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Audiodescrição: práticas e reflexões

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Audiodescrição: práticas e reflexões

Daiana Stockey Carpes


(organizadora)

Audiodescrição:
práticas e reflexões

1ª edição
Santa Cruz do Sul

2016

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Audiodescrição: práticas e reflexões

CONSELHO EDITORIAL

Antonio Fausto Neto – Unisinos


Ernesto Söhnle Jr. – UNISC
Rua Oswaldo Aranha, 444
Eunice Piazza Gai – UNISC
Bairro Santo Inácio
Fernando Resende – UFF
Santa Cruz do Sul/RS
Jesús Gallindo Cáceres – Benemérita Universidad
CEP 96820-150 Autónoma de Puebla (México)
www.editoracatarse.com.br João Canavilhas – Universidade de Beira Interior
facebook.com/editoracatarse (Portugal)
Walter Teixeira Lima – UMESP

A912 Audiodescrição: práticas e reflexões [recurso eletrônico] / Organizadora


Daiana Stockey Carpes – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2016.

165 p.

Texto eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web.

1. Audiodescrição. 2. Deficientes visuais – Serviços para.


3. Deficientes visuais – Orientação e mobilidade. I. Carpes, Daiana
Stockey.

CDD: 362.41

ISBN: 978-85-69563-04-4

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406


Diagramação e projeto gráfico: Daiana Stockey Carpes
Revisão: Rodrigo Bartz e Diana Azeredo

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Audiodescrição: práticas e reflexões

Sumário

Apresentação 5

Prefácio 6
Lívia Maria Villela de Mello Motta

Consultoria em audiodescrição: alguns caminhos e 10


possibilidades
Felipe Leão Mianes

A (não)neutralidade em roteiros de audiodescrição-ad de 22


filmes de curta-metragem via sistema de avaliatividade
Juarez Nunes de Oliveira Júnior e Pedro Henrique Lima Praxedes Filho

Impactos da audiodescrição de charges políticas para o 37


leitor com deficiência visual
Melina Cardoso de Paula Braghirolli

Da arte de fazer rir: uma reflexão acerca do humor na audio- 57


descrição de filmes de comédia
Letícia Schwartz

Videoinstalação com audiodescrição: incluindo pessoas com 71


deficiência visual na apreciação da marca Desnudez Declamada
Patrícia Gomes de Almeida

Roteirizar, gravar, editar. Os efeitos da edição sobre os 89


filmes audiodescritos exibidos na TV brasileira
Mônica Magnani Monte

A audiodescrição na escola 116


Lísia Regina Ferreira Michels e Mara Cristina Fortuna da Silva

Audiodescrição no jornalismo laboratorial 124


Daiana Stockey Carpes e Demétrio de Azeredo Soster

Audiodescrição Jornalística: Uma experiência no Museu do 144


Jango/RS
Janine da Mota Rosa e Marco Antonio Bonito

Sobre a organizadora 164

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Audiodescrição: práticas e reflexões

Apresentação

Este livro nasce do desejo e da necessidade de observarmos o esta-


do da arte da audiodescrição (AD) no Brasil. “Audiodescrição: práticas e
reflexões” reúne trabalhos e discussões de pesquisadores e profissionais
da área. A coletânea mostra a importância da AD em nossa sociedade e
como ela vem sendo trabalhada no país.
A AD é um recurso de acessibilidade que traduz o visual em verbal, am-
pliando o entendimento das pessoas com deficiência visual, garantindo a in-
clusão dos cegos na educação, no entretenimento, no lazer, na comunicação e
na informação. Conforme a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, “toda pessoa
com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades como as demais pes-
soas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”. Dessa forma, este re-
curso se insere como um meio de promover e assegurar a inclusão dos cegos.
Apesar da grande expansão, o recurso ainda está em desenvolvimento
no Brasil. Assim, o objetivo dessa obra é mostrar o que está sendo produzido
em termos de AD no país e é destinado a pesquisadores e audiodescritores.
A obra é dividida em dois eixos: práticas e reflexões e subdividida em
nove capítulos. O primeiro artigo é de autoria de Felipe Leão Mianes, que
versou sobre o trabalho e a importância do consultor em audiodescrição. O
segundo é de Juarez Nunes de Oliveira Júnior e Pedro Henrique Lima Praxe-
des Filho, que trouxeram a discussão da AD em roteiros de filmes de curta-
-metragem. Melina Cardoso de Paula Braghirolli pesquisou sobre a AD nas
charges políticas da Folha de S. Paulo. O quarto texto é de Letícia Schwartz,
que discute o humor na AD em filmes de comédia.
Já no capítulo cinco, Patrícia Gomes de Almeida relata a sua experiência
em realizar uma videoinstalação com AD. Mônica Magnani Monte discute,
em seu artigo, os efeitos da edição sobre os filmes audiodescritos exibidos
na televisão. A AD na escola é tema da próxima pesquisa, proposta por Lísia
Regina Ferreira Michels e Mara Cristina Fortuna da Silva. Em seguida, Daiana
Stockey Carpes e Demétrio de Azeredo Soster relatam a inclusão da AD no
jornalismo laboratorial. E o último capítulo é de autoria de Janine da Mota
Rosa e Marco Antonio Bonito, que contam como inseriram a audiodescrição
jornalística no Museu Jango.
O leitor terá condições de conhecer e aplicar seus conhecimentos do
recurso de forma prática e abrangente.
Meus agradecimentos aos coautores deste livro e todos aqueles que,
de alguma forma, tornaram este sonho possível.
Desejo uma excelente leitura!

Daiana Stockey Carpes

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Audiodescrição: práticas e reflexões

Prefácio

Lívia Maria Villela de Mello Motta1

A presença cada vez mais constante de pessoas com deficiência


visual, circulando com suas bengalas brancas ou, em menor número, com
cães guia, em espaços culturais, como teatros, museus, centro de expo-
sições e casas de shows tem chamado atenção do público em geral, pro-
vocado dúvidas e indagações. O aumento e formação dessa nova plateia
que tem acesso às informações, cultura, artes cênicas e cinema por meio
das palavras, deve-se à audiodescrição, recurso de acessibilidade comu-
nicacional, também considerada uma modalidade de tradução interse-
miótica que transforma o visual em verbal, ampliando significativamente
o entendimento, promovendo a inclusão, autonomia e a participação em
igualdade de condições.
Quando as luzes do teatro se apagam, acende-se uma luzinha na
cabine acústica e intensifica-se a atividade do audiodescritor. É ele o res-
ponsável por fazer chegar à pessoa com deficiência visual a magia da
arte, em peças teatrais, espetáculos de dança, circo, musicais, shows,
filmes e outros. As histórias de amor, vingança e morte, as intrigas e ju-
ras de amor tão bem retratadas nas óperas; os movimentos delicados e
altamente técnicos do ballet clássico; a alegria dos musicais; a graça das
comédias; a tensão dos dramas, tudo isso pode ser conhecido e com-
preendido por pessoas com deficiência visual. São sempre muito relevan-
tes os depoimentos que recebemos sobre o trabalho, sobre a importância
de ser os olhos do outro.
Além dos espetáculos, eventos acadêmicos, corporativos e so-
ciais, e de produtos audiovisuais, a audiodescrição aplica-se também a
imagens estáticas de livros didáticos e paradidáticos, jornais e revistas
on-line, sites, redes sociais, ensino a distância. Na escola, o conhecimento
sobre o recurso e sobre seus benefícios, aplicabilidade e técnicas permi-
tirá que possa ser utilizado como ferramenta, o que sem dúvida poderá

1 Lívia Maria Villela de Mello Motta é doutora em Linguística Aplicada e Estudos


da Linguagem pela PUC de São Paulo. Trabalha como audiodescritora e professora de
cursos de audiodescrição desde 2005, implementando o recurso em espetáculos, filmes,
eventos religiosos, acadêmicos e sociais. Coordenou o 1º Curso de Especialização em
Audiodescrição pela UFJF e organizou com Paulo Romeu Filho o 1º livro brasileiro sobre
o tema: AUDIODESCRIÇÃO: TRANSFORMANDO IMAGENS EM PALAVRAS.

