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

É impossível imaginar um método prático pelo qual o uso ou o produto


de qualquer tipo de propriedade produtiva fique disponível “ao público”
como tal. Embora qualquer pessoa que chegue possa usar uma estrada (a
menos que ela fique congestionada), não é possível desenvolver nenhum
meio pelo qual qualquer pessoa que chegue possa se servir de
eletricidade, ou de batatas, como membro do público, “de acordo com
sua necessidade”. A expressão não tem aplicação à realidade numa
sociedade produtiva. É uma idéia limitada às condições da natureza
selvagem, na qual o homem primitivo vive de qualquer coisa que
consiga obter, na forma de caça, frutas, peixe ou insetos.2

O coletivista é incapaz de entender isso, porque seu conceito de


“coletivo” não possui dimensões. A sociedade fundada na propriedade
privada é organizada para um homem de três dimensões, ocupando
espaço num mundo de três dimensões, através do qual a energia flui em
ação e é colocada em uso para a produção. A sociedade coletivista é
“planejada” para um mundo de duas dimensões, no qual nada é
concebido como se ocupasse espaço ou causasse deslocamento. O
homem é imaginado estando em todos os lugares ao mesmo tempo e em
nenhum lugar em particular, na coletividade. O conceito é de um mundo
e uma sociedade nos quais não existe energia, nem cinética nem
estática.

Mas, como cada objeto ocupa espaço tridimensional na realidade e


movimentar objetos causa deslocamento, sempre que os comunistas
tomam o poder político para realizarem sua suposta experiência, o
comunismo é colocado num futuro vindouro, nunca no presente. O
presente é descrito como “um período de transição”. O senso comum da
fala coloquial reconhece os fatos, com o advento do coletivismo, quando
as pessoas reclamam que estão sendo humilhadas.3

Talvez o coletivista tenha uma vaga noção da dificuldade lógica com a


coletividade não-dimensional, já que todas as teorias coletivistas
começam com a suposição de um maquinário e um sistema produtivos
tomados de uma sociedade de propriedade privada e iniciativa pessoal.
Mesmo que não admitam, os coletivistas devem sentir que sua sociedade

2
Mesmo em uma economia caçadora, onde o resultado de uma boa caçada é
distribuído entre os membros da tribo, é o caçador individual que dá a caça para ser
repartida. Seu direito de propriedade é respeitado, uma vez que ele toma para si a
parte que preferir. (N. da A.)
3
No original, “pushed around”. É uma expressão usada com o significado de “receber
ordens de maneira insultuosa”, “ser humilhado”. Mais literalmente, poderíamos
traduzir como “ser empurrado para qualquer lado”. (N. do T.)

- 172 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

hipotética não é produtiva, porque a produção cria seus próprios meios.


Para esconder essa dificuldade, dão ênfase à distribuição e ao consumo
como o ponto crucial de seus planos. Mas não conseguem imaginar
nenhum método prático que realize sua promessa; podem apenas
oferecer uma cópia em papel das formas de distribuição criadas pela
sociedade da propriedade privada, enquanto eliminam as relações morais
e físicas que tornaram viáveis essas formas. Ou seja, têm de usar
medidas quantitativas para os bens, e para o tempo de trabalho (medidas
desnecessárias para o meio de vida selvagem na generosidade da
natureza); e um meio de trocas. Mas negam o direito do dono e produtor
à sua propriedade e ao seu produto. Agindo assim, negam o direito do
homem ao seu próprio trabalho, ou seja, à sua própria pessoa. Todas as
sociedades coletivas exigem trabalho forçado. Com isso, não pode haver
comércio verdadeiro, somente expropriação e esmolas estatais.

Os coletivistas usam a palavra “direito”, mas jamais em um contexto que


corresponda à realidade e permita uma aplicação específica. Pela teoria
marxista, é óbvio que eles não deveriam usar nunca a palavra “direito”,
porque o Materialismo Dialético é determinista; portanto, não admite
nem direitos nem injustiças. O uso da fala é comunicação, mas os
marxistas usam as palavras com o objetivo de confundir; mesmo assim,
supõem que uma sociedade produtiva, que depende essencialmente de
comunicação exata, pode ser organizada depois que destruírem a
comunicação. Com isso, regridem para menos que a selvageria e até para
menos que o nível animal. Descem ao ponto do simples mecanismo.
Engrenagens numa máquina não precisam de linguagem.

Assim, os coletivistas falam de direitos civis numa sociedade coletiva,


quando nessa sociedade os direitos civis não podem existir. Não podem
porque não existe um lugar onde possam ser exercidos, nem materiais
sobre os quais possam ter efeito. Como pode um homem falar
livremente, se não existe um lugar onde sua audiência tenha o direito de
ficar? Como pode praticar sua religião, se não tem o direito de possuir
um edifício religioso e não tem direito à sua própria pessoa? Como pode
existir uma imprensa livre, se os materiais não são propriedade privada?
Com a propriedade estatal, nada pode ser feito, exceto por ordem ou
permissão. Um escravo vive submetido a ordens e permissões. Um
escravo não é livre.

Os coletivistas falam, com freqüência, do “direito ao trabalho”. O que


isso significa, em termos de realidade física? Numa sociedade livre, todo
homem tem, por natureza, o direito de trabalhar. Ninguém pode forçá-lo
a trabalhar; e ninguém pode impedi-lo de trabalhar em sua propriedade
ou em contrato com outra pessoa. Mas, se não possui propriedade, ou se

- 173 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

sua propriedade não produz o suficiente para garantir sua subsistência,


ele precisa procurar emprego com outras pessoas. O trabalhador nunca
terá o poder de exigir que todos os seus termos sejam aceitos pela outra
parte, da mesma maneira que não encontrará na natureza tudo que
gostaria de ter. Mas, uma vez que o empregador precisa contratar
trabalhadores (se não precisasse, não contrataria), existe uma base para
barganhas e acordos. Se nenhum dos dois quiser aceitar os termos do
outro, cada um pode procurar por outro possível empregador ou
trabalhador. Mas diz-se que o trabalhador sem propriedade (terra) tem
uma necessidade mais urgente que o possível empregador; não pode
esperar até que seus termos sejam aceitos, e o empregador pode. (Não se
considera, nessa teoria, que empregadores também vão à falência,
embora isso certamente aconteça. Assume-se, pelo contrário, que podem
sentar e esperar para sempre, se quiserem.) Portanto, como a terra existe
na natureza e todas as matérias-primas são de origem natural, diz-se que,
se um homem não pode exigir e receber um emprego que garanta seu
sustento, seu direito natural ao trabalho foi negado.

Mas existe alguma economia de produção imaginável na qual a


contingência do desemprego não ocorra, com condições muito mais
duras associadas a ele?

Certamente, numa sociedade nômade selvagem, os recursos brutos da


natureza estão disponíveis diretamente a todos os homens (assim como
aos animais inferiores), “de acordo com suas habilidades”. Mas, no
momento em que alguém começa a utilizar esses recursos além das
habilidades dos animais, produzindo armas ou ferramentas, a
propriedade privada sobre esses objetos é necessariamente estabelecida.
E qualquer outro homem pode presumivelmente fazer ferramentas
similares a partir dos recursos da natureza. Da mesma maneira, quando a
terra é cultivada de maneira primitiva, marginal à economia caçadora —
como alguns índios norte-americanos cultivavam milho em seus
acampamentos de verão — não são necessários limites exatos; e,
presumivelmente, qualquer pessoa poderia fazer suas próprias
ferramentas e arar um pedaço não utilizado de terra. Mas as causas
naturais vão provocar fome recorrente. O caçador tem o direito de caçar,
mas não encontra caça. Os animais podem devorar o milho; não há
cerca. As construções não são sólidas nem duráveis; não há como
armazenar os alimentos. Então, todos passam fome, e é isso.

Com assentamentos permanentes, a posse permanente da terra pelo


cultivo regular passa a ser reconhecida. Quanto mais evoluída a forma de
produção, mais necessário determinar a propriedade. E a propriedade
pode assumir variadas formas, por pessoas ou grupos locais ou famílias

- 174 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

ou outras divisões, possivelmente sujeitas a uma redistribuição. Os dois


extremos do título de propriedade são propriedade governamental e
propriedade privada individual. A questão é: por qual sistema o homem
permanece com seus direitos naturais?

Com a propriedade em grupo, cada homem precisa nascer membro de


um grupo ou ser formalmente admitido a ele. Caso contrário, não tem
direito de propriedade. Se pertencer ao grupo, pode, em certas
circunstâncias, ficar preso ao solo. Assim era o sistema feudal. Era um
conceito tridimensional; cada homem tinha um lugar, o direito de
trabalhar numa porção específica de terra. Mas os homens eram sujeitos
ao trabalho forçado em muitos dias do ano; não tinham o direito de
mudar de emprego; e tinham muito poucas possibilidades de aumentar
sua produção, melhorando suas ferramentas. Seus direitos naturais eram
extremamente restritos; perdiam a mobilidade e a escolha. A
compensação presumida era a estabilidade com o circuito local de
energia de produção. Mas ainda sofriam fomes recorrentes, como no
estado de natureza. O sistema feudal não tinha condições de formar um
longo circuito de energia. Um fugitivo de um grupo feudal não tinha
como entrar em outro grupo; tinha de procurar a sociedade de contrato.
Muitos o fizeram, uma prova de qual sistema é preferível; outros
compraram sua liberdade.

Com a propriedade privada individual, todo homem tem o direito natural


de possuir propriedade. Pode herdá-la, pode trabalhar para ganhar
dinheiro e adquiri-la. Essa aquisição é razoavelmente possível a qualquer
pessoa competente e sadia, no tempo de vida natural, pelo trabalho e
economia. Quando alguém a consegue, a propriedade é sua, assim como
tudo o que ela produzir. O dono pode experimentar suas próprias idéias,
melhorar ou aumentar a produção, construir para alugar, ou usar a
propriedade para sua satisfação. Pode acumular provisões para quando
envelhecer ou contra vicissitudes de qualquer tipo. Além disso, numa
sociedade de contrato, se ele tiver boa capacidade gerencial ou idéias
criativas, pode obter capital a crédito, sem garantias de sua parte exceto
sua honestidade de conduta e retribuição se o projeto der certo, com o
sócio capitalista assumido o risco financeiro do fracasso, enquanto o que
toma o capital tem a chance de um ganho considerável, sabendo que o
obteve de maneira justa, aumentando a produção. Essas são as vantagens
características da propriedade privada individual.

Vamos então enunciar o caso contra a propriedade privada, suas


possíveis desvantagens, com o máximo rigor, na pior condição possível.
Muitas pessoas podem não ter herdado nenhuma propriedade, nem ter
tido tempo de acumular recursos de seus ganhos antes de encontrar

- 175 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

tempos difíceis. É verdade que alguns podem ter tido a chance e a


desprezado; mas nunca será verdade que todos os desempregados
tiveram essa chance antes. Alguns são jovens; outros trabalharam
produtivamente, mas enfrentaram doenças ou perdas. E não se pode
dizer mesmo dos imprudentes que seus direitos naturais tenham sido
anulados. A oportunidade pode aparecer novamente no futuro, mas isso
não suaviza as dores imediatas da necessidade. Parte do tempo de vida
dessas pessoas será um período de grandes dificuldades, o que parece
ainda pior porque outros têm melhor sorte sem esforço próprio.

Mas é verdade que os desempregados estão nessa condição por não


terem acesso à terra?

Na Europa, em tempos modernos, praticamente toda a terra utilizável


tinha dono. Não havia terra selvagem à qual um desempregado pudesse
ter “acesso”; e seria improvável que os donos de terra permitissem que
os desempregados a usassem de graça. Mas, nos Estados Unidos, nunca
houve um dia nos “tempos difíceis” em que um desempregado não
pudesse ter acesso à terra selvagem, ou mesmo a terras pertencentes a
alguém, mas que o dono permitisse que fossem usadas para produção.
Mesmo assim, nos tempos difíceis, as pessoas não migraram para as
terras selvagens. A afirmação de que a fronteira selvagem incorporou os
desempregados durante as depressões industriais é uma completa
falsidade. Pelo contrário, a fronteira foi conquistada a partir do
excedente de produção capitalista dos bons tempos. Nos tempos ruins, os
homens saíam da fronteira, até mesmo abandonando seus lotes, e
retornavam para as áreas mais desenvolvidas, as cidades e as regiões
industriais. Buscavam empregos assalariados.

Então, diz-se que se nega aos desempregados o “acesso aos meios de


produção”, o que inclui a terra. Mas os meios de produção de uma
economia industrial não se encontram prontos na natureza. Então, o
homem que deseja um emprego precisa de algo além de seu direito
natural original. Precisa do uso de ferramentas, de capital acumulado e
da organização de uma economia altamente produtiva, que sejam
aplicados aos recursos da natureza.

Mas essa definição ainda não abrange toda a dificuldade. Os donos de


propriedade industrial ocasionalmente trabalham com prejuízo, para
manter sua fábrica e seus contatos comerciais para o futuro. Nos Estados
Unidos, em tempos de crise, muitos empregadores certamente ficariam
felizes se conseguissem manter o pleno emprego naquele momento,
cobrindo o custo da matéria-prima, manutenção e salários de produção e
gerenciamento. Os dividendos podem esperar e freqüentemente são

- 176 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

adiados. Mas, se uma fábrica ociosa, contendo até mesmo um estoque de


matéria-prima, fosse entregue a trabalhadores desempregados, dando
assim a eles o livre “acesso aos meios de produção”, esses trabalhadores
não conseguiriam manter uma produção contínua para remunerar seu
trabalho, porque isso depende de vendas constantes com lucro;
conseguiram apenas usar o estoque inteiro e parar de trabalhar.

Então, o desempregado numa economia de propriedade privada não


perdeu seus direitos naturais e não está em uma situação de privação
maior do que estaria no estado de natureza. É livre para buscar o que
precisa, mas, naquele momento, o que busca é escasso, difícil de
encontrar. Será que ele preferiria retornar ao estado de natureza? Não.
Sua recusa é racional. A privação, de fato, foi grandemente reduzida; os
Estados Unidos, a única grande economia livre que o mundo
desenvolveu, nunca conheceu a fome, embora os índios, no mesmo
território, tenham sofrido com ela. Não há perda, mas ganho líquido. Se
o desempregado enfrenta dificuldades, não é porque seus direitos
naturais tenham sido negados, mas porque, naquele momento, ele não
tem acesso a algo que não conseguiria na natureza.

Mas aquilo de que ele precisa não pode ser definido simplesmente como
acesso à terra ou aos meios de produção; o que lhe falta é uma conexão
direta ao longo circuito de energia.

O ponto principal da acusação do coletivista é que, em tempos difíceis,


existem bens não distribuídos, maquinário produtivo ocioso e homens
precisando de trabalho e de bens. Embora os bens sejam de fato
rapidamente distribuídos, com prejuízo aos donos se necessário, e o
emprego produtivo retomado, não se considera que isso constitua a
condição ideal para um sistema de trabalho. Seriam possíveis melhorias
em sua operação específica que permitissem melhores resultados
seguindo a mesma linha. Então, a acusação real contra o capitalismo
privado deveria ser a de que ele desacelera ocasionalmente, que quebras
e interrupções ocorrem. Não funciona com absoluta, invariante,
matemática regularidade para suprir as necessidades de todos contínua e
infalivelmente e sem exceções, apesar dos riscos infinitos da falibilidade
humana, moral e intelectual.

O coletivista promete uma organização que não sofrerá avarias nunca,


nem mesmo temporariamente. Insiste que possui o plano da máquina
perfeita, “automática”. Em seus próprios termos, a teoria é insana. Se for
reduzida às suas especificações, deve ser como a maravilhosa One-Hoss

- 177 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Shay4, na qual cada material, peça e detalhe eram exatamente tão fortes
quanto todo o restante dos itens, de maneira que nenhuma peça poderia
quebrar. A carruagem imaginária de fato parou de funcionar, mas inteira
de uma vez, completamente, em total desintegração. Espera-se que o
governo coletivista absoluto “definhe” e desapareça da mesma maneira.
Mas, embora o governo seja a única forma específica que o coletivista
tenha em mente, ele insiste que, no momento de sua dissolução, outro
tipo de organização tomará seu lugar automaticamente, sem que ele
saiba exatamente qual — a proposição vai morrendo em incoerências e
murmúrios de revelações que serão feitas depois.

Existe apenas mais uma suposta objeção proposta pelo coletivista, seu
argumento final contra a propriedade privada. Diz-se que, a partir de um
determinado estágio do desenvolvimento capitalista, sempre e
necessariamente haverá mais gente procurando emprego que empregos;
portanto, o trabalhador não terá poder real de barganhar e conseguir um
salário digno, mas será obrigado a aceitar qualquer coisa que o
empregador oferecer. É uma variação invertida da teoria malthusiana.
Malthus pensava que havia uma “lei” que fazia com que a população
crescesse mais rapidamente que a produção, de maneira que os
trabalhadores estariam sempre “lutando pela subsistência” (como fazem
os animais na natureza) — e a única coisa que poderia remediar esse mal
seria a limitação da população. É claro que, teoricamente, o mundo
poderia ser superpovoado, além do que seus recursos naturais são
capazes de suportar; mas Malthus estava argumentando especificamente
sobre o problema da pobreza em um sistema produtivo funcional num
mundo que ainda tinha abundância de espaço não ocupado. Sua suposta
lei funciona numa economia coletivista, porque essa economia não
permite melhorias nos meios de produção; conseqüentemente, as
sociedades coletivistas legitimaram o infanticídio no passado. Embora
Malthus tenha vivido durante o período em que a produção industrial
estava ganhando ritmo, ele parece ter caído numa armadilha aritmética,
como a falácia de Aquiles e a tartaruga; ou então pensou que a produção
já tivesse atingido ou estivesse perto de atingir sua capacidade máxima.
De qualquer maneira, os coletivistas foram obrigados a reconhecer que a
produção refutou Malthus, crescendo prodigiosamente, ano após ano.
Então, tiveram de dizer que o problema era a “superprodução”; o

4
One-Hoss Shay: Do poema The Deacon’s Masterpiece or The Wonderful “One-Hoss
Shay”: A Logical Story, de Oliver Wendell Holmes (1809-1894), em que um diácono
fictício constrói uma carruagem puxada por um cavalo de maneira tão lógica que ela
nunca poderia quebrar. Foi feita com os melhores materiais possíveis e nenhuma peça
era mais forte que qualquer outra. A carruagem dura exatamente 100 anos, até o
preciso momento do centésimo aniversário do Terremoto de Lisboa, quando se
despedaça inteira de uma vez, como uma bolha de sabão quando explode. (N. do T.)

- 178 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

trabalhador poderia em breve acabar com seu emprego como resultado


de seu trabalho! Essa teoria criou a expressão “desemprego tecnológico”,
que se diz que é causado pelas melhorias mecânicas nos meios de
produção. Ou seja, se for inventada uma máquina com a qual um homem
faz o trabalho que antes era feito por dez, ela deve desempregar
permanentemente os outros nove. Parece plausível, mas é verdade?

Malthus imaginou um limite fixo de capacidade produtiva por pessoa,


uma quantidade arbitrária. (Deve ter imaginado isso, porque certamente
existe um limite para o número de filhos que um adulto pode ter.) O
coletivismo com a teoria de “desemprego tecnológico” supõe um
número fixo de empregos, outra quantidade arbitrária. No sistema feudal,
havia esse número fixo de empregos, estabelecido pela distribuição de
terras numa área determinada e ratificado pelo senhor feudal e pela
comunidade. Essa condição não precisava ser enunciada em teoria, era
factual e inevitável nas circunstâncias; mas, infelizmente, foi
transportada para teorias sobre a livre iniciativa, na qual não tem
significado. No feudalismo, a limitação específica do número de
empregos podia esticar ou encolher um pouco, mas era basicamente
constante.

Nenhuma regra semelhante pode ser aplicada ou mesmo imaginada


como aplicável num sistema de livre iniciativa de capital privado, se os
fatos forem examinados.

Numa economia livre, não pode haver um número fixo de empregos,


nem por um minuto. Emprego, produção e consumo numa sociedade de
livre iniciativa não podem ser calculados com as mesmas razões e
relações que os coletivistas supõem (e eles as obtiveram de fato nas
sociedades coletivistas). As sociedades coletivistas antigas supunham
que determinada quantidade de pessoas conseguia produzir determinada
quantidade de bens; evidentemente, uma quantidade podia ser dividida
pela outra pro rata. (O que, na prática, sempre resultava na mera
subsistência.) Então, se toda a terra ou todos os materiais disponíveis
estivessem em produção, o número máximo de empregos estaria
preenchido; alguém teria de sair de um emprego para que outra pessoa
pudesse obter um emprego. E, se uma quantidade excedente fosse
produzida, no cômputo total, para a mesma quantidade de trabalho, isso
faria com que a demanda (necessidade) de trabalho diminuísse na mesma
quantidade. Teoricamente, tiraria o emprego de alguém. Esse cálculo é
feito realmente na base da estrita subsistência, na qual “consumo” é o
que as pessoas comem e vestem.

- 179 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Mas, em uma sociedade de livre iniciativa, o aumento da produção


aumenta o número de empregos. Seria possível dizer que um emprego
cria outro, o que é verdadeiro, mas dá margem a interpretações errôneas;
porque somente os empregos produtivos fazem isso. Se um homem fosse
pago para recolher pedrinhas na praia e jogá-las no oceano, seria o
mesmo que estar num “emprego governamental” ou receber uma bolsa; a
parte produtiva da economia tem de sustentá-lo sem nenhum retorno.
Isso impede o aumento normal de empregos. Dar uma bolsa aos
desempregados não aumenta o “poder de compra”. As bolsas dividem o
que já estava com a produção. “Poder de compra”, em si, é comércio. O
aumento de produção é que aumenta o “poder de compra” e, portanto,
cria empregos.

Há menos homens empregados hoje na grande indústria metalúrgica que


havia antes na forjaria manual? Ou no transporte ferroviário e rodoviário
que no transporte a carroças? Ou na construção civil com escavadeiras,
betoneiras e afins que na construção manual? Não. O resultado real não é
apenas que as pessoas têm mais ferramentas, casas maiores e viajam
mais, o que tende a manter os empregos — elas também querem ter e
têm coisas que nunca haviam tido antes. Carros precisam de pneus,
estradas, gasolina; casas são equipadas com novas conveniências;
quando as pessoas viajam, querem hotéis, diversões, mais roupas — tudo
isso significa a criação de mais empregos, empregos novos.

Nada aumenta mais o número de empregos que as máquinas que poupam


trabalho, porque elas libertam necessidades anteriormente desconhecidas
ao permitirem o ócio. Numa economia pré-industrial, os empregos são
feitos pela simples divisão de trabalho; habilidades adquiridas e
organização permitem alguma economia de esforço. Mas, em geral, as
pessoas literalmente não têm um excedente de energia suficiente para
desejar muito mais. O que quer uma pessoa que está completamente
fatigada? A resposta é simplesmente nada. E se trabalhar por muitas
horas, também não terá tempo para usar o que pudesse querer. Ao
conservar a energia corporal humana, multiplicando a produção
resultante de um mesmo gasto de força muscular, a economia livre
permite aos homens querer coisas que eram inimagináveis no estado de
natureza.

Aqui temos um estranho caso em que a organização humana escapa das


implicações gerais da Segunda Lei da Termodinâmica. A energia física
manifestada por meio de um mecanismo inanimado — gasolina
introduzida num automóvel, eletricidade num aspirador de pó — não faz
com que o mecanismo deseja ou exija nem mais nem menos que uma
dada quantidade, conhecida a priori, que ele pode acomodar, da qual

- 180 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

uma porcentagem fixa será “perdida” na transmissão e o restante será


usado para realizar uma tarefa mensurável. Um homem pode absorver
apenas uma quantidade limitada de energia física em comida, mas no
nível do bem-estar suas necessidades de outras coisas crescem
progressiva e incalculavelmente. E ele próprio é capaz de criar
dispositivos para aumentar sua energia e fazê-los trabalhar para atingir
seus novos objetivos. Seu circuito é intrinsecamente diferente de
qualquer circuito específico composto apenas de materiais inanimados.
Cálculos mecânicos estritamente quantitativos, por proporção ou
quantidade não podem ser aplicados a priori à livre organização
produtiva humana como um todo.

O sistema de livre iniciativa começa corretamente com um conceito,


correspondente à realidade, de um homem tridimensional num mundo
tridimensional e que possui livre arbítrio, a capacidade moral para
contratos. Portanto, implica na propriedade privada individual, pela qual
esse homem pode adquirir e manter seu próprio lugar, a partir do qual
suas relações no tempo de no espaço são passíveis de acordo e auto-
ajuste. A esfera econômica é protegida da influência política estática,
porque se entende que a quantidade de produção e as mudanças de
posição não podem ser calculadas antecipadamente.

A teoria coletivista começa com um homem não dimensional em uma


coletividade não dimensional e em um mundo bidimensional, que exclui
a propriedade privada, mas supõe que a produção e a divisão do produto
são tridimensionais. É impossível elucidar as inúmeras contradições
implícitas nessa confusão. O coletivista nem mesmo tenta criar um
sistema prático próprio, coerente com suas teorias; simplesmente regride
ao barbarismo da distribuição por decreto, ao mesmo tempo em que diz
que vai usar o maquinário produtivo da livre iniciativa, que na verdade
só pode funcionar com o impulso indutivo da distribuição pelo livre
comércio.

Ao argumentar contra o capitalismo de livre iniciativa, o coletivista


sempre adota a falsa premissa de um número fixo de empregos nesse
sistema. De modo inverso, ao argumentar a favor do coletivismo, assume
sempre que haverá tantos empregos quantos trabalhadores houver. O
governo criará os empregos.

A única condição final e inequívoca do coletivista é que toda a


propriedade deve estar nas mãos do governo para o bem da coletividade.
Nesse caso, todos terão de pedir trabalho ao governo; e ninguém
poderá possuir recursos que lhe permitam negociar os termos de sua

- 181 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

contratação enquanto espera. Também não haverá nenhum outro


empregador a quem o trabalhador possa recorrer.

Na livre iniciativa, os empregos são criados espontaneamente pelo


sistema produtivo. A pessoa que quer trabalhar é contratada diretamente
pela pessoa que quer que um trabalho seja feito, cada um sendo livre
para procurar o outro; cada um está pessoalmente interessado no
benefício. (Se dizemos que um intermediário contrata homens para
realizarem um trabalho que outra pessoa quer que seja feito, é evidente
que o intermediário também quer que o trabalho seja feito, para seu
próprio benefício.) Toda demanda age diretamente para estimular uma
oferta; toda oferta é um estímulo para descobrir uma demanda. (A oferta
cria a demanda tanto quanto a demanda faz com que passe a existir a
oferta.) Por toda a longa série de trocas, cada pessoa tem um interesse
direto em conseguir bens ou em produzi-los; assim, a seqüência geral
cria o longo circuito de energia, pela transmissão ininterrupta.

A teoria coletivista do inevitável “conflito de classes” numa economia


livre apóia-se na falácia econômica do “fundo de salários”. Ela supõe
uma quantidade fixa a ser dividida entre “trabalho” e “capital”, de
maneira que nenhum dos dois possa ganhar mais, exceto à custa do
outro; portanto, seus interesses devem ser diametralmente opostos e
antagônicos. Sem dúvida, os indivíduos devem sempre ter seus
interesses separados. Mas, em uma economia livre, não há nada a dividir
até que “capital e trabalho” tenham chegado a um acordo. Logo, seus
interesses separados os unem. E o aumento da produção pode aumentar a
parte de cada um, não a parte de um à custa da parte do outro.

Quando o governo é o único empregador, alguém certamente quer


trabalhar, ou que um trabalho seja feito, ou quer certo produto; mas
ninguém nunca negocia diretamente com outra pessoa que tem um
interesse semelhante na transação. O homem que quer trabalhar deve
pedir ao governo algum tipo de emprego, em troca de uma parte da
suposta produção “geral”. Assim, entre o que oferece e o que deseja,
intervém uma agência que não tem interesse na transação. O incentivo
imediato é realmente o contrário: os funcionários não querem ter mais
trabalho por aceitarem mais pessoas para as quais “empregos” devem ser
“criados”. Então, o governo distribui o produto. Não interessa às pessoas
empregadas na distribuição se a qualidade é boa ou não, nem se as coisas
são manuseadas para a conveniência do produtor ou do consumidor;
porque nem o produtor nem o consumidor têm o poder de decidir qual
distribuidor irão usar, ou qual o preço do artigo. O interessado deve ir até
seja qual for o armazém que seu tíquete indicar, e pegar o que houver,
em termos fixos, ou ficar sem; enquanto as pessoas empregadas na

- 182 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

distribuição vão preferir manusear quantidades menores, em vez de


maiores. Os funcionários vão primeiro pegar para si mesmos a melhor
parte.

Além disso, todas essas pessoas precisam pedir emprego ao governo


durante a vida inteira. É ocioso exigir isso como um direito, uma vez que
elas não têm o menor poder para fazer cumprir essa exigência. Não
podem acumular materiais e terra para se tornarem independentes; e,
obviamente, não podem pegar algumas ferramentas improvisadas e
começarem a trabalhar com os primeiros materiais ou o primeiro pedaço
de terra que encontrarem. Devem pedir permissão para tudo, dia após
dia, hora após hora.

Se é verdade que, com a propriedade privada, algumas pessoas que não


têm propriedade num dado momento (não têm “acesso” à terra ou aos
meios de produção) ficam em desvantagem quando procuram emprego,
com o coletivismo, todos ficam nessa condição. Todo trabalhador perdeu
todos os seus direitos naturais e não ganhou absolutamente nada em
troca. Ainda está sujeito à fome e, na melhor das hipóteses, ganha o
suficiente para a mera subsistência; mas não pode ficar em algum lugar
por direito ou mudar-se para outro lugar por direito. Longos trens de
prisioneiros transportados em vagões de gado para onde não querem ir
são a condição lógica dos membros da coletividade.

Numa coletividade, aumentar a produção acima do nível de subsistência


para o bem “do povo” vai especificamente contra o interesse dos
funcionários. Isso só daria mais trabalho a eles; e (se a produção fosse
consumida) tenderia a aumentar a energia da população miserável, e
tornar “o povo” insubordinado.5 Mesmo quando o interesse dos
funcionários é de aumentar a produção de material bélico durante uma
guerra (quando pretendem salvar o próprio pescoço), a necessidade tem
de ser atendida pela importação de maquinário e bens, ao custo de se
reduzir a margem de subsistência, ou a crédito, uma dívida que não será
paga nunca.