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Audiodescrição: práticas e reflexões

contribuir para o enriquecimento do agir pedagógico e para a abertura de


mais oportunidades de aprendizagem para os alunos cegos e com baixa
visão, além de alunos com deficiência intelectual, alunos com dislexia,
com déficit de atenção, autistas e, mesmo, alunos sem deficiência.
Envolvida com essa atividade desde 2005, quando quase ninguém
tinha ouvido falar ou conhecia, quando eram pouquíssimas as pessoas
que compareciam a palestras sobre o tema, eventos ou espetáculos, ale-
gra-me, e muito, observar o avanço que a audiodescrição vem tendo nos
últimos anos. A cada dia, percebo o interesse crescente de alunos de cur-
sos de graduação em Rádio e TV, Cinema, Jornalismo, Letras, Tradução e
outros em desenvolver o tema em trabalhos de finalização de curso. Além
dos cursos de graduação, também pesquisas de mestrado e doutorado
têm se debruçado sobre as diversas possibilidades de aplicação, a com-
plexidade e sutilezas da audiodescrição.
Quem assiste a algum evento, espetáculo ou produto audiovisual,
lê alguma matéria, post ou artigo, se interessa, quer saber mais, ampliar
o conhecimento, possivelmente inserir em alguma produção. Foi o que
aconteceu com Daia Carpes, a organizadora desse livro. Há algum tempo
atrás, ela me entrevistou para o lançamento de seu blog: Jornalismo em
Audiodescrição, cujo objetivo é divulgar notícias sobre o recurso. De lá
para cá, ela vem acumulando conhecimentos, experiência e vontade po-
lítica de expandir, divulgar para ainda mais pessoas o potencial inclusivo
da audiodescrição. A organização desse livro é mais uma prova disso.
Daia convidou audiodescritores que acabaram de concluir o 1º Curso de
Especialização em Audiodescrição pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), pesquisadores, jornalistas e professores para compor uma co-
letânea de nove artigos sobre o tema, que certamente será outro material
de referência. Vamos conhecer abaixo um pouco do conteúdo abordado
por cada um.
Felipe Mianes, doutor em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, e cursando Pós-Doutorado na Universidade Luterana
do Brasil (ULBRA), na sua posição de usuário, consultor e pesquisador,
discute o papel das pessoas com deficiência visual que atuam nas equi-
pes de audiodescrição, como consultores em audiodescrição ou audio-
descritores consultores. Destaca as competências que esse profissional
precisa ter como formação na área, incluindo conhecimento sobre nor-
mas, princípios, histórico e produção da audiodescrição; além de bom
conhecimento do léxico e bagagem cultural. Ele enfatiza que não basta
ser uma pessoa com deficiência visual para atuar nesta posição.
Mônica Magnani, atriz, dubladora e audiodescritora especialista
pela UFJF, com prática em elaboração de roteiros para filmes exibidos na
televisão brasileira, discute os possíveis problemas que a edição de filmes
pode causar para o roteiro de audiodescrição; muitas vezes mesmo uma
mutilação, comprometendo a coesão, coerência e a própria fluidez do
texto, e interferindo no entendimento das cenas ou da própria trama. O

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Audiodescrição: práticas e reflexões

leitor terá uma verdadeira aula sobre elaboração de roteiros, escolhas tra-
dutórias e poderá refletir sobre questões que sempre vêm à baila quando
discutimos a audiodescrição: objetividade, neutralidade, carga imagética
e linguagem cinematográfica, dentre outros aspectos.
Juarez Nunes de Oliveira Júnior e Pedro Henrique Lima Praxedes
Filho, ambos pesquisadores do grupo LEAD da Universidade Estadual do
Ceará (UECE), fizeram um estudo com filmes curta metragem e com obras
de arte, buscando verificar os parâmetros de neutralidade. Chegaram à
conclusão que é não possível fazer o apagamento da voz do audiodescri-
tor e constataram a presença marcante de avaliações/interpretações nos
roteiros avaliados.
Melina Cardoso, jornalista e audiodescritora recém saída
do Curso de Especialização em Audiodescrição pela UFJF propõe a
audiodescrição de charges políticas em jornais de grande circulação
como a Folha de São Paulo. Ela fez uma pesquisa com pessoas cegas
sobre esse tema e chegou à conclusão que na sua grande maioria,
essas pessoas ainda têm dificuldades para ter acesso a todo o conteúdo
de um veículo de informação, considerando que estes ainda não oferecem
aos leitores o acesso ao conteúdo imagético, não fazendo a descrição
sistemática das imagens que ilustram as matérias. Poder fazer a leitura de
uma charge política, compreendendo seu significado, coloca as pessoas
com deficiência visual em igualdade de oportunidades, fazendo com que
se sintam respeitadas em seus direitos de acesso à comunicação.
Letícia Schwartz, assim como Mônica Magnani e Melina Cardoso, é
audiodescritora especialista pela UFJF, uma das primeiras profissionais a
trabalhar com o recurso no sul do país. Ela aborda um tema ainda pouco
estudado e que traz grandes desafios para o audiodescritor, que é a arte
de fazer rir, a audiodescrição de filmes de comédia. Como traduzir piadas
visuais que provocam riso nos espectadores, de forma a permitir que o
público com deficiência visual possa rir ao mesmo tempo. Falar sobre a
graça, sobre os trejeitos ou gestos que provocam riso, traduzir isso em
palavras nem sempre é tão engraçado quanto a visualização da cena hi-
lária. Nesse sentido, além do roteiro com escolhas lexicais adequadas ao
gênero, também a narração desempenha um papel crucial. A inflexão vo-
cal, entonação, pausas e uma certa interpretação do roteiro, certamente,
poderão contribuir para levar o espectador ao riso.
Patrícia Gomes de Almeida, artesã, poeta e designer de moda,
também formada pelo Curso de Especialização em Audiodescrição da
UFJF, relata sua experiência em fazer a audiodescrição de uma video-ins-
talação que mistura poesia com retalhos e como ela foi compreendida
pelas pessoas com deficiência visual. Conseguiu fazer chegar a sua arte,
como ela é, até esse público.
Lísia Regina Ferreira Michels e Mara Cristina Fortuna da Silva, uma
doutora em Educação e a outra mestranda, pesquisadoras da Universidade
Federal Fronteira Sul (UFFS) discutem a importância da audiodescrição na

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Audiodescrição: práticas e reflexões

escola e mais especificamente na formação de professores para que eles


possam utilizá-la como uma ferramenta pedagógica. Não há mais como
adiar a inserção de tópicos sobre a utilização de recursos de tecnologia
assistiva e acessibilidade comunicacional em conteúdos programáticos
de cursos de formação de professores.
Daiana Carpes e Demétrio de Azeredo Soster, ela mestranda e ele
doutor em Comunicação Social, ambos da Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC), relatam a iniciação de Daia na audiodescrição de produções
laboratoriais na UNISC, fazendo a adaptação de jornal acadêmico para um
aluno cego. A iniciativa foi tão bem sucedida que logo foi incorporada às
práticas laboratoriais impressas do Curso de Comunicação Social.
Janine da Mota Rosa e Marco Antonio Bonito, ela graduada em
Jornalismo e ele pesquisador e professor da graduação e pós-graduação
em Comunicação Social, da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA),
discutem a implementação da audiodescrição como recurso de acessibili-
dade comunicacional no Museu do Jango, em São Borja, no Rio Grande do
Sul. Para tornar o museu um espaço acessível para as pessoas com defi-
ciência visual, Janine, orientada pelo prof. Marco Antonio Bonito, propôs
um projeto de acessibilidade, destacando o uso do braille e da audiodes-
crição, além de maquetes táteis.
O leitor já pôde vislumbrar um panorama do que irá ler e apren-
der sobre esse fantástico recurso de acessibilidade. Embarque, pois,
nessa viagem e aproveite para refletir sobre as possibilidades de aplica-
ção, as especificidades, dificuldades e o quanto a audiodescrição pode
contribuir para a inclusão cultural, social e escolar das pessoas com
deficiência visual.

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Audiodescrição: práticas e reflexões

Consultoria em
audiodescrição:
alguns caminhos
e possibilidades

Felipe Leão Mianes1

Este ensaio tem como objetivo analisar as possibilidades de ação


dos profissionais com deficiência visual que atuam nas equipes de audio-
descrição, conhecidos como, “consultores em audiodescrição”, “audiodes-
critores consultores” ou “revisores de audiodescrição”. Além do incremen-
to para a qualidade do produto, será debatido também o papel político e
desenvolvido por esse sujeito diante das possibilidades de protagonismo
dentro do processo cultural e de empoderamento dos processos inclusivos.
Muitas ações afirmativas e de empoderamento das pessoas com
deficiência, cujo objetivo é minimizar as desigualdades sociais causadas
pelos processos de discriminação e preconceito, tiveram inicio nos anos

1 Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/
RS). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mes-
tre e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-Doutora-
do pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).

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Audiodescrição: práticas e reflexões

1960, nos Estados Unidos, levando cerca de duas décadas para chegar
ao Brasil. Tais ideias baseadas nas diretrizes de Direitos Humanos que ti-
veram como principais metas a construção de oportunidades de convívio
e participação social de modo igualitário.
Desse período em diante, intensificaram-se muito as políticas pu-
blicas que objetivaram criar as condições de participação social desses
grupos minoritários, como o das pessoas com deficiência visual. Tais mo-
vimentos não ocorrem de maneira uniforme ou sem resistências, mas é
preciso reconhecer que trouxeram à tona a discussão que até hoje está
em curso: a acessibilidade e a inclusão das pessoas com deficiência, mais
especificamente o protagonismo das pessoas cegas e com baixa visão.
A cultura foi um importante cenário de reivindicação de direitos e
a luta pela acessibilidade nesses ambientes segue sendo uma das priori-
dades para esses grupos. Participar da vida social e cultural em igualda-
de de condições é fundamental tanto para o incremento de informações
quanto para o processo de fruição artística. Isso só é possível em sua
plenitude na medida em que existam recursos que contemplem as espe-
cificidades dos sujeitos.
Nesse contexto, a audiodescrição tem papel primordial para as
pessoas cegas e com baixa visão. Seu uso passou a ser desenvolvido a
algumas décadas, já que as primeiras experimentações começaram no
final dos anos 1950, mas que se tornaram consistentes nos anos 1980.
No Brasil, a AD teve seu marco inicial em 1999, quando Bell Ma-
chado realizou atividades de narração audiodescritiva de filmes em uma
associação de cegos de Campinas. Comercialmente, começou em 2003,
quando ocorreu o festival “Assim Vivemos”, cuja temática é voltada às
pessoas com deficiência (MOTTA; ROMEU FILHO, 2006, p 25). Ainda as-
sim, esse recurso de acessibilidade vem tendo maior repercussão com a
regulamentação do Decreto nº 5296, que determina sua obrigatoriedade
na televisão aberta brasileira, vigorando desde 20112. Desse modo, esse
é um momento de expansão da AD no Brasil e de sua reivindicação por
parte das pessoas com deficiência visual.
Meu envolvimento com a AD começou em 2010, quando conheci
o recurso efetivamente. Participei de uma sessão de cinema em que havia
audiodescrição e fiquei muito interessado em conhecer mais aquela for-
ma de acessibilidade que abria as portas para um novo e mais rico mun-
do de possibilidades de entender o cinema, já que possuo baixa visão.
No mesmo dia, realizei pesquisas na internet sobre o que era au-
diodescrição, como ela poderia ser usada e onde poderia encontrar mais
produtos audiodescritos. Em 2011, por conta de minhas atividades aca-

2 A lei sobre audiodescrição, promulgada em 2000 e regulamentada em 2004, obrigan-


do que todos os canais brasileiros de televisão aberta tivessem inicialmente 2 horas
de programação com audiodescrição. A quantidade de horas do recurso será ampliada
progressivamente, chegando 24 horas de programação audiodescrita em 2021.

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Audiodescrição: práticas e reflexões

dêmicas como aluno do curso de Doutorado pela UFRGS, tive a oportuni-


dade de fazer um curso de extensão em Audiodescrição, além de passar
a fazer parte de um grupo de estudos sobre o tema, e no final do mesmo
ano passei a atuar como consultor em alguns trabalhos.
De 2011 em diante, passei a trabalhar como audiodescritor con-
sultor e a pesquisar as possibilidades de utilização e o impacto que a AD
tem na vida das pessoas cegas e com baixa visão. Além, é claro, de ser
um admirador e um usuário contumaz do recurso sempre que possível.
Nesse sentido, estou sempre em três posições que entendo complemen-
tares: usuário, consultor e pesquisador.
Assim como eu, outros profissionais tem o mesmo tipo de envol-
vimento com a audiodescrição, conforme podemos verificar na afirmação
de Vilaronga (2010, p. 61):

A partir do momento que conheci o recurso, não apenas como


usuária, mas como pesquisadora e profissional passei a “vê-lo”
de forma diferenciada. Já não existia, da minha parte, o desejo
de apenas pesquisar sobre a audiodescrição, por conta de mi-
nhas dúvidas, dos meus questionamentos sobre o recurso. Ha-
via, sim, a necessidade de entender melhor todo o processo.
[...] Perpassa pelo sentimento de pertença, de empoderamento,
de ter oportunidade de acesso às informações e conhecimentos
anteriormente inacessíveis.

Na maioria dos casos, os consultores com deficiência visual se


inserem na profissão como usuários contumazes e que tem apreço por
um ou mais tipos de produtos audiodescritos. Os objetivos são os mais
variados, mas o que posso perceber é que também se trata de uma
oportunidade de fazer sua parte para a construção de uma sociedade
mais inclusiva.
Com a evolução e a constituição de um mercado – ainda que
incipiente – para a AD, há uma grande demanda por profissionais
bem preparados e experientes para atuar na área. Dentro de uma
equipe de audiodescritores fazem-se presentes diferentes profissio-
nais. É importante conhecermos cada um deles, compreender suas
atribuições e especificidades.
Dentro da equipe de AD, existe o audiodescritor roteirista, o au-
diodescritor narrador e o consultor. O roteirista é o profissional que faz a
tradução das imagens e estímulos sonoros, que não se pode compreen-
der, para palavras. É quem toma as decisões tradutórias e descreve as
imagens para elaborar o roteiro, pensa a estrutura da AD dentro de deter-
minada produção cultural, redige o texto, calcula o tempo e os espaços
em que a AD poderá ser inserida.
O audiodescritor narrador é aquele que realiza a locução do ro-
teiro, observando a entonação, a velocidade e a modulação da voz a fim
de torná-la a mais adequada possível para a compreensão do público.

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Audiodescrição: práticas e reflexões

O roteirista e o narrador podem ou não ser a mesma pessoa, já que em


alguns casos ocorre a acumulação das funções pelo mesmo profissional.
O consultor em AD é necessariamente uma pessoa com deficiên-
cia visual – cega ou com baixa visão – que avalia a pertinência e a qualida-
de do roteiro de audiodescrição. Ao analisar o roteiro, sugere alterações
quando houver algum erro ou imprecisão, podendo também orientar so-
bre o uso de alguma palavra ou conceito mais pertinente e de fácil com-
preensão por parte dos usuários.
O consultor é aquele que realiza o controle de qualidade do pro-
duto a partir do ponto de vista dos usuários do recurso. O ideal é que
esteja presente em todas as equipes de produção de AD, atuando junto
com os demais profissionais em todas as etapas de trabalho, desde a
concepção do projeto até a realização do produto final.
Além de todas as vantagens que trataremos adiante, ter um con-
sultor na equipe proporciona ao roteirista e a todos os demais envolvidos
a melhoria da qualidade da AD produzida, pois as sugestões e observa-
ções de um usuário com formação para atuar na área auxilia no processo
com o aprendizado e qualificação do roteirista diante das opiniões dadas
pelos consultores.
Assim, qual o perfil do consultor em AD? Que tipo de conheci-
mentos, habilidades e experiências essa pessoa deve ter? E mais do que
isso: qualquer pessoa com deficiência visual pode ser considerada um
consultor em AD? Essas e outras questões serão discutidas na sequência.

O audiodescritor consultor e suas


possibilidades de atuação

De modo geral, acredito que o estudo e o conhecimento científico


em diferentes áreas venham a agregar na qualidade de trabalho do con-
sultor. E a partir disso, começamos a responder uma das perguntas dei-
xadas em aberto: Que tipo de conhecimentos, habilidades e experiências
o consultor deve ter?
Todas as pessoas com deficiência visual seja cega ou com baixa
visão têm experiências de vida e de existência diferentes daquelas que
possuem os videntes. Seus modos de perceber o mundo, e nesse caso
específico, os produtos audiodescritos são muito importantes para a con-
cepção de um produto com qualidade e excelência.
No entanto, é preciso ponderar que a condição da deficiência vi-
sual não confere ao sujeito as ferramentas e os conhecimentos necessá-
rios para que este seja diretamente um consultor em AD simplesmente
por ter deficiência. Existe uma série de requisitos fundamentais para a
construção de uma consultoria qualificada. Em suma, toda pessoa com
deficiência visual pode ser um consultor, mas isso não significa que qual-

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Audiodescrição: práticas e reflexões

quer pessoa cega ou com baixa visão possa ser consultora pelo simples
fato de não enxergar ou enxergar pouco.
Diante das representações e estereótipos estabelecidos sobre as
pessoas com deficiência visual, imagina-se que todas pensam e agem
mais ou menos da mesma forma. No entanto, é preciso perceber que
existem muitas diferenças entre os membros desse grupo, dependendo
das circunstâncias de vida, do tipo de limitações físicas e/ou psicológicas
advindas da deficiência e outros fatores.
Da mesma maneira, sujeitos cegos e com baixa visão têm formas
diferentes de se relacionar com os produtos culturais, como por exemplo,
com o cinema. Assim, de acordo com Vilaronga (2010, p. 68):

[...] há públicos diferenciados para produtos audiovisuais, sendo


este um ponto comum também entre pessoas visualmente limi-
tadas. Existem os cegos de nascença, os cegos adventícios e,
nos dois grupos, há ainda os que foram ou não estimulados pela
família a assistir filmes; os que permanecem distantes da arte
cinematográfica, por serem cegos e carregar o estigma de cine-
ma não ser “coisa” para cego; os que por terem nascidos cegos
não têm a imagem como constitutiva de sua formação; e os que
descobriram o gosto por cinema depois de adultos.

Por conta dessas diferenças de perceber o mundo e de lidar com


os produtos culturais, é preciso compreender que cada consultor terá
mais apreço por um ou outro tipo de produto a ser descrito, bem como
terá conhecimentos e habilidades para atuar mais competentemente em
alguns trabalhos, afinal:

[...] deve-se perceber que as pessoas com deficiência visual


constroem seu conhecimento a partir dos mesmos conceitos e
referências visuais daqueles que veem, mas o fazem de modo
próprio: com suas experiências, através de todos os sentidos
que possuem, como o tato, o olfato, a audição etc. As dificulda-
des para a pessoa com deficiência visual apreender o que está
sendo exibido não decorrem da falta de referências visuais, mas
da maneira pela qual estas lhes foram transmitidas de modo a
formar seus conceitos. (MOTTA, 2010)

Por outro lado, há uma série de características que podem ser


fundamentais para um consultor em AD. Isso não significa que sejam as
únicas formas de se fazer, nem que sejam tomadas como verdades incon-
testáveis sobre esse tema. Porém, acredito que as diversas experiências
pessoais e profissionais me confere relativa possibilidade para colocar a
questão em debate, propondo pontos de vista - que podem ou não estar
de acordo com o que pensa o leitor.
Ser uma pessoa com deficiência visual é um fator importante para
que o consultor saiba aquilo que deve conter a descrição, para que seja
compreendida e para que se transmitam os sentimentos contidos nas