5
Isso vale para qualquer administração que pretende se perpetuar no poder. Robert
Owen [(1771 – 1858) Reformador social galês, um dos fundadores do socialismo
utópico e do movimento cooperativo. (N. do T.)] conta que ouviu de “um diplomata
veterano” em 1817 que “os poderes que governam a Europa” tinham consciência de
que a ciência poderia melhorar a situação da raça humana e, portanto, esses poderes
eram contra a ciência — “se as massas se tornarem prósperas e independentes, como
as classes governantes conseguirão controlá-las?” O método moderno de impedir o
bem-estar geral foi enunciado. “Vamos taxar e taxar, e gastar e gastar, e eleger e
eleger.” (N. da A.)

- 183 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Em quais circunstâncias o indivíduo consegue ter algum poder contra o


governo? Numa economia livre, os poderes do governo são limitados.
Cidadãos individuais são os donos das propriedades produtivas.
Independentemente de isso estar expresso em uma legislação formal, o
que garante a limitação do poder do governo é o fato de que ele precisa
obter seus suprimentos dos cidadãos pela taxação. E essa taxação pode
ser limitada por uma divisão apropriada das agências políticas (freios e
contrapesos) e por um sistema representativo adequado, em que os
representantes sejam obrigados a se submeter ao voto para se
reelegerem. Ninguém tem o direito de exigir emprego do governo,
porque está claro que os “empregos” governamentais são não-
produtivos. Entretanto, se o cidadão sem propriedade possui um voto,
também tem meios de subornar o governo para que crie um emprego
para ele, expropriando a propriedade de outro cidadão. Esse suborno
depende inteiramente de que outros cidadãos possuam propriedade
privada. Se o processo continuar até que toda a propriedade privada
tenha sido expropriada ou esteja sujeita à expropriação, nenhum cidadão,
nenhum eleitor, terá ficado com nenhum poder contra o governo, nem
nenhum suborno a oferecer ao governo.

Na coletividade, onde não existe propriedade privada e o governo possui


tudo e o indivíduo nada, o poder do governo é absoluto; não importa
qual seja a reivindicação que um trabalhador faça, ele não terá meios de
obtê-la.

O governo certamente pode “criar empregos”, mas não há ligação entre a


oferta e a demanda, não há indução no fluxo de energia. A única
demanda efetiva é a dos funcionários por aquilo que pessoalmente
desejam; mas como eles não têm necessidade de produzir nada em troca,
não há comércio; é simplesmente uma carga líquida sobre o trabalho
forçado. O circuito de energia é cortado a cada transação.

Além disso, se o conceito não-dimensional da coletividade se


aproximasse da realidade — o que é impossível — o “direito ao
trabalho” seria completamente sem sentido. Nenhuma parte do coletivo
poderia agir sem que o todo agisse de acordo. Se considerarmos que uma
pessoa é apenas um componente do coletivo, e uma pessoa desejar fazer
uma única coisa, ela deve teoricamente conseguir o consentimento de
todas as outras pessoas, sejam mil, um milhão, cem milhões ou dois
bilhões. É ridículo. Evidentemente, o que a pessoa de fato tem de fazer é
conseguir o consentimento de certas autoridades. Agora, em uma
sociedade livre, qualquer pessoa que deseja se incumbir de um
empreendimento, no qual se use capital e sejam empregadas várias
pessoas, deve obter o consentimento dos donos do capital e das pessoas

- 184 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

que farão o trabalho. Isso nem sempre é fácil, mas ela pode tratar com os
interessados diretamente e eles tomarão sua decisão de acordo com a
opinião que tiverem sobre seu próprio interesse. Muito poucas idéias
originais dão um retorno de produção imediato; incontáveis idéias
fracassam gastando muito dinheiro; mas os interessados têm o direito de
correr o risco. Como pode qualquer funcionário público receber
explicitamente a autoridade de correr um risco semelhante? Não pode. O
assunto exige o julgamento pessoal de cada proposta em particular.
Todos os funcionários públicos do coletivo podem, por acaso, ter
autoridade para dispor de todos os materiais disponíveis? Não. Cada
funcionário pode ter autoridade para dispor de uma dada porção dos
materiais disponíveis para — para quê? Para uma proposta de inovação
experimental, feita por alguém, enquanto ninguém sabe qual será o
resultado dela? É óbvio que não. O que o funcionário pode fazer? Pode
negociar um favor, mas estará correndo um risco sem nenhuma
participação específica nos possíveis lucros. E qual o incentivo para o
inovador, o homem de idéias criativas? Nenhum.

Logo, a sociedade coletiva é estática. Qualquer maquinário produtivo


que contenha foi herdado ou emprestado de um campo primário de
liberdade em outro lugar, uma economia livre. Com esses empréstimos,
ninguém na coletividade precisa ser responsável nem pela decisão nem
pelo gasto do período da invenção original. O maquinário pode ser
obtido por um custo fixo. Pode até ser copiado por uma estimativa fixa;
mas não pode ser inventado.

A história de diversas coletividades nominais pequenas dentro de uma


economia livre leva a conclusões extremamente enganosas, porque não
se reconhece a relação dessas comunidades com a economia livre.
Muitas fracassaram de início, mas alguns experimentos de grupo foram
“bem-sucedidos” de maneira notável. Onde o fundador de alguma dessas
coletividades determinou uma regra que rompeu as relações sociais do
grupo com a sociedade livre — como pelo celibato entre os Shakers6, ou
pelo “casamento comunitário” da comunidade Oneida —, é possível que
também tenham sido estabelecidas uma estrita limitação interna sobre o
consumo e uma disciplina sobre o trabalho regular. Nessas experiências
“de sucesso”, as comunidades não apenas conseguiram sobreviver; na
verdade, enriqueceram. Pergunta-se então: por que o coletivismo não é
pelo menos um sistema viável, pelo qual as pessoas, se desejarem
abdicar de sua liberdade, podem se tornar ricas e seguras?

6
Shakers: seita religiosa cristã fundada em 1747, na Inglaterra. Seus membros
migraram para os Estados Unidos em 1774. (N. do T.)

- 185 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

A resposta é: porque não existiria uma economia livre em torno, a partir


da qual elas poderiam enriquecer. Esses grupos-enclaves vendiam seus
produtos à economia livre e convertiam o ganho em propriedade real,
terra e construções, formas estáticas. Mas os indivíduos envolvidos
nunca abdicaram realmente de sua liberdade; é impossível fazer isso
enquanto existir a economia livre. Qualquer membro da coletividade
poderia sair no minuto em que desejasse. Enquanto existisse a economia
livre, nenhum membro da coletividade poderia realmente ser submetido
a uma punição pessoal, aprisionamento, ou mesmo à disciplina
determinada de trabalho, como pela privação de sua subsistência, pela
coletividade. Apenas aqueles que voluntariamente se submetessem a ela
estariam na coletividade, e apenas pelo tempo em que desejassem
permanecer. Nada em seu processo econômico era exclusivo do sistema
coletivista. Qualquer um, na economia livre, poderia enriquecer com o
mesmo trabalho, economia e acumulação como os coletivistas
praticavam. Tudo nesses grupos que é evidenciado como fruto do
coletivismo se deve à economia livre: os meios de produção; o mercado
pelo qual a produção é transformada em riqueza estática; as leis pelas
quais a vida e a posse são garantidas; e mesmo o hábito de
autodisciplina, pelo qual as regras são seguidas e o trabalho executado.
Acima de tudo, não havia absolutamente nenhum poder real de
compulsão, de brutalidades, tortura, fome, exílio, execução que o
coletivismo inflige quando está no poder.

De modo geral, a propriedade privada é a única base de uma sociedade


produtiva, o único meio pelo qual qualquer um pode ter livre “acesso
aos meios de produção”, não por permissão, mas por direito natural. Em
qualquer sociedade, ou mesmo que só existisse um único homem em
uma ilha deserta, existe trabalho a ser feito; é uma lei da natureza. Mas,
apenas em uma sociedade de propriedade privada individual, um homem
pode opinar sobre as condições em que trabalhará, ou adquirir
propriedade na qual pode trabalhar como quiser, ou acumular
propriedade por meio da qual pode garantir o lazer subseqüente, ou
melhorar sua habilidade ou os meios de produção em seu próprio
benefício.

O risco casual de uma sociedade livre — que é o mesmo da natureza, de


que alguns indivíduos podem temporariamente não dispor de meios de
subsistência — é a condição permanente de todos os homens em uma
sociedade coletiva. Ao renunciar à liberdade, o indivíduo não recebe
nada em troca e desiste para sempre de qualquer chance ou esperança de
conseguir qualquer coisa.

- 186 -
XVII. A Ficção da Propriedade Pública

A propriedade privada individual não é apenas a condição mais


favorável para uma economia de alta produção. É a única linha de
transmissão que torna possível a alta produção.

O que qualquer sociedade coletiva promete, mesmo em sua propaganda


mais extravagante? Simplesmente, que copiará a produção das
sociedades livre — o que, na verdade, é impossível. No século dezenove,
alguns socialistas prometeram uma volta ao artesanato, embora o
artesanato tenha se desenvolvido com a propriedade privada, não com a
propriedade governamental. Os trabalhadores não se entusiasmaram. Os
comunistas então prometeram maquinário.

Durante os últimos vinte e cinco anos, o coletivismo foi imposto a uma


nação européia após a outra. Durante esse período, melhorias
consideráveis no maquinário foram feitas nos Estados Unidos. Alguma
nação coletivista fez alguma melhoria no maquinário? Nenhuma. A
coletividade nazista prometeu carros baratos aos trabalhadores alemães,
que os trabalhadores americanos têm em quantidade cada vez maior há
vinte e cinco anos. Algum carro barato foi produzido ou comprado por
um trabalhador na Alemanha? Ou na Rússia? Ou no Japão? Nenhum. O
padrão de vida aumentou em algum desses países? Não, caiu muito
abaixo do nível do século dezenove.

Como um teste razoável das promessas e resultados da sociedade


coletiva e da sociedade livre, pergunto: quando existem
simultaneamente, qual das duas é escolhida pelos indivíduos, quando
podem escolher? Milhões de pessoas vieram aos Estados Unidos e
permaneceram alegremente, enquanto foi possível entrar; hoje, existe
uma fila para as cotas de imigração. Quantas pessoas pediram admissão
e residência permanente na Rússia, na Alemanha, na Itália ou no Japão
coletivistas? Algum alemão coletivista declarado tentou entrar na
Rússia? Não, eles procuram os Estados Unidos da mesma maneira, se
conseguirem entrar lá. As fronteiras das nações coletivistas são fechadas
— para impedir seu próprio povo de fugir, como numa prisão. E os
felizes coletivistas rastejam através do arame farpado para sair.

- 187 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 188 -
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável

O
utra afirmação sobre a propriedade revela o nível mental
primitivo dos coletivistas: a proposta de “abolir a herança de
propriedade”. Uma vez que a propriedade é constituída de
objetos tangíveis1, só existem duas maneiras pelas quais a herança
poderia ser abolida. Os objetos seriam destruídos ou declarados como
não sendo mais propriedade, tendo seu uso impedido. A terra de um
homem morto voltaria a ser selvagem. Povos primitivos ou bárbaros
algumas vezes adotaram esse caminho, quando os bens e posses do
falecido eram enterrados com ele e sua cabana queimada, ou quando o
navio do viking se transformava em sua pira funerária, ou acampamentos
antes ocupados eram abandonados.

O que os coletivistas pretendem dizer (mas não dizem, porque, se


enunciassem explicitamente, não conseguiriam a simpatia de qualquer
pessoa racional) é que, na ocasião da morte de um proprietário, o
governo deveria tomar todas as propriedades que ele possuísse: uma
expropriação gradativa que acabaria por confiscar todos os bens
existentes no país depois de decorrido o tempo de vida natural de um ser
humano. Nenhuma justificativa moral ou inteligível pode ser apresentada
para explicar por que Hitler, Stalin ou qualquer outro governante deveria
herdar o produto das economias, do trabalho e do cuidado de cada
homem, em vez de a herança ir para sua mulher, seus filhos, ou qualquer
pessoa a quem ele desejasse legá-lo; mas essa é a proposta. A morte e os
impostos chegam de mãos dadas.

Os economistas que defendem o fiat money2 (papel-moeda não


resgatável em ouro), ou então um sinal aritmético que chamam de
“commodity dollar” (talvez porque não seja nem uma commodity nem
um dólar),3 estão abaixo do nível mental dos selvagens. O selvagem usa
1
A propriedade em direitos autorais se refere a objetos tangíveis, reproduções; com
os direitos autorais de uma música, o direito também se efetiva quando essa música é
tocada em troca de remuneração, sendo a remuneração tangível. (N. da A.)
2
Fiat money: dinheiro cujo valor vem de uma lei ou regulação governamental. O
termo deriva da expressão latina fiat (“faça-se”). Depois da Segunda Guerra Mundial,
o acordo de Bretton Woods estabeleceu um sistema mundial de moedas lastreado no
dólar americano, enquanto o dólar americano era lastreado em ouro. Richard Nixon
aboliu o lastro em ouro do dólar em 1971. Desde então, todas as moedas de reserva
tornaram-se fiat money, inclusive o dólar e o euro. (N. do T.)
3
O “commodity dollar” supostamente é determinado por uma equação de trocas
numa “escala deslizante” para um dado período. Qualquer que seja o processo, se
fosse aplicado, unidades quantitativas fixas de medida teriam de ser usadas; e

- 189 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

os números, mas não chegou ao conceito abstrato. O defensor do fiat


money se esqueceu de como usar os números.

Financistas e autoridades do Tesouro Britânico da época de Sir Isaac


Newton perguntaram a ele por que a libra monetária tinha de ser uma
quantidade fixa de metal precioso. Por que, na verdade, devia consistir
de metal precioso, ou ter qualquer realidade objetiva? Uma vez que o
papel-moeda já era aceito, por que não se emitirem notas que nunca
seriam resgatadas? A razão pela qual a pergunta foi feita fornece a
resposta; o governo estava altamente endividado e esperava encontrar
uma maneira segura de ser desonesto. Mas Newton foi questionado
como matemático, não como filósofo moral. Ele respondeu:
“Cavalheiros, na matemática aplicada, é necessário descrever a

quantidades de bens de diferentes tipos só poderiam ser consideradas equivalentes a


uma unidade fixa de valor, um dólar real. Aparentemente, a idéia era variar o
conteúdo hipotético do dólar periodicamente pela equação encontrada nas trocas
anteriores; talvez, somente com papel-moeda em circulação. É impossível extrair um
sentido lógico dessa teoria. Se todas as unidades de medida são, em primeiro lugar,
determinadas arbitrariamente, embora agora fixadas por lei, obviamente podem ser
alteradas por lei. O mesmo comprimento de algodão poderia ser chamado de uma
polegada num dia, um pé no dia seguinte, e uma jarda no outro; a mesma quantidade
de metal precioso poderia ser denominada dez centavos hoje e um dólar amanhã.
Mas o resultado líquido seria que números usados em dias diferentes não significam a
mesma coisa; e alguém teria um pesado prejuízo. O argumento apresentado para um
“commodity dollar” era que um dólar real, de quantidade fixa, não compra sempre a
mesma quantidade de bens. É evidente que não. Se não houvesse um meio de valor,
se não houvesse dinheiro, uma jarda de algodão ou uma libra de queijo também não
seriam trocados por uma quantidade fixa invariante de nenhum outro bem. Foi dito
que um dólar sempre deveria comprar a mesma quantidade de qualquer descrição de
bens. Não comprará e não pode comprar. Isso só poderia acontecer se o mesmo
número de dólares e as mesmas quantidades de bens de todos os tipos estivessem
sempre existindo para serem trocados, sempre na mesma proporção da demanda; se
considerarmos que existe produção e consumo, ambos devem ser sempre iguais, para
que um compense o outro. O dinheiro é a equação num sistema de produção e trocas.
Foi sugerido (por Muriel Rukeyser, em “Willard Gibbs: American Genius”) que o
Professor Irving Fisher, um dos principais defensores do “commodity dollar”, tentou
aplicar à economia o método Gibbs de Análise Vetorial (aplicado na Regra de Fase à
Termodinâmica “para interpretar fenômenos físicos”). Mas a Análise Vetorial ou a
Regra de Fase não mudam nenhuma unidade de medida. A própria Muriel Rukeyser
cita uma grande autoridade no assunto, Dr. W. R. Whitney (da General Electric), que
se refere a “esse grupo de expressões matemático-físicas de fatos medidos, que Gibbs
coordenou de maneira tão científica”. A unidade fixa de medida para os fatos é um
pré-requisito da teoria de Análise Vetorial; e a correta aplicação do método depende
necessariamente das mesmas unidades de medida sendo mantidas por todo o tempo.
Se a unidade de medida mudasse entre as operações, seria impossível passar de um
conjunto de cálculos para o seguinte. A falácia do “commodity dollar” foi
completamente desmascarada há alguns anos. (N. da A.)

- 190 -
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável

unidade.” Papel-moeda não pode ser descrito matematicamente como


dinheiro. Um dólar é uma determinada massa de ouro; isso é uma
descrição matemática, por medição (massa). Um pedaço de papel com
certas dimensões (comprimento, largura e espessura ou, em vez disso,
massa) é um dólar? É claro que não. Um pedaço de papel de tamanho
definido, mesmo com numerais e palavras de certo tamanho estampadas
com uma dada quantidade de tinta, é um dólar? Não.

Aceitaram a palavra de Newton, possivelmente admitindo que o maior


matemático de seu tempo devesse conhecer os fundamentos de sua
ciência. Mas o fato de que aqueles homens educados ignoravam a
primeira regra pela qual conduziam seu próprio negócio, comércio e
finanças, e o fato adicional de que a resposta de Newton foi esquecida
tantas vezes desde então, apesar das conseqüências desastrosas que isso
trouxe a cada vez, indicam um gravíssimo problema na civilização.

A matemática é o idioma mundial da era da energia. Seu uso se estende


muito além do uso do latim na Idade Média; além de expressar relações
internacionais, também é o instrumento do pensamento prático e da
comunicação na vida diária. Qualquer um que opere máquinas tem de
pensar em relações matemáticas — tempo, velocidade, distância. Os
homens que organizam e executam as tarefas práticas que fazem a
civilização moderna funcionar — sejam motoristas de caminhão ou
aviadores, mecânicos na linha de montagem, engenheiros ou gerentes
industriais — pensam corretamente na linguagem prática da civilização
moderna enquanto estão trabalhando. Se, com relação a seu trabalho,
regredissem por um dia ao nível primitivo de inteligência, ao final desse
dia o país inteiro seria um cenário de destroços.

Mas, se aqueles a quem foi confiada a direção geral e a organização


política de um vasto sistema que depende completamente do
conhecimento correto e do uso da linguagem matemática realmente não
sabem, ou não entendem, a afirmação mais elementar nessa linguagem,
como pode o sistema funcionar? Se os políticos e os financistas não
acreditarem nem na lógica nem nas evidências de uma regra tão primária
quanto dois mais dois são quatro, o que irá convencê-los?

A linguagem verbal de uma civilização avançada também é um


instrumento de precisão. Quando as palavras são usadas sem definição
exata, não pode haver comunicação além do nível primitivo. Se aqueles
que supostamente expressam ou influenciam a “opinião pública”, os
escritores, economistas, sociólogos e pedagogos, usam os conceitos da
selvageria para pensar, qual pode ser o resultado?

- 191 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

O que é mais espantoso é que, quando os inimigos da civilização


declararam abertamente sua intenção de destruí-la, de pôr em colapso o
circuito de alta energia da Sociedade de Contrato, e explicaram como
pretendiam fazê-lo, aqueles que serão destruídos executaram
deliberadamente o programa de ruína. A ameaça explícita foi citada por
John Maynard Keynes4: “Lenin estava certo. Não existe um meio mais
sutil e eficaz de subverter a base existente da sociedade que perverter a
moeda. O processo leva todas as forças escondidas das leis econômicas
para o lado da destruição.”

Os requisitos de uma moeda confiável são simples. Se cinco maçãs são


trocadas por uma libra de queijo e o queijo por duas jardas de algodão e
o algodão por dois galões de batatas e as batatas por duas horas de
trabalho, por qual medida comum podemos computar esses itens
diversos? Cada um deles vale o mesmo que qualquer outro e todos
juntos valem cinco vezes o que vale cada um; mas não significa nada
dizer que cada um vale um ou que todos juntos valem cinco. Um o quê?
Cinco o quê? Coisas que são iguais a uma mesma coisa são iguais entre
si. Como os itens podem ser trocados entre si, devem ser iguais; mas em
que termos? Não em libras, jardas ou horas; são iguais em valor. Então,
o que se deseja é uma unidade de valor para computá-los. Qualquer
desses itens poderia ser escolhido como unidade de valor, se a seqüência
de transações fosse considerada encerrada no ato. Mas são bens
perecíveis e foram considerados como quantidades fixas. O comércio
comum precisa continuar numa seqüência infinita através do tempo e da
distância, incluir quantidades variáveis de matérias-primas existentes na
natureza, o trabalho aplicado a elas e o uso final, consumo ou posse
inativa.

Portanto, o que se deseja é um meio de troca, algo pelo qual tudo o mais
possa ser trocado, de maneira que participe de todas as transações como
a unidade de valor, e sirva para um número indeterminado de transações,
um uso infinito. Se a libra de queijo tivesse sido trocada por certa massa
de metal precioso, um dólar, e o dólar por duas jardas de tecido e, então,
novamente, por dois galões de batatas e, novamente, por duas horas de
trabalho e, outra vez, por cinco maçãs, cada item valeria um dólar e
todos juntos valeriam cinco dólares. Se todos os bens fossem
consumidos, o dólar permaneceria, para dar continuidade à seqüência de
trocas. Além disso, se um homem que possuísse bens perecíveis,

4
John Maynard Keynes (1883 – 1946): economista britânico que fundou a escola de
pensamento econômico chamada keynesianismo, caracterizada por forte intervenção
do governo na economia, controle do valor da moeda e tentativas governamentais de
induzir o crescimento econômico por meio da redução das taxas de juros e
desestímulo à poupança. (N. do T.)

- 192 -
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável

digamos maçãs, não quisesse nenhum outro bem imediatamente, poderia


trocar suas maçãs por dinheiro, e o dinheiro manteria o valor, permitindo
que ele comprasse uma saca de farinha no ano seguinte; embora o trigo
que se transformou na farinha ainda não tivesse sido plantado quando o
homem vendeu as maçãs. É esse o uso do dinheiro. Facilita a troca
imediata; é um repositório de valor; e permite que trocas sejam feitas
através do tempo no longo circuito de energia.

O uso das coisas depende de suas qualidades intrínsecas. Queijo é


comestível. Couro é usado para sapatos porque é maleável, resistente e
durável. Portanto, o material a ser usado como dinheiro deve ser durável,
divisível, incorruptível, fácil de levar, difícil de imitar e encontrado na
natureza em quantidade suficiente, porém limitada. Somente os metais
preciosos atendem a esses requisitos intrínsecos. Nunca existe “dinheiro
suficiente” na Sociedade de Status. A economia livre produz seu
dinheiro assim como produz aço, indo a campo e procurando,
desenterrando o minério do chão. Não é por acaso que a oferta de
dinheiro real aumentou conforme aumentou a produção de bens; os
métodos avançados de produção permitiram que o metal fosse obtido
com lucro a partir do minério bruto de baixo valor. De qualquer maneira,
a quantidade de ouro disponível é sempre limitada.

O valor do ouro não foi nem é estabelecido por fiat, da mesma maneira
que o valor do queijo, ou do algodão ou do couro não foram
determinados por fiat. O ouro tem valor porque atende a uma
necessidade vital. Nada pode ter seu valor dado por fiat. Se uma
moeda de ouro da República Romana fosse desenterrada hoje, teria seu
valor original mantido, embora a República Romana tenha perecido há
dois mil anos. O mesmo para um rublo de ouro russo cunhado pelos
czares ou uma moeda de ouro da Alemanha ou da França datadas de
antes de 1914, embora o último czar tenha sido fuzilado num porão, o
último imperador alemão tenha fugido do país e morrido no exílio e a
França tenha sofrido invasão e conquista. Mas o papel-moeda da Rússia,
da Alemanha ou da França de antes de 1914 hoje é inútil.

Um dólar é uma quantidade determinada de ouro. Não é questão de


opinião; é assim por definição e por lei, estatuto federal. Todo o ouro
mantido pelo governo pertence por direito e por lei aos cidadãos
individuais, que o colocaram lá como depósito originalmente; assim
como o dinheiro numa conta bancária privada pertence ao depositante.
Uma cédula de dólar é um certificado de depósito, um recibo de
armazém dado em troca de um dólar. O valor está no metal depositado,
assim como o valor indicado em qualquer recibo de armazém é expresso
nos bens que ele registra. Se os bens não existem, ou são destruídos, ou

- 193 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

não serão entregues, o papel não tem valor. Foi o que aconteceu na
Alemanha quando o papel-moeda era impresso embora não houvesse
ouro para resgatá-lo; e uma carroça cheia de papel-moeda não era
suficiente para comprar um ovo. Cheques também não são dinheiro; são
promessas de pagamento em dinheiro. Se assim não fosse, qualquer um
poderia fazer um cheque e obter bens em troca de nada.

Se alguém disser que qualquer coisa serve como dinheiro, desde que as
pessoas aceitem, vamos perguntar por que as pessoas não aceitam
“qualquer coisa”? Ofereça ao homem que diz “qualquer coisa serve
como dinheiro” um punhado de pedrinhas em pagamento de uma dívida.

A necessidade absoluta de dinheiro real, com sua unidade em metal


precioso, para qualquer seqüência extensa de trocas, foi provada
exatamente pelos teóricos que afirmaram que isso é mera convenção e
pela nação cujos agentes ainda divulgam propaganda, para convencer
outras nações que ela deseja destruir, de que uma “moeda gerenciada”,
que consiste unicamente em papel pintado, é tão boa quanto o dinheiro
real ou até melhor que ele. Os comunistas e outros defensores da
propriedade governamental alegaram, por mais de um século, que vales-
trabalho seriam o meio de trocas “justo” e que o dinheiro real era um
dispositivo capitalista para explorar os trabalhadores. Então,
experimentaram seu próprio plano na Rússia comunista e não
conseguiram fazê-lo funcionar nem mesmo usando o terror e a fome.
Não porque o povo não aceitasse os “vales-trabalho”; os pobres coitados
foram obrigados a aceitá-los; simplesmente, não é possível fazer a
aplicação necessária da aritmética aos bens e ao trabalho sem dinheiro
real. Na matemática aplicada, é necessário descrever a unidade. A
Rússia comunista teve de voltar à unidade ouro.

Por que nem mesmo o trabalho escravo e a transferência forçada de bens


podem ser executados com vales-trabalho no lugar de dinheiro real?
Basta seguir as transações até o final para descobrir por quê. Na verdade,
se um único dono de escravos possuísse terra com recursos naturais para
suprir todas as necessidades e escravos para realizar todo o trabalho de
produção, poderia distribuir os escravos como quisesse, mas não
precisaria de vales-trabalho. Mas suponhamos que dez homens, escravos
ou livres, devam trabalhar para cultivar trigo em determinado campo. É
perfeitamente possível dividir o produto pelos vales correspondentes ao
número de horas de trabalho. Então, suponhamos que outros dez homens
trabalhem no campo ao lado, cultivando beterrabas; a mesma divisão
pode ser feita. E uma porção de uma hora-trabalho de trigo poderia ser
trocada por uma porção de uma hora-trabalho de beterrabas. Mas a
quantidade de trigo ou beterrabas que um vale de uma hora-trabalho

- 194 -
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável

representa foi estabelecida apenas para produtos determinados em


campos determinados naquela safra. Em outros campos, beterrabas ou
trigo cultivados por outros grupos resultariam em diferentes quantidades
por hora-trabalho. Além disso, quando o trigo fosse para o moinho ou as
beterrabas para a fábrica de açúcar, mais horas de trabalho teriam de ser
incluídas, sem contar as horas de trabalho representadas pelo
maquinário. Então, qual a quantidade de bens que um vale de uma hora-
trabalho poderia representar? O plano inteiro é impossível. Somente um
coletivista poderia ser tão idiota para imaginar um sistema assim. Na
matemática aplicada, é necessário descrever a unidade. Com uma
unidade de valor de ouro, horas de trabalho e material e depreciação do
maquinário e tudo que faz parte do processo inteiro podem ser
calculados por uma medida comum; e devem ser calculados de alguma
maneira, para permitir que qualquer coisa seja levada do campo para a
fábrica e dali para a loja; assim, os preços dos bens mostrarão o que pode
ser comprado por qualquer quantia em dinheiro determinada.

Mas se o papel-moeda não é realmente resgatado quando solicitado em


dinheiro real (ouro), se o cidadão não tem como recuperar a posse de sua
propriedade quando apresenta o certificado de depósito, porque os
ocupantes imediatos dos cargos políticos, membros do governo, se
recusam a obedecer à lei (como têm se recusado), então que diferença
faz se o ouro realmente existe ou não? Que diferença faria se todo o ouro
do mundo desaparecesse completamente, se dissolvesse no ar, ou fosse
afundado em um ponto desconhecido no meio do oceano? Ou, se só
existisse um dólar de ouro para ser descrito como a unidade de trocas,
isso não serviria?

Existe nessa pergunta — que tem sido feita por gente que não deveria
cair nesse truque — uma premissa implícita de que o confisco e
seqüestro do ouro pelos governos não faz ou não precisa “fazer diferença
nenhuma”. Se isso é verdade, porque os governos confiscam o ouro? A
menos que essa ação seja atribuída a um tipo de estupidez criminosa,
semelhante a de desocupados de rua que roubam coisas aleatoriamente,
obviamente isso deve fazer diferença.