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Audiodescrição: práticas e reflexões

imagens. Isso não quer dizer que todas as pessoas com deficiência vi-
sual tenham as mesmas necessidades ou que todos sintam e percebam o
mundo da mesma maneira.
Porém, cabe ao consultor expressar o que acredita que seria com-
preendido pela maioria das pessoas cegas e com baixa visão mesmo diante
de sua ampla diversidade. Eis uma de suas maiores responsabilidades: ates-
tar enquanto usuário pela qualidade e eficiência de um produto que será
destinado e multiplicado a tantas outras pessoas com deficiência visual.
A pluralidade existente entre as pessoas com deficiência visual
faz com que dificilmente haja consenso sobre qual a melhor forma de
descrever e de realizar a consultoria. É quase impossível realizar consul-
torias contemplando as especificidades de todas as pessoas desse grupo.
Assim, o que buscamos é atingir adequadamente a um público médio.
De minha parte, embora tenha baixa visão tento sempre perceber
a necessidade da maior parte das pessoas cegas, dado que aqueles que
têm baixa visão ainda conseguem obter algum tipo de estímulo visual.
Mais do que isso, procuro estabelecer diálogos constantes com outros
“colegas” com deficiência visual, com o objetivo de entender a necessi-
dade e os desejos de uma parcela considerável desse grupo, e não só
daquilo que imagino ser o mais adequado.
É fundamental que o consultor de AD tenha uma série de
competências que lhe permitam construir um pensamento critico e in-
terpretativo que proporcione a ele condições de aferir a qualidade e a
clareza do texto feito pelo roteirista. Isso significa que é preciso que o
consultor possua um mínimo de escolaridade, ou até trajetória acadêmi-
ca e trajetória de vida, que lhe confiram capacidade para refletir sobre
seu trabalho, tendo uma visão de mundo aguçada aliada ao fato de estar
sempre bem informado sobre o que acontece em nossa sociedade.
Também se faz necessário que possua um bom conhecimento da
língua portuguesa, tanto em sua estrutura e gramática, quanto em seu am-
plo vocabulário e seu uso adequado em diferentes contextos linguísticos e
sociais. A substituição de um adjetivo por outro mais pertinente pode ser
crucial para a interpretação adequada da AD de determinado produto.
O consultor em AD deve também dominar a temática do produto
a ser descrito. Caso não domine o tema completamente, a pessoa deve
ser capaz de pesquisar sobre o assunto e cercar-se de todo embasamento
possível para que possa expressar-se de modo claro e seguro, emitindo
opiniões bem fundamentadas e pertinentes para a compreensão da obra
ou produto cultural.
Se é verdade que para uma pessoa com deficiência visual exercer
a função de consultoria deve desenvolver competências para tal, também
é verdade dizer que uma equipe que objetive fazer AD sem consultoria
específica da pessoa com deficiência visual é, em minha opinião, uma
equipe incompleta.
É algo imperioso para a qualidade do trabalho as percepções do

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Audiodescrição: práticas e reflexões

sujeito cego ou com baixa visão, dado que o ponto de vista daquele
que vivencia a necessidade de uma descrição é insubstituível. Nenhuma
sensibilização ou tentativa de vendar os olhos ou assistir a um filme de
olhos fechados equivale à experiência da deficiência na prática, afinal,
colocar-se no lugar do outro é fundamental, mas ser o outro e viver suas
experiências não é algo possível.

Experimentando a consultoria

Haver alguém com deficiência visual na equipe de audiodescrito-


res é também um posicionamento político no sentido de propor que os
sujeitos passem de plateia à protagonista. Isso põe em xeque algumas
medidas que podem parecer advindas de uma espécie de assistencialis-
mo governamental ou da sociedade no sentido de estabelecer posições
sociais fixas a certos grupos minoritários.
Uma das implicações da consultoria em AD, é demonstrar que
pessoas com baixa visão ou cegas, podem exercer funções para além
daquelas que comumente lhes são oferecidas no mercado de traba-
lho, estando de acordo com a qualificação e formação de cada uma
dessas pessoas.
Além disso, a presença do consultor dá credibilidade ao trabalho
da AD, que passa a ser testado e aperfeiçoado por uma pessoa que, aci-
ma de tudo, representa esse público consumidor de AD. A pessoa com
deficiência visual identifica-se com o consultor, sentindo-se contemplada
na maioria das vezes por saber que o trabalho contou com “alguém como
ele” atuando no processo.
Os próprios consultores, por suas diferentes vivências, convívio
e redes de relacionamento, têm papel preponderante na divulgação do
recurso da AD entre as pessoas com deficiência visual. Além disso, o con-
sultor é aquela pessoa que deve primar constantemente pela qualidade
da AD e para que esse trabalho seja sempre entendido com seriedade e
realizado por profissionais competentes.
Mais do que reivindicar a necessidade do consultor em uma equi-
pe de AD – que já é um entendimento comum entre a maioria das pessoas
que trabalham na área -, é importante mostrar o quanto o produto pode
ganhar, em termos de qualidade e eficiência.
Um exemplo interessante para trazer ao debate é a foto da expo-
sição Sombras e Lugares3, chamada: “Porto, Portugal, 2007”, cujo roteiro
teve como primeira versão o seguinte texto:

3 Exposição realizada em 2012 na Universidade Federal do Rio Grade do Sul em que 12


fotos foram audiodescritas em um evento ao vivo na Reitoria da universidade.

16
Audiodescrição: práticas e reflexões

Porto, Portugal, 2007 - O horizonte divide de um lado a outro


o céu e o mar, aparentemente com iguais proporções. Pequena
silhueta de um banhista abaixo à direita, com água pela cintu-
ra, braço esquerdo erguido, com a mão na altura da cabeça. O
por do sol inunda e mescla a paisagem com tons avermelhados
e laranja. O sol, de um amarelo ofuscante, está à direita e pa-
rece mergulhar antes em uma camada de nuvens condensadas
acima do horizonte, outras nuvens esparsas pelo céu. As águas
são levemente encrespadas e tranquilas, (típicas do norte de
Portugal). Uma série de três pequenas ondulações corre para
a maré, que não está visível. Há uma relação visual oblíqua
entre o sol e o banhista, o qual não se identifica se é criança
ou adulto.

Diante desse texto, fizemos alguns questionamentos à rotei-


rista: 1) Esse banhista que aparece na imagem é homem ou mulher,
adulto ou criança? É possível saber?; 2) As “águas típicas do norte de
Portugal” não seria uma informação privilegiada? Somente olhando a
foto, temos como saber que essas águas são típicas dessa região?; 3)
A palavra “maré” não estaria usada equivocadamente? O correto não
seria “beira” da praia?. Após os apontamentos a versão final, reescri-
ta pela autora e apresentada ao vivo na sessão de AD das fotos, foi
a seguinte:

Porto, Portugal, 2007. A linha do horizonte divide de um


lado a outro o céu e o mar em proporções equivalentes.
Abaixo, à esquerda, a pequena silhueta de um banhista com
água pela cintura. Não se identifica se é criança ou adulto.
Seu braço esquerdo está erguido, com a mão na altura da
cabeça, enquanto o punho direito mergulha na água. O por-
do-sol inunda e mescla a paisagem com tons avermelhados
e laranja. O Sol, de um amarelo ofuscante, está à direita e
semi-encoberto por uma camada de nuvens acima do hori-
zonte. Seus últimos raios tingem de cobre as águas leve-
mente onduladas e tranquilas. Uma série de três marolas
desliza para a beira.

Cada consultor estabelece um método de trabalho específico com


a equipe para quem realiza os serviços. Mesmo assim, a situação ideal é
quando nós consultores temos acesso ao projeto desde seu princípio, e
que exista um diálogo franco com o roteirista, que precisa estar sempre
aberto a receber as observações do consultor que permitem a melhoria
da qualidade dos roteiros de audiodescrição.
Ainda assim, há algumas situações encontradas nos roteiros de
AD que são mais comuns do que outras. Trago algumas delas aqui em
forma de excertos para demonstrar alguns exemplos. Tenho o costume
de além de apontar onde está o efeito, sugerir uma solução para o que
entendo que deva ser corrigido, como nos casos a seguir:

17
Audiodescrição: práticas e reflexões

Muitas pessoas caminham em várias direções na rua de terra


molhada, entre elas os meninos e seus instrumentos. [quantas
mais ou menos?]4
Finalmente seus rostos se tocam. [há tempo para dizer e seria
importante contar que a câmera gira com os dois em close]5

É muito corriqueiro encontrarmos descrições com generalizações


que dificultem a formação da imagem, como: “muitas pessoas”, afinal, o
conceito sobre o que é muito ou pouco depende da subjetividade de cada
um, sem haver um dado concreto no qual se basear. Assim, idealmente,
sugerimos que seja apontada uma estimativa de quantos representam
essas “muitas pessoas”.
Uma questão um tanto controversa é a utilização de termos que
remetam diretamente à linguagem cinematográfica, como os movimen-
tos de câmera e enquadramento. Mas, sendo algo muito importante para
compreender a cena e fazendo parte do conjunto da obra, é preciso dei-
xar claro para o usuário da AD, caso contrário corre-se o risco de sonegar
informação fundamental para a fruição da obra.
Outra dificuldade dos roteiros são as maneiras de descrever as co-
res. Muitos descritores acreditam não ser necessário mencionar as cores
e suas variações. Creem que os usuários não achariam isso importante,
quando na verdade é algo fundamental, pois querendo ou não vivemos
em um mundo cuja visualidade é preponderante. Claro que determinadas
cores são mais difíceis de serem compreendidas e isso precisa ser levado
em conta no momento da descrição.
No entanto, é preciso ter em conta que as tonalidades como claro
e escuro não podem ser confundidas com cores. Às vezes há pouco tem-
po para fazer as descrições e isso ocasionam algumas imprecisões como
essas. A solução simples seria suprimir a palavra “cor”, e dizer que algo
é “claro” ou “escuro”, ainda que o ideal seja dizer antes qual a cor do que
fora descrito. Uma situação semelhante é apresentada no excerto abaixo:

A armação que sustentava o telhando ainda está ali, apesar de


queimada. Ela abre um baú de madeira. Tira de dentro um pon-
cho de cor clara [claro é tonalidade e não cor].
Trata-se de um rapaz muito bonito. [o que é um rapaz muito bo-
nito? Qual o conceito usado para definir?]