Provavelmente, a maioria das pessoas não percebe a diferença entre


suspender temporariamente o pagamento do ouro e confiscar o ouro;
embora a diferença seja a mesma entre um banco suspender seus
pagamentos e um banqueiro tirar do bolso de um depositante o que
sobrou lá depois que o banco quebrou. Quando o dinheiro é depositado
em um banco, existe o risco contingente de que o banco não consiga
pagar imediatamente quando solicitado. Isso é moratória. O banco possui
ativos que podem ser vendidos para pagar os depositantes. O cidadão

- 195 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

que possui uma nota de dólar tem dinheiro real depositado no governo.
Alguém levou minério de ouro à Casa da Moeda; por lei, ele tem o
direito de receber moedas na mesma quantidade menos uma pequena
porcentagem correspondente ao custo de cunhagem. Mas em vez de
levar o dólar real, alguém aceitou um certificado de depósito. O governo
nunca foi dono de ouro nenhum; recebeu permissão de guardá-lo até que
fosse solicitado. Como o governo também toma emprestadas grandes
quantias em títulos e gasta o dinheiro, se muitas pessoas quiserem seu
dinheiro de volta ao mesmo tempo, o governo não será capaz de pagar;
estará em moratória. O governo não possui ativos para cobrir suas
dívidas; a propriedade governamental não renderia muito dinheiro se
fosse vendida, porque não é produtiva; e, além disso, o credor não tem
como solicitar o pagamento ao sacador ou endossante. A contingência da
suspensão dos pagamentos em ouro pelo governo é inevitável enquanto
for permitido aos governos emitir papel-moeda e tomar dinheiro
emprestado. São poderes intrinsecamente perigosos; mas há dúvidas de
que essa questão ainda será analisada de maneira inteligente; ou, pelo
menos, isso só vai acontecer enquanto os homens aprenderem a pensar
de maneira mais corajosa. No presente, considera-se como um fato que
os governos devem ter esses poderes, assim como antigamente se
considerava que os reis e os nobres deviam ter certos poderes que foram
abolidos nas repúblicas. Seja como for, se os governos confiscam o ouro,
isso faz diferença imediatamente. A existência desse monopólio do ouro,
mantido à força, é o que tornou inevitável a Segunda Guerra Mundial.
Ele permite que governos como o da Alemanha e o da Rússia subvertam
a economia privada, transformando-a numa máquina de guerra e
deixando impotentes os cidadãos. O método pelo qual o objetivo
clandestino é alcançado é uma abstração permanente do valor do
dinheiro e um aumento da dívida nacional por meio de empréstimos
bancários.5

Outra vez, que diferença faz se o ouro existe ou não, uma vez que foi
expropriado pelo governo?

Tomemos os governos como testemunhas. Mesmo na Rússia, quando os


comunistas diziam que o ouro era mera convenção e que não o usariam,
tomaram o cuidado de confiscar o ouro mesmo assim. O pretexto
oferecido pelos teóricos do papel-moeda é que as pessoas simplesmente
estão acostumadas ao ouro e insistem em usá-lo apenas por hábito;

5
Quando a França quebrou por causa da Bolha do Mississípi, “os agentes da Mississipi
Company foram investidos do poder de fazer buscas nas casas e confiscar todo o
dinheiro cunhado que encontrassem… Também foram impostas multas pesadas. É
espantoso que as pessoas tenham suportado essa opressão com tanta paciência.”
(Saint-Simon) (N. da A.)

- 196 -
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável

portanto, é necessário tomá-lo das pessoas para o bem delas. É claro que
nenhum governo conseguiria tomar posse de todo o ouro do mundo,
afundá-lo no mar e fechar todas as minas de ouro; mas um governo
conseguiria proibir o ouro, afundar todo o ouro que houvesse no país e
impedir a entrada de mais. Seria muito mais fácil fazer isso que proibir o
álcool, porque o ouro não pode ser fabricado. Por que o governo guarda
o ouro, depois de tê-lo tomado à força de seus proprietários?

Porque o dinheiro de verdade é indispensável; os valores de troca, os


preços, são estabelecidos pela quantidade total de ouro existente. De
maneira aproximada, se houvesse em uma troca cinqüenta libras de
açúcar e dez libras de manteiga, cinco libras de açúcar seriam dadas em
troca de uma libra de manteiga; uma quantidade dividida pela outra.
Como o ouro é o meio de troca, as quantidades de bens são divididas
pela quantidade de ouro (dólares), para encontrar o preço. O processo no
comércio geral é imensamente complicado pelos diversos tipos de bens,
a oferta e a demanda variáveis, as distâncias que acrescentam custo de
transporte, e as trocas assíncronas; mas a quantidade total de ouro é
sempre o determinante dos preços, pela comparação de quantidades. Se
só existisse um único dólar de ouro, ele não poderia ser usado como a
unidade de valor, porque não haveria um número para ser o divisor.
Quantas notas de papel deveriam ser impressas? Uma? Uma quantidade
ilimitada? Não haveria um número adequado. Se os sonhos antigos dos
alquimistas fossem realizados, de maneira que o ouro pudesse ser
fabricado em quantidade ilimitada, ele também teria se tornado inútil
como meio de trocas.

Houve uma vez um governo que realmente proibiu o ouro e não guardou
nenhum metal consigo, na crença de que o ouro era ruim para o povo.
Foi o governo de Esparta. Mas os espartanos acreditavam que conforto,
conveniência e atividade eram ruins e que o trabalho era ignóbil. Os
espartanos usavam o ferro como moeda, porque ninguém seria capaz de
carregar uma quantidade suficiente de ferro para o comércio geral. A
intenção era manter a nação pobre, manter os cidadãos no nível da
economia de subsistência. O plano foi um completo sucesso. É
exatamente o que a proibição do ouro produz; reduz a nação a um nível
paralisado de pobreza e a mantém nessa condição. Mas os governantes
de Esparta também desejavam permanecer pobres eles mesmos. Não
usufruíam mais luxo que qualquer outro espartano; não mais que os
próprios escravos que faziam o trabalho. Mas, mesmo em Esparta, onde
a comida era distribuída pelo governo num sopão geral, alguma coisa
precisou ser usada como dinheiro e esse material teve de ter valor
intrínseco.

- 197 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Os déspotas modernos não desejam ser eles mesmos pobres. Desejam


arrebatar todo o luxo que uma economia industrial pode fornecer. O que
desejam é manter pobres os produtores, tomando deles o produto e
distribuindo de volta uma pequena parcela para subsistência. É por isso
que os governos confiscam e guardam o ouro.

Quando o papel-moeda é desvalorizado, a diferença tem de vir de algum


lugar; e o principal corte é nos salários. O fato é que qualquer gasto
governamental pesado tem de ser tomado do salário dos trabalhadores;
não há outra fonte possível. Mas a desvalorização da moeda sai dos
salários imediatamente; seja o que for que um trabalhador recebe em seu
envelope de pagamento, esse valor simplesmente vai comprar muito
menos bens. De maneira recíproca, o aumento da produção eleva os
salários mesmo que o valor em dinheiro seja o mesmo; ele vai comprar
mais.

Além da perda imediata, o trabalhador deixa de ter um repositório de


valor. Não importa o quanto ele ganhe, não conseguirá economizar uma
parte para o futuro, se o dinheiro estiver em papel-moeda que se
desvaloriza. O dinheiro real é o único meio pelo qual o trabalhador pode
ter alguma independência. É por isso que faz diferença os governos
confiscarem o ouro. Isso torna o trabalhador impotente. Ele só pode
viver com o que ganha no momento, com a expectativa de ganhar cada
vez menos, conforme passa o tempo. Em nenhum lugar do mundo,
nenhum trabalhador ficou em melhor situação depois que o governo
confiscou o dinheiro real. Isso é verdade até para os trabalhadores de alta
renda nos Estados Unidos; se o trabalhador possui bens, eles estão se
desvalorizando — seu carro, por exemplo — e ele não sabe quando ou
como poderá comprar outro. Se ele tem um seguro, não sabe que quantia
será efetivamente paga por ele.

Numa economia de livre iniciativa, os produtos colocados inicialmente


no mercado como artigos de luxo tendem continuamente a chegar ao
alcance de todos e passam então a ser considerados necessidades. Esse é
um benefício da existência de fortunas privadas consideráveis, que
devem ser investidas para gerar receitas, o que significa aumentar a
produção. A margem restante será gasta em coisas inventadas
recentemente que ainda são caras, mas capazes de ser melhoradas e
produzidas a um custo menor. O processo completo é mais evidente no
caso do desenvolvimento dos automóveis de uso geral. Contada em
detalhes, a história tem elementos de comédia. Primeiramente, vários
inventores e engenheiros montaram um aparelho grande e desajeitado
que ninguém iria querer, a não ser para satisfazer seu interesse pela
mecânica. Então, o automóvel foi “aperfeiçoado” e se transformou num

- 198 -
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável

artigo de luxo; ou seja, ainda era caro, inconveniente e sem utilidade


prática, porque não havia estradas adequadas, postos de combustível ou
oficinas mecânicas; o carro tinha grandes chances de deixar seu dono na
mão a uma grande distância de casa, sendo ridicularizado. Esses eram
carros para diversão! Compradores ricos pagavam pelo período de
experimentação, primeiro entrando com o capital (do qual uma parcela
enorme sumia sem retorno), e então comprando os carros. Em seguida,
vários homens inventivos pensaram que podiam fazer carros mais
baratos. Nesse processo, aqueles que investiam tempo e dinheiro eram
impelidos a continuar, na esperança de conseguir retorno. Assim, os
ricos apoiaram a indústria nascente, até que os carros fossem
suficientemente bons para pessoas de renda moderada. Quando o carro
barato passou a ser produzido em massa, o fabricante percebeu que teria
de ter um grande mercado correspondente. Para o trabalhador comprar
um carro, os salários deveriam ser maiores. O fabricante aumentou o
salário voluntariamente, e assim forçou outros empregadores a fazer o
mesmo. Onde, nessa seqüência, algum governo poderia provocar o
mesmo estímulo? Em lugar nenhum. Mas que isso, se a moeda tivesse
sido desvalorizada naquele período, o processo teria parado, porque o
aumento nos salários reais era necessário, em conjunto com a redução de
custos materiais. Num dado momento, a maior parte do capital do
fabricante de uma indústria em crescimento é a sua matéria-prima; se ele
não puder repor o estoque pelo mesmo custo, terá de elevar o preço do
produto. Ao mesmo tempo, se o custo aumenta pela desvalorização da
moeda, os salários reais caem, e o mercado acaba; ninguém tem dinheiro
para comprar o produto. A produção tem de parar.

Mas a mais perigosa falácia envolvendo dinheiro apresentada


recentemente pretende encontrar um argumento válido no jogo de guerra
alemão. Foi expressa de diversas maneiras, mas a formulação a seguir
engloba todos os pontos relevantes.

Ela diz que a Alemanha está “vencendo a guerra porque luta usando uma
economia industrial e de engenharia”, enquanto os Aliados “lutam
usando uma economia financeira”.6 Também diz que “Thorstein Veblen7
sabia tudo sobre” essa economia e que “na Alemanha, Walther
Rathenau8 tentou colocá-la em prática” primeiro. Chamam esse processo
de “tirar o pesado pé financeiro dos freios e deixar o maquinário

6
Carl Dreher (que também cita Dorothy Thompson) na Harper’s Magazine. (N. da A.)
7
Thorstein Veblen (1857 – 1929): economista e sociólogo americano. Foi um crítico
popular do capitalismo e defendia a propriedade estatal da indústria. (N. do T.)
8
Walther Rathenau (1867 – 1922): industrial, político, escritor e estadista alemão, foi
Ministro das Relações Exteriores da Alemanha durante a República de Weimar. (N. do
T.)

- 199 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

produtivo funcionar livremente… Máquinas libertadas sempre vencerão


o dinheiro libertado.”

O nível mental de selvageria é mais uma vez evidente pelos termos


usados: são animistas. Um selvagem poderia, ao ver uma máquina
motorizada, pensar que fosse um tipo de gênio em uma garrafa, uma
criatura escravizada. Mas a idéia não tem sentido. Uma máquina não
pode nem ser escravizada, nem libertada; esses termos se aplicam apenas
a seres humanos. É verdade, entretanto, que Rathenau fez tudo o que
pôde para organizar a Alemanha, de maneira que ela fosse obrigada a ir à
guerra, querendo ou não. (Rathenau pensava que somente o governo
deveria ter tanto poder. O poder que ele ajudou a dar ao governo
expropriou, exilou e matou judeus na Alemanha; eles devem seu
infortúnio, em grande parte, a alguém de sua própria raça. É pouco
provável que esse fato seja reconhecido algum dia.)

Mas de que tipo de economia a Alemanha de fato está vivendo?

Todos os recursos que a Alemanha usa na guerra foram produzidos por


uma economia financeira. O maquinário foi inventado numa economia
financeira; a Alemanha foi equipada com fábricas, a ciência da Química
foi desenvolvida, técnicos foram treinados por uma economia financeira.
Enquanto se preparava para a guerra, a Alemanha pegou emprestado
todo o dinheiro que pôde, comprou a crédito todos os bens que pôde e
não pagou. Esses recursos foram roubados das economias financeiras. A
ação dos governos estrangeiros foi o que permitiu que a Alemanha
roubasse em tão grande escala. Por três anos seguidos, a Alemanha
“comprou” a produção anual de lã da África do Sul, pela intervenção do
governo sul-africano que “financiou” o negócio; a lã se transformou em
uniformes para o exército alemão; e a Alemanha nunca pagou. Foi um
prejuízo completo para os produtores que acharam que o governo estava
patrocinando um bom negócio para eles!

Os nazistas assumiram o controle de uma economia que possuía


agricultura e indústria, ambas usando maquinário e dinheiro. O governo
comunista na Rússia fez o mesmo. Além disso, na Rússia, todo o
maquinário moderno havia sido fornecido por economias financeiras
estrangeiras e pago (até quando foi pago) em ouro. Em ambas,
Alemanha e Rússia, dinheiro real ainda é usado; e ambos os lados
combatem usando a produção de uma economia financeira. Que tipo de
economia eles criaram?

Se um bandido rende o dono de um automóvel ameaçando-o com um


revólver, leva o carro e sai dirigindo, e então consegue gasolina,

- 200 -
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável

manutenção e o que mais precisar pelos mesmos meios, de que tipo de


economia ele está vivendo? Se um número suficiente de bandidos
tomasse a economia inteira da mesma maneira, mas “legalizasse” esse
ato chantageando tribunais e legislaturas; e se também “pagassem” pelo
que tomaram em papel-moeda, na quantia que quisessem, que tipo de
economia isso seria?

Em uma usina elétrica, existe um gerador e outros equipamentos para a


conversão e transmissão de energia. Pode ser uma hidrelétrica ou uma
termoelétrica; no segundo caso, o fornecimento de combustível deve ser
contínuo e, em qualquer caso, existe a manutenção. Conforme a energia
é utilizada, o medidor registra para onde ela vai. Os consumidores
pagam por ela; e o dinheiro traz de volta os suprimentos necessários; os
valores em dinheiro também são uma métrica. Um selvagem,
observando que as operações são executadas com a preocupação
constante com esses dois registros, poderia dizer: Por que vocês não
tiram os medidores e param de se preocupar com o dinheiro? Assim
vocês poderiam usar toda a energia que quisessem. Liberem o gênio da
garrafa, em vez de pará-lo como vocês fazem, aqui e ali; tudo está preso.

Uma pessoa desonesta poderia introduzir fios ocultos para roubar parte
da corrente sem indicação do medidor; ou poderia fazer lançamentos
falsos nas contas financeiras.

Que tipo de economia seria esse?

Uma economia industrial e de engenharia é uma economia financeira.


Não pode funcionar de outra maneira. Um bandido obviamente pode
dirigir um carro roubado por algum tempo, mas isso não significa que
ele desenvolveu uma economia de engenharia. Ele está vivendo de uma
parte roubada do capital de uma economia industrial, de engenharia e
financeira. A Alemanha está vivendo do capital roubado do exterior, e
do capital da Europa, saqueado pela força militar. A Rússia está vivendo
do capital confiscado da indústria que existia quando os comunistas
tomaram o poder e do maquinário fornecido por economias livres no
exterior, particularmente os Estados Unidos. Parte dele foi paga em
dinheiro; parte foi simplesmente dada à Rússia, à custa da economia
livre.

Quando os índios conseguiam armas de fogo com os homens brancos e


usavam essas armas para conseguir comida caçando, de que tipo de
economia eles viviam? Quando os militares turcos confiscaram os lucros
dos comerciantes e o produto dos fazendeiros conquistados para usá-los
na guerra, de que tipo de economia estavam vivendo? Seria uma

- 201 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

economia militar? É claro que não. Era uma economia agrícola e


comercial. Eles usaram os lucros para a guerra e por algum tempo foram
vitoriosos; mas estavam consumindo o capital e a economia decaiu.

A idéia de Veblen, como citado, era que “a associação de engenheiros,


apoiada pelas legiões concentradas e calejadas dos trabalhadores da
indústria, deveria proibir a propriedade privada do maquinário de
produção e fazê-lo funcionar em sua capacidade máxima”.

Como? Eles assumiriam o controle das máquinas existentes? Mas por


que eles deveriam fazer isso? Máquinas existentes tem vida curta.
Teriam de ser substituídas em pouco tempo. Se pudessem ser
substituídas — novas máquinas construídas — sem preocupação com o
dinheiro, qual a vantagem de roubar máquinas usadas? Por que os
“engenheiros e as legiões concentradas e calejadas” não fariam o que
precisassem — sem dinheiro? Não existe moto perpétuo; eles
precisariam dar a partida. Depois disso, é claro que tudo continuaria
funcionando. O que é mais curioso é que mesmo que esse absurdo seja
admitido, não há dúvida de que o plano poderia ser iniciado com uma
pequena quantia de dinheiro. Henry Ford tinha muito pouco dinheiro
quando começou. Será que a “associação de engenheiros e legiões
concentradas e calejadas” juntos não seria mais esperta que um único
mecânico de meia idade, numa cidadezinha de Michigan?

A verdade é que não são. Nenhum grupo é tão inteligente quanto um


indivíduo. Nenhum grupo, enquanto grupo, tem inteligência nenhuma;
toda a inteligência está nos indivíduos.

E o dinheiro é o meio pelo qual a inteligência dos indivíduos pode ser


reunida em livre cooperação, em grandes empresas produtivas. O
dinheiro é o único meio pelo qual as máquinas podem ser inventadas ou
usadas. O que os engenheiros e operários podem conseguir sob a
propriedade estatal (que é a única maneira de proibir a propriedade
privada) é construir as pirâmides, pesadas e inúteis massas de rocha
empilhadas como memorial dos Veblens de uma era antiga. Heródoto
conta, centenas de anos mais tarde, que “os egípcios detestavam tanto a
memória daqueles reis (construtores das pirâmides) que não gostavam
nem mesmo de mencionar seus nomes”.

Mesmo antes da rendição completa da Alemanha ao poder do governo,


técnicos e engenheiros alemães não conseguiam se igualar a seus colegas
nos Estados Unidos na pesquisa e desenvolvimento de recursos naturais.
(Os Estados Unidos eram a grande economia financeira do mundo, com
terras e bens no mercado.) Propriedade privada, dinheiro, liberdade,

- 202 -
XVIII. Por que Dinheiro Real é Indispensável

engenharia e indústria formam um único sistema; são os componentes de


um longo circuito de alto potencial de energia. E quando um elemento é
retirado, o restante necessariamente desmorona, para de funcionar.

- 203 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 204 -
XIX. Crédito e Depressões

C
omo a produção é executada ao longo do tempo, o crédito surge
como uma conseqüência natural. O crédito é moldado nos
processos da natureza. Quando um homem planta alguma coisa
na expectativa de uma colheita, está gastando bens e trabalho no presente
para um retorno no futuro, com o risco correspondente de perda. O
próximo passo é óbvio; um homem pode adiantar bens para outro em
troca de um retorno subseqüente. Não existe nenhuma razão para supor
que o dinheiro tenha criado o crédito, embora eles possam ter se
desenvolvido simultaneamente. O dinheiro é o único meio pelo qual
trocas adiadas1 de bens podem ser realizadas sem crédito. Mas os
homens concedem crédito e não é possível convencê-los a deixar essa
prática, porque está em sua natureza. Em virtude de sua mente, o homem
trabalha através do tempo e do espaço. O impulso não é a ganância, mas
a faculdade criativa e expansiva. O risco adicional é aceito por causa da
extensão maior e mais rápida do poder sobre a natureza.

Se a humanidade desejasse ter o sistema de produção mais robusto


possível, o dinheiro real seria o meio adequado. Nesse caso, nunca seria
concedido crédito, nunca seriam feitos empréstimos. Todas as transações
em bens e em dinheiro seriam encerradas no ato, incluindo o período
mais curto possível para o pagamento do trabalho. O dinheiro ainda
cobre o tempo e a distância. Com esse sistema, seria impossível haver
pânico; e não haveria necessidade de tempos difíceis, exceto na
circunstância de uma colheita ruim. Não se pode dizer que não haveria
pobreza, porque os bens têm de ser produzidos. Propostas para “abolir a
pobreza”, ou garantir a “liberdade da necessidade” ou a “liberdade do
medo” são apenas uma confusão de termos. Medo e necessidade são
subjetivos; e a pobreza é a ausência de riqueza. Se fosse prometido que,
a partir do momento do nascimento, ninguém devesse nunca carecer de
roupas, quem as produziria? Quem teria tal poder absoluto sobre todas as
outras pessoas? A única condição na qual não se pode passar pela
pobreza, pela necessidade ou pelo medo é a do rigor mortis. Os mortos
não têm necessidades, nem medo. Com pessoas vivas, produzindo e
trocando bens em liberdade, as opiniões e os tempos são variáveis que
introduzem riscos. Tudo o que pode ser dito é que o dinheiro é o meio
seguro de estender trocas de bens para o futuro.

1
SCHERMAN, Harry. The Promises Men Live By. Random House. O sr. Scherman
cunhou a expressão “trocas adiadas”. (N. da A.)

- 205 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

O sistema de pagamento à vista em dinheiro nunca foi proposto por


nenhum teórico social, porque não exigiria nenhum controle, nenhuma
compulsão, nenhum emprego político, nem poder para o reformista.
Seria completamente restrito à competência do indivíduo, desde que
existisse dinheiro real. Ninguém é obrigado a conceder crédito. Os
homens podem se limitar a transações em dinheiro se desejarem, e não o
fazem. Durante a Idade Média, quando os juros sobre o dinheiro eram
estigmatizados como moralmente errados, os homens faziam
empréstimos a juros da mesma maneira, e pagavam taxas altas. Os
mercadores e as guildas de artesãos administravam silenciosamente um
sistema de crédito de longo alcance; a expectativa de receber se baseava
no poder privado e negativo, a recusa de continuar fazendo negócios
com um inadimplente.

Sem crédito, é difícil imaginar como o sistema moderno de produção de


alta energia poderia ter sido criado. A acumulação de capital em dinheiro
nas somas necessárias seria quase impossível ou, pelo menos, muito
mais lenta. Embora enormes empresas tenham sido criadas sem usar os
diversos instrumentos modernos de crédito — como fez Henry Ford —
ainda assim, se não existisse um sistema de crédito, com bancos para
facilitar o pagamento de remessas de mercadorias para lugares distantes,
concentrar os depósitos de correntistas e dar algum crédito local, os
negócios não alcançariam essa dimensão.

Mesmo sem crédito, perdas de capital podem acontecer. Invenções e


melhorias podem obsoletar os bens de capital anteriores; ou experiências
com novas invenções podem fracassar; e, finalmente, iniciativas de
capital necessariamente ultrapassam a demanda imediata; criam um
mercado. A energia procura uma passagem e o julgamento humano nem
sempre é adequado para direcioná-la. A desonestidade é o menor dos
fatores na perda generalizada de um grande pânico e depressão;
praticamente, só entra depois do fato. Ou seja, os homens recorrem a
truques fraudulentos quando empresas que começaram honestamente
estão falindo. Daí segue o espetáculo nauseante de homens proeminentes
falsificando registros contábeis e gaguejando desculpas ridículas ou
mentiras patentes quando investigados. Não estou minimizando a
desonestidade; é imperativamente necessário que os culpados recebam
uma punição sumária e que as falhas resultem em rebaixamento
profissional. O ponto é que a desonestidade nunca é a causa primária de
um colapso de crédito. Mas ela causa um dano muito maior que as
quantias envolvidas, porque desvia a atenção da tarefa crucial de fazer a
produção voltar a funcionar. Além disso, a desonestidade confunde a
questão vital do lucro. Dá um pretexto para discussões enganosas com
essas frases sem sentido, como “produção para o uso e não para o lucro”.

- 206 -
XIX. Crédito e Depressões

Produção é lucro; e lucro é produção. Não estão simplesmente


relacionados; são a mesma coisa. Quando um homem planta batatas, se
não conseguir de volta mais do que investiu, não produziu nada. Isso
ficaria evidente se ele colocasse uma batata no solo hoje e tirasse do solo
a mesma batata amanhã; mas é exatamente a mesma coisa que ele
plantar uma batata e conseguir colher apenas uma batata. Seu trabalho
foi perdido. Então, se não possuir reservas da produção anterior, passará
fome, ou alguém mais terá de alimentá-lo. A objeção contra o lucro é
o mesmo que um espectador, observando o agricultor fazendo a colheita,
dizer: “Você colocou só uma batata e está colhendo uma dúzia. Você
deve ter tomado as outras de alguém; essas batatas extras não podem ser
suas por direito.” Se o lucro é condenado, deve-se supor que ter uma
perda é admirável. Ao contrário, é a perda que exige justificativas. O
lucro se justifica sozinho. Quando uma instituição não é administrada
para ter lucro, ela necessariamente é sustentada pelos produtores. Uma
das maneiras pelas quais os não-produtores destroem gradativamente o
sistema de produção livre é convencendo os homens ricos a fazer
doações a fundações para o “trabalho social” ou para “pesquisa” política
ou econômica. Os argumentos que essas pesquisas vão encontrar serão
geralmente justificativas do parasitismo, favorecendo a criação de mais
sinecuras pela extensão do poder político.

O mais importante é reconhecer o que acontece quando o crédito entra


em colapso, causando uma “depressão”. O circuito de energia se
rompeu. Em muitos pontos ao longo da linha, a energia está vazando,
sendo perdida de alguma maneira. Quando os fios de uma usina elétrica
são derrubados por um ciclone, ocorre uma condição parecida, mas
causada por um acidente externo; e as medidas necessárias para conserto
são óbvias. Em um sistema de produção, a conexão da energia é mais
complexa e o rompimento tem causas internas, que dão origem a
entendimentos errôneos dos vários fatores e relações.

No exemplo mais simples possível, se um homem tem de andar oito


milhas em duas horas para conseguir suprimentos que lhe darão energia
suficiente apenas para andar quatro milhas em uma hora, esse é um
trabalho inútil. Energia física real foi perdida, gasta no calor e na matéria
desperdiçada do esforço muscular. Mas, para efeitos contábeis, a perda
teria de ser computada em tempo ou milhagem. É uma simplificação
extrema, que assume que o homem é o sistema de produção inteiro. Se
ele usasse alguma ferramenta, seu custo e sua depreciação deveriam ser
incluídos. Assim, com um sistema de produção superior, cada parte deve
ser conservada por um excedente de produção; mas o sistema como um
todo ficou sem excedente armazenado. Quando uma estrada de ferro é

- 207 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

construída além das necessidades, estendida “à frente do tempo” através


de um espaço onde não há tráfego suficiente para sustentá-la, é um
problema complexo descobrir a perda real no circuito de energia.
Quando e onde ela ocorre?2 Uma perda específica de um investidor não
significa necessariamente uma perda real no circuito de energia, nem
mesmo um ganho para outra pessoa; embora cada uma dessas suposições
possa ser verdadeira numa dada situação. Pode acontecer, em uma
transação, que haja uma perda real no circuito, uma perda do investidor
original, e até uma perda do comprador que assume os bens e os torna
rentáveis; mas nenhum desses fatores pode ser dado como certo. O
tempo, o espaço e o gerenciamento são as variáveis. Perdas reais
ocorrem através do espaço e do tempo; e em objetos físicos. A mesma
perda engloba ambos os aspectos.

Materiais são perecíveis porque, com o tempo, perdem sua forma e


qualidade úteis pelo desgaste ou por simples negligência. A energia
cinética de um circuito de produção pode se dissipar sem retorno de
tantas maneiras que seria tedioso enumerá-las. Pode ser convertida em
formas estáticas que são inúteis para o circuito; e, novamente, isso pode
ser apenas uma perda líquida ou tornar-se um peso morto, causando uma

2
Um especialista em transportes com amplo conhecimento geral e experiência prática
(Robert Selph Henry, assistente do presidente da Associação de Ferrovias Americanas)
sugeriu que as grandes depressões de negócios do século dezenove aconteceram logo
depois de momentos em que a rápida expansão da infra-estrutura de transportes
avançou além do desenvolvimento geral do país. Qualquer desproporção nessa
estrutura teria conseqüências diretas em todo o sistema, de maneira previsível. Mas,
enquanto o financiamento vinha de capital empresarial privado, essa condição se
autocorrigia.

O sr. Henry diz: “No caso das depressões anteriores, o novo sistema de transporte,
embora criado mais antes de ser viável economicamente, com o tempo se justificou e
se pagou, porque era inerentemente muito mais eficiente e econômico que o sistema
de transportes anterior […] Isso já não foi verdade depois da depressão de 1929 […]
Uma possível razão para essa diferença é que o novo sistema, (super-highways,
melhorias nas hidrovias internas, aeroportos federais, etc.) no qual mais dinheiro foi
gasto em duas décadas do que havia sido gasto com as ferrovias em mais de um
século, não cumpria essas condições. Sua manutenção e operação não são mais
baratas que as do sistema anterior, mas tremendamente mais caras. Outra diferença
importante é que, enquanto mais de 98% do investimento em ferrovias veio de fundos
privados e, portanto, estava sujeito ao teste inescapável de realidade econômica,
aproximadamente 85% dos investimentos recentes em transportes vieram de fundos
públicos, que estão isentos daquele teste extremo.”

Em resumo, uma grande quantidade de energia vai para formas estáticas e uma
corrente contínua ainda vai para um fio-terra por meio dessas formas. Não é apenas
uma perda líquida, mas um vazamento permanente. (N. da A.)

- 208 -
XIX. Crédito e Depressões

perda contínua. (Se um arranha-céu é construído e ninguém o ocupa, ele


pode ser abandonado; isso seria uma perda líquida; mas se é mantido a
um custo mais alto que o retorno em aluguéis, é uma perda contínua, um
peso morto.)

Mas, de todos os objetos usados em trocas, o dinheiro real é o único


fator no qual não pode haver perda. É óbvio que, se uma peça de ouro
de cinco dólares fosse de fato perdida, caída por acidente e não
encontrada novamente, uma parcela de energia seria perdida com ela, a
energia que foi gasta em minerar e fundir o ouro, embora isso tenha sido
compensado se a moeda foi usada por algum tempo. E o ouro se
desgasta lentamente. Mas não é perecível como são quase todas as
commodities; o tempo praticamente não tem efeito sobre ele. Na prática,
como a energia não pode ser perdida no dinheiro ou por meio do
dinheiro como objeto físico, é ele quem registra as perdas em outros
lugares, da mesma maneira como facilita transferências, servindo como
um medidor.

Portanto, o dinheiro real nunca é e nem pode ser a causa de um colapso


do crédito. Mesmo assim, é invariavelmente escolhido como alvo nessas
ocasiões. O nível de inteligência, mais uma vez, se revela na linguagem;
é o pensamento animista de um selvagem que imagina um “demônio do
dinheiro”.3

A noção de que deve haver algo errado com o dinheiro real porque ele
não paga automaticamente dívidas ruins é uma ilusão tão completamente
irracional que parece estar além do alcance das evidências ou da lógica.
Aparentemente, deriva do fato de que o crédito, que é uma dívida, tem
de ser computado em dinheiro. A soma das dívidas então pode ser dez
ou vinte ou mil vezes o total de dinheiro real existente; porque o mesmo
dinheiro pode pagar uma série infinita de dívidas em seqüência. Se vinte
milhões de alqueires de trigo fossem vendidos e somente dez milhões de
alqueires existissem, de fato não haveria trigo suficiente para cumprir o
contrato; mas, nesse caso, ninguém iria dizer que deve haver algo errado
com o trigo como commodity; muito menos que a situação poderia ser
resolvida chamando-se meio alqueire de trigo de um alqueire.
Certamente, se um homem se comprometeu a entregar o trigo que espera
adquirir e não consegue obtê-lo até o momento combinado para a
entrega, dificilmente alguém iria propor que o trigo fosse tomado de
outro homem que o possuísse, para completar uma transação na qual o

3
O ponto mais fraco de um sistema de crédito é que um lucro presumido é
contabilizado pela agência financeira (o banco ou a corretora de investimento)
quando uma dívida é feita, não quando é paga. (N. da A.)

- 209 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

dono do trigo jamais entrou. Mas é o que é feito com dinheiro em uma
crise.

Provavelmente, a causa subjacente de confusão é que o aumento de


produção tende a reduzir os preços. Se não o fizesse, a distribuição seria
impossível com esse aumento. Mas a condição inescapável pode, a
qualquer momento, resultar em uma perda temporária para os produtores
de uma dada commodity porque eles produziram mais. Um plantador de
trigo pode conseguir dois dólares por um alqueire em um ano, por causa
da quebra da safra, e apenas um dólar por alqueire no ano seguinte,
quando produziu o dobro de trigo. Ele acha que isso é injusto; com os
dois dólares, estava tudo bem, não importa quão elevado tenha sido o
lucro; mas um dólar não é suficiente. Por outro lado, o comprador acha
que não está recebendo o suficiente por seu dinheiro quando paga dois
dólares, embora não se importe de pagar um dólar. Mas ambos estarão
inclinados a acreditar que o problema seja com o dinheiro; a quantidade
deve ser inadequada. Quando se trata de pagar uma dívida, ou seja,
enfrentar as conseqüências do crédito, o devedor e o credor estão
igualmente propensos a essa ilusão na mesma transação, ambos estando
sujeitos a perdas.

Em um colapso de crédito, as empresas que são suficientemente sólidas


em si mesmas são duramente afetadas. Reservas de dinheiro são uma
precaução contra essas contingências; constituem baterias de carga, pelas
quais os negócios podem continuar funcionando até que o longo circuito
seja restabelecido a uma condição suficientemente sadia. Mas o único
teste praticável sobre onde o vazamento e a perda ocorrem é que a
remuneração cessa em algum lugar. A liquidação mais rápida e mais
drástica de um colapso de crédito seria a solução melhor e mais justa,
porque reconectaria mais rapidamente o sistema de produção. Mas isso
raramente é permitido. Ao contrário, o poder político é chamado para
tomar o dinheiro ou depreciá-lo; o medidor é falsificado e se provoca um
vazamento geral em toda a linha. Depois disso, nenhuma recuperação
genuína é possível, a menos ou até que esse poder seja revogado e o
vazamento geral pare. Sob o Império Romano, depois que o governo
interveio, nunca houve recuperação. Foi o fim do Império e a Europa
afundou por séculos.

Deve-se ter em mente que, mesmo no controle privado, um erro de


julgamento em um circuito de energia de alto potencial pode causar — e
efetivamente causa — vastas perturbações e perdas cumulativas na
economia. Vistos como um simples fenômeno físico, os efeitos em
tempos de paz são suficientemente espantosos. São mais aparentes nas
cidades, especialmente nas cidades americanas, porque estas são

- 210 -
XIX. Crédito e Depressões

realmente aparições dinâmicas. As cidades pré-industriais da Europa


eram, evidentemente, circuitos locais de energia, ligados ao longo
circuito; mas o potencial limitado permitia que tomassem a forma de
autênticas organizações sociais e políticas. Nenhuma cidade americana
jamais estabeleceu tal padrão. Desde o início, a cidade americana sempre
foi uma usina de energia de alto potencial, um gerador de mais energia
do que a forma tradicional poderia abrigar. Conforme a energia fluiu
para expandir a nação, deslocou e transpôs cada aspecto do cenário
cívico continuamente.

Uma cidade, em sua origem, é um cruzamento; ou seja, marca a


confluência de correntes de energia e expande o fluxo. Desde tempos
imemoriais, a localização das cidades foi determinada por portos, rios e
estradas, sendo que um porto é o final de uma rota marítima. O
surgimento de ferrovias não alterou essa relação, mas confirmou os
fatores naturais no presente. Embora as ferrovias de certa maneira
tenham suplantado as hidrovias internas, continuaram seguindo o nível
da água na medida do possível e, portanto, não mudaram muito as rotas
comerciais anteriores. Uma vez que o direito de via tenha sido obtido e a
ferrovia instalada, o tráfego ficou preso à linha férrea. Mas o próximo
desenvolvimento nos transportes foi essencialmente diferente. Seu efeito
é exemplificado de maneira mais notável em Nova York.

Possuindo um porto, um rio e uma rota oceânica para a Europa, Nova


York se tornou naturalmente um grande terminal ferroviário. Com essas
vantagens, também era um centro financeiro. Significativamente, a
indústria automobilística se desenvolveu no interior do continente. Nova
York forneceu o capital líquido para promover a expansão inédita dessa
indústria.

Mas os automóveis não ficam presos a uma via especial, como as


ferrovias; também não precisam de um terminal, como navios e trens.
Alguma coisa tinha acontecido, com o surgimento do automóvel, que
não foi percebido imediatamente; as rotas comerciais foram alteradas em
grande medida. No passado, quando as grandes rotas comerciais foram
bloqueadas ou deslocadas, as cidades e as regiões caíram em declínio,
como Veneza, os portos levantinos, as cidades hanseáticas; mas a causa
era evidente. Aconteceu com relação às rotas como tais. Com o
automóvel, a mudança aconteceu no veículo de transporte; e o que ele
fez foi diluir o tráfego e diminuir a importância dos centros. Se o avião
vai outra vez favorecer a centralização ainda não podemos afirmar; o
avião certamente está preso a rotas estabelecidas, muito mais que o
automóvel, porque precisa de uma pista de pouso, mas ainda não
sabemos se essa será uma condição permanente. De qualquer maneira, a

- 211 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

ferrovia construiu grandes cidades e também facilitou a colonização de


terras selvagens; foi um fator ambivalente e, no conjunto, equilibrou a
economia. No desenvolvimento do sistema de produção de alta energia,
a ferrovia é o produto de uma imensa centralização de energia (em
dinheiro, capital líquido); por isso, sua ação deve tender
predominantemente no sentido contrário. A partir desse ponto, o
processo normal deveria ter sido principalmente de descentralização e o
automóvel apareceu de maneira apropriada. Outro sinal de
descentralização foi a diminuição do tamanho das unidades geradoras de
energia, os dínamos menores. Esses desdobramentos têm um significado
filosófico, social e político. O automóvel é projetado para
propriedade e uso individuais. O curso dos eventos revela a verdadeira
natureza e os processos do capitalismo. O capitalismo não é coletivo e
não pode ser levado a nenhum sistema de coletivismo; é o sistema
econômico do individualismo. A era da energia só foi possível após uma
concentração preliminar de capital líquido sob controle privado, o que o
coletivismo jamais permitiria. Assim, algumas mentes superficiais, como
a de Marx, concluíram que o capitalismo tendia à concentração da
riqueza e à divisão de interesses de “classe”. Mas o “interesse” do
capitalismo é a distribuição. Todas as invenções do homem têm o
individualismo como finalidade, porque brotam da função individual da
inteligência, que é a fonte criativa e produtiva. Sendo a liberdade a
condição natural do homem, as invenções que facilitam a mobilidade se
tornam meios de transporte individuais. Como ações cooperativas são
úteis para o desenvolvimento do indivíduo, o capitalismo é plenamente
capaz de realizar, por associação voluntária, operações vastas e
complexas de que o coletivismo é totalmente incapaz, e que são
autoliqüidantes no limite de sua utilidade, se se permite que o processo
seja completado. Nenhuma sociedade coletivista pode permitir a
cooperação; essas sociedades se baseiam na compulsão; por isso,
permanecem estáticas.4

4
Paradoxalmente, embora o socialismo não tolere a livre iniciativa, a estrutura
política da livre iniciativa pode abrigar todo tipo de associação cooperativa, na plena
extensão de seu funcionamento prático. O engenheiro elétrico socialista, Steinmetz,
trabalhando para a General Electric, não quis receber uma compensação fixa,
preferindo retirar todos os recursos que achou que precisava; e seu desejo foi
realizado, numa conta aberta — o que seria impossível no socialismo! O acordo foi
realizável nesse caso simplesmente porque foi submetido à decisão privada e à
vontade das partes envolvidas.

Todos os defeitos que podem ocorrer em um sistema de livre iniciativa são


características positivas e estabelecidas do coletivismo. Se o coletivo (poder político)
impede um homem de trabalhar, o que ele pode fazer? Se um homem faz um
trabalho ruim numa economia livre, o comprador é o juiz; quem pode ter o direito de

- 212 -
XIX. Crédito e Depressões

É inevitável que ocorram erros de cálculo. Embora o automóvel, o


dínamo menor e outros sinais devessem servir de aviso suficiente de que
as grandes cidades americanas já haviam crescido demais, ninguém leu
as profecias. Em vez disso, quando o capital líquido dos lucros da
indústria automobilística fluiu de volta a Nova York, a corrente foi
dirigida para baixo das próprias fundações da cidade. Expandiu-se em
aço e pedra, uma projeção impressionante de energia, nos últimos
grandes arranha-céus, “maiores e melhores”, o Chrysler Building, o
Empire State Building, o Radio City. Isso teve o efeito de uma explosão,
estilhaçando os valores anteriores dos imóveis. O lucro deveria ter sido
usado para descentralizar a indústria que o produziu e equilibrar
indústria e agricultura; em vez disso, foi jogado num curto-circuito.

Ainda assim, esses erros custosos da economia capitalista de propriedade


privada poderiam ter sido absorvidos com prejuízos privados e então
esquecidos, se a agência política não tivesse sido chamada para
perpetuá-los e agravá-los. Em Nova York, prédios obsoletos poderiam
ter sido demolidos e seu espaço utilizado de maneira lucrativa para
estacionamentos, que eram tão necessários; com alguma melhora no
aspecto da cidade, ao permitirem mais luz, mais ar e algumas árvores.
Paradoxalmente, a concentração de edifícios teria criado algum espaço.
Os aluguéis teriam se ajustado para baixo, como ocorreria num sistema
de alta produção; e os valores temporariamente perdidos teriam sido
recuperados de maneira permanente. Esse processo natural foi
interrompido exatamente no ponto em que ameaçava a cidade com uma
paralisia permanente, mantendo muitas pessoas em programas de
auxílio, numa ociosidade indesejada, no nível de subsistência, mantidas
por impostos que são uma carga pesada para a produção e que tendem a
expulsar a indústria.

Da mesma maneira, quando as forças atuantes, incluindo a pressão


massiva dos sindicatos, tendiam a descentralizar as grandes indústrias do
Meio Oeste, a ação política interveio e forçou uma centralização ainda
maior.

O risco de pânico e depressões é inerente ao sistema de alta produção


que usa crédito; assim como o risco de fome é inerente ao sistema de
baixa produção. Entre os dois, é óbvio que o da alta produção é menos
grave, o que toda a história demonstra. Mas, em qualquer caso, a
intervenção do poder político agrava em muito os problemas. O século

julgar no socialismo? No pior caso, numa sociedade livre, os mais desafortunados


dependem de caridade; no coletivo, podem ser mortos. (N. da A.)

- 213 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

dezenove foi o primeiro da produção de alta energia. Foi também o


primeiro em que os homens não pereceram de fome em grande número
na Europa. A única exceção foi a Grande Fome Irlandesa. Na Irlanda, o
principal produto agrícola foi atacado por uma praga e praticamente não
havia desenvolvimento industrial, porque o poder político não permitia
que empresas funcionassem livremente. Em outros lugares, depressões
industriais causaram grandes dificuldades, ou mesmo grandes privações,
mas foi possível evitar a fome absoluta em sua pior forma. E a privação
extrema se deveu à sobrevivência parcial da economia de status. Nos
Estados Unidos, houve diversas depressões pesadas e longas, “tempos
difíceis”. Praticamente nada foi feito pelo poder político sob o pretexto
de auxílio aos necessitados. Houve pobreza, homens vagando pelo país
procurando trabalho e vivendo de caridade. Mas os preços das
commodities estavam tão baixos, uma vez que nada os impediu de cair
até onde caíssem, que bastava bem pouco dinheiro para sobreviver.
Quando o colapso de crédito foi liquidado, a recuperação foi tão rápida
que a mudança pareceu fabulosa. A fronteira da liberdade não havia sido
fechada.

Existe um curioso contraste entre a depressão da década de 1890 e a que


seguiu o crash de 1929, talvez uma lição para os pensadores políticos.
Há cem anos, Macaulay5 expressou preocupações de que a Constituição
americana e os direitos de propriedade seriam mais cedo ou mais tarde
subvertidos pelo voto popular, porque, em tempos de crise, aqueles que
não têm nada (“have nots”) votariam pela expropriação dos que têm
alguma coisa (“haves”). Pode-se supor que ele estava certo; mas o que
aconteceu? Na depressão da década de 1890, uma eleição resolveu o
assunto, com relação à moeda, a questão da “prata livre”. Certamente, a
maioria dos eleitores estava um tanto aflita. O resultado foi apertado,
embora a solidariedade do sul ao Partido Democrata fosse toda contra o
dinheiro real. Mas, na decisão popular, o dinheiro real venceu.
Novamente, em 1932, o voto popular foi a favor da economia do
governo, do dinheiro real e da redução do poder político, embora o país
estivesse sofrendo uma depressão aguda.

Qual foi a causa do pânico? Enormes empréstimos governamentais ao


exterior que não foram pagos; e a existência do sistema do Federal
Reserve, uma criação política, que tornou possível uma expansão
desordenada do crédito.

E quem recebeu primeiro o auxílio federal?

5
Thomas Babington Macaulay (1800 – 1859): historiador e político britânico. (N. do T.)

- 214 -
XIX. Crédito e Depressões

De maneira nenhuma foram os “have nots”. A clivagem real não


aconteceu nas linhas que Macaulay traçou, entre ricos e pobres. Foi
principalmente entre produtores e não-produtores. A primeira medida de
“alívio” foi a Reconstruction Finance Corporation; e o primeiro valor
pago por ela foi para o J. P. Morgan & Co. Foram os ricos improdutivos
que primeiro receberam auxílio governamental. Sem isso, nenhuma
medida de auxílio federal aos pobres teria sido aprovada; e um
trabalhador só aceitava auxílio em extrema necessidade e com amargura;
o que ele queria era um emprego. Vincent Astor, que recebia uma renda
elevada de aluguéis de terrenos herdados, vendeu ao governo federal
propriedades em bairros miseráveis, que haviam sido exploradas até que
não rendessem mais nada. Possuindo navios, conseguiu subsídios de
navegação. Especuladores pressionavam pela expansão dos poderes do
governo para manter os valores inflados de suas ações, pela depreciação
do dinheiro e impedindo vendas “baixistas” no mercado, de maneira que
imensos blocos de ações a preços artificiais permaneciam no mercado,
impossibilitando uma recuperação normal. Para “salvar” os
especuladores das conseqüências de suas próprias apostas, todos aqueles
que não participaram do jogo foram penalizados. Leis foram aprovadas
contra o “entesouramento”, de maneira que o único ato punido foi a
prudência. Por esses meios, as reservas normais de dinheiro, que
poderiam restaurar a produção, se dissiparam. Da mesma maneira,
fazendeiros prudentes, competentes e solventes, que tiravam seu sustento
de suas fazendas, foram penalizados com cotas e impostos sobre cotas
para subsidiar a agricultura especulativa. Um homem em Montana
conseguiu US$ 30.000,00 do governo porque persistiu em desperdiçar
sementes de trigo numa terra árida durante a seca; enquanto uma pobre
viúva na Nova Inglaterra foi obrigada a pagar um “imposto de
processamento” porque criou um casal de porcos e os transformou em
bacon!

A divisão foi traçada de maneira notável, entre o produtor e o não-


produtor, com Henry Ford e o Senador Couzens6. Ford estava na
produção; era contra a intervenção governamental. Couzens, ex-sócio de
Ford, já havia tirado sua fortuna do setor produtivo e a colocado em
títulos públicos isentos de impostos e defendia a expropriação de
dinheiro pelo governo.

Cada vez que o sistema de produção tentava funcionar de maneira


saudável, os não-produtores invocavam o poder político para fazê-lo

6
James J. Couzens (1872 – 1936): industrial e político, foi prefeito de Detroit de 1919 a
1922 e senador pelo Estado de Michigan entre 1922 e 1936. Foi sócio de Henry Ford
desde a fundação da Ford Motor Company, em 1903 até 1919. (N. do T.)

- 215 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

parar. Por fim, a principal corrente de energia foi desviada para o canal
político.

Esse processo já havia acontecido na Europa. Empréstimos imensos


eram feitos por meio de agências políticas para agências políticas; e o
dinheiro virava formas estáticas improdutivas: edifícios públicos e
“melhorias” municipais que não davam nenhum retorno. Então, não
havia emprego e o controle político forçou os trabalhadores a irem para
as fábricas de armamentos. Tanto na América quanto na Europa, a
energia mal direcionada foi projetada para cima; mas a Europa não
construiu arranha-céus. O que subiu foram os aviões militares.

Um avião é transportado por um jato de energia, assim como uma bola


de cortiça é transportada pelo jato de uma fonte. A energia é tirada de
um circuito do qual as cidades são o centro. E os aviões estão varrendo
as cidades da existência, com bombardeios. Por quanto tempo poderão
continuar no ar depois de destruírem a fonte e o circuito que os elevaram
aos céus?

Nada disso era imprevisível e tudo foi previsto de alguma forma. Há


noventa anos, Herbert Spencer7 percebeu a tendência política. Ele disse:
“Estamos sendo rebarbarizados.” Spencer reconheceu o nível cultural
que é imposto pelo completo controle “social” do indivíduo. Mas não
percebeu que isso não pode ser imposto pacificamente a um sistema de
alta energia e que o processo fatalmente resultaria em explosão.

Se um sistema financeiro não é sólido, isso só pode acontecer pela


possibilidade de excesso de concessão de crédito e pelo papel-moeda.
Um remédio verdadeiro só poderia consistir em limitar essas faculdades.
As “garantias” governamentais simplesmente colocam a propriedade dos
homens prudentes à disposição dos especuladores em caso de perda. Não
existe isso de “pânico de dinheiro”; um pânico financeiro ocorre por
causa do colapso de crédito.

Nos Estados Unidos, a conseqüência inevitável da extensão do poder


político sobre o dinheiro, com o sistema do Federal Reserve, foi prevista
com detalhada exatidão por Elihu Root8. Ele escreveu:

7
Herbert Spencer (1820 – 1903): filósofo e cientista britânico. Foi um importante
pensador liberal clássico. (N. do T.)
8
Elihu Root (1845 – 1937): advogado e político americano. Foi Secretário da Guerra
dos presidentes William McKinley e Theodore Roosevelt, entre 1899 e 1904 e senador
por Nova York. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1912, por seus esforços para
promover negociações e cooperação entre nações em litígio. (N. do T.)

- 216 -
XIX. Crédito e Depressões

“Isto não é, de forma alguma, uma medida para criar uma moeda elástica.
Não cria uma moeda elástica. Cria uma moeda expansiva, mas não elástica.
Cria uma moeda que pode crescer, sempre crescer, mas não uma moeda para
a qual a lei contenha qualquer medida que provoque a redução […] Com a
reserva inesgotável do Governo dos Estados Unidos fornecendo dinheiro fácil,
as vendas crescem, os negócios aumentam, mais empresas novas são criadas,
o espírito do otimismo permeia a comunidade. Os banqueiros não estão
isentos desse espírito. São humanos. Os membros do Federal Reserve Board
também não estão. São humanos. O mundo inteiro segue uma onda crescente
de otimismo. Todos estão ganhando dinheiro. Todos estão enriquecendo. Isso
cresce e cresce […] até que, finalmente, alguém quebra […] e a estrutura
inteira desmorona. Não vejo nesta lei […] nenhuma influência interposta por
nós contra a ocorrência daqueles períodos de prosperidade falsa e ilusória, que
terminam inevitavelmente em ruína e sofrimento. Porque os resultados mais
terríveis do despertar das pessoas desse sonho não se encontram nos bancos
— não: nem mesmo nas empresas. Encontram-se entre os milhões que
perderam os meios de ganhar o pão diário.”

Elihu também era um dos profetas.

Mas os resultados mais terríveis nem sempre se limitam a uma depressão


financeira; podem terminar em violência. Guerras civis acontecem
quando a energia cinética é bloqueada à força ou subvertida por
intervenção política. A idéia popular de revolução feita pelas “massas”
oprimidas por muito tempo numa penúria abjeta é falaciosa. A
escravidão jamais foi abolida por uma insurreição de escravos, mas sim
pelo esforço de homens livres. Existem “revoluções palacianas”, nas
quais o poder é tomado à força de um grupo por outro, sem qualquer
outra mudança; também existem guerras civis de facções, quando uma
forma de governo entra em colapso. Mas, no tipo mais importante de
guerra civil ou revolução — não são termos idênticos, mas determinada
guerra pode incluir ambos os elementos — os dois lados têm
reivindicações plausíveis de alguma autoridade legítima; ambos são
enérgicos, com um sistema de produção operante envolvido na questão
subjacente; e o grande número de produtores resiste contra um novo
aumento do poder governamental, como aconteceu na Guerra Civil
inglesa do século dezessete e na Guerra de Independência Americana.
Esta última começou como uma guerra civil e terminou como uma
revolução, estabelecendo uma nova forma de governo para manter o
princípio tradicional de autogoverno representativo reivindicado. Assim,
qualquer extensão dos poderes governamentais e aumento de impostos
sob o pretexto de “evitar uma revolução” consegue apenas criar perigo,
se ainda não existisse, ou agravá-lo, se já existisse.

- 217 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Ao contrário, quando uma ditadura ganha força, isso acontece porque os


vários grupos lhe concedem o poder gradativamente, sem perceber onde
isso vai terminar. Os homens escravizam a si mesmos, forjando as
correntes elo a elo, normalmente exigindo proteção como grupo.
Quando empresários pedem crédito ao governo, entregam o controle de
suas empresas. Quando trabalhadores pedem “negociações coletivas”
impostas, entregam sua própria liberdade. Quando grupos raciais são
reconhecidos por lei, podem ser discriminados por lei.

- 218 -
XX. O Humanitário com a Guilhotina

A
maior parte dos males do mundo é causada por boas pessoas, e
não por acidente, lapso ou omissão. É o resultado de ações
deliberadas, feitas com longa perseverança, que essas pessoas
acreditam fazer motivadas por altos ideais e almejando fins virtuosos.
Pode-se provar que isso é verdade; não poderia ser diferente. A
porcentagem de pessoas positivamente mal-intencionadas, viciosas ou
depravadas é necessariamente pequena, porque nenhuma espécie poderia
sobreviver se seus membros fossem habitual e conscientemente
predispostos a prejudicar uns aos outros. A destruição é tão fácil que
mesmo uma minoria com intenções persistentemente más conseguiria
em pouco tempo exterminar a maioria incauta de pessoas de boa
vontade. Assassinato, roubo, pilhagem e destruição estão facilmente ao
alcance de todos os indivíduos a qualquer momento. Se supusermos que
só podem ser evitados pelo medo ou pela força, se todos os homens
possuíssem uma mentalidade maligna, o que temeriam, ou quem imporia
a força contra eles? Certamente, se fosse computado todo o mal causado
por criminosos obstinados, concluiríamos que a quantidade de
homicídios e a extensão dos danos e perdas é desprezível na soma total
de mortes e devastação produzidas contra os seres humanos por seus
pares. Portanto, é óbvio que, em períodos em que milhões são
massacrados, pratica-se a tortura, impõe-se a fome e a opressão se torna
uma política, como ocorre hoje em grande parte do mundo e como
ocorreu com freqüência no passado, isso deve ser por ordem de muitas e
muitas pessoas boas, e mesmo por sua ação direta, pelo que elas
consideram que seja um objetivo justo. Quando não são os executantes
imediatos, são culpados de aprovar, de criar justificativas ou ainda de
esconder fatos com o silêncio e com discussões diversionistas.

É óbvio que isso não poderia acontecer sem causa ou razão. E deve ficar
claro, no trecho acima, que “boas pessoas” significa “boas pessoas”:
pessoas que não agiriam por sua própria intenção consciente com o
objetivo de ferir seus semelhantes, e não propiciariam tais atos, nem por
perversão, nem para obter benefícios pessoais para si mesmas. Boas
pessoas desejam o bem a seus semelhantes e desejam guiar suas próprias
ações de acordo com isso. Além disso, não quero deduzir nenhuma
“transmutação de valores”, que confunda o bem e o mal, nem sugerir que
o bem produz o mal, ou que não há diferença entre o bem e o mal, ou
entre pessoas bem e mal-intencionadas; nem tampouco que as virtudes
das boas pessoas não são realmente virtudes.

- 219 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Então, deve haver um erro muito grave nos meios pelos quais elas
buscam alcançar seus fins. Deve haver mesmo um erro em seus axiomas
primários, que permitem que elas continuem usando tais meios. Alguma
coisa está terrivelmente errada no método, em algum lugar. O que é?

É certo que os massacres cometidos de tempos em tempos por bárbaros


que invadem regiões estabelecidas ou as crueldades caprichosas de
tiranos assumidos não perfazem um décimo dos horrores perpetrados por
governantes com boas intenções.

Conforme a história chegou até nós, os antigos egípcios eram


escravizados pelo Faraó por meio de um esquema benevolente de
“celeiros sempre normais”. Era feita uma provisão contra a fome; e então
as pessoas eram forçadas a trocar suas propriedades e sua liberdade por
essas reservas que haviam sido tomadas de sua própria produção. A
dureza desumana dos antigos espartanos era praticada em nome de um
ideal cívico de virtude.

Os primeiros cristãos foram perseguidos por razões de estado, o bem-


estar coletivo; e resistiram em nome do direito à personalidade, porque
cada um possuía uma alma individual. Aqueles que foram mortos por
Nero por pura diversão foram poucos, comparados aos executados pelos
imperadores posteriores, por razões estritamente “morais”. Gilles de
Retz1, que assassinava crianças para satisfazer uma perversão
abominável, não matou mais de cinqüenta ou sessenta. Cromwell2
ordenou o massacre de trinta mil pessoas de uma vez, incluindo crianças
de colo, em nome da justiça. Mesmo as brutalidades de Pedro, o
Grande3, tinham como pretexto um plano para beneficiar seus súditos.

A guerra atual começou com um tratado perjurado entre duas nações


poderosas (Rússia e Alemanha), que dizia que elas poderiam esmagar
seus vizinhos menores com impunidade. Esse tratado foi quebrado por
um ataque-surpresa contra o companheiro conspirador. Essa guerra teria
sido impossível sem o poder político interno que, em ambos os casos, foi
tomado com o pretexto de se fazer o bem à nação. As mentiras, a

1
Barão Gilles de Retz, ou de Rais (1405 – 1440): cavaleiro bretão, líder do exército
francês e companheiro de armas de Joana d’Arc, foi enforcado pelo assassinato em
série de um número indeterminado de crianças. Não se sabe ao certo se ele era
culpado ou não. (N. do T.)
2
Oliver Cromwell (1599 – 1658): chefe de estado e governo da Inglaterra, Escócia e
Irlanda entre 1653 e 1658, com o título de Lorde Protetor, depois da decapitação do
rei Carlos I, em 1649. (N. do T.)
3
Pedro, o Grande (1672 – 1725): czar e imperador da Rússia entre 1682 e 1725. (N. do
T.)

- 220 -
XX. O Humanitário com a Guilhotina

violência, as matanças em massa foram praticadas primeiro contra o


povo de ambas as nações por seu respectivo governo. Pode ser dito, e
pode ser verdade, que em ambos os casos os detentores do poder são
hipócritas viciosos; que seu objetivo consciente era maligno desde o
início; mesmo assim, não poderiam ter chegado ao poder de forma
alguma, exceto com o consentimento e o auxílio de boas pessoas. O
regime comunista na Rússia foi estabelecido prometendo terra aos
camponeses, em termos que os que prometeram sabiam que eram
mentirosos. Tendo conseguido o poder, os comunistas tiraram dos
camponeses a terra que eles já possuíam; e exterminaram aqueles que
resistiram. Isso foi feito de maneira planejada e deliberada; e a mentira
foi elogiada como “engenharia social” por admiradores socialistas na
América. Se isso é engenharia, vender minério falso é engenharia. Toda
a população da Rússia foi submetida à coerção e ao terror; milhares
foram assassinados sem julgamento; milhões foram mortos em trabalho
forçado ou pela fome, em cativeiro. Da mesma maneira, toda a
população da Alemanha foi submetida à coerção e ao terror, pelos
mesmos meios. Com a guerra, russos em campos alemães de prisioneiros
e alemães em campos russos de prisioneiros não sofreram nada pior e
não tiveram um destino diferente de seus compatriotas que, em grandes
quantidades, sofreram e continuam sofrendo abusos infligidos por seu
próprio governo em seu próprio país. Se existe alguma mínima
diferença, é que são submetidos não à vingança de inimigos declarados,
mas à proclamada benevolência de seus compatriotas. As nações
conquistadas da Europa, sob os calcanhares russos ou alemães, estão
simplesmente vivenciando o que os russos e os alemães sofrem há anos,
sob seus próprios regimes nacionais.