Quando a única descrição feita sobre algo ou alguém é apenas um


adjetivo como “bonito” ou “feio”, não provemos o usuário de informações
que permita a ele determinar que considera possível de adjetivar. Dizemos

4 Os grifos nos excertos representam as observações que faço sobre a parte do roteiro
que creio dever ser alterada, apresentando também uma solução ou questionamento.
5 Os excertos retirados de determinados roteiros de audiodescrição dos quais fiz a con-
sultoria não serão denominados com o objetivo de manter o anonimato. Mesmo porque,
a ideia não é olhar para quem os fez, e sim, de usá-los como exemplos.

18
Audiodescrição: práticas e reflexões

que “interpretar em demasia” causa embaraço e se configura como um pro-


blema de tradução na medida em que o julgamento de algo não faz parte
do processo. Assim, ao invés disso, o mais recomendável seria fornecer
elementos para que o próprio usuário conceituasse o que é descrito.
Por meio desses exemplos práticos de descrições, revisadas por
mim, busquei mostrar a relevância do trabalho de consultoria, ainda que
tenha sido uma amostragem pequena e muito ainda haja para ser dito so-
bre a questão, que necessita que outras tantas investigações sejam em-
preendidas para qualificar o trabalho de consultoria em audiodescrição.
Mais uma vez fica evidente a importância do trabalho feito por
uma equipe completa, composta por diversos profissionais, todos com-
petentes e bem preparados. Equipes que ao contarem com consultores
qualificados para essa função, além de seu trabalho técnico de revisão
dos roteiros, possa ser um elo entre o público e os profissionais que fa-
zem a AD.

Considerações finais

Tentamos com esse relato de experiência, expor nossas reflexões


e vivências enquanto consultores em AD, o que não significa ser a melhor
ou a única forma de fazer. O mais importante nesse momento de expan-
são da AD é que tragamos diversas temáticas ao debate, principalmente a
consultoria - algo fundamental, porém ainda pouco discutido por aqueles
que a executam.
Ainda há muito a apreender e a melhorar na prática e nas tenta-
tivas de fazer da consultoria em audiodescrição uma função importante
tanto para a realização dos produtos quanto para as reivindicações polí-
ticas e de protagonismo social das pessoas com deficiência. Espero tam-
bém, que cada vez mais esse trabalho seja tratado de modo profissional,
de tal modo que os consultores sejam valorizados em todos os sentidos,
e que estes se qualifiquem para realizar esse trabalho.
Respeito todas as opiniões em contrário, mas creio que a AD além
de um recurso de acessibilidade é um produto cultural. E como tal, mais
do que entendimento, deve transmitir informações e muitas sensações
naqueles que a consomem. Isso porque, sentir e emocionar-se também
com a AD dificilmente se conseguirá com uma AD “neutra”. Até porque, a
neutralidade é uma quimera a que muito poucos ainda buscam.
Não quero dizer com isso, porém, que a interpretação deve supe-
rar a informação. Acredito, sim, que se a informação puder ser repassada
de modo a provocar sensações em quem a ouve, será muito mais inte-
ressante do que uma descrição meramente informativa, sobretudo, em
produtos artísticos como no cinema ou no teatro, por exemplo.
Nas observações e sugestões feitas nos excertos de roteiros an-
teriormente citados, objetivamos, além de um melhor entendimento por

19
Audiodescrição: práticas e reflexões

parte das pessoas com deficiência visual, proporcionar ao público um


maior número de informações e sensações possíveis e com cada vez
mais qualidade.
Ainda nessa esteira de pensamento, a consultoria não é apenas
uma profissão essencial ao trabalho das equipes de AD, pois tem um
potencial que ultrapassa a questão de instrumentalizar o produto. No
momento em que a pessoa com deficiência visual é, ao mesmo tempo,
usuária e participe da construção de um produto cultural, isso lhe confere
também um papel de protagonista nos processos de produção cultural e
de criação de recursos de acessibilidade.
Diante de nossa experiência sentimo-nos muito mais identifica-
dos com a AD quando soubemos que pessoas cegas ou com baixa visão
faziam parte das equipes que trabalham com este recurso. Ou seja, o
fato de participar ativamente dos processos socioculturais proporciona
a esses sujeitos que tenham protagonismo no cenário da produção artís-
tica e cultural - o que é importantíssimo para eliminar os preconceitos e
barreiras atitudinais.
Além disso, esse processo de identificação com a AD e com os
produtos culturais fazem com que cada vez mais as pessoas com de-
ficiência visual desejem estar presentes na vida cultural, o que é frutí-
fero para diluir os estereótipos de vitimização e de inferioridade desse
grupo social.
Sendo assim, o trabalho em consultoria de AD exige uma série de
habilidades e competências por parte daqueles que desejam ingressar
nessa função. Ter domínio das técnicas efetuadas para audiodescrever,
aliada às percepções e vivências cotidiana desses indivíduos com defi-
ciência visual configuram um acréscimo fundamental para a qualidade
do produto. Esse ponto de vista confere uma forma diferente de pensar
e construir os projetos e produtos a serem audiodescritos, afinal, não há
sensibilização ou exercício que substitua a experiência cotidiana daque-
les que tem deficiência visual.
Assim como a AD ainda está em desenvolvimento no Brasil, a fun-
ção de consultor também é nova e requer uma detida reflexão sobre seus
processos e implicações, além das opções por quais caminhos deseja-
mos seguir. O objetivo aqui foi apresentar aspectos que acredito poder
contribuir para o debate e para a ampliação da quantidade e qualificação
dos consultores de AD. Ainda assim, sabemos que temos uma longa tra-
jetória pela frente, na medida em que a AD se prolifera e floresce com
mais intensidade no meio cultural. Além de pensarmos na constituição
de mais uma possibilidade de mercado para quem tem deficiência visual,
trabalhar com AD nos proporciona satisfação por auxiliar nos processos
de acessibilidade cultural.
Por fim, ainda há muito a pesquisar, aprender e a compartilhar
nesse admirável mundo novo da AD. Da mesma forma como fiz com os
textos revisados, procurei escrever sobre aquilo que incomoda, o que

20
Audiodescrição: práticas e reflexões

deve ser modificado além daquilo que satisfaz à maioria dos consultores
em AD. Então, há ainda árduos e prazerosos desafios pela frente, que
pretendo tatear, sentir suas nuances e fazer da AD, não só um recurso
de acessibilidade, mas um mundo de possibilidades inclusive no âmbito
político de empoderamento das pessoas com deficiência visual.

Referências

MOTTA, Lívia Maria Villela de Mello; ROMEU FILHO, Paulo. Transformando


imagens em palavras. São Paulo: Secretaria dos Direitos das Pessoas com
Deficiência do Estado de São Paulo; 2010.

MOTTA, Lívia Maria Villela de Mello. Audiodescrição – recurso de aces-


sibilidade para a inclusão cultural das pessoas com deficiência. Artigo
online s.d. Disponível em: <http://www.planetaeducacao.com.br/portal/
impressao.asp?artigo=1210>. Acessado em: 05 dez. 2015.

VILARONGA, Iracema. O potencial formativo do cinema e a audiodescri-


ção: olhares cegos. Dissertação de Mestrado. Salvador. UFBA. 2010.

21
Audiodescrição: práticas e reflexões

2
A (não)neutralidade
em roteiros de
audiodescrição-AD de filmes
de curta-metragem via
sistema de avaliatividade

Juarez Nunes de Oliveira Júnior1


Pedro Henrique Lima Praxedes Filho2

1 Professor EBTT do IFPE/Campus Belo Jardim. Doutorando no Programa de Pós-Graduação


em Linguística Aplicada-PosLa da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestre em
Linguística Aplicada pela UECE (2011), com dissertação intitulada “Ouvindo Imagens: A
Audiodescrição de Obras de Aldemir Martins”. Participa do grupo de pesquisa Tradução e
Semiótica do Laboratório de Tradução Audiovisual (LATAV) do PosLA-UECE. Tem experiência
na área de Letras, com ênfase, no escopo da Linguística Aplicada, em Tradução Audiovisual
Acessível e Ensino de Língua Inglesa. E-mail: juarezoliveirajr@gmail.com
2 Docente na Universidade Estadual do Ceará (UECE), em Fortaleza, Ceará. É licenciado em Letras
Português-Inglês pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Obteve os graus de especialista em
Ensino de Línguas Estrangeiras-Inglês e de mestre em Letras (área de concentração em Língua
Inglesa) na UECE. Possui título de doutor em Letras-Inglês e Literaturas Correspondentes (área de
concentração em Linguística Aplicada e linha de pesquisa ‘Desenvolvimento de Inglês como LE’),
obtido na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Fez estágio pós-doutoral no Laboratório
Experimental de Tradução (LETRA) do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos
(PosLin) da Faculdade de Letras (FALE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde
desenvolveu pesquisa em Tradução Audiovisual Acessível-Audiodescrição via Linguística
Sistêmico-Funcional/Sistema de Avaliatividade. É professor associado na UECE, onde atua no
Curso de Letras-Inglês e no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PosLA). Tem
experiência nas áreas de Linguística e Linguística Aplicada, atuando principalmente nos temas:
desenvolvimento/aprendizagem da língua inglesa como língua estrangeira ou segunda língua
e demais línguas adicionais (teoria cognitivista da interlíngua e teoria sociocultural), Linguística
Sistêmico-Funcional, lexicogramática, oralidade vs. escrita, Sistema da Avaliatividade/LSF e
Tradução Audiovisual Acessível-Audiodescrição. E-mail: pedro.praxedes@uece.br