Além disso, as principais figuras políticas hoje no poder na Europa,


incluindo aqueles que venderam seu país ao invasor, são socialistas, ex-
socialistas e comunistas; homens cujo credo era o bem coletivo.

Com tudo isso completamente demonstrado, temos o peculiar espetáculo


em que o homem que condenou milhões de seus compatriotas à fome é
admirado por filantropos cujo objetivo declarado é garantir que todas as
pessoas do mundo tenham um litro de leite. Um profissional graduado
do trabalho beneficente viajou metade do mundo para tentar uma
entrevista com esse mestre de seu ofício e para escrever rapsódias se
conseguisse tal privilégio. Para se manterem em seus cargos, com o
objetivo declarado de fazer o bem, semelhantes idealistas acolhem o
apoio político de corruptores, cafetões condenados e assassinos
profissionais. A afinidade entre esses tipos se revela invariavelmente
quando surge a ocasião. Mas qual é a ocasião?

- 221 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Por que a filosofia humanitária da Europa do século dezoito prenuncia o


Reino do Terror? Não foi por acaso; é conseqüência da premissa, do
objetivo e dos meios propostos originalmente. O objetivo é fazer o bem
aos outros como uma justificativa primária da existência. Os meios são
o poder da coletividade. A premissa é de que o “bem” é coletivo.

A raiz da questão é ética, filosófica e religiosa, envolvendo a relação do


homem com o universo, da faculdade criativa do homem com seu
Criador. A divergência fatal ocorre em não se reconhecer a norma da
vida humana. Obviamente, há uma grande parcela de dor e aflição que
acompanha a existência. A pobreza, a doença e os acidentes são
possibilidades que, mesmo que reduzidas a um mínimo, não podem ser
completamente eliminadas dos riscos que a humanidade deve enfrentar.
Mas não são condições desejáveis, para serem provocadas ou
perpetuadas. Naturalmente, as crianças têm pais, enquanto a maioria dos
adultos tem boa saúde durante a maior parte da vida e possui uma
atividade útil que lhe dá o sustento. Essa é a norma e a ordem natural.
Doenças são marginais. Podem ser aliviadas por um excedente marginal
de produção; caso contrário, absolutamente nada poderia ser feito.
Portanto, não se pode supor que o produtor exista apenas para o bem do
não-produtor, o saudável para o bem do doente, o competente para o
bem do incompetente; ou qualquer pessoa simplesmente para o bem de
outra. (A conseqüência lógica, se considerarmos que uma pessoa existe
apenas para o bem de outra, era realizada por sociedades semibárbaras,
quando a viúva ou os seguidores de um homem morto eram enterrados
vivos em sua sepultura.)

As grandes religiões, que também são grandes sistemas intelectuais,


sempre reconheceram as condições da ordem natural. Prescrevem a
caridade, a benevolência, como uma obrigação moral, a ser cumprida
com o excedente do produtor. Ou seja, as religiões consideram a
caridade secundária à produção, pela razão inescapável de que sem
produção não haveria nada para ser dado. Conseqüentemente,
determinam a regra mais severa, para ser adotada voluntariamente
apenas, para aqueles que desejam devotar sua vida completamente aos
trabalhos de caridade, por contribuições. Isso sempre é considerado uma
vocação especial, porque não poderia ser um modo geral de vida. Uma
vez que o esmoler4 tem de obter dos produtores os fundos ou bens que
distribui, não pode ter nenhuma autoridade para comandar; deve pedir.
Quando subtrai seu sustento dessas esmolas, não deve pegar mais que o
necessário para a mera subsistência. Como prova de sua vocação, deve

4
Esmoler: em inglês, almoner. Capelão ou funcionário da igreja encarregado da
distribuição de donativos aos pobres. (N. do T.)

- 222 -
XX. O Humanitário com a Guilhotina

até renunciar à felicidade de uma vida familiar, se quiser receber a


aprovação religiosa formal. Nunca deverá receber conforto para si
mesmo a partir da miséria dos outros.

As ordens religiosas sustentaram hospitais, criaram órfãos, distribuíram


comida. Parte dessas esmolas era distribuída incondicionalmente, de
maneira que não pudesse haver coerção sob o manto da caridade. Não é
decente obrigar um homem a perder sua alma em troca de pão. Essa é a
real diferença entre a caridade prescrita em nome de Deus e aquela feita
por princípios humanitários ou filantrópicos. Se os doentes eram
curados, os famintos alimentados, os órfãos cuidados até crescerem, isso
certamente era bom e o bem não pode ser computado em termos
simplesmente físicos; mas a intenção dessas ações era guiar os
beneficiários durante um período de aflição e devolvê-los à norma se
possível. Se os aflitos pudessem ajudar a si mesmos em parte, tanto
melhor. Se não pudessem, o fato era reconhecido. Mas a maioria das
ordens religiosas fazia um esforço simultâneo para serem produtivas, de
forma que pudessem dar seu próprio excedente, além de distribuir
doações. Quando realizavam trabalho produtivo, como construir, dar
aulas por um preço razoável, plantar ou desenvolver indústrias e artes
suplementares, os resultados eram duradouros, não apenas nos produtos
em si, mas na ampliação do conhecimento e nos métodos avançados, de
maneira que, no longo prazo, elevavam o padrão de bem-estar. E deve
ser observado que esses resultados duradouros se originavam do auto-
aperfeiçoamento.

O que um ser humano pode realmente fazer por outro? Ele pode doar, a
partir de seus próprios fundos e de seu próprio tempo, qualquer coisa que
tenha de sobra. Mas não pode conceder capacidades que a natureza tenha
negado ao outro; nem entregar seus meios de subsistência sem tornar-se
ele mesmo dependente. Se dá o que ganha, precisa ganhar antes. Sem
dúvida, ele tem direito a uma vida doméstica, se puder sustentar esposa e
filhos. Deve, portanto, reservar o suficiente para si e para sua família,
para continuar a produção. Nenhuma pessoa, mesmo que sua renda seja
de dez milhões de dólares por ano, pode cuidar de cada caso de
necessidade do mundo. Mas, supondo que não possua meios próprios, e
ainda imagine que possa fazer com que “ajudar os outros” seja o seu
objetivo primário e modo normal de vida, o que é a doutrina central do
credo humanitário, como ele vai por isso em prática? Foram publicadas
listas dos Casos Mais Necessitados, certificadas por fundações de
caridade seculares que pagam polpudos salários a seus funcionários. Os
necessitados foram investigados, mas não ajudados. Das doações
recebidas, os funcionários pagam primeiro a si mesmos. Isso é
embaraçoso até para a costumeira cara-de-pau do filantropo profissional.

- 223 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Mas como escapar de confessá-lo? Se o filantropo pudesse comandar os


meios do produtor, em vez de pedir uma parcela, poderia exigir o crédito
pela produção, estando em posição de dar ordens ao produtor. Então,
poderia culpar o produtor por não cumprir as ordens de produzir mais.

Se o objetivo primário do filantropo, sua justificação de vida, é ajudar os


outros, seu bem final exige que os outros estejam necessitados. Sua
felicidade é a outra face da miséria deles. Se deseja ajudar a
“humanidade”, toda a humanidade tem de estar em necessidade. O
humanitário deseja ser uma causa primária na vida dos outros. Não pode
admitir nem a ordem divina nem a ordem natural, pelas quais os homens
têm o poder de ajudar a si mesmos. O humanitário se coloca no lugar de
Deus.

Mas ele tem de encarar dois fatos desagradáveis; primeiro, os


competentes não precisam de sua ajuda; e, segundo, que a maioria das
pessoas, se não for pervertida, positivamente não quer que o humanitário
venha lhe “fazer bem”. Quando se diz que todos devem viver
primordialmente pelos outros, qual é o caminho exato a ser seguido?
Cada pessoa deve fazer exatamente o que qualquer outra pessoa queira
que ela faça, sem limites ou reservas? E somente o que os outros querem
que ela faça? E se várias pessoas fizerem pedidos conflitantes? O plano é
inviável. Talvez, então, ela deva fazer apenas o que é de fato “bom” para
os outros. Mas será que esses outros sabem o que é bom para si mesmos?
Não, isso é descartado pela mesma dificuldade. Então, será que A fará o
que acha que é bom para B, e B o que acha que é bom para A? Ou será
que A deve aceitar apenas o que acha que é bom para B, e vice-versa?
Mas isso é absurdo. É claro que o que o humanitário realmente propõe é
que ele fará o que acha que é bom para todos. É nesse ponto que o
humanitário instala a guilhotina.

Que tipo de mundo o humanitário vislumbra, que lhe permite plena


capacidade de ação? Só poderia ser um mundo cheio de filas de pão e
hospitais, no qual ninguém retivesse o poder natural do ser humano de
ajudar a si mesmo ou de resistir a que as coisas sejam feitas por ele. E é
exatamente o mundo que o humanitário cria quando consegue. Quando
um humanitário deseja fazer com que todos tenham um litro de leite, é
evidente que não possui o leite e não pode produzi-lo por si mesmo. Se
não fosse assim, porque estaria simplesmente desejando? Além disso, se
tivesse de fato uma quantidade suficiente de leite para conceder um litro
a cada pessoa, mas seus potenciais beneficiários conseguissem produzir
leite por si mesmos, diriam: Não, obrigado. Então, como o humanitário
pode conseguir ter todo o leite para distribuir e que todos estejam
precisando de leite?

- 224 -
XX. O Humanitário com a Guilhotina

Só existe uma maneira, que é usar o poder político em sua plena


extensão. Assim, o humanitário sente a máxima gratificação quando
visita ou ouve falar de um país no qual todos são dependentes de cartões
de racionamento. Onde a subsistência é mantida por doações estatais,
aquilo a que se aspira foi alcançado, uma necessidade geral e um poder
superior para “aliviá-la”. O humanitário em teoria é o terrorista em ação.

As boas pessoas concedem o poder que ele pede porque aceitaram sua
falsa premissa. O avanço da ciência deu a essa premissa uma
plausibilidade ilusória, com o aumento da produção. Já que existe o
suficiente para todos, porque os “necessitados” não podem ser
sustentados primeiro e a questão ser assim resolvida permanentemente?

Se, neste ponto, for perguntado como se define “necessitado” e de que


origem e com que poder esse sustento seria dado a eles, pessoas de bom
coração exclamariam indignadas: “Isso é se preocupar com ninharias.
Estreite-se a definição até o limite, mas existirá um mínimo irredutível
no qual não se pode negar que um homem que está com fome,
maltrapilho e sem abrigo é um necessitado. A origem do alívio só pode
ser os meios daqueles que não estão assim necessitados. O poder já
existe; se pode existir um direito de cobrar impostos para sustentar
exércitos, marinhas, polícia local, construção de estradas ou qualquer
outro objetivo imaginável, sem dúvida deve existir um direito mais forte
de cobrar impostos para a preservação da própria vida.”

Muito bem; tomemos um caso específico. Nos tempos difíceis da década


de 1890, um jovem jornalista de Chicago estava preocupado com as
privações terríveis dos desempregados. Ele tentou acreditar que qualquer
homem que desejasse trabalhar honestamente conseguiria encontrar um
emprego; mas, para ter certeza, investigou alguns casos. Por exemplo,
um jovem de uma fazenda, onde a família talvez tivesse o suficiente para
comer, mas precisava de tudo o mais; o garoto chegou a Chicago
procurando emprego e certamente aceitaria qualquer tipo de trabalho,
mas não havia nada. Suponhamos que tenha voltado para casa
mendigando; havia outros que estavam a meio continente ou a um
oceano de casa. Não podiam voltar, por nenhum tipo de esforço próprio;
não há o que discutir a respeito. Simplesmente não tinham como.
Dormiam em becos, esperavam por rações escassas nos sopões; e
sofriam amargamente. Mais uma coisa; entre esses desempregados havia
algumas pessoas, é impossível dizer quantas, que eram
excepcionalmente empreendedoras, talentosas ou competentes; e foi isso
que as colocou naquela situação. Haviam se livrado da dependência em
um momento particularmente arriscado; fizeram uma aposta alta.

- 225 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Extremos se encontravam entre os desempregados; os extremos da


iniciativa corajosa, do completo azar e da absoluta imprudência e
incompetência. Um ferreiro que trabalhava perto da Ponte do Brooklin e
deu dez centavos a um pobre para que ele pagasse a passagem pela ponte
não poderia imaginar que estivesse investindo na imortalidade, na pessoa
de um futuro Poeta Laureado da Inglaterra. Mas o pobre era John
Masefield5. Assim, não se pense que os necessitados sejam sempre
“pessoas sem mérito”. Havia também pessoas no campo, em regiões
afetadas pela seca ou por pragas, que passaram por dificuldades terríveis
e teriam literalmente passado fome se não tivessem recebido ajuda.
Também não receberam muito e foi de maneira inconstante. Mas todos
lutaram pela fantástica recuperação do país inteiro.

Poderia ter havido dificuldades muito maiores que a simples pobreza na


linha de subsistência, se não fosse pela ajuda entre vizinhos, que não foi
chamada de caridade. As pessoas sempre doam muito, se possuem; é um
impulso humano, do qual o humanitário se aproveita, para seu próprio
objetivo. Qual é o problema de institucionalizar esse impulso natural em
uma agência política?

Muito bem; teria o garoto da fazenda feito alguma coisa errada quando
saiu de lá, onde tinha o suficiente para comer, e foi para Chicago pela
possibilidade de conseguir um emprego?

Se a resposta for sim, então deve existir um poder legítimo que o impeça
de deixar a fazenda sem permissão. O poder feudal fazia isso. Não
podia impedir as pessoas de passar fome; simplesmente as obrigava a
passar fome exatamente onde nasceram.

Mas, se a resposta for não, o garoto da fazenda não fez nada de errado,
ele tinha o direito de correr aquele risco, então, o que exatamente pode
ser feito para assegurar que ele não terá má sorte quando chegar ao
destino que escolheu? Será que um emprego deve estar disponível para
qualquer pessoa, em qualquer lugar para onde decida ir? Isso é absurdo.
Não pode ser feito. Ela tem direito a algum tipo de assistência, quando
chegar lá, desde que decida ficar; ou, pelo menos, a uma passagem de
volta para casa? É igualmente absurdo. A demanda seria infinita;
nenhuma abundância de produção conseguiria cobri-la.

Mas, e as pessoas empobrecidas pela seca? Elas não poderiam receber


assistência política? Mas deve haver condições. Deveriam receber

5
John Masefield (1878 – 1967): poeta e escritor inglês, Poeta Laureado do Reino
Unido de 1930 até sua morte. (N. do T.)

- 226 -
XX. O Humanitário com a Guilhotina

enquanto estiverem necessitadas, enquanto permanecerem onde estão?


(Não podem ser custeadas para uma viagem por tempo indeterminado.)
É exatamente o que foi feito nos últimos anos; e isso vem mantendo os
recebedores de assistência juntos, há sete anos, em lugares miseráveis,
perdendo tempo, trabalho e sementes no deserto.

A verdade é que qualquer método proposto para cuidar da necessidade


marginal e das privações ocasionais da vida humana, estabelecendo-se
uma carga fixa permanente sobre a produção, seria adotado com
satisfação por aqueles que hoje se opõe a esse tipo de medida, se isso
fosse viável. Eles se opõem porque a idéia é inviável pela natureza das
coisas. São pessoas que já criaram todos os expedientes parciais
possíveis, na forma de seguros privados; sabem exatamente onde está a
armadilha, porque tiveram de enfrentá-la quando tentaram garantir
provisões para seus próprios dependentes.

O obstáculo insuperável é que é absolutamente impossível obter


qualquer coisa da produção antes de garantir sua manutenção.

Se fosse verdade que os produtores em geral, gerentes industriais e


outros, tivessem corações de aço temperado, e não se preocupassem
absolutamente com o sofrimento humano, ainda seria muito mais
conveniente para eles que a questão do alívio de todos os tipos de
privação — desemprego, doença ou velhice — pudesse ser resolvida de
uma vez, de maneira que eles não precisassem mais ouvir falar no
assunto. Estão sempre sendo atacados nesse ponto; e seus problemas são
duplicados quando a indústria encontra uma depressão. Políticos podem
conseguir votos por causa de privações; humanitários obtêm lucrativos
empregos administrativos distribuindo fundos de assistência; somente os
produtores, tanto capitalistas como operários, têm de agüentar os insultos
e pagar o pato.

O problema pode ser explicado de maneira mais clara por um exemplo


concreto. Suponhamos que um homem seja dono de uma empresa
lucrativa e sólida, com um longo histórico de bom gerenciamento. Ele
deseja garantir que sua família seja sustentada pela empresa por tempo
indeterminado. Como dono, pode conceder ações preferenciais que
rendam determinada quantia; digamos que fossem apenas US$ 5.000,006
por ano em uma empresa que gerasse US$ 100.000,00 por ano de lucro
líquido. É o máximo que o dono da empresa é capaz fazer. E se, em
algum momento, a empresa não conseguisse gerar US$ 5.000,00 de
lucro líquido, sua família não receberia o dinheiro e isso é tudo. A

6
US$1,00 de 1943 equivale a cerca de US$110,00 de 2014. (N. do T.)

- 227 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

família poderia deixar a empresa falir e tomar posse dos ativos, e esses
ativos, depois da falência, poderiam não valer nada. É impossível obter
qualquer coisa da produção antes de garantir sua manutenção.

Além disso, é claro que sua família poderia hipotecar as ações, entregá-
las à “administração” de algum amigo “benevolente” — já se viu esse
tipo de coisa acontecer muitas vezes — e, então, não receberiam o
dinheiro de qualquer maneira. É mais ou menos o que acontece com
organizações de caridade que recebem doações. Sustentam uma porção
de bons amigos em empregos bacanas.

Mas o que aconteceria se o empresário, por causa de seu afeto e


generosidade, determinasse, de maneira irrevogável, que sua esposa e
filhos teriam o poder de tirar recursos da empresa no valor sem limites.
Inocentemente, ele poderia ter certeza de que eles não pegariam mais
que uma pequena porcentagem, para suas necessidades razoáveis. Mas
poderia chegar o dia em que o caixa teria de dizer à feliz esposa que não
haveria dinheiro para pagá-la; e, com um arranjo assim, certamente esse
dia chegaria bem rápido. Em qualquer caso, exatamente quando a família
mais precisasse de dinheiro, a empresa renderia menos.

Mas o procedimento seria totalmente insano se o empresário desse a um


terceiro o poder irrevogável de retirar o valor que desejasse dos recursos
da empresa, com apenas um entendimento não obrigatório de que esse
terceiro devesse sustentar a família do dono. É nisso exatamente que
consiste a proposta de cuidar dos necessitados pelos meios políticos. Ela
dá aos políticos o poder de taxar o quanto quiserem; e não existe
absolutamente nenhuma forma de garantir que o dinheiro vá para onde
se pretendia que fosse. De todo modo, a empresa não agüenta essa
sangria sem limites.

Porque pessoas bem intencionadas recorrem ao poder político? Elas não


podem negar que os meios de assistência aos necessitados têm de vir da
produção. Mas dizem que existe o suficiente e com sobras. Então, devem
supor que os produtores não aceitam dar o que é “certo”. Além disso,
supõem que existe um direito coletivo de criar impostos, para qualquer
objetivo que a coletividade determine. Atribuem esse direito ao
“governo”, como se o governo existisse de maneira independente.
Esquecem-se do axioma americano de que o governo em si não existe de
maneira independente, mas é instituído pelos homens para atingir
objetivos limitados. O próprio contribuinte espera ter proteção do
exército ou da marinha ou da polícia; usa as estradas; por isso, seu
direito de insistir em limites para a carga tributária é auto evidente. O

- 228 -
XX. O Humanitário com a Guilhotina

governo não tem “direitos” sobre esse assunto, mas apenas uma
autoridade delegada.

Mas, se os impostos serão criados para dar assistência aos necessitados,


quem vai julgar o que é possível ou benéfico? Tem de ser ou os
produtores, ou os necessitados ou algum terceiro grupo. Dizer que serão
os três juntos não é resposta; o veredito deve se basear numa maioria ou
pluralidade extraída de um grupo ou de outro. Os necessitados podem
votar eles mesmos para determinar qual a sua necessidade? Os
humanitários, o terceiro grupo, podem votar e eleger a si mesmos para
controlar tanto os produtores quanto os necessitados? (É o que eles têm
feito.) Entende-se assim que o governo deve receber o poder de dar
“segurança” aos necessitados. Isso é impossível. O que o governo faz é
confiscar a poupança acumulada por pessoas privadas para sua própria
segurança, tirando assim de todos qualquer esperança de alguma
possibilidade de segurança. Não há mais nada que o governo possa fazer,
se resolver agir de alguma maneira. Aqueles que não entendem a
natureza dessa ação são como selvagens que derrubam uma árvore para
colher os frutos; não pensam em termos de tempo e espaço, como devem
fazer os homens civilizados.

Já vimos o que pode acontecer de pior quando só existem doações


privadas e assistência municipal improvisada de caráter temporário. A
ajuda privada desorganizada é aleatória e esporádica; nunca foi capaz de
impedir completamente o sofrimento. Mas também não perpetua a
dependência de seus beneficiários. É o método do capitalismo e da
liberdade. Envolve altos e baixos extraordinários, mas os altos são
sempre mais altos a cada vez, e de duração mais longa que os baixos. E,
nos períodos de maior privação, não existe fome de verdade, não existe
desespero absoluto, mas um estranho tipo de raiva, um otimismo ativo e
uma crença inabalável em tempos melhores adiante, que os resultados
justificam. Doações privadas extra-oficiais, esporádicas de fato realizam
o objetivo. Funcionaram, mesmo que de maneira imperfeita.

Por outro lado, o que o poder político tem condições de fazer? Um dos
supostos “abusos” do capitalismo é a sweatshop7. Imigrantes vieram
para a América sem um centavo, ignorantes do idioma e sem capacitação
profissional; foram contratados por salários muito baixos, trabalhavam
longas horas em ambientes sujos e considera-se que eram explorados.

7
Sweatshop: estabelecimento em que os empregados trabalham longas horas,
recebendo salários muito baixos, em condições ambientais ruins. Essa expressão é
muito comum em inglês. Mantive no original porque não achei um equivalente
igualmente expressivo. (N. do T.)

- 229 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Porém, misteriosamente, em algum tempo sua condição melhorou; a


grande maioria conseguiu conforto e alguns enriqueceram. O poder
político seria capaz de fornecer empregos lucrativos para todos que
quisessem vir? É evidente que não seria e não é. Mesmo assim, as
pessoas boas pediram que o poder político aliviasse o fardo desses
recém-chegados. O que ele fez? Sua primeira exigência foi de que cada
imigrante deveria trazer consigo certa quantia em dinheiro. Ou seja,
extinguiu a única esperança dos estrangeiros mais necessitados. Mais
tarde, quando o poder político na Europa transformou a vida em um
inferno sombrio, mas um grande número de pessoas ainda poderia ter
acumulado a quantia exigida para admissão na América, o poder político
simplesmente limitou a admissão a uma quota. Quanto mais desesperada
a necessidade, menor a chance de o poder político permitir que fosse
atendida. Os muitos milhões na Europa não ficariam felizes e gratos se
pudessem ter apenas a pior chance que o velho sistema concedia, em vez
de campos de prisioneiros, porões de tortura, humilhações vis e morte
violenta?

O empregador da sweatshop não tinha muito capital. Arriscava o pouco


que tinha contratando gente. Foi acusado de fazer a eles um mal terrível
e sua empresa se tornou um exemplo revelador da brutalidade intrínseca
do capitalismo.

O funcionário político é razoavelmente bem-pago, num emprego com


estabilidade. Sem arriscar nada, recebe seu salário para empurrar pessoas
desesperadas de volta das fronteiras, como se batesse em homens se
afogando que tentassem subir a bordo de um navio bem-provisionado. O
que mais ele pode fazer? Nada. O capitalismo fez o que podia; o poder
político faz o que pode. Casualmente, o navio foi construído e abastecido
pelo capitalismo.

Entre o filantropo privado e o capitalista privado agindo como tais,


tomemos o caso do homem realmente necessitado, que não está
incapacitado, e suponhamos que o filantropo dê a ele comida, roupas e
abrigo — quando ele os tiver usado, estará exatamente onde estava
antes, com a diferença de que talvez tenha adquirido o hábito da
dependência. Mas suponhamos que alguém sem nenhum motivo
benevolente, simplesmente querendo que um trabalho seja feito por suas
próprias razões, contratasse o necessitado por um salário. O empregador
não fez uma boa ação. Porém, a condição do homem empregado de fato
mudou. Qual a diferença vital entre as duas ações?

É que o empregador não-filantrópico levou o homem que contratou de


volta à linha de produção, no grande circuito de energia; enquanto o

- 230 -
XX. O Humanitário com a Guilhotina

filantropo pode apenas desviar energia de tal maneira que não haja
retorno para a produção e, portanto, diminui a chance de que o objeto de
sua caridade encontre emprego.

Este é o motivo racional, profundo, pelo qual os seres humanos evitam a


assistência e odeiam a própria palavra. É também o motivo pelo qual
aqueles que praticam trabalhos de caridade por vocação verdadeira
fazem tudo o que podem para que esse trabalho permaneça marginal, e
alegremente renunciam à oportunidade de “fazer o bem” em favor de
qualquer possibilidade de que o beneficiário trabalhe em termos
semitoleráveis. Aqueles que não podem evitar recorrer à assistência
demonstram os resultados em sua aparência física; são isolados das
fontes vivas de energia auto renovadora e sua vitalidade afunda.

O resultado, se forem mantidos recebendo assistência por tempo


suficiente pelos decididos filantropos e políticos unidos, foi descrito por
um profissional de assistência. A princípio, os “clientes” se inscrevem
com relutância. “Em poucos meses, tudo muda. Descobrimos que aquele
sujeito que só queria o suficiente para superar a dificuldade agora aceita
viver de assistência como um fato da vida.” O funcionário que disse isso
estava ele próprio “vivendo de assistência como um fato da vida”; mas
estava um grande degrau abaixo de seu cliente, uma vez que nem mesmo
se dava conta de sua condição. Por que ele conseguia fugir à verdade?
Porque podia se esconder atrás da motivação filantrópica. “Ajudamos a
impedir a fome e agimos para que essas pessoas tenham abrigo e roupas
de cama.” Se perguntassem ao funcionário: “Você planta a comida?
Você constrói o abrigo? ou Você dá dinheiro de sua própria renda para
pagar por tudo isso?”, ele não enxergaria que isso faz qualquer diferença.
Foi ensinado de que é certo “viver pelos outros”, por “objetivos sociais”
e “ganhos sociais”. Enquanto acreditar que está fazendo isso, não se
perguntará o que está necessariamente fazendo para os outros, nem de
onde devem vir os meios para sustentar sua atividade.

Se o papel total dos filantropos sinceros fosse computado, desde o início


dos tempos, descobriríamos que todos eles juntos, por suas atividades
filantrópicas estritas nunca conferiram à humanidade um décimo do
benefício derivado dos esforços normalmente egoístas de Thomas Alva
Edison8, sem falar nas mentes maiores que desenvolveram os princípios

8
Thomas Alva Edison (1847 – 1931): inventor e empresário americano. Desenvolveu
diversos dispositivos que influenciaram enormemente a vida em todo o mundo,
incluindo o fonógrafo, uma câmera para filmar e um modelo de lâmpada elétrica
viável comercialmente. Foi um dos primeiros inventores a aplicar os princípios de
produção em massa e de grandes equipes de trabalho ao processo de invenção.
Considera-se que ele criou o primeiro laboratório industrial de pesquisas. (N. do T.)

- 231 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

científicos que Edison aplicou. Incontáveis pensadores especulativos,


inventores e organizadores contribuíram para o conforto, saúde e
felicidade de seus semelhantes — porque esse não era seu objetivo.
Quando Robert Owen9 tentou dirigir uma fábrica visando a produção
eficiente, o processo casualmente melhorou alguns personagens muito
pouco promissores entre seus empregados, que haviam vivido de
assistência e, portanto, estavam tristemente degradados; Owen ganhou
dinheiro; e enquanto era esse seu objetivo, percebeu que, se melhores
salários fossem pagos, a produção poderia aumentar, tendo criado seu
próprio mercado. Isso era sensato e verdadeiro. Mas então Owen foi
tocado por uma ambição humanitária de fazer o bem a todos. Reuniu
muitos humanitários em uma colônia experimental; estavam tão
imbuídos de fazer o bem aos outros que ninguém fazia trabalho nenhum;
a colônia se dissolveu amargamente; Owen faliu e morreu levemente
enlouquecido. Assim, o importante princípio que ele vislumbrou teve de
esperar um século para ser redescoberto.

O filantropo, o político e o cafetão se encontram inevitavelmente aliados


porque têm as mesmas motivações, buscam os mesmos fins: existir para
outros, por intermédio de outros e mantidos por outros. E as boas
pessoas não podem ser absolvidas de apoiá-los. Não se pode acreditar
que as boas pessoas sejam completamente inconscientes do que
realmente acontece. Mas, quando boas pessoas sabem de fato, como
certamente sabem, que três milhões de seres humanos (na estimativa
mais baixa) morreram de fome em um ano pelos métodos que elas
aprovam, por que ainda se confraternizam com os assassinos e apóiam
essas medidas? Porque disseram a elas que a morte lenta dos três
milhões poderia, ao final, beneficiar um número maior de pessoas. Esse
argumento se aplica igualmente ao canibalismo.

9
Robert Owen (1771 – 1858): reformador social galês e um dos fundadores do
socialismo utópico e do movimento cooperativista. (N. do T.)

- 232 -
XXI. Nosso Sistema Educacional Niponizado

era humanitária se gaba, desde o século passado1, ou antes, de

A que realizou uma mudança fundamental nos métodos e objetivos


da educação. O sistema preferido é chamado de educação
progressista. Qualquer tentativa de definição desse sistema pode ser
contestada, porque seus defensores nunca estabeleceram uma definição
exata; mas vamos procurar descrevê-lo nos termos mais generosos,
abertos a correções. Digamos que a educação progressista busca tornar o
ensino escolar uma experiência agradável; proíbe punições concretas;
busca ao mesmo tempo estimular a auto-expressão das crianças mais
novas e a consciência social dos alunos mais velhos; e alega ensinar as
crianças a pensar utilizando projetos experimentais e apresentando
tópicos atuais controvertidos para discussão geral, sem princípios
dogmáticos.

Ao contrário, a educação à moda antiga supunha que não existe um


caminho fácil para o aprendizado. Dava autoridade suficiente ao
professor para qualquer castigo disciplinar necessário. Apresentava fatos
concretos e princípios concretos. Desencorajava a auto-expressão
imatura, procurava fortalecer o caráter pelo autocontrole contra o
impulso social; e associava a responsabilidade pessoal a cada grau de
emancipação da regra de obediência para as crianças. Ensinava-as a
pensar pelo uso da lógica formal sobre exemplos impessoais; enquanto
questões contemporâneas eram mantidas fora da sala de aula o máximo
possível.

Qual é, na realidade, o tipo de educação mais moderno?

Há quarenta anos2, Lafcadio Hearn3 descreveu os princípios e métodos


educacionais do Japão, comparados aos do mundo ocidental.
Tradicionalmente, segundo Hearn, a educação ocidental começava na
primeira infância “com a parte repressiva do treinamento moral. […] É
importante inculcar os deveres do comportamento, o ‘devo’ e o ‘não devo’ da
obrigação individual, tão cedo quanto possível. Depois, mais liberdade será
permitida. A criança bem educada é levada a entender que seu futuro

1
Isabel Paterson se refere ao século 19. (N. do T.)
2
Por volta de 1900. (N. do T.)
3
Patrick Lafcadio Hearn (1850 – 1904): escritor que estudou a cultura e a sociedade
japonesas. Nasceu numa ilha grega, de pai irlandês e mãe grega. Foi criado na Irlanda.
Emigrou para os Estados Unidos aos 19 anos. Mudou-se para o Japão aos 40 anos,
onde viveu o restante de sua vida. (N. do T.)

- 233 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

dependerá de seu esforço pessoal e de sua capacidade; e, portanto, em grande


medida, deixa-se que ela cuide de si mesma, sendo ocasionalmente advertida
ou avisada, conforme pareça necessário. […] Ao longo de todo o caminho do
treinamento mental e moral, a competição é não apenas esperada como
exigida. […] O objetivo é cultivar a habilidade individual e o caráter pessoal —
criar um ser independente e vigoroso.”

“A educação japonesa sempre foi conduzida no plano reverso. Seu propósito


nunca foi treinar o indivíduo para a ação independente, mas treiná-lo para a
ação cooperativa. […] A restrição entre nós começa com a infância e
gradualmente é relaxada; a restrição no treinamento do Extremo Oriente
começa mais tarde e, daí em diante, é gradualmente aumentada; e não é uma
restrição imposta diretamente pelos pais e professores. […] Não apenas na
idade da vida escolar, mas consideravelmente além dela, uma criança
japonesa desfruta de um grau de liberdade muito maior do que é permitido às
crianças ocidentais. […] É permitido à criança fazer o que quiser. […] Ela é
protegida, mas não restringida; advertida, mas raramente forçada.” Se uma
punição se torna absolutamente necessária, “pelo antigo costume, a casa
inteira, incluindo os empregados, intercede em favor do transgressor; os
irmãos e irmãs pequenos implorando para serem punidos no lugar dele. Na
escola, começa a disciplina […] mas não há punição além de uma repreensão
pública. Qualquer restrição que exista é exercida sobre a criança
principalmente pela opinião comum de sua classe; e um professor habilidoso
é capaz de controlar essa opinião. […] O poder reinante é sempre o sentimento
da classe. […] Nas escolas médias, a opinião da classe adquire uma força para
a qual o próprio professor tem de se curvar; é capaz de expulsá-lo se ele tentar
se sobrepor a ela. […] É sempre o poder do coletivo sobre o indivíduo; e esse
poder é formidável.”4

O objetivo final vem do ideal social japonês. Por mais de mil anos, pelo
menos, o mais puro altruísmo é ensinado aos japoneses, no culto
comunal. “A simples idéia de que alguém tenha o direito de fazer o que quiser
não entra na mente japonesa. […] O tempo e o esforço de um homem jamais
podem ser considerados exclusivamente seus. Seu direito de viver repousa
unicamente em sua disposição de servir à comunidade. O indivíduo foi
completamente sacrificado em nome da comunidade. […] Cada membro de
uma comunidade deve observar cuidadosamente a conduta de seus
companheiros.” Para que não pudesse haver nenhuma chance de iniciativa
ou escolha pessoais, todo o trabalho era completamente controlado por
guildas; e todos os bens eram distribuídos pela autoridade, de maneira
que a quantidade e o tipo de posses que uma pessoa poderia ter era
determinado minuciosamente. Um pai não poderia comprar nem mesmo
uma boneca de papel adicional para sua filha. Qualquer desvio de

4
HEARN, Lafcadio. Japan: an interpretation. Macmillan, 1894. (N. da A.)

- 234 -
XXI. Nosso Sistema Educacional Niponizado

conduta seria punido de maneira instantânea e implacável. Até a


linguagem refletia esse código de ética altruísta, evitando o uso de
pronomes pessoais e modificando-os para um significado social.

O resultado, na vida adulta, é “a sinistra ausência de liberdade moral —


a ausência do direito de agir de acordo com suas próprias convicções de
justiça”. De fato, não pode existir conceito de justiça se a única
autoridade é a autoridade da massa, do coletivo, do governo em sua
máxima abrangência. E o comportamento atual dos japoneses na guerra,
inclusive sua atitude com os prisioneiros, é totalmente consistente com
sua tradição. Seja o que for que façam a seus inimigos — e são eles que
determinam quem é inimigo e iniciam o ataque — não é pior do que
impuseram a si mesmos “pelo bem da sociedade”.

Desde que Hearn fez essas observações, a educação ocidental vem se


movendo continuamente na direção dessa base japonesa; é sua tendência
“progressista”. Atividades de classe, interesses de grupo, influências
sociais se tornaram predominantes. E a filosofia prevalecente com a qual
os alunos são doutrinados é a do “instrumentalismo”, que nega que possa
haver valores ou padrões morais permanentes ou universais de algum
tipo. O resultado mais chocante nos alunos é exatamente essa “sinistra
ausência de liberdade moral”. Nem provas nem lógica conseguem
penetrar nas brumas em que são formados. É difícil fazer com que um
deles chegue a qualquer conclusão, quando separados do grupo. Dirão:
“Bem, eu só acho que não”, como se não pudesse haver fatos ou
processos mentais associados que levam a uma opinião em vez de outra
ou diferenciam uma convicção de um gosto. Eles têm a impressão de que
“tudo é diferente agora” de qualquer coisa que possa ter existido no
passado; embora não tenham idéia de como ou por quê. Dois mais dois
não são quatro? Uma alavanca não funciona hoje exatamente pelos
mesmos princípios com que funcionava para Arquimedes? Eles não
sabem ao certo. Podem dizer: “Ah, não concordo com você”, mas não
dão nenhuma razão para a discordância. “Não estão convencidos”, mas
não conseguem oferecer um argumento para refutar. Ou seja, quando
convidados a pensar, não conseguem, porque foram treinados para
aceitar a classe, o grupo ou a “tendência social” como única autoridade.
Até onde isso é possível, foram reduzidos a “gânglios”, processos
neurais em um “corpo” coletivo, em vez de pessoas.

A orientalização dos métodos de ensino no Ocidente tem efeitos até nos


detalhes. O grande uso e valor do alfabeto fonético, em oposição à
escrita pictográfica (hieróglifos ou caracteres chineses) é que o aluno
passa a dominar as ferramentas muito rapidamente. Em inglês, uma
criança precisa aprender apenas vinte e seis letras e entender o princípio

- 235 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

para combiná-las, como indicativos de sons, e saberá ler. O alfabeto


fonético é um dos dispositivos que mais poupa trabalho na história
humana. Com caracteres chineses ou qualquer outra escrita em
ideogramas, milhares de símbolos têm de ser aprendidos. Grande parte
da educação escolar é desperdiçada simplesmente com o trabalho penoso
da memorização. Além disso, o pensamento abstrato é gravemente
prejudicado. Mesmo assim, defende-se como um método “moderno”
para ensinar uma criança a ler que ela aprenda pela memorização visual
das palavras, sem aprender o alfabeto. Este método é atribuído a
Bronson Alcott5: “Não havia cartilha, com a classe tentando arduamente
identificar o A ou talvez o S. Em vez disso, os pequenos eram agrupados
em volta do professor, que tinha uma figura nas mãos. Olhavam as
figuras dos animais e, embaixo, viam as palavras — cão, gato, vaca —
até que, em pouco tempo, sabiam qual palavra correspondia a qual
animal.” Isso é ensinar leitura pictográfica. Até onde é possível, a
vantagem do alfabeto fonético é anulada, inclusive a sistematização do
conhecimento por referências em um índice. Outro método educacional
“avançado” não dá notas em provas pelos acertos. Em vez disso, as notas
são dadas indicando que a criança se saiu bem em relação a suas
capacidades. Ou seja, o professor supõe possuir onisciência divina e age
como se conhecesse de maneira absoluta as capacidades inatas da
criança, por algum meio celestial, em vez de avaliar o resultado
específico de um exame específico. A criança negligente é beneficiada e
a criança esforçada, inteligente e conscienciosa perde o benefício
merecido. Assim, de todas as maneiras, o fluxo natural de energia dos
seres humanos, que na infância é adequadamente dirigido ao
desenvolvimento da inteligência e do caráter, é interrompido e
subvertido: o objetivo do estudo deixa de ser aprender coisas que são
verdadeiras em si mesmas e desenvolver independência por meio desse
conhecimento e passa a ser agradar e seguir uma autoridade arbitrária.

O fato concreto de que as escolas públicas americanas estão sob controle


político não é reconhecido. As escolas começaram como organizações
completamente separadas, com distritos que não tinham nenhuma
ligação um com outro nem com qualquer agência política e podiam
cobrar um imposto separado que não poderia ser gasto para nenhuma
outra finalidade exceto a escola local. Por causa disso, ninguém percebeu
que o campo primário de liberdade havia sido invadido no máximo
alcance possível. Não pode haver maior extensão de poder arbitrário que
tomar as crianças de seus pais, ensiná-las o que a autoridade decretar que
deva ser ensinado e expropriar dos pais o dinheiro para pagar pelo

5
Amos Bronson Alcott (1799 – 1888): professor, escritor e filósofo reformista
americano. (N. do T.)

- 236 -
XXI. Nosso Sistema Educacional Niponizado

processo. Se este princípio ainda não foi realmente entendido,


imaginemos o que pensaria um pai que possui determinada fé religiosa,
se seus filhos fossem tomados dele à força e se ensinasse a eles um credo
oposto. Esse pai não reconheceria uma tirania evidente? Mas as pessoas
argumentam que a religião não é de forma alguma ensinada nas escolas.
Isso não modifica o princípio envolvido; embora tenha obscurecido a
questão no início. A maioria dos pais estava disposta a pagar um imposto
para a educação, e feliz por mandar seus filhos à escola. Tentaram
manter o ensino estritamente laico. Além disso, quando os distritos
educacionais eram pequenos e o conselho escolar composto por
moradores locais conhecidos por todos, não era difícil para os pais saber
o que estava sendo ensinado; e ter suas opiniões consultadas sobre a
contratação ou manutenção de professores e a escolha de livros
didáticos. A natureza intrínseca do poder delegado era tão sutil que isso
era chamado de “free education”6, a mais completa contradição dos fatos
com a terminologia de que a linguagem é capaz. Tudo nessas escolas é
obrigatório, e não livre. A verdadeira natureza da instituição se
desenvolveu de maneira tão completa de acordo com seus próprios
princípios ao longo do tempo que hoje os pais ficam impotentes quando
o conselho escolar admite que uma pequena parcela de professores é
mentalmente desequilibrada. Os pais ainda são obrigados a entregar seus
filhos ao poder desses professores, sob pena de multa. Os professores
possuem “estabilidade”. Não podem ser exonerados.

Um dos primeiros “casos” pelos quais a “estabilidade” passou a parecer


razoável para professores indica a total confusão de pensamento sobre o
assunto, originada da incapacidade de se perceber o poder político em
operação. Uma professora da Califórnia, de excelente caráter e
competência para ensinar, foi demitida sem motivo por um conselho
escolar corrupto. O caso foi levado ao tribunal. A professora foi
reintegrada, com base no fato inequívoco de que ela tinha um contrato
para o período e não o havia descumprido. Isso foi considerado razão
suficiente para se estabelecerem medidas pelas quais um professor deve
ser considerado contratado por tempo indeterminado, pois esse é o único
significado de “estabilidade”. Porém, isso não tem absolutamente nada a
ver com a questão original (cumprimento de um contrato) e anula o
direito contratual do empregador. Ou seja, porque a professora sofreu
uma injustiça para a qual a lei era competente para corrigir e corrigiu, foi
proposto e colocado em prática que os pais devem sofrer a mesma
injustiça, sem possibilidade de correção.

6
Free education: no contexto, significa “educação gratuita”, mas literalmente, seria
“educação livre”.

- 237 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Também o famoso caso Scopes7, o “julgamento do macaco” em Dayton,


Tennessee, foi discutido com igual calor e ignorância pelos dois lados. O
Estado aprovou uma lei proibindo que os professores das escolas
públicas lecionassem a teoria darwinista da evolução, ou seriam punidos.
Um professor infringiu a lei e foi processado. É evidente que a lei era
absolutamente imprópria; mas foi atacada com o argumento de que a
teoria darwinista da evolução é verdadeira e que os cidadãos do
Tennessee seriam caipiras desinformados.

Mas o que aconteceria se a evolução darwinista estivesse sendo ensinada


normalmente nas escolas públicas do Tennessee e um pai tentasse deixar
de pagar seu imposto de educação e se recusasse a mandar seus filhos
para a escola por não querer que essa teoria fosse ensinada a eles?
Quantos dos ardentes defensores do sr. Scopes teriam defendido esse
pai? Tenho certeza de que nenhum. Tudo o que eles queriam era que o
Estado determinasse que sua própria doutrina científica específica devia
ser ensinada, em vez de outro credo heterodoxo. Não estavam
absolutamente preocupados com a liberdade de pensamento, expressão
ou crença. Não tinham a concepção de direitos pessoais ou autoridade
justa. Não perguntaram se um professor poderia ter uma prerrogativa
moral peculiar de ensinar a seus alunos algo que os pais não quisessem
que fosse ensinado.

Em resumo, não questionaram o controle político da educação; apenas


quiseram usá-lo eles mesmos. Não questionaram se esse controle
político não é, por natureza, fadado a legislar contra as afirmações dos
fatos e das opiniões no longo prazo, ao definir o currículo escolar. O
conhecimento científico mais exato e demonstrável será certamente
contestado pela autoridade política em algum ponto, porque exporá a
insensatez dessa autoridade e seus efeitos viciosos. Ninguém pode
demonstrar o absurdo sem sentido do “materialismo dialético” na
Rússia, fazendo um exame lógico. Ninguém pode discutir biologia
imparcialmente na Alemanha. E, se a autoridade política é considerada
competente para controlar a educação, será esse o resultado em qualquer
país.

7
O Estado de Tennessee v. John Thomas Scopes (1925): famoso processo legal pelo
qual o professor substituto John Scopes foi acusado de violar o Butler Act, do estado
de Tennessee, que havia tornado ilegal o ensino da evolução humana em qualquer
escola pública. Scopes não tinha certeza se de fato havia dado aulas sobre esse
assunto, mas se incriminou de propósito para que o processo tivesse um réu. Scopes
foi condenado a uma multa de 100 dólares, mas o veredito foi anulado por uma
questão técnica. (N. do T.)

- 238 -
XXI. Nosso Sistema Educacional Niponizado

Textos educacionais são necessariamente seletivos, no assunto, na


linguagem e no ponto de vista. Onde o ensino é realizado por escolas
privadas, haverá uma variação considerável entre as diferentes escolas;
os pais devem julgar o que querem que seus filhos aprendam, pelo
currículo oferecido. Então, cada uma deve se empenhar pela verdade
objetiva; e, uma vez que não há autoridade pública para controlar a
opinião, os adultos devem exercer o julgamento final sobre o que
aprenderam na escola, depois de formados. Em nenhum lugar, haverá
qualquer tentativa de forçar que se ensine a “supremacia do estado”
como uma filosofia obrigatória. Mas todo sistema educacional
controlado politicamente vai inculcar a doutrina de supremacia do estado
mais cedo ou mais tarde, ou como direito divino dos reis, ou como
“vontade do povo” na “democracia”. Uma vez que essa doutrina tenha
sido aceita, torna-se uma tarefa quase sobre-humana quebrar a força
repressora do poder político sobre a vida do cidadão. Seu corpo, sua
propriedade e sua mente estarão nas garras do estado desde a infância. É
mais fácil um polvo soltar sua presa.

Um sistema educacional obrigatório sustentado por impostos é o modelo


completo do estado totalitário.

O alcance do poder exercido e suas implicações finais ainda não foram


reconhecidos nos Estados Unidos, porque é permitido aos pais enviar
seus filhos para escolas privadas ou educá-los em casa — embora, em
todos os casos, eles tenham de pagar o imposto educacional. Mas,
quando essa permissão é concedida e o padrão educacional é
determinado, ela é revogável; não é mais um direito, mas uma
permissão. Na Rússia e na Alemanha isso não é mais permitido.

Sem dúvida as boas pessoas perguntarão, em inocente perplexidade e


com memória curta, como as crianças poderão ser educadas se não
existirem escolas públicas obrigatórias sustentadas por impostos? A
resposta é: pelas escolas privadas. Qualquer um que quisesse poderia
abrir uma escola, para a qual os pais poderiam mandar seus filhos em
troca do pagamento das mensalidades necessárias, que naturalmente
variariam muito. A educação primária poderia ser dada em casa, como
era comum nos Estados Unidos até cinqüenta anos atrás8; a maioria das
crianças já sabia ler, escrever e fazer somas simples antes de entrar na
escola. O padrão de educação na Nova Inglaterra era muito mais alto há
cento e cinqüenta anos do que o que temos hoje. Noventa por cento do
conhecimento útil que uma pessoa média possui é certamente adquirido
fora da escola. Quem ensinou a população dos Estados Unidos a dirigir

8
Por volta de 1890. (N. do T.)

- 239 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

automóveis? Isso não foi feito na escola, nem poderia ser. A habilidade
prática pela qual o homem médio ganha a vida não é aprendida na
escola. Não existe razão para supor que as crianças não seriam
ensinadas. Antes da Guerra Civil, alguns estados do sul aprovaram leis
tornando crime ensinar um escravo a ler e escrever. Isso significa que o
desejo de aprender e a disposição de propagar o conhecimento são tão
espontâneos e universais que só podem ser impedidos por punições
legais, mesmo que o abismo social seja o que existe entre senhor e
escravo.

Mas algumas crianças não permaneceriam analfabetas? Sim, como


ocorre hoje e como ocorreu no passado. Os Estados Unidos tiveram um
presidente que não aprendeu a ler e escrever até tornar-se adulto, mas
casou-se e ganhava seu sustento. A verdade é que, em um país livre,
qualquer pessoa que permaneça analfabeta poderia ser deixada assim;
embora a simples alfabetização não seja em si uma educação suficiente,
mas a chave elementar para uma parte indispensável da educação na
civilização. Mas essa educação adicional na civilização não pode ser
obtida, de forma alguma, sob o total controle político das escolas. É
possível apenas em determinado padrão mental, no qual o conhecimento
é procurado voluntariamente. Isso é verdade até mesmo na educação
técnica, na qual se presume que exatamente a mesma tecnologia seja
ensinada. Um famoso geólogo, que estudou campos de petróleo em todo
o mundo, surpreendeu-se com o fato de que “somente os americanos
encontram petróleo”9 tanto dentro como fora de seu país. Ele se
perguntou: “Por que isso acontece?” Conheceu geólogos de habilidade
natural igualmente destacada e com equipamentos técnicos equivalentes
entre outras nacionalidades. E eles não encontravam petróleo mesmo que
estivessem pisando nele, por assim dizer. Foi forçado a concluir que “o
petróleo tem de ser procurado em primeiro lugar em nossa mente. O
lugar onde o petróleo realmente está, em última análise, é em nossa
cabeça.” Está no “estado mental da ordem social” — a mente livre. A
mente livre permaneceu existindo nos Estados Unidos, apesar da
intrusão constante do poder político no campo primário da liberdade na
educação, porque a escolha e o esforço pessoal continuaram sendo os
fatores governantes para se conseguir uma educação avançada, seja
clássica ou técnica. O estudante cujos pais não podiam facilmente
custear sua faculdade tinha de tomar a séria decisão de fazer o esforço
por si mesmo e buscar os estudos que escolheu por sua própria iniciativa.
E quando terminava a escola, tinha de correr os riscos de ganhar a vida
da melhor maneira que pudesse, provavelmente adquirindo uma
experiência variada e usando tanto as mãos como a cabeça, sem uma

9
PRATT, Wallace E. Oil in the Earth. University of Kansas Press. (N. da A.)

- 240 -
XXI. Nosso Sistema Educacional Niponizado

distinção de classe irrevogável para separar sua inteligência especulativa


da aplicação prática.

Isso também pode mudar completamente em pouco tempo. O passo final


no sentido de tornar a educação americana completamente japonesa já
foi proposto. É escolher os alunos mais promissores nas escolas
públicas, pagar seu curso nas diversas faculdades ou universidades com
fundos federais e direcioná-los para cargos militares e burocráticos.

Os alemães são notavelmente instruídos; e têm excelentes escolas


técnicas. Sua instrução permitiu que eles lessem Mein Kampf e sua
tecnologia permitiu que construíssem uma máquina de guerra que vai
destruí-los. É isso o que faz a educação controlada pelo poder político,
depois que esse controle se torna completo. Desvia a energia humana
para o beco sem saída dos canais políticos.

Podemos esperar um ressentimento rancoroso extremo dos profissionais


da educação como resposta a qualquer sugestão de que eles devam ser
desalojados de sua posição ditatorial. Isso será expresso principalmente
em epítetos, como “reacionário”, o mais suave de todos. Contudo, a
pergunta a ser feita a qualquer professor nesse estado de indignação é:
“Você acha que ninguém voluntariamente confiaria seus filhos a você e
o pagaria para ensiná-los? Por que você tem de extorquir sua
remuneração e convocar seus alunos à força?”

- 241 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 242 -
XXII. O Circuito de Energia em Tempos de
Guerra

A
guerra é uma demonstração em grande escala da natureza do
governo como mecanismo e de sua relação com o fluxo de
energia. A principal razão pela qual o governo é identificado
com o poder é que a autorização e condução da guerra são prerrogativas
da agência política; mas, se essa impressão for examinada como uma
proposição da Física, descobriremos que a verdade é o contrário. O
governo é estrutura repressiva e mecanismo expropriante, pelos quais,
em tempos de paz, a energia dos cidadãos é protegida do canal guerreiro
e represada, para ser liberada — não originada ou criada — quando a
guerra começa. O poderio está antes da barragem. Não está no exército,
mas na nação, uma vez que consiste em um excedente de produção, tanto
em efetivo pessoal como em materiais. Um exército mobilizado é
subtraído da produção e só pode funcionar se houver um suprimento
contínuo fornecido pela vida civil da nação. É um produto acabado.
Assim, nações e impérios de longa duração são sempre aqueles de
caráter civil e sempre parecem estar despreparados para a guerra.

A ciência militar como tal considera apenas a ação do produto acabado e


fica desorientada quando os exércitos se tornam ineficazes. A força de
combate de uma nação é geralmente calculada em efetivos (pessoal) e
armamentos, incluindo instalações estacionárias de defesa. É a partir
desses cálculos que os projetos de conquista do mundo pela força das
armas são empreendidos; e embora fracassem sempre, não se percebe a
razão inerente porque fracassam.

Embora a produção seja a medida real do poder militar, uma estimativa


bruta ou total pode ser ainda mais fatalmente enganosa. A produção é o
fluxo de energia. Indica a força combatente disponível se a conexão
entre a ordem civil e o exército estiver correta; caso contrário, revela
apenas a extensão do desastre em potencial.

A relação correta depende do modo de conversão de energia em uso. Em


uma economia primitiva, a força disponível é uma porcentagem simples.
O produtor selvagem também é o combatente; é capaz de prover sua
própria subsistência e regula a si mesmo, igualando-se nele o impulso
beligerante e o controle. Não há organização externa ou comando. Isso
vale também para a sociedade pastoril nômade; os combatentes precisam
manter sua própria fonte de suprimentos e as linhas de suprimentos,
porque também são os produtores. Nos dois casos, é óbvio que a tribo

- 243 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

não pode dispor de seu efetivo em uma proporção além da reposição


natural, por um dado período de anos, sem uma derrota absoluta por
extinção.

Em comunidades agrícolas assentadas com uma cultura de artesanato,


algum grau de organização militar específica passa a ser viável. Mas o
tipo apropriado de organização é determinado pelo estágio de
desenvolvimento do comércio. A esse respeito, a República Romana era
uma economia mais avançada que o feudalismo estrito. A sociedade
feudal era uma economia agrária plenamente organizada; e o limite
estreito de sujeição ao serviço militar era determinado pela margem
estreita de excedente de produção. Exigia-se de uma senhoria feudal que
fornecesse apenas certo número de homens, que deveriam proteger o
campo por apenas poucas semanas no ano. Seria inútil exigir mais; a
economia não conseguiria equipá-los ou sustentá-los, com seu escasso
suprimento de alimentos e seus meios de transporte de alcance limitado.
Os combatentes, cavaleiros, escudeiros e cavalariços, não faziam muito
trabalho produtivo, de maneira que podiam facilmente ficar à disposição,
já que tinham de ser sustentados durante a paz da mesma maneira que
durante a guerra. Os produtores eram praticamente isentos do serviço
militar. Embora os combatentes feudais estivessem à disposição do
suserano ou do rei, e sob seu comando nominal na guerra, o controle real
era local; respondia aos suprimentos de seu local de origem. Assim, as
regras da guerra eram feitas em conformidade com isso. Em seus
recursos militares, a República Romana estava quinhentos anos à frente
do feudalismo; havia comércio e dinheiro suficientes para permitir um
comando centralizado e um raio de ação mais abrangente. Era possível
engajar uma grande porcentagem da força de trabalho; portanto, todo
cidadão fisicamente capaz estava sujeito a servir em caso de emergência.
O recrutamento continuava sendo viável porque o raio ainda era limitado
e também era coerente com o patria potestas1 na ordem moral.

Quando a receita nacional provém principalmente do comércio, como


era no Império Romano e no Império Britânico, o recrutamento militar
deixa de ser viável. O exército é um coeficiente do sistema comercial;
sua efetividade existe na proporção de sua mobilidade, velocidade,
disciplina e constante prontidão, e não de seu tamanho. Isso exige um
exército profissional, com um contingente mínimo sempre a serviço, em
vez de um máximo convocado por um período curto em ocasiões
especiais. O recrutamento militar foi abandonado, em Roma e na
Inglaterra, exatamente quando essas nações se tornaram impérios. O

1
Patria potestas: instituição romana pela qual o homem mais velho de uma casa tinha
completo controle sobre toda a família, até sua morte. (N. do T.)

- 244 -
XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

dinheiro é o meio de uma sociedade de contrato; e ele necessita de uma


relação compatível do exército com a nação.

As condições de funcionamento de um estado militar, organizado para a


“guerra total”, foram perfeitamente exemplificadas uma única vez na
história, e seus limites expostos, por Esparta. A produção era extorquida
dos escravos, que mantinham a economia no mais baixo nível de
subsistência. Todos os cidadãos do sexo masculino (não-escravos) eram
soldados; mas não podiam ir lutar longe de casa, sem possuir recursos
auxiliares — comércio, dinheiro, transportes. O modelo espartano era
perfeito em sua categoria terrível. Sobreviveu por um período
considerável em uma condição estática; mas, quando tentou se expandir,
— sendo abastecido pelos estados mercantis gregos para poder combater
em um raio ampliado — se desmantelou. Nenhum estado desse tipo
consegue se beneficiar da conquista de uma nação de produção superior;
será arruinado pela vitória se não for pela derrota. Qualquer estado
militar que tente usar uma economia de máquinas sofrerá uma dissolução
ainda mais rápida.

A teoria militar carece de sentido porque trabalha com a conduta dos


exércitos existentes, sem levar em consideração a ordem civil de onde
foram tirados. Mesmo que a estratégia, as táticas e a tecnologia sejam
idênticas em teoria, um exército profissional, um exército mercenário e
um exército cidadão lutam por princípios diferentes, de acordo com sua
relação com a ordem civil.

O exército profissional, embora sinceramente leal a seu próprio país, tem


de lutar por sua própria conservação como exército, tanto quanto pela
vitória imediata. O objetivo intermitente é uma vitória em particular; o
objetivo específico é vencer uma guerra; mas o objetivo constante é
manter o exército existindo indefinidamente. Isso não significa que
faltará coragem aos soldados em qualquer momento; ao contrário, sua
determinação não deve falhar nunca e qualquer parte do exército pode
ser obrigada a resistir a um ataque a qualquer momento, com custos
extremos para o destacamento. A condição mais desmoralizante para um
exército profissional é ser envolvido ou usado, ou acreditar que está
sendo usado, por facções internas de seu próprio país. Um exército
profissional é um instrumento da autoridade constituída: sua conexão de
energia é com a linha central ou tronco; seu interesse normal é o do país
inteiro, por meio do governo; e o interesse privado dos soldados fica
confinado à sua profissão. Quando é usado por uma parte da nação
contra outra parte da nação, acontece um curto-circuito; assim, mesmo o
emprego do exército para tarefas extraordinárias de polícia é um
expediente duvidoso.