22
Audiodescrição: práticas e reflexões

1. Introdução

A audiodescrição (AD) é um dispositivo linguístico desenvolvido


para atender as necessidades das pessoas com deficiência visual (PcDVs),
quer cegas ou com baixa visão, favorecendo-lhes a acessibilidade a
produtos (audio)visuais e contribuindo, assim, para o seu empoderamento,
especialmente como fruidoras de arte. A AD é estudada no âmbito da
Tradução Audiovisual Acessível3 (TAVa), vinculada à Tradução Audiovisual
(TAV), e tem como proposta descrever, em roteiros previamente escritos
a serem lidos por locutores, as informações apreendidas visualmente, as
quais – no caso específico de filmes, por exemplo –, não são contempladas
nos diálogos e diversos efeitos sonoros que integram a produção.
Foi nos EUA que a AD surgiu e, para que roteiros fossem
elaborados, audiodescritores americanos adotaram parâmetros
que, mais tarde, foram sistematizados no documento Standards for
Audio Description and Code of Professional Conduct for Describers4
da organização americana Audio Description Coalition5. Um dos
parâmetros chamou a atenção dos pesquisadores do Grupo
‘Legendagem e Audiodescrição’ (LEAD) da Universidade Estadual do
Ceará (UECE). Referimo-nos ao parâmetro da neutralidade do texto que
instancia o registro ‘roteiro de AD’, significando que os roteiros fossem
elaborados sem que o audiodescritor traspassasse quaisquer valores
de interpretação/avaliação para que as PcDVs pudessem construir
sozinhas seus próprios juízos de valor e as emoções suscitados pelo
objeto da AD. Assim, tornou-se regra sine qua non que os roteiros
fossem desprovidos da voz autoral dos audiodescritores.
O parâmetro da neutralidade chamou a atenção dos
pesquisadores do Grupo LEAD em função do fato de que são linguistas
e/ou linguistas aplicados. Essa formação lhes confere o conhecimento
apriorístico sobre a impossibilidade de realização linguística de
neutralidade em textos em geral, independentemente do registro que
instanciam (MARTIN; WHITE, 2005). Logo, o grupo decidiu propor
a desconsideração definitiva do citado parâmetro. Contudo, essa
decisão só lograria êxito caso sua impossibilidade fosse comprovada
empiricamente via roteiros de AD que tivessem sido elaborados em
conformidade com essa prescrição.
Portanto, a pesquisa, ora relatada, se propôs a estudar a existência
de (não)neutralidade em roteiros de AD de filmes de curta-metragem,
elaborados por audiodescritores para quem o parâmetro de neutralidade
era válido e possível. O aporte teórico-metodológico para a condução

3 Termo proposto por Aderaldo (2014).


4 Pode ser acessado em: http://www.audiodescriptioncoalition.org/adc_standards_09
0615.pdf
5 Seu sítio pode ser acessado em: http://www.audiodescriptioncoalition.org/index.htm

23
Audiodescrição: práticas e reflexões

da pesquisa foi o Sistema de Avaliatividade (SA), tal como proposto por


Martin e White (2005) dentro do escopo da Linguística Sistêmico-Funcional
(LSF) (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).
No âmbito do Grupo LEAD, em associação com o Laboratório
Experimental de Tradução (LETRA) da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), quem primeiramente tentou comprovar empiricamente
a (in)viabilidade de neutralidade em roteiros de AD foi Praxedes Filho e
Magalhães (2013; 2015). Esses pesquisadores, o primeiro da UECE e a
segunda da UFMG, utilizaram a interface com o SA para investigar um corpus
constituído por roteiros de AD de pinturas em língua portuguesa variante
brasileira (PB) e em língua inglesa variante norte-americana (IA). Contudo,
pesquisas que tratem de roteiros de AD de filmes de curta-metragem ainda
não haviam sido realizadas, o que justificou o presente estudo.
Praxedes Filho e Magalhães (2013; 2015) chegaram ao resultado
de que seis roteiros de AD de pinturas em PB e seis em IA, mesmo tendo
sido escritos sob a égide do parâmetro da neutralidade, eram altamente
avaliativos/interpretativos, tendo demonstrado a impossibilidade de
apagamento da voz autoral do audiodescritor para esse tipo de AD. A
partir do que foi feito por Praxedes Filho e Magalhães, o estudo aqui
relatado pretendeu atingir, relativamente a roteiros de AD de filmes de
curta-metragem, os seguintes objetivos: atestar a presença ou ausência
de avaliações/interpretações:
• quanto aos sentimentos acionados pelos curtas-metragens
nos audiodescritores;

• quanto à postura dos audiodescritores em relação aos seus


interlocutores e em relação às avaliações que produzem;

• quanto ao aumento ou diminuição do grau de intensidade


das avaliações presentes em seus roteiros (se presentes).

Para viabilizar a consecução dos objetivos, elaboramos as


seguintes perguntas:

• Os roteiros de AD são caracterizados pela presença ou


ausência de avaliações/interpretações quanto aos sentimentos acionados
pelos curtas-metragens?

• Os roteiros de AD são caracterizados pela presença ou ausência


de avaliações/interpretações quanto à postura dos audiodescritores em
relação aos seus interlocutores e em relação às avaliações que produzem?

• Os roteiros de AD são caracterizados pela presença ou


ausência de avaliações/interpretações quanto ao aumento ou diminuição
do grau de intensidade das avaliações presentes em seus roteiros (se
presentes)?

24
Audiodescrição: práticas e reflexões

Além desta ‘Introdução’, o capítulo contém ainda outras quatro


seções: na seguinte, abordamos aporte teórico-metodológico, na terceira,
o percurso metodológico do estudo, na quarta, os resultados e sua
discussão. Por fim, apresentamos considerações finais.

2. Sistema de Avaliatividade (SA)

Martin e White (2005), ao proporem sua teorização, afirmam


que o objetivo do Sistema de Avaliatividade (SA) é desenvolver e
estender, no âmbito da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), a área
dos significados relativos às relações intersubjetivas. Assim, o SA está
localizado no estrato da semântica e, nela, mais especificamente na
metafunção (ou função universal da linguagem verbal) interpessoal, não
tendo diretamente a ver nem com as representações das experiências
humanas cotidianas (metafunção ideacional) nem com a construção
de textos (metafunção textual). Vian Jr. (2009) corrobora com Martin e
White (2005), acrescentando que o SA pode ser visto como um sistema
da semântica discursiva, que é realizado lexicogramaticalmente, por
meio de diferentes estruturas gramaticais.
Ainda em Martin e White (2005), temos que o SA é, na verdade,
uma rede de sistemas, ou melhor, um conjunto de sistemas inter-
relacionados. No caso do SA, a rede de sistemas comporta até seis
níveis de delicadeza ou detalhamento/refinamento. Um sistema, por
sua vez, é um conjunto de termos dentre os quais o falante/escritor faz
escolhas. Cada rede de sistemas tem sua condição de entrada inicial, que
estabelece seu ambiente/escopo, possibilitando a entrada no sistema
de primeiro nível de delicadeza, denominado TIPOS DE AVALIATIVIDADE,
cujos termos são ‘atitude’ e/ou ‘engajamento’ e/ou ‘gradação’. Os
termos ‘atitude’, ‘engajamento’ e ‘gradação’, quando escolhidos, passam
a ser novas condições de entrada a sistemas mais refinados à direita
ou sistemas de segundo nível de delicadeza: TIPOS DE ATITUDE, TIPOS
DE ENGAJAMENTO e TIPOS DE GRADAÇÃO, respectivamente. Para este
estudo, consideramos a rede de sistemas de avaliatividade apenas até o
segundo nível de delicadeza.
Os termos do sistema TIPOS DE ATITUDE são ‘afeto’ e/ou ‘julgamento’
e/ou ‘apreciação’. Quanto ao sistema TIPOS DE ENGAJAMENTO, seus
termos são ‘monoglossia’ ou ‘heteroglossia’. Quando o sistema é TIPOS
DE GRADAÇÃO, seus termos são ‘força’ e/ou ‘foco’. A Figura 1 ilustra o
que foi mencionado:

25
Audiodescrição: práticas e reflexões

Figura 1 – Rede de sistemas de avaliatividade

até o segundo nível de delicadeza

Em seu primeiro nível de delicadeza, os termos/escolhas do


sistema TIPOS DE AVALIATIVIDADE abrangem os seguintes significados
interpessoais:
• ‘atitude’ – área de significados através dos quais o falante-
escritor avalia positiva ou negativamente e explícita ou implicitamente
seus sentimentos e os dos outros.
• ‘engajamento’ – área de significados através dos quais o
falante-escritor avalia seus próprios posicionamentos assumidos no texto
e os posicionamentos de outros no amplo universo da intertextualidade,
construindo-se identitariamente, projetando uma dada identidade para seu
interlocutor e estabelecendo, ou não, um elo de solidariedade com ele.
• ‘gradação’ – área de significados através dos quais o falante-
escritor avalia por meio da amplificação ou redução do grau das
avaliações atitudinais e das avaliações sobre os posicionamentos intra e
intersubjetivos de engajamento.
No segundo nível de delicadeza, os sistemas TIPOS DE ATITUDES,
TIPOS DE ENGAJAMENTO e TIPOS DE GRADAÇÃO apresentam os seguintes
termos/escolhas:

TIPOS DE ATITUDE:
• ‘afeto’ – remete aos sentimentos emotivos positivos e negativos
que demonstramos através da língua, como por exemplo: “O dia em que
eu deixei o orfanato – aquele foi um dia muito triste para mim”6 (p. 42)
(ênfase dos autores).
• ‘julgamento’ – remete a posições adotadas em relação ao
comportamento das pessoas, ou melhor, a sentimentos éticos, tal como
exposto no exemplo: “[...] nós podemos descrever você como brutal,
mas honesto”7 (p. 43) (ênfase dos autores).