- 245 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Um exército mercenário luta por suas próprias mãos; seu interesse é na


extorsão e só pode ser avaliado como uma série de objetivos
imediatistas. Quando exércitos estritamente mercenários existiam,
estavam abertos a ofertas de qualquer lado e não estavam dispostos a
lutar mais do que o que compensasse. Geralmente, eram tão perigosos
para seus empregadores quanto para o inimigo. É muito difícil
desmoralizá-los além de sua condição ordinária; quando existiam, isso
indicava a falta de uma ordem civil normal nas nações que os
empregavam. Eram o resultado de uma economia comercial que não
tinha estrutura política adequada, onde faltavam bases regionais.

Um exército cidadão luta pelo interesse dos soldados enquanto cidadãos,


tendo em mente as conseqüências da guerra real em que estão engajados.
O incentivo mais positivo para um exército cidadão lutar é o desejo de ir
para casa; mas isso significa que o soldado deve esperar encontrar em
casa o objetivo pelo qual está lutando. O interesse do soldado cidadão é
o do produtor, um homem que deixou seu emprego e propriedade. A
condição mais desmoralizante para um exército cidadão é o
conhecimento ou suspeita de que os direitos dos soldados individuais
como cidadãos estão sendo prejudicados a pretexto da guerra. O exército
cidadão luta por uma causa definida, que se acredita que seja atingível
pela guerra; e se a causa desaparece, o exército se dissolve. O soldado
cidadão é sustentado pela energia da linha de produção privada de sua
vida civil, que é temporariamente desconectada e ligada à estrutura
militar; a linha civil carrega a carga. Se o circuito de energia civil for
rompido, a carga não poderá ser mantida. Daí vem o fato, registrado em
toda a história, de que é sempre o maior exército que uma nação
consegue reunir que subitamente se desfaz. Ele luta com uma energia
incomparável enquanto lutar; e se desintegra completamente quanto se
acaba, como ocorreu com os exércitos de Napoleão, do Czar, e da
Alemanha ao fim da Primeira Guerra Mundial.

A fraqueza da teoria puramente militar fica evidente quando aplicada a


qualquer guerra passada. Pelas regras formais, a Revolução Americana
deveria ter fracassado antes de começar, e uma dúzia de vezes depois
que começou. Confrontados com essas impossibilidades técnicas, os
teóricos ficam furiosos e especulam sobre o que teria acontecido se
Washington tivesse recebido um apoio mais adequado do Congresso; se
os dois lados tivessem recorrido ao recrutamento militar; e assim por
diante — considerando que, se os americanos ou os ingleses se
sujeitassem ao recrutamento militar naquele momento, não poderia ter
havido Guerra Revolucionária nenhuma; nem haveria tal guerra se um
Congresso com autoridade federal definida já existisse previamente,

- 246 -
XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

porque esse governo necessariamente pertenceria a uma nação já


independente. Outra vez, teóricos sugerem que a Guerra Civil poderia ter
sido vencida pelo governo federal na primeira campanha se houvesse um
exército permanente suficiente. Mas as forças confederadas eram
comandadas por um soldado que renunciou ao seu comissionamento
federal por causa da secessão; um grande exército permanente teria sido
dividido em obediência a ele. As guerras têm de ser lutadas quaisquer
que sejam as condições presentes na ocasião. Elas se originam dessas
condições. Mas, em toda e qualquer circunstância, a condição
indispensável para a vitória final é que os produtores mantenham o
controle do sistema de produção, de maneira que apenas o produto
acabado possa ser tomado para fins militares.

O motivo pelo qual essa condição não é entendida é que, ao avaliar a


efetividade militar, não se considera o fator tempo; não se diferenciam os
resultados de curto prazo e os de longo prazo. Napoleão é considerado
um mestre na arte da guerra porque venceu numerosas batalhas e
conquistou um vasto território em um período de menos de vinte anos;
mas, ao final, a nação que comandava estava exaurida e ocupada por
seus inimigos. Ele tinha o controle de todos os recursos da nação. Desde
sua época, a França declinou continuamente em poder militar, enquanto
manteve fielmente o sistema usado por Napoleão. Como essa seqüência
específica aconteceu — uma explosão de energia avassaladora seguida
por um longo declínio? Napoleão não apenas esvaziou o reservatório de
energia excedente, mas deixou aberta a comporta, com o recrutamento
militar geral em tempos de paz, de maneira que o pleno poderio nunca
mais pôde se formar. Depois disso, a Alemanha seguiu o mesmo
caminho, com os mesmos fenômenos resultantes, até o mesmo fim, num
ritmo levemente acelerado. A França foi unificada por Luís XIV, que
obteve numerosas vitórias e conquistou a Europa, para terminar
derrotado; a bancarrota e o colapso se seguiram rapidamente; o processo
foi repetido com a Revolução e o regime de Napoleão. Bismarck
“unificou” os principados alemães e obteve vitórias; a Alemanha
conquistou a Europa em 1914, foi derrotada, entrou em colapso; e
repetiu o processo na guerra mundial atual. Esses “homens de poder” são
na realidade meros destroços de naufrágio, resíduos flutuando em uma
enchente, ilustres por sua falta de capacidade produtiva e de
responsabilidade.

A miséria generalizada é fatalmente o resultado se um exército é


abastecido por uma fonte — seja interna ou externa — sobre a qual os
produtores não têm controle. É uma possibilidade recorrente; acontece
quando a energia cinética minou as bases políticas. Causa guerras do tipo
mais terrível, nas quais ninguém é capaz de fazer a paz. A Guerra dos

- 247 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

Cem Anos2, as Guerras das Rosas3 e a Guerra dos Trinta Anos4 foram
desse tipo. A perda de controle é mais evidente na Guerra dos Trinta
Anos. A autoridade do Sacro Imperador Romano-Germânico era
nominalmente válida para recrutar um exército; mas as receitas diretas
do imperador eram inadequadas para sustentar grandes forças em campo,
por qualquer período de tempo. O imperador, portanto autorizou um
soldado aristocrático de posses, o Conde Wallestein5, a recrutar soldados
e sustentá-los por pilhagem ou tributos forçados. Outros soberanos, por
seus próprios objetivos, contribuíam com Wallenstein com subsídios em
dinheiro de tempos em tempos. Como resultado, não havia controle
efetivo sobre o exército de Wallenstein; o imperador não podia
desmobilizá-lo quando quisesse; os soldados vagavam como bandos de
lobos, devastando o país e cometendo atrocidades horripilantes. Quando
veio a paz, foi a paz da desolação, com o exército desmobilizado pela
fome e a zona rural quase despovoada. Foi praticamente o fim do Sacro
Império Romano-Germânico. E o efeito teria sido exatamente o mesmo
se o Imperador estivesse em posição de tomar todos os recursos de seus
súditos para uso militar; nos dois casos, a situação é que a agência
militar não está sob controle do elemento produtivo. A Europa,
atualmente, está em uma guerra do mesmo tipo. Os governos tomaram o
controle de todos os recursos de suas nações. Todos os exércitos estão
lutando sustentados pelo retorno decrescente de seus recursos de capital
e alguns subsídios da América. Não têm como esperar voltar à vida civil
porque não existe vida civil; também não são soldados profissionais;
portanto, lutam sem objetivo. O problema obscuro é escondido pelo
problema aparente; o problema obscuro é que não há controle sobre os
exércitos. (Quando um automóvel não pode ser parado pelas pessoas que
estão dentro dele, está fora de controle.) Os comandantes nominais dos
exércitos da Europa não ousam deixá-los ir para casa. Os exércitos são
porções imensas de massa deslocada colidindo uns contra os outros pela
energia cinética; e os soldados foram isolados tanto do passado como do

2
Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453): guerra entre a Inglaterra e a França, que
terminou com a derrota da Inglaterra. (N. do T.)
3
Guerras das Rosas (1455 – 1487): série de guerras dinásticas pelo trono da Inglaterra,
entre a Casa de Lancaster e a Casa de York. As guerras terminaram com a vitória de
Henrique Tudor, da Casa de Lancaster, contra Ricardo III, da Casa de York. Ele foi
coroado como Henrique VII e casou-se com Elizabeth de York, filha de Eduardo IV,
unindo as duas Casas. (N. do T.)
4
Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648): um dos maiores conflitos da história da
Europa, lutado entre estados católicos e protestantes. (N. do T.)
5
Conde Albrecht Wensel Eusebius Von Wallenstein (1583 – 1634): líder militar da
Boêmia, ofereceu seu exército de mais de 30.000 homens ao Sacro Imperador
Romano-Germânico Fernando II e tornou-se o supremo comandante dos exércitos da
Monarquia de Habsburgo. Foi destituído pelo Imperador e pensou em se aliar aos
protestantes, mas foi assassinado antes disso. (N. do T.)

- 248 -
XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

futuro, porque o circuito de produção da Europa foi rompido e destruído.


Para nações nessa situação, nem mesmo o fim dos combates pode trazer
alívio, porque os governos não podem desmobilizar esses exércitos
monstruosos em nenhum caso. Eles permanecerão em pé-de-guerra. O
fato é reconhecido, já que a única solução proposta é um “armistício”
por tempo indeterminado sob exércitos de ocupação.

A produção mecanizada não pode ser desenvolvida ou sustentada em


nenhuma economia planejada, mesmo em tempo de paz, porque o
gerador funciona em um circuito de energia muito longo, no qual as
conexões são feitas pelo livre comércio. A primeira carga de qualquer
circuito de energia é a manutenção e a reposição ao longo do circuito
inteiro. Isso é óbvio em um circuito local de energia, no qual é um
problema evidente do produtor conseguir comida, roupas e abrigo a
partir de sua produção; mesmo que seja usado trabalho escravo, o senhor
mais brutal não pode enganar a si mesmo acreditando que um escravo
pode continuar trabalhando se sua ração for inadequada para sustentar a
vida. Mas o longo circuito é uma economia financeira; e, aparentemente,
muitos homens imaginam que podem subtrair mais e mais energia da
linha de transmissão de dinheiro sem conseqüências para a continuidade
do fluxo.

O estado militar é a forma final para a qual toda economia planejada


tende rapidamente. Mas a força militar consiste em energia extraída da
produção, sem dar retorno. Então, se o nível de produção geral é
diminuído, o poderio militar deve ser prejudicado de maneira
correspondente. A energia que flui pelos canais da vida civil privada é
auto-sustentável, auto incrementável e auto renovável. A energia que flui
pelo canal militar é totalmente gasta; não produz nada, nem mesmo a
manutenção de suas linhas de transmissão. Um exército pode
ocasionalmente tomar suprimentos do inimigo, em pilhagem ou
indenizações, mas esses recursos são rapidamente consumidos.

Portanto, a efetividade militar de longo prazo, a sobrevivência de uma


nação através dos riscos recorrentes de guerra, geração após geração — e
é isso que uma nação tem de conseguir se quiser sobreviver — depende,
de maneira absoluta, da preservação dos recursos de capital, usando
apenas o excedente para fins militares como produto acabado. É
duvidoso se existe alguma hipótese em que o capital possa ser
consumido de maneira segura; não podemos confiar na aparência
superficial, porque descobriremos, examinando o registro histórico, que
nações de longa sobrevivência jamais permitiram que seu capital fosse
comprometido, nem mesmo em seus maiores esforços militares. O que
fizeram de fato foi aumentar a produção geral. Ao final das guerras

- 249 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

napoleônicas, estima-se que a Grã-Bretanha tinha uma produção geral


cinqüenta por cento superior à do início dos conflitos. Napoleão tentou
embargar a Europa, enquanto os britânicos comerciavam com todos que
desejassem, incluindo os próprios franceses. Na Guerra Civil Americana,
o Norte certamente aumentou sua produção geral; enquanto o Sul, de
maneira insana, começou a guerra declarando um embargo de seu
próprio algodão, paralisando assim o seu crédito no exterior.

A teoria atual de que “sacrifícios” vencerão a guerra é o extremo da


irracionalidade. Quando um caminhão é necessário, não é possível
dirigir um sacrifício. O objeto tem de ser fabricado, e só pode ser
fabricado no circuito completo, com homens livres usando a propriedade
privada livremente. Se a guerra toma mais que o excedente de produção
por um dado período de tempo, mesmo uma série ininterrupta de vitórias
levará a nação cada vez mais perto da derrota irremediável, pela
cessação completa de suprimentos.

O erro de uma nação que faz guerra gastando seu capital, pensando em
vencer antes que as reservas se esgotem, é que ela assumiu um gasto
incalculável sustentado por uma quantidade limitada. Cortou a
alimentação e está funcionando a bateria; mas a energia em uma bateria
é uma quantidade fixa, enquanto o tempo futuro que uma guerra vai
durar e o consumo de energia resultante que será exigido ao longo do
tempo jamais podem ser conhecidos previamente. A única certeza é
que a relação que essas conjecturas ignoram — o fato de que se o capital
está sendo exaurido; mais energia é tirada do circuito que o excedente
provê — é uma fórmula para a derrota; a nação ficará cada vez mais
fraca. Se a força militar não é mais que o que o excedente de energia
provê, é pelo menos uma potência permanente, estendendo-se ao infinito
e pode, portanto, manter-se esperando a vitória final por um período
indeterminado.

O tempo está ao lado da nação que aumenta sua produção geral. O tempo
é neutro para a nação que mantém a produção geral em seu nível
anterior. O tempo é mortal para a nação que luta com seus recursos de
capital.

Conseqüentemente, com um sistema de alta energia, a única coisa que


torna a vitória final impossível é a organização da nação inteira como um
estabelecimento militar, tirando recursos da produção. A manufatura de
material bélico não constitui um circuito de produção; é apenas produto
acabado. Em pouco tempo, uma organização militar desse tipo entrará
em conflito consigo mesma internamente, discutindo de onde a energia
deve ser expropriada do pessoal e dos materiais existentes quando ela

- 250 -
XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

assume o poder. O “problema obscuro” foi completamente ignorado; e o


“problema aparente” se separa em uma dúzia de falsos problemas. Isso
só pode ser entendido se o problema obscuro for definido, a necessidade
militar real.6

O problema militar real de uma nação é encontrar de onde a energia


para a guerra pode ser tirada do circuito para se obter a máxima
força sustentável de combate na aplicação final. O gerador funciona
em um sistema muito longo e complexo de linhas de transmissão, das
fontes de matéria-prima aos pontos focais, tributários, alimentando
linhas tronco, para que haja uma redistribuição em produtos-acabados. A
energia se eleva gradativamente por toda a linha.

E não é simplesmente uma progressão geométrica, um múltiplo do


efetivo pessoal, ao final; é um poder transcendente.

Para a conveniência de expressar o problema real, vamos assumir que


cem homens7 na produção geral produzem o suficiente para sua própria
subsistência e, além disso, um excedente suficiente para sustentar outros
cem homens com maquinário, materiais e tudo o que é necessário para
produzir um avião de máxima velocidade e raio de ação, equipado com o
máximo de armamento; e para manter esse avião no ar durante seu
tempo efetivo de uso. Assim, há duzentos homens inteiramente ocupados
tanto no circuito principal de produção como no circuito de produção
final, ao fim do qual um avião é disponibilizado para uso militar. Mas,
uma vez que o avião foi montado, equipado e posto em operação, todos
os homens ocupados no processo, com a matéria-prima que usaram,
ficariam completamente indefesos contra a arma que criaram, com sua
pequena tripulação treinada. A máquina que produziram não é
simplesmente um múltiplo de seu poder natural; ela transcende o poder
que foi usado para criá-la. Toda a efetividade militar da guerra moderna
foi colocada naquele avião, porque se trabalhou no longo circuito de
energia de alto potencial.

6
A distinção entre um “problema aparente”, ou seja, um sintoma ou efeito superficial
enganoso, e o “problema obscuro” real, que é a verdadeira causa, foi feita por Charles
F. Kettering. (N. da A.)
7
A subsistência das pessoas que trabalham na produção tem de incluir a subsistência
de todos de alguma maneira envolvidos por toda a economia, com suas famílias ou
outros dependentes. Mas a subsistência para a alta produção também significa a
manutenção, reposição e melhoria dos bens de capital da nação — maquinário,
edificações, equipamento agrícola, gado e suprimentos de reserva de todos os tipos,
suplementares ao sistema. (N. da A.)

- 251 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

A máxima força combatente sustentável por um sistema de alta energia,


uma economia livre usando suas próprias armas, é infinitamente
superior à simples soma ou mesmo a um múltiplo do efetivo pessoal de
uma nação. Se os duzentos homens envolvidos no processo completo do
qual o avião é um produto final fossem tirados da linha de produção e
mandados para o front, a força de duzentos homens não seria somada ao
exército. Ao contrário, a força combatente que eles forneceriam seria
completamente perdida.

Assim, a razão ou porcentagem de homens úteis no exército de uma


nação de alta energia, para se obter a máxima força combatente
sustentável, é muito menor, na proporção do simples efetivo pessoal da
nação, do que seria com um sistema de energia inferior. Quanto mais
alto o potencial de energia usado no sistema de produção, menor deve
ser o exército proporcionalmente ao simples efetivo pessoal da nação.
Se são necessários duzentos homens para produzir o poder transcendente
que dez homens usam na aplicação final na linha de combate, então
apenas cinco por cento do efetivo pessoal da nação podem ser eficazes
nas forças armadas. Usar mais que essa porcentagem é enfraquecer a
força combatente na razão inversa.8

Mas é isso o que faz o recrutamento militar, absorvendo o simples


efetivo pessoal em vastas quantidades, o que significa expropriar energia
da nação exatamente no nível em que isso é ineficaz para a guerra, e
desperdiçá-la numa extensão incalculável. A teoria de “guerra total”, que
significa recrutamento militar geral e uma “economia planejada”, com
toda a força de trabalho da nação submetida a restrições e proibições,
presa a empregos designados ou deslocada arbitrariamente, corta a linha
de produção na origem. O poder transcendente da produção geral só
pode ser obtido por homens livres que escolhem seus empregos por sua

8
Não estou querendo dizer que aviões sozinhos constituem uma força militar eficaz
para uma nação de alta energia. O gerador é o produto e o meio de produção da
economia capitalista de livre iniciativa e propriedade privada. Ele torna possível o mais
alto potencial e fluxo de energia conhecidos. Conseqüentemente, permitiu a invenção
de encouraçados, tanques, artilharia, bombas, aviões — de força, velocidade e alcance
inéditos. Condições e circunstâncias variáveis determinam a combinação, proporção e
relação dominante ou auxiliar mais efetiva dessas diferentes formas de armamento,
com o concomitante efetivo militar. Essa questão pertence necessariamente às
autoridades políticas e militares. Elas não serão infalíveis, mas a autoridade tem de ser
confiada a elas, porque é o único lugar onde pode residir. O avião mencionado aqui é
o desenvolvimento mais recente do poder transcendente na guerra, mas não exclui o
uso de outras armas. Assim, posso dizer apenas que o avião é indicado como
particularmente adaptado, por sua velocidade, para proteger as linhas de um longo
circuito de energia. Também é o armamento de uma nação pacífica, já que, sozinho,
não é um meio de conquista, mas de defesa e retaliação adequada. (N. da A.)

- 252 -
XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

vontade própria, em troca do pagamento que esse trabalho trará,


qualquer que seja ele. O homem criativo deve encontrar o lugar e o
emprego onde possa funcionar; deve ter uma liberdade de escolha
contínua do que fará com sua capacidade, seu tempo e seus meios. Se
um homem é colocado em um trabalho forçado, tudo o que pode ser
obtido dele é sua força muscular. Se está preso a um emprego designado,
tudo o que pode ser obtido dele é o que a tarefa prescrita permite.
Quando trabalha conforme escolheu, encontrando para si o mercado para
seu talento, é absolutamente impossível prever em que extensão ele vai
aumentar a produção. Se Charles F. Kettering9 ou Thomas Alva Edison
ou Henry Ford tivessem sido obrigados a cavar trincheiras, seria possível
calcular aproximadamente quanta energia ou trabalho poderiam ser
extraídos deles. Deixados a seus próprios dispositivos, como aconteceu,
é impossível dizer quanta energia eles acabaram liberando na produção.
Da mesma maneira, o dinheiro que ganharam em salários ou lucros, que
deu a eles uma chance maior de experimentar o que tinham em mente e
que retornou à linha de produção por meio deles, tornou-se um poder
transcendente ou infinito; enquanto a mesma soma dividida em salários
diários pelo trabalho comum teria produzido apenas aquela soma em
energia. (Se tomada em impostos e paga a funcionários públicos, teria
apenas aumentado o peso morto.) Assim, a limitação proposta do salário
dos homens produtivos seria uma grave restrição à alta produção; se o
limite fosse suficientemente baixo, o efeito seria parar completamente a
alta produção.

Agora, esta possibilidade incalculável ou infinita, o poder transcendente,


é necessária de maneira ainda mais urgente na guerra que na paz; mas
não pode existir a menos que os homens sejam livres para procurar
seus próprios empregos, e tenham controle privado dos meios de
produção. Apenas quando a liberdade pessoal e a propriedade privada
são preservadas, a produção geral pode crescer em tempos de guerra,
com um aumento concomitante do excedente disponível para uso militar.

A lição é que a energia para uso militar deve ser tirada do circuito apenas
como produto acabado, para que se atinja a máxima força combatente
sustentável. Além disso, um homem não é nem um meio nem um
produto; sua competência em uma tecnologia avançada é desenvolvida
por ele mesmo; portanto, só pode se tornar disponível efetivamente por
sua própria vontade. É possível recrutar homens e ordenar que

9
Charles F. Kettering (1876 – 1958): inventor, engenheiro e empresário americano,
detentor de 186 patentes. Suas invenções mais utilizadas foram o motor elétrico de
partida e o aditivo para gasolina chumbo tetraetila. Também inventou o fréon, usado
em refrigeradores e aparelhos de ar condicionado. (N. do T.)

- 253 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

embarquem em aviões e pilotem? Não, isso é impossível. Um sistema de


alta produção fornece, na vida civil, a maior parte do treinamento para o
uso da tecnologia na guerra, da mesma maneira que cria as invenções, o
material, o maquinário e a organização para fabricar armamento
avançado, com o fluxo de energia que sustenta as forças militares; e
esses recursos devem ser usados nos mesmos termos em que são criados,
ou seja, por um efetivo voluntário, para que seja obtida a máxima força
de combate. O erro mais abrangente e fatal que pode ser cometido na
guerra é tirar a maior parte da energia da nação no nível de mão-de-obra
simples e em dinheiro para ser gasto no mesmo nível para a subsistência
de um exército massivo. Então, não sobra nada para ser extraído exceto
uma pilha de matérias-primas, o maquinário que já existia e que deve se
desgastar rapidamente, e um resto inadequado de pessoal de produção
que só pode continuar trabalhando nesses bens de capital depreciados
enquanto não se esgotarem. É o que a Europa fez.

Um sistema de produção não determina as relações morais da sociedade.


As relações morais criam o sistema de produção. Homens livres criaram
o dínamo; e ele não funciona exceto na sociedade de contrato, de
propriedade privada, de livre iniciativa. Um exército não está em uma
relação correta com a ordem civil a menos que seja organizado sobre os
mesmos princípios morais. Não é verdade que “ninguém vence uma
guerra”. Quando uma nação é atacada, embora o custo da guerra seja
uma perda, se conseguir preservar a si mesma e às suas instituições da
destruição, derrotando o inimigo, venceu a guerra. Uma economia livre
invariavelmente vence uma economia fechada ou de status ou um
“estado totalitário”. Mas tem de lutar como uma economia livre.

A destruição causada pelas nações ditatoriais da Europa na guerra atual


provocou uma impressão completamente enganosa do problema real de
guerrear utilizando o produto de um sistema de alta energia. Essas
nações ditatoriais se prepararam para a guerra carregando suas baterias
enquanto ainda estavam ligadas ao grande circuito mundial de energia,
criado e mantido pelas economias livres. A Rússia não contribuiu
criativamente em nada para esse sistema. Mas existem minas de ouro na
Rússia; e a Rússia exportou ouro, vendeu ações no exterior, e também
espremeu o que pôde de sua própria miserável economia de subsistência
— ao custo da fome efetiva de sua população — para trocar por
maquinário e contratar técnicos das economias livres. A Alemanha
herdou uma tecnologia avançada, técnicos treinados, maquinário e uma
organização industrial de sua condição anterior de comparativa
liberdade. A Alemanha também usou todos os dispositivos fraudulentos
de inflação da moeda, empréstimos elevados do exterior e crédito
estrangeiro — desfalques deliberados durante vinte anos — para obter os

- 254 -
XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

bens produzidos pelas economias livres. O Japão vendeu ações no


exterior para comprar armamento.10 Confiando nessas baterias
carregadas, a Rússia, a Alemanha e o Japão mergulharam na guerra, e
conseguiram pilhar mais alguns suprimentos. Estão consumindo as
reservas da Europa na luta, produzidas pela economia livre anterior, e o
produto do circuito de energia americano. Viajando pelo mundo nas duas
direções, a energia da América encontrou-se consigo mesma em
Stalingrado, num curto-circuito. A energia americana ainda abastece a
Rússia e é sua única força efetiva. Em menor quantidade, a energia
americana também chegou à China, para encontrar a energia americana
fornecida anteriormente ao Japão. A energia americana literalmente
explodiu o mundo civilizado, porque foi jogada nos canais políticos da
Alemanha, da Rússia e do Japão.

A relação histórica da Rússia com a Europa permanece, na guerra atual,


a mesma que tem sido nos últimos trezentos anos. Na vida de uma
nação, a descentralização é a fórmula da longevidade; mas isso pode
acontecer por planejamento, com uma estrutura política sólida, ou por
acaso, pela ausência total de estrutura. Dadas certas condições, nações de
grande expansão podem existir de maneira continuada por inércia. Isso é
verdade na China e na Rússia. Ambas consistem em vastas planícies,
isoladas das nações adjacentes por barreiras naturais de montanhas,
desertos, pântanos, lagos e geleiras. Ficam no final das rotas comerciais
do velho mundo. Nenhuma delas chegou a ter estrutura política. Apenas
a configuração física, a superfície plana, levou a população desses países
a se agregar em monarquias, como objetos móveis se juntam rolando em
uma tigela rasa. Suas economias são locais, com um comércio mínimo.
Até a ascensão da monarquia moscovita, a Rússia era um agrupamento
solto de comunidades inconstantes e desconectadas. As comunidades
rurais eram democracias puras. Nas comunas das velhas aldeias, “cada
questão devia ser decidida por unanimidade”; assim, os dissidentes eram
“espancados até abandonarem sua oposição”. (Essa é a contradição
inerente da teoria democrática.) A pressão de incursões bárbaras as
consolidou sob um despotismo. Mas o despotismo central deixava as
economias locais funcionarem de maneira autônoma, exceto pelos
impostos.

Quando uma nação com um sistema de energia superior invade uma


grande área que contém apenas economias rurais locais, encontra o
problema da dissipação da alta energia no espaço. Enquanto Napoleão

10
O falecido Dwight Morrow relatou complacentemente como tantas ações japonesas
foram vendidas em uma cidade da Califórnia! A energia transferida por essas ações
retornou como bombas em Pearl Harbor e Manila. (N. da A.)

- 255 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

conquistava a Europa, podia alimentar seu exército com o circuito de


energia das nações que ocupava, exigindo indenizações em dinheiro e
usando esse dinheiro para obter o que precisasse do sistema de produção
civil. Na Rússia, não havia como fazer isso. A população civil russa não
poderia abastecê-lo, mesmo que quisesse; não tinham os transportes
necessários, nem a organização geral. Portanto, o exército de Napoleão
avançou rapidamente até o limite de sua própria linha de suprimentos, e
então estacou, como uma bala disparada cai ao chão.

Na guerra atual, os alemães encontraram o mesmo problema de espaço e


não há como resolvê-lo. Não tinham como levar suprimentos para seus
exércitos avançarem indefinidamente, porque as necessidades de
transporte crescem em progressão geométrica; e não tinham como obter
suprimentos adequados dos territórios conquistados. Já foi dito, e é
verdade, que o fracasso do Plano Qüinqüenal de Stalin arruinou Hitler.
Da mesma maneira, o Japão invadiu a China com energia emprestada
das economias livres, mas não conseguiu obter suprimentos adequados
na China para sustentar seus exércitos mecanizados. Quando os
suprimentos dos Estados Unidos foram suspensos pelo embargo, o Japão
teve de escolher entre se retirar da China com prejuízo ou declarar guerra
às potências ocidentais para tomar as estações de suprimentos
fronteiriças do circuito de energia ocidental no Oriente, como os poços
de petróleo e refinarias da Holanda nas Índias Orientais. Por quanto
tempo o Japão vai conseguir manter seu equipamento militar de alta
energia, enquanto está isolado do circuito de produção ocidental, é uma
questão que só pode ser respondida com conhecimento específico de
suas necessidades de reposição e das matérias-primas pilhadas. No longo
prazo, o poder militar do Japão vai certamente entrar em colapso, assim
como o equipamento da Alemanha e da Rússia vão se desgastar e se
tornar inúteis se elas continuarem permanentemente sem contato com as
economias livres. Se a liberdade fosse extinta em todo o mundo, todo o
sistema de produção de alta energia se desmantelaria e pararia de
funcionar. Nenhum despotismo consegue manter de maneira
independente e indefinida uma economia de máquinas ou um exército
mecanizado. Mas, até que as baterias estejam completamente
descarregadas, um despotismo consegue causar danos gigantescos; e o
Japão está em posição de provocar essa destruição no Oriente e, até certo
ponto, no mundo ocidental com suas reservas atuais. Não é desprezível
enquanto durar. Contudo, toda a força de combate do Japão foi tirada
do Ocidente.

Então, se as economias livres interromperem seus próprios circuitos de


energia internamente, impondo o poder político sobre a produção, de
onde vão tirar a energia necessária para funcionarem e lutarem? Os

- 256 -
XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

Estados Unidos não podem emprestar, mendigar, copiar, fraudar ou


pilhar qualquer outra nação no mundo, seja pela paz, seja pela guerra.
Como pode então a América imitar as nações “totalitárias”? É
impossível. A liberdade para os americanos não é um luxo da paz, que
pode ser “sacrificado” em tempos de guerra. É uma necessidade em
qualquer tempo, mas acima de tudo na guerra; nessa situação, torna-se
uma questão imediata de vida ou morte.