6 Fonte: “[...] The day I left the Orphanage –that was a very sad day for me.” Todos os
exemplos foram retirados de Martin e White (2005). Esta e as demais traduções são de
nossa autoria.
7 Fonte: “[...] we could describe you as brutal, but honest.”

26
Audiodescrição: práticas e reflexões

• ‘apreciação’ – refere-se à aparência dos objetos, instrumentos,


produtos, elementos naturais ou mesmo das pessoas, tendo a ver com
sentimentos estéticos, como na frase: “Praticamente sem defeito, com
detalhes regionais impecáveis [...] [um romance de Michael Ondaatje]8”
(p. 43) (ênfase dos autores).

TIPOS DE ENGAJAMENTO
• ‘monoglossia’ – relacionada com asserções categóricas
que não permitem o questionamento ou que não dão margem à dialogia,
como no exemplo: “Os bancos foram gananciosos”9 (p. 100). Contudo,
para o registro mais geral ‘roteiro de AD’, Praxedes Filho e Magalhães
(2015) determinaram que as avaliações monoglóssicas se definem por
desvios descritivos assertivos (quando o audiodescritor, de modo não
modalizado, descreve o que não foi representado imageticamente) ou
inferências descritivas assertivas (quando o audiodescritor, de modo não
modalizado, tira conclusões não licenciadas pelo que foi representado
imageticamente).
• ‘heteroglossia’ – relacionada com o reconhecimento, por
parte do falante-escritor, de que existem outras vozes ou pontos de vista
acerca do assunto que está tratando, como em: “Em minha opinião, os
bancos têm sido gananciosos”10 (p. 100) (ênfase dos autores).
TIPOS DE GRADAÇÃO
• ‘força’ – remete a categorias que indicam intensidade
ou quantidade e realizam-se através de itens lexicais que denotam
intensificação – ‘muito’, ‘mais’, ‘menos’, ‘bastante’, ‘pouco’ etc. – ou que
denotam quantificação – ‘poucos’, ‘vários’, ‘uma grande quantidade
de’ etc. Um exemplo é: “muito triste” / “problema pequeno” – “muitos
problemas” (p. 141)11 (ênfases dos autores).
• ‘foco’ – remete a categorias não passíveis de graduação e
se referem à classificação prototípica dos seres, coisas, fenômenos ou
comportamentos, em termos de precisão, em que a participação em
uma categoria é reforçada (‘real’, ‘típico’), e em termos de mitigação (‘um
tipo de’, ‘uma espécie de’), em que a participação em uma categoria é
abrandada, como em: “Eles não tocam o verdadeiro jazz”12 (p. 137)
(ênfase dos autores).
Passamos, a seguir, à descrição do percurso metodológico adotado
na condução da pesquisa em relato.

8 Fonte: “[...] Virtually flawless, with impeccable regional details […]”


9 Fonte: “The banks have been greedy.”
10 Fonte: “In my view, the banks have been greedy.”
11 Fonte; “very sad” / “small problem” – “many problems”.
12 Fonte: “They don’t play real jazz.”

27
Audiodescrição: práticas e reflexões

3. Metodologia

3.1 Corpus

Para esta pesquisa, utilizamos dois roteiros de AD de curtas-


metragens de ficção, escritos em português brasileiro e produzidos por
alunos de graduação do curso de Letras da Universidade Estadual do
Ceará (UECE), que cursavam a disciplina ‘Projeto Especial VI–Tradução
audiovisual: audiodescrição de filmes de curta-metragem’ por nós
ministrada em formato de workshop, pois ensinamos não apenas a teoria
subjacente ao fazer AD como também os procedimentos práticos relativos
a esse fazer (discussão sobre as cenas a serem audiodescritas, linguagem
fílmica, escritura do roteiro usando o software ‘Subtitle Workshop’,
revisão, gravação do roteiro e edição). Os roteiros foram elaborados sob
o parâmetro da neutralidade conforme instrução nossa.
Em um primeiro momento, da parte prática, pedimos aos alunos
que elaborassem um roteiro para os curtas-metragens, partindo do
pressuposto de que a AD não podia ter interferências da voz avaliativa/
interpretativa do audiodescritor, ou seja, de que a AD deveria ser neutra.
Em um segundo momento, depois que os roteiros supostamente neutros já
estavam prontos, retomamos os pressupostos teóricos a fim de informar-
lhes sobre os resultados de Praxedes Filho e Magalhães (2013; 2015). Em
seguida, pedimos-lhes que refizessem os mesmos roteiros sendo o mais
possível avaliativos/interpretativos. No entanto, nosso corpus de análise
se restringiu exclusivamente aos primeiros roteiros.
Os roteiros foram elaborados para os curtas-metragens
‘Nossos parabéns ao Freitas’ (2003, 11 min, ficção, Brasil) de Felipe
Marcondes Sant´Angelo  (disponível em http://portacurtas.org.br/filme/
?name=nossos_parabens_ao_freitas) (doravante R1) e ‘Café com leite’ (2007,
18min, ficção, Brasil) de Daniel Ribeiro (disponível em http://portacurtas.
org.br/filme/?name=cafe_com_leite) (doravante R2). Faz-se mister apontar
que, enquanto R1 tem 529 palavras, R2 possui 572 palavras.

3.2 Procedimentos de categorização


e critérios de análise

Os roteiros foram categorizados isoladamente, e para cada um, a


categorização foi realizada nas hierarquias da palavra (presença de léxico
avaliativo?), dos grupos e das orações (presença de estrutura avaliativa?)
e entre orações (presença de texto avaliativo? Presença de avaliações
atitudinais explícitas ou implícitas?)
Para a resposta à primeira pergunta (presença ou ausência de
avaliações/interpretações quanto aos sentimentos acionados pelos curtas-

28
Audiodescrição: práticas e reflexões

metragens), as categorias analíticas foram: o primeiro termo/escolha


disponibilizado pelo sistema TIPOS DE AVALIATIVIDADE – ‘atitude’ – e os
termos/escolhas disponibilizados pelo sistema TIPOS DE ATITUDE: ‘afeto’
(sentimentos emotivos), ‘julgamento’ (sentimentos éticos) e ‘apreciação’
(sentimentos estéticos).
As categorias usadas para a resposta à segunda pergunta
(presença ou ausência de avaliações/interpretações quanto à
postura dos audiodescritores em relação aos seus interlocutores e
em relação às avaliações que produzem) foram: o segundo termo/
escolha disponibilizado pelo sistema TIPOS DE AVALIATIVIDADE –
‘engajamento’ – e os termos/escolhas disponibilizados pelo sistema
TIPOS DE ENGAJAMENTO: ‘monoglossia’ (posicionamentos assertivos) e
‘heteroglossia’ (posicionamentos dialógicos).
No que diz respeito à terceira pergunta (presença ou ausência de
avaliações/interpretações quanto ao aumento ou diminuição do grau de
intensidade das avaliações nos roteiros), sua resposta foi possibilitada por
meio do uso da categoria relativa ao terceiro termo/escolha disponibilizado
pelo sistema TIPOS DE AVALIATIVIDADE – ‘gradação’ – e das categorias
relativas aos termos/escolhas disponibilizados pelo sistema de TIPOS DE
GRADAÇÃO: ‘força’ (graus de quantidade e intensidade) e ‘foco’ (graus de
prototipicalidade e precisão).
A análise teve um viés descritivo e quantitativo. Assim como em
Praxedes Filho e Magalhães (2013; 2015), fizemos um levantamento,
por roteiro, dos números absolutos das ocorrências das categorias
presentes nos dois primeiros níveis de delicadeza da rede de sistemas de
avaliatividade. Os números absolutos foram transformados em Índices
de Frequência Simples (IFS)13 – um recurso estatístico utilizado para
se compensar os números de palavras diferentes em cada roteiro –, e,
posteriormente, em percentuais14.
A fim de que cada roteiro seja considerado neutro, é necessário
que a resposta às três perguntas evidencie a ausência simultânea de
avaliações/interpretações de ‘atitude’, ‘engajamento’ e ‘gradação’. Cada
roteiro é avaliativo/interpretativo se, de modo suficiente, a resposta
a só uma das três perguntas demonstre a presença de avaliação/
interpretação da perspectiva ou da ‘atitude’ (é suficiente haver ou ‘afeto’
ou ‘julgamento’ ou ‘apreciação’) ou do ‘engajamento’ (é suficiente haver
ou ‘monoglossia’ ou ‘heteroglossia’) ou da ‘gradação’ (é suficiente haver
ou ‘força’ ou ‘foco’).