- 257 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

- 258 -
XXIII. A Economia Dinâmica do Futuro

O
s selvagens primitivos sabem como fazer fogo por fricção.
Devem ter descoberto o processo há dezenas de milhares de
anos. Porém, até a metade do século 18, os cientistas debatiam se
o calor era ou não um elemento material (uma “substância
indestrutível”), embora já estivessem testando máquinas a vapor. Assim,
um princípio pode ser posto em prática muito antes de ser entendido ou
definido. Portanto, não é estranho que o fato óbvio de que um sistema de
alta produção funciona em um longo circuito de energia não tenha sido
percebido e que as leis gerais que governam sua criação e manutenção
não tenham sido formuladas. Mesmo a definição de energia atrapalhou o
entendimento das condições de seu uso estendido pelos seres humanos
para seu próprio benefício. A definição é confinada à medição por seus
efeitos; e nenhum projeto viável de um aparato mecânico pode ser
concebido exceto de acordo com essa medição. Contudo, isso obscurece
o problema principal da utilização da energia através de um sistema de
produção; porque o homem faz parte do circuito de energia que ele
mesmo utiliza e, assim, introduz um fator que não responde à medição.
Como o homem possui uma função tripla no circuito, sua intervenção é
triplamente confusa. Parte da energia é convertida e transmitida
literalmente por seu corpo físico, numa quantidade mensurável, como
por exemplo quando um homem empurra um carrinho de mão; mas, no
longo circuito, ou sistema de alta energia, essa parte é pequena
comparada com a quantidade convertida e usada por meio de materiais
inanimados. Outra função do homem no circuito de energia usa uma
quantidade de energia extremamente variável e praticamente não-
mensurável, no esforço intelectual de invenção ou descoberta de
dispositivos para absorver a energia universal; o retorno desse esforço é
incomensurável com qualquer estimativa possível da energia aplicada.
Então, entra em cena a terceira função do homem em seu circuito de
energia, causando ainda mais confusão de pensamento sobre o assunto.
O que o homem faz em sua terceira relação com o circuito de energia é
dirigir a energia que absorveu e controlou. O homem que empurra um
carrinho de mão o dirige pela mesma ação. Sua mente envia o comando
diretamente por meio de seus músculos junto com a força aplicada.
Existe um imponderável, mas ele não pode ser separado da força
ponderável direta. Quando a energia é dirigida no longo circuito, isso é
feito por ações nas quais a força gasta não é simplesmente
incomensurável com o resultado, mas absolutamente não entra na
seqüência física específica da transmissão.

- 259 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

É o que acontece quando se usa dinheiro, crédito ou outros acordos


contratuais. Existe uma seqüência real, material, ininterrupta de energia
física transportada pelo longo circuito de produção, que é visível e
facilmente rastreável. Um agricultor planta comida; vende a maior parte
de sua produção e compra o que precisa; por exemplo, um trator. A
comida fornece energia para que outros extraiam minério de uma mina,
produzam aço, fabriquem motores, construam e operem ferrovias;
inúmeros outros produtos entram na seqüência; mas é uma sucessão
física de objetos materiais em movimento e em processo de conversão de
energia, completando um circuito que traz de volta o trator ao agricultor,
ou talvez café do Brasil ou chá da China ou gasolina de poços de
petróleo do Texas. Não há interrupção na linha. Mas a continuidade do
fluxo não é idêntica à de um curso d’água descendo a colina. Deixada a
si mesma, a água nunca subiria a colina; só pode fluir para baixo. Porém,
o homem pode interferir, com dispositivos de engenharia, pelos quais a
força total do riacho é utilizada para mandar uma pequena parte da água
para cima outra vez. Da mesma maneira, no circuito de produção, um
trem carregado é puxado colina acima, contra a gravidade, pela energia
que o homem controlou para esse fim. O trem pára nas estações, porque
o homem corta o fluxo temporariamente. Essa energia jamais fluiria por
esse canal específico “por si mesma”, nem seria capaz de retomar o
movimento ou continuar na linha de produção sem que o homem
estivesse no circuito.

Quando o agricultor vende sua produção ou compra um trator, usando


dinheiro real, o imponderável é representado separadamente. O peso do
ouro não corresponde ao peso do trator, nem a energia aplicada para
manusear o ouro corresponde à energia do trator em movimento. Se o
pagamento é em cheque, de maneira que a existência real do ouro pode
ser ignorada, a natureza da transação é ainda mais obscurecida. Mas o
que acontece é que a energia na seqüência física contínua é dirigida para
um caminho especificado por uma ação paralela representativa. Talvez, a
maneira mais fácil de compreender o processo seja assumindo que o
circuito de produção seja muito menor e mais simples do que ele poderia
ser de verdade. Imaginemos o agricultor, o mineiro, o fundidor de aço, o
fabricante do trator, etc., formando um círculo, cada um passando seu
próprio produto para quem está à sua direita; enquanto isso, o dinheiro é
passado de volta à esquerda, fazendo um pagamento a cada
transferência. A energia física que constitui o circuito nunca está no
dinheiro; está nos bens e nos meios de transporte. Além disso, a
interferência do homem no circuito introduz um fator pelo qual mais
energia é produzida (ou tomada) no processo do que é consumida
(perdida ou dissipada). Não é possível algo assim acontecer em nenhum
fluxo de energia que não esteja sob controle humano; a natureza

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XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

inanimada não contém nada que seja equivalente à ação da mente


humana ou às ações paralelas pelas quais o homem dirige um fluxo
assim. Essas funções também não podem ser embutidas em uma
máquina. Exigirão, para sempre, a inteligência e a vontade humanas.

Embora sempre seja moralmente errada, a escravidão é possível em um


sistema de baixa energia e impraticável em um sistema de alta energia. A
razão fica evidente se compararmos os métodos de produção. Um
escravo é tratado como uma máquina, dirigido pela força; não pode
escolher seu emprego, nem abandoná-lo. Tomemos então um emprego
com máquinas de alta potência, envolvendo extrema responsabilidade,
no qual as conseqüências seriam desastrosas se o trabalhador o
abandonasse na hora errada; esse emprego é exatamente aquele que mais
precisa ser escolhido livremente pelo trabalhador e que mais precisa
garantir que este seja livre para deixá-lo se e quando quiser. Para
conduzir uma locomotiva, um homem precisa primeiro exercer a
inteligência e a vontade para se qualificar. Então, é contratado pelo livre
julgamento de outro homem, seu empregador. Depois disso, enquanto
trabalha, o maquinista deve em todos os momentos agir por seu próprio
julgamento. Ele não se demitirá com a locomotiva em movimento, mas,
se seu julgamento falhar, não há como impedi-lo. Ao parar em uma
estação, se o maquinista deixar a cabine e se recusar a completar a
viagem, seria insano obrigá-lo a prosseguir. Sua decisão tem de ser
aceita. Da mesma maneira, se o maquinista parecesse inadequado ao
trabalho, o julgamento de seu empregador (por seus prepostos) teria de
ser aceito como suficiente para tirá-lo da função. Essa é a natureza do
contrato. O maquinista recebe uma tabela de horários, que segue como
uma regra. Mas, se fosse absolutamente impossível para ele agir de outra
maneira, não haveria outra ferrovia em operação em seis semanas.
Exatamente porque a ação das máquinas inanimadas é predeterminada,
os homens que as operam devem ser livres. Nenhum outro arranjo é
viável para um circuito de alta energia, no qual tanto serviços como bens
são comercializados; e o contrato é a única relação que admite esse
arranjo. Esse é o significado da seqüência representativa de ações
paralelas, seguindo na direção contrária do circuito de energia física;
essas ações realizam a sucessão de acordos voluntários pelos quais a
energia é dirigida. Daí vem o colapso inevitável do longo circuito em
uma “economia planejada”, que necessariamente resulta em
racionamento, restrições e coerção.

Um engenheiro não pode e não tenta alterar ou abolir as leis da Física ao


utilizar a energia; trabalha com elas, para alcançar seu objetivo. E em seu
projeto mecânico inanimado, só pode levar em consideração a função
estritamente física do homem. Um carrinho de mão deve ser de forma e

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Isabel Paterson O Deus da Máquina

tamanho adequados para serem utilizáveis pela força muscular. Um


automóvel deve ter o aparato necessário para dar partida, virar as rodas e
parar. As outras funções exercidas por seres humanos que usam as
máquinas na produção não afetam o projeto de máquinas específicas.

Mas as três funções devem ser levadas em conta na organização do


longo circuito; e, uma vez que isso também é uma seqüência de energia
em ação, constitui um problema de engenharia de um tipo especial. Seres
humanos que entram nesse circuito para produção geral devem ser
sustentados fisicamente por ele; caso contrário, o circuito vai parar. Se
os homens tentassem viver sem comida, não seriam capazes de dedicar
ao produto final a energia suprida pelo alimento; simplesmente, sairiam
da produção. Por esse motivo, é absurdo supor que “sacrifício” seja
equivalente a produção. O combate ao desperdício é outra questão. Mas,
já que a função do homem no circuito não é simplesmente a de um corpo
físico, a simples distribuição de uma quantidade de energia de
subsistência a ser ingerida pelos trabalhadores em empregos obrigatórios
também não é capaz de manter o circuito funcionando, porque não
permite que a segunda e a terceira funções sejam executadas pelo
homem — invenção ou descoberta, e direcionamento da energia.

Para o exercício da inteligência em invenções e descobertas, um homem


precisa ter alguns materiais excedentes, tempo e energia à sua disposição
pessoal, com liberdade para buscar o emprego que preferir, seja qual for.

Para o exercício da vontade, para dirigir a energia nos canais corretos


para que a produção se sustente, todo intercâmbio de bens e de trabalho
deve ser feito por livre contrato.

O problema de engenharia, então, é organizar o longo circuito para


homens livres. As conexões devem ser tais que qualquer homem possa
mudar de local e de ocupação como queira, dentro de toda a gama de
escolhas possíveis, que é infinita. Isso exige a distribuição do produto
por um método semelhante de intercâmbios acordados a cada
transferência. Dadas essas condições, o pré-requisito para a função física
do homem no circuito será atendido; os homens envolvidos conseguirão
obter seu sustento do circuito pelo comércio livre.

O problema inteiro se resolve se o princípio do contrato for observado


em todo o processo; e não é possível resolvê-lo de outra maneira. O
contrato é o princípio da verdadeira economia dinâmica.

O único problema que podemos dizer que surgiu da economia dinâmica


é o chamado problema trabalhista. Como a economia dinâmica cria

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XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

meios inéditos de mobilidade e uma perspectiva auspiciosa de encontrar


sustento quase em qualquer lugar, a grande maioria das pessoas se
esqueceu da necessidade de uma base física para ter segurança. Não é
apenas o “operário” que desconsidera essa relação primária e inalterável
do homem com o solo, a função da propriedade privada da terra — que
vem do simples fato de que um corpo humano é um objeto sólido — os
técnicos, os trabalhadores administrativos, inúmeros empregadores
urbanos e pessoas que vivem de receitas herdadas, estão na mesma
situação e igualmente inconscientes dela. Pode ser que estes outros
sejam mais numerosos que os operários; mas com grandes centros
industriais, os operários compõem um grupo mais evidente, que pode ser
mais facilmente diferenciado pela existência de sindicatos e pelo fato de
que, quando a indústria diminui o ritmo, os operários são mais
visivelmente afetados. São a massa deslocada. Mas deve ser entendido
que um milionário poderia pertencer a essa categoria, se seus milhões
estivessem completamente em títulos de papel; ele também não teria
base. Não existe absolutamente nenhuma solução para isso, exceto a
propriedade individual de terra por uma grande maioria, e o uso de
dinheiro real. Não é necessário que todos possuam fazendas; mas uma
quantidade suficiente de pessoas deve ser dona de sua própria casa e
possuir uma reserva para “tempos difíceis”. Nos Estados Unidos, se se
permitir que a indústria siga sua tendência natural de descentralização,
será responsabilidade dos indivíduos ter ou não seguridade; mas, em
qualquer caso, não existe outro caminho. Pode haver mérito em
proposições de que os empregados da indústria deveriam ter alguma
participação acionária; mas isso não resolve a necessidade de uma base;
o moleiro não pode se situar em um rio que corre.

Seja com a intenção de favorecer os trabalhadores ou de restringi-los, a


legislação trabalhista não é inútil. É pior que isso. O Wagner Act1 não
deu poder nenhum aos trabalhadores. Nenhuma lei pode dar poder a
pessoas privadas; toda lei transfere poder das pessoas privadas para o
governo.2 Mas, além de um dado ponto, essa transferência de poder

1
Wagner Act: Ato Nacional de Relações Trabalhistas, legislação trabalhista americana,
aprovada em 1935. Garante o direito dos trabalhadores se organizarem em sindicatos,
participarem de negociações coletivas e tomarem ações coletivas, incluindo greves.
(N. do T.)
2
Líderes trabalhistas acreditaram erroneamente que conquistaram uma vitória
quando o que eles chamam de “yellow dog contracts” foram proibidos. [N. do T.:
“Yellow dog contract”: contrato de trabalho que proíbe o empregado de pertencer a
um sindicato.] Não entenderam a natureza da lei. O “yellow dog contract” era um
acordo entre empregadores para não negociar com sindicatos. Embora isso seja
desagradável para os sindicalistas, esse acordo é exatamente do mesmo tipo que o
“closed shop contract”; [N. do T.: “Closed shop contract” acordo entre um empregador

- 263 -
Isabel Paterson O Deus da Máquina

acaba na verdade tornando o governo impotente, fazendo-o assumir uma


carga maior do que ele é capaz de carregar. Foi isso o que fez o Wagner
Act e o que faz qualquer legislação que tente controlar o trabalho
industrial. Amarrou um instrumento de governo à massa deslocada; e,
sempre que a massa é perturbada, ela arranca esse instrumento para fora
de controle e, assim, anula sua função. (Um exército fora de controle faz
a mesma coisa; pode destruir todo o mecanismo de governo.) Massa
deslocada não pode ser controlada, exceto pela oposição de uma força
igual por todos os lados. Isso é absolutamente impossível com os
trabalhadores industriais, a menos que fossem sempre confrontados com
um exército de igual força. Isso reduziria a nação à escravidão.

Mas os trabalhadores podem ser colocados sob compulsão — que não é


a mesma coisa que controle e vai apenas criar um novo risco — por
restrições nominalmente impostas primeiro ao empregador, alcançando
o empregado indiretamente. Se for proibido ao empregador contratar
alguém que não tenha obtido permissão para deixar um emprego
anterior, os movimentos do trabalhador serão restringidos exatamente
como se ele tivesse sido proibido de deixar seu emprego. O efeito no
circuito de energia é cortar a produção no mesmo grau.

A principal causa atual de confusão na teorização política também


advém do fato de que a energia no longo circuito é dirigida pela ação
paralela representativa. Votar é uma dessas ações; mas seu efeito é ainda
mais difícil de discernir, porque é um sinal de transmissão. Quando um
país possui uma organização política formal, a tributação já está
autorizada; o canal está lá, para desviar energia da produção para os
gastos governamentais. O canal é designado pelo costume ou por uma
constituição. Teoricamente, uma constituição poderia especificar a soma
ou a porcentagem a ser extraída em impostos; mas é improvável que um
limite assim fosse mantido, menos ainda pelo governo central que
necessariamente é responsável pela gestão da guerra. Enquanto a
estrutura está sólida, as cláusulas serão obedecidas nos diversos campos
de tributação, pelas autoridades federais, estaduais e locais. Os interesses
regionais tenderão a preservar esse limite e manter a alíquota de
tributação dentro do razoável, enquanto mantiverem a relação estrutural
apropriada com o governo central. Mas os impostos serão recolhidos,
independentemente de qual partido ou quais pessoas estejam no poder.
Portanto, o voto do cidadão não dirige a energia. O que ele faz é designar

e um sindicato que obriga todos os empregados desse empregador a pertencerem a


um sindicato.] se a lei pode proibir aquele tipo de acordo, então o “closed shop
contract” também pode ser proibido. Alguns contratos feitos entre sindicatos e
empregadores já foram anulados por esse poder, contra a vontade tanto do sindicato
como do empregador. (N. da A.)

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XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

autoridades que determinarão, pela ação representativa, a quantidade de


energia a ser extraída em impostos e, então, distribuí-la e dirigi-la pelos
vários canais políticos de gastos.

Como ocorrem duas ações representativas, não se percebe normalmente


que elas dão o sinal para o represamento e a liberação de energia real; e,
além disso, que essa energia pode se voltar contra o eleitor.

Sua única segurança é reter para si uma base fixa a partir da qual possa
resistir firmemente; e essa base só pode ser a terra que ele possua. Caso
contrário, seu voto acaba privando-o de seu poder natural, ao invés de
permitir que ele o exerça. É o que acontece na democracia; ela libera
força de tal maneira que não há como existir controle. Porque o governo
também não tem o controle em uma democracia. A teoria de que todos
“participam” do governo nas democracias, se todos votam, não leva em
consideração a natureza da força física e a relação necessária entre
qualquer massa física em movimento e uma base sólida. A maior parte
das teorias abstratas de governo nos tempos modernos é completamente
errônea porque ignora a realidade física. Provavelmente, a falácia se
torna plausível porque o voto é apenas um pedaço de papel ou um toque
em uma máquina de votar; nenhuma energia física é transferida no ato
de votar; parece não ser mais que a expressão de uma opinião. Então, se
o representante toma posse apenas pela expressão formal de opinião ou
sinal, acredita-se que ele será suscetível às opiniões expressas a ele no
futuro. Ao contrário, como o representante tem o poder de liberar
energia física real, nenhum outro sinal será obedecido a menos que os
eleitores retenham em seu controle privado um poder de resistência
correspondente, mas preponderante, a qualquer má aplicação do
poder delegado a seus representantes. As ações representativas
paralelas sempre devem representar energia real.

Existe também uma falácia influente hoje, que é dita para negar a
necessidade da ação livre individual para criar e manter um sistema de
alta energia. Em algumas economias comparativamente livres, como a
Dinamarca e a Suécia, grande parte da organização econômica consiste
em associações cooperativas. Mas elas são marginais nas economias
dinâmicas. Colônias semi-socialistas, como a Nova Zelândia e a
Austrália, são ainda mais dependentes do individualismo em outros
lugares. Não criaram nenhuma das máquinas pelas quais obtém produção
em um nível confortável; não contribuíram com invenções ou melhorias;
vendem seu produto excedente no mercado livre. A ligação delas ao
circuito dinâmico permite que consigam um padrão de vida
moderadamente elevado, mas o nível é determinado pelo circuito.
Observadores superficiais dizem que as associações cooperativas podem

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Isabel Paterson O Deus da Máquina

suprir a função dinâmica primária da alta produção. Não podem; são


apenas suplementares. As condições locais vão indicar a extensão de sua
utilidade prática; mas sempre será marginal.

Uma economia completamente “planejada” (ou seja, uma economia


escrava) pode obter algum maquinário de alta performance e operá-lo
com retorno decrescente por um tempo limitado para fazer a guerra. As
economias escravas da Rússia Soviética e da Alemanha fizeram isso;
mas nenhuma delas conseguirá dar manutenção a seu equipamento
mecânico sem uma reposição contínua por parte das nações livres. Com
uma fábrica completa para a produção de automóveis, com todas as
peças manufaturadas nos Estados Unidos, embarcadas para a Rússia e
montadas lá de maneira eficiente e ordenada por engenheiros
americanos, a produtividade foi a de metade do obtido em uma
instalação semelhante nos Estados Unidos. A Rússia, a Alemanha e as
outras economias planejadas são estáticas. Quando a alta energia é
jogada para dentro delas, só consegue provocar uma perturbação
incalculável de maneiras imprevisíveis, como os tremores e
deslocamentos de terra de uma falha geológica; mas o dano será muito
menor, se a alta energia entrar apenas por trocas — ou seja, se o
pagamento for devidamente cobrado pelas economias livres por
empréstimos ou venda de bens às economias estáticas — do que é se o
dinheiro ou maquinário ou outros bens forem obtidos pelas economias
estáticas sem pagamento. Como, pela natureza da economia livre, seu
produto está no mercado, é imperativo que as contas sejam pagas.
Quando dinheiro, crédito e bens são entregues às economias estáticas em
troca de nada, seja como um presente, seja aceitando uma moratória, o
resultado é certo: uma guerra mundial em escala proporcional, com a
opressão aumentada e sem esperanças do povo da economia estática.
Não foi outra coisa o que tornou possível a eclosão da Alemanha.
Nenhuma outra coisa poderia ter arruinado a Europa. Se as quantias de
dinheiro emprestadas pela América à Europa desde 1914 e nunca
devolvidas fossem somadas, o total resultaria na força da carga explosiva
que foi detonada na guerra atual. Empréstimos de governos a governos3

3
Empréstimos feitos por um governo a outro não atendem a nenhuma das condições
adequadas de crédito. O dinheiro emprestado pertence ao povo da nação que
concede o empréstimo, não às autoridades que o concedem; e tornam-se uma
obrigação do povo da nação que toma o empréstimo, não das autoridades que o
negociam e gastam o dinheiro. Não há garantias, nem meios de cobrança por ação
civil. Se a dívida não for paga, a guerra ou a ameaça de guerra são os únicos recursos.
Enquanto isso, a produção privada naufraga; a economia da nação que emprestou
tem de cobrir a perda do capital; enquanto a economia da nação que tomou o
empréstimo é oprimida pelo peso morto dos projetos governamentais (prédios,

- 266 -
XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

são particular e inevitavelmente destrutivos; mas empréstimos privados


inadimplentes também são totalmente nocivos. Isso vale para os
investimentos americanos no exterior que foram confiscados por
governos estrangeiros. A força é então jogada de volta contra qualquer
economia privada que a nação possuísse, para esmagá-la; o governo
obteve recursos sobre os quais os produtores não têm controle. Apenas
por essa fórmula, podem-se prever tumultos e devastações. Nações
habitualmente em moratória são nações habitualmente em convulsão. O
único serviço real que uma nação dinâmica pode prestar a uma nação
estática é cobrar à vista qualquer centavo ou migalha de bens fornecidos.
Se isso for feito, a nação estática pode avançar para a liberdade. Caso
contrário — o resultado está diante de nossos olhos.

A teoria da “necessidade histórica”, na qual se baseia o argumento


coletivista, não tem fundamento nem em fatos nem em princípios. A
teoria diz que o desenvolvimento econômico ocorre em uma sucessão
inevitável de fases, pela qual uma sociedade industrial, inventando
máquinas num ambiente de propriedade privada, deve então passar ao
comunismo, com propriedade pública, mantendo as máquinas para a
produção. Então, profetizou-se que a Alemanha e a Inglaterra, sendo
altamente industrializadas, deveriam ser as primeiras a se tornarem
comunistas. Ao contrário, a nação mais atrasada da Europa, a Rússia,
que jamais havia emergido completamente do comunismo, mergulhou de
volta nele; enquanto isso, os Estados Unidos ultrapassavam
industrialmente a Europa. Foi forjada uma desculpa medíocre, que não
faz mais sentido que a teoria original.

Enquanto o universo existir, as condições pelas quais uma economia de


máquinas pode ser criada e sustentada são imutáveis; e elas excluem o
coletivismo. Uma variação da teoria da “necessidade histórica” diz que
“a natureza humana pode ser alterada”. Se isso fosse verdade na
característica vital, de maneira que os homens perdessem o direito à
liberdade e o desejo por ela, esses ex-seres humanos “alterados” se
tornariam, em conseqüência, incapazes de inventar e operar máquinas.
As invenções humanas são do espírito, não do materialismo; e é um
crime contra a humanidade tomar os produtos desse dom divino e jogá-
los aos feitores de escravos do comunismo, para serem pisoteados na
imundície de um barracão.

Como o homem não é determinístico, não pode haver ordem


estabelecida para suas descobertas. O progresso sempre é possível, mas

exércitos, etc.) nos quais o dinheiro foi gasto. É uma fórmula infalível para o desastre.
(N. da A.)

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Isabel Paterson O Deus da Máquina

depende do uso imprevisível da inteligência. A partir do registro


conhecido, não parece que os homens tenham alguma vez perdido
completamente um conjunto de conhecimentos obtido; embora possa
ficar sem ser utilizado por um tempo, até que os princípios morais sejam
confirmados e isso permita que a ciência material seja aplicada de
maneira benéfica. A precedência da ordem moral é clara, já que
descobertas úteis ocorrem apenas quando os homens protegem a
liberdade, restringindo o poder político. Essas descobertas foram feitas
em diversas épocas e lugares, e reunidas; mas os princípios envolvidos
são universais. Não mudam com a “história”. Funcionarão em qualquer
tempo e lugar em que sejam entendidos e aplicados, sempre da mesma
maneira. Se forem esquecidos ou ignorados, nada poderá ser obtido. Não
existe “onda do futuro”; a humanidade molda seu futuro pelo objetivo
moral e pelo uso da razão. A fé na onipotência benevolente do governo é
pura superstição, um resíduo agregado de todas as práticas “mágicas” do
homem primitivo. Como um selvagem na natureza não sabe o que faz
um salmão subir o rio, ou porque a caça é mais rara em um ano que em
outro, não é extraordinário que tente aplacar os poderes da natureza,
esperando um resultado sem causa racional. Essa expectativa vaga de
benefício obtido de um poder invisível convencido por palavras
mágicas foi transferido para a idéia de uma agência abstrata colocada
acima do indivíduo e suscetível a palavras para a concessão de
benefícios materiais. Mas é, na verdade, um completo retrocesso, em um
passo gigantesco, na direção das trevas e da extinção.

A pior das falácias é acreditar que nada pode ser feito, que devemos ser
levados para o desastre e nos adaptarmos a ele. Se isso fosse verdade,
deveríamos morrer aos montes, com alguns miseráveis remanescentes
regredindo à selvageria; porque não existiria solução. Mas isso não é
verdade.

Tudo pode ser feito por um futuro melhor, se os homens assumirem a


postura pela qual o longo circuito de energia é criado. Nem mesmo um
desastre causado pela negligência temporária precisa ser definitivo. Com
o estabelecimento da República dos Estados Unidos da América, um
grande marco da história secular foi erigido. O mais profundo estudioso
do século passado, Lord Acton, que devotou a vida a estudar a história
da liberdade humana, disse que ela “era o que não existia, até o último
quarto do século dezoito na Pensilvânia”. O evento que ele assinala é
ímpar, porque foi a primeira vez na história que uma nação foi fundada
sobre princípios políticos racionais, originários do axioma de que o
direito de nascença do ser humano é a liberdade. E, enquanto esses
princípios foram mantidos, essa nação prosperou além de qualquer
precedente. Até então, as nações eram formadas pelo acaso, pelas

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XXII. Nosso Sistema Educacional Niponizado

circunstâncias e por experimentos duvidosos; então, se uma nação


soçobrasse, seria impossível reconstruí-la. Não importa quantas vezes a
democracia seja tentada, ela sempre desmorona em despotismo em
pouco tempo. Ou, se uma aristocracia ou monarquia surgia e, em seguida
se desmanchava, não poderia ser criada outra para substituí-la, porque
não seria possível voltar no tempo para garantir uma linha de
descendência. Mas uma república federal sem o elemento hereditário na
estrutura política sempre pode ser reconstituída por um projeto com os
mesmos princípios e bases.

Quem quer que tenha a felicidade de ser um cidadão americano participa


da maior herança de que o homem já desfrutou. Teve o benefício de
todos os esforços heróicos e intelectuais que os homens fizeram por
muitos milhares de anos, enfim concretizados. Se os americanos derem
meia-volta e se submeterem outra vez à escravidão, isso será uma traição
tão abjeta que talvez a raça humana preferisse perecer. A oportunidade é
igualmente grandiosa para justificar a fé que animou o longo e penoso
esforço e legou aos americanos uma herança tão nobre e feliz.

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Isabel Paterson O Deus da Máquina

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Sobre a autora

Isabel Mary Bowler nasceu em 22 de janeiro de 1886, na Ilha


Manitoulin, no Canadá. Seus pais, Francis e Margaret Bowler, tiveram
nove filhos e eram muito pobres. Mudaram-se para Michigan, Utah e
Alberta, em busca de uma vida melhor. Isabel entrou em uma escola
rural aos 11 anos e freqüentou as aulas de maneira irregular até os 14.
Porém, lia muito em casa. Lia a Bíblia, Shakespeare, Dickens e
Alexandre Dumas, por exemplo. Era uma leitora voraz e autodidata. Por
volta dos 18 anos, resolveu sair da fazenda e mudou-se para a cidade de
Calgary, onde trabalhou como garçonete, taquigrafista e auxiliar de
contabilidade.

Aos 24 anos, casou-se com Kenneth Paterson. O casamento não foi feliz
e eles se separaram depois de 8 anos. Nesse período, Isabel Paterson
conseguiu um emprego no jornal americano Inland Herald, em Spokane,
no estado de Washington. Foi o início de uma carreira jornalística. Aos
28 anos, havia escrito dois romances, The Magpie's Nest e The Shadow
Riders, ambos publicados pela John Lane Company. Depois da Primeira
Guerra Mundial e de sua separação, mudou-se para Nova York, onde
trabalhou para o escultor Gutzon Borglum, autor do memorial do Monte
Rushmore. De 1924 a 1949, escreveu uma coluna de crítica literária no
New York Herald Tribune. Foi uma das mais influentes críticas de sua
época. Em 1928, aos 42 anos, naturalizou-se americana.

No final dos anos 30, Isabel Paterson liderava um grupo de jovens


escritores que tinham opiniões semelhantes às dela. Entre eles, Sam
Welles, Ayn Rand e Rose Wilder Lane. Foi mentora de Ayn Rand, que
era 19 anos mais nova que ela. Isabel manteve estreita colaboração e
troca de idéias com esse grupo. Porém, acabou rompendo com Rose em
1946 e com Ayn Rand em 1948.

Depois do final da Segunda Guerra Mundial, Isabel Paterson contribuiu


para o ressurgimento do conservadorismo, correspondendo-se com o
jovem Russel Kirk nos anos 40 e com o jovem William F. Buckley, nos
anos 50.

Morreu em 10 de janeiro de 1960. Foi enterrada no túmulo da família de


Sam Welles, em Burlington, Nova Jersey.

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Isabel Paterson O Deus da Máquina

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Obras de Isabel Paterson

- The Shadow Riders (1916)


- The Magpie's Nest (1917)
- The Singing Season (1924)
- The Fourth Queen (1926)
- The Road of the Gods (1930)
- Never Ask the End (1933)
- The Golden Vanity (1934)
- If It Prove Fair Weather (1940)
- O Deus da Máquina (1943)
- Joyous Gard (não publicado; terminado em 1958)

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