13 Número de ocorrências de um dado traço linguístico por cada 1.000 palavras de


texto = número de ocorrências do traço dividido pelo total de palavras de cada roteiro,
com o resultado multiplicado por mil.
14 Para as categorias relativas aos sistemas de segundo nível de delicadeza, os
percentuais foram calculados com base nos IFS totais de cada roteiro.

29
Audiodescrição: práticas e reflexões

4. Resultados e discussão

A Tabela 1 mostra os resultados quantitativos da ocorrência das


categorias avaliativas até o segundo nível de delicadeza.

Tabela 1 – IFS e percentuais das categorias avaliativas


até o segundo nível de delicadeza por roteiro

TIPOS DE AVALIATIVIDADE
‘atitude’ ‘engajamento’ ‘gradação’
IFS % IFS % IFS %
R1 115,3 73,5 20,8 13,2 20,8 13,2
R2 108,4 73,8 17,5 11,9 21,0 14,3
TIPOS DE TIPOS DE
TIPOS DE ATITUDE
ENGAJAMENTO GRADAÇÃO
‘mono ‘hetero
‘afeto’ ‘julgamento’ ‘apreciação’ ‘força’ ‘foco’
glossia’ glossia’
IFS % IFS % IFS % IFS % IFS % IFS % IFS %
R1 60,5 38,5 39,7 25,3 15,1 9,6 20,8 13,2 0,0 0,0 17,0 10,8 3,8 2,4
R2 50,7 34,5 31,5 21,4 26,2 17,8 17,5 11,9 0,0 0,0 21,0 14,2 0,0 0,0

A tabela mostra que os audiodescritores que elaboraram os dois


roteiros de AD dos curtas-metragens, especificados na Subseção 3.1,
mesmo acreditando que estavam sendo neutros, foram avaliativos/
interpretativos. E o foram do ponto de vista das três categorias relativas
ao primeiro nível de delicadeza da rede de sistemas de avaliatividade.
Nesse nível de delicadeza, R1 e R2 são avaliativos/interpretativos
de modo semelhante, com o ranqueamento das categorias tendo sido para
ambos: ‘atitude’ > ‘engajamento’ > ‘gradação’. Além disso, os percentuais
por categoria são próximos.
Visto que o critério a favor da avaliação/interpretação é a ocorrência
de pelo menos uma das categorias de primeiro nível de delicadeza, já
podemos inferir, mesmo antes da apresentação das respostas às perguntas
de pesquisa, que, no âmbito do corpus da pesquisa aqui relatada, os
roteiros de AD para curtas-metragens de ficção não são caracterizados
pela ausência, mas pela presença marcante de avaliações/interpretações.
Na seção seguinte, detalhamos os resultados por pergunta formulada.

4.1 Primeira pergunta

Inicialmente, indagamos se os roteiros de AD são caracterizados


pela presença ou ausência da avaliações/interpretações quanto aos
sentimentos acionados pelos curtas-metragens nos audiodescritores.
Assim como relatado, os sentimentos são tratados no SA via

30
Audiodescrição: práticas e reflexões

TIPOS DE ATITUDE. Quanto a esse sistema, a Tabela 1 mostra que os dois


roteiros são avaliativos/interpretativos o mais abrangentemente possível,
pois os audiodescritores avaliaram/interpretaram relativamente a todos
os termos: ‘afeto’, ‘julgamento’ e ‘apreciação’. Pelo critério estabelecido
aprioristicamente e apresentado na Subseção 3.2, a presença de somente
uma das categorias teria sido suficiente.
Novamente, R1 e R2 são mais, avaliativamente, semelhantes do
que diferentes. A semelhança tem a ver com um ranqueamento igual
entre os termos – ‘afeto’ > ‘julgamento’ > ‘apreciação –, e com percentuais
próximos para ‘afeto’ e ‘julgamento’. A diferença recai somente sobre o
fato de que, para ‘apreciação’, sua frequência de ocorrência é cerca do
dobro em R2.
A presença maior de ‘afeto’ e ‘julgamento’ deve ter sido motivada
pelo fato de que filmes têm personagens e seus sentimentos emotivos
(questões do coração) e éticos (comportamentos) devem ter sido avaliados.
A ‘apreciação’ se volta mais para a aparência de coisas e fenômenos e sua
frequência de ocorrência ter sido mais baixa deve ser explicada pelo fato
de os audiodescritores poderem ter priorizado, em decorrência da restrição
de espaço e tempo com a qual trabalham, os sentimentos dos personagens
sobre a aparência de aspectos como cenário, iluminação, fotografia.
A seguir, mostramos exemplos no Quadro 1:

QUADRO 1 – Exemplos de TIPOS DE ATITUDE

ROTEIRO EXCERTO CATEGORIA


Ela se aproxima do marido e
R1 ‘atitude’ – ‘afeto’
tenta beijá-lo.
Inês cuida dos seus
R1 ‘atitude’ – ‘julgamento’
machucados.

R1 papéis esvoaçantes ‘atitude’-‘apreciação’

R2 Marcos sorri. ‘atitude’ – ‘afeto’

Marcos e Danilo se entreolham


R2 na cama, enquanto Lucas deita ‘atitude’ – ‘julgamento’
entre os dois.

R2 Tela preta. ‘atitude’ – ‘apreciação’

Os exemplos corroboram a discussão no penúltimo parágrafo


acima.

31
Audiodescrição: práticas e reflexões

4.2 Segunda pergunta

Em relação à segunda pergunta, averiguamos se os roteiros são


caracterizados pela presença ou ausência da avaliações/interpretações
quanto à postura dos audiodescritores em relação aos seus interlocutores
e em relação às avaliações que produzem.
Como anteriormente indicado, a dialogia é abordada no SA no
domínio do sistema TIPOS DE ENGAJAMENTO. Pela Tabela 1, vê-se que,
mais uma vez, os roteiros se comportam de maneira semelhante, com os
audiodescritores tendo avaliado/interpretado apenas por ‘monoglossia’
com percentuais de frequência de ocorrência próximos. Contudo, a
ausência de ‘heteroglossia’ não significa que esta pergunta deva ser
respondida de modo a sugerir que R1 e R2 se caracterizem pela ausência
de avaliação/interpretação de ‘engajamento’, pois, em conformidade
com o critério estabelecido na Subseção 3.2, a presença de só uma das
categorias é suficiente.
Considerando-se que a ‘heteroglossia’ é o protótipo da dialogia
(o falante/escritor traz para o texto não só seus próprios juízos de
valor como também os de outros, alinhando-os ou não com os deles e
negociando com o ouvinte/leitor uma relação de solidariedade ou não),
sua ausência significa que R1 e R2 contêm apenas proposições do tipo
assertivas categóricas (não modalizadas), o que explica a ocorrência
exclusiva do termo/escolha ‘monoglossia’.
Apesar de a ‘monoglossia’ ser “dialogicamente inerte”15 (MARTIN;
WHITE, 2005, p. 99), por construir os juízos de valor do falante/
escritor como não problematizáveis ou naturalizados, ela assim não
se comporta em R1 ou R2 tendo em vista a definição atribuída a ela
no escopo do registro ‘roteiro de AD’: desvios descritivos assertivos
ou inferências descritivas assertivas (Ver Seção 2). Na verdade, por
essa definição, ela passa a ter força dialógica máxima porque o
audiodescritor descreve o que pensa que ver tanto quando se desvia
quanto quando infere. Logo, o que diz sobre o objeto da AD no roteiro
passa a ser altamente problematizável e desnaturalizado, sendo
passível de contra-argumentação mediata por parte do interlocutor.
Portanto, ao final e ao cabo, a ‘monoglossia’ tal como aqui definida é o
cúmulo da avaliação/interpretação.
A seguir, no Quadro 2, há trechos dos roteiros de AD contendo
exemplos de TIPOS DE ENGAJAMENTO.

15 Fonte: “[...] dialogistically inert [...]”.

32
Audiodescrição: práticas e reflexões

Quadro 2 – Exemplos de TIPOS DE ENGAJAMENTO

ROTEIRO EXCERTO CATEGORIA


‘engajamento’
R1 Inês faz caretas.
–‘monoglossia’

‘engajamento’
R2 Marcos está ao seu lado.
–‘monoglossia’

No primeiro exemplo, o personagem Inês não está fazendo


caretas (desvio descritivo), mas isso é assegurado pelo audiodescritor
sem modalização (Inês parece estar fazendo caretas). O segundo exemplo
funciona igualmente: o personagem Marcos não está exatamente ao lado
do outro personagem, mas o contrário é afirmado categoricamente,
passando a ser a proposição em questão pura avaliação/interpretação da
parte do audiodescritor.

4.3 Terceira pergunta

A última pergunta proposta indaga se os roteiros de AD são


caracterizados pela presença ou ausência da avaliações/interpretações
quanto ao aumento ou diminuição do grau de intensidade das avaliações
presentes em seus roteiros. Já demonstramos que tanto os sentimentos
quanto os posicionamentos dialógicos estão presentes nos roteiros de AD
dos curtas-metragens, o que nos autoriza a revelar se esses sentimentos
e posicionamentos são amplificados ou reduzidos.
A ampliação ou redução dos sentimentos e posicionamentos
dialógicos é tratada no SA dentro do escopo do sistema TIPOS DE
GRADAÇÃO. Para esse sistema, percebemos na Tabela 1 que – enquanto
R1 é totalmente avaliativo/interpretativo, contendo ‘força’ e ‘foco’ –, R2
só o é parcialmente dada à ausência de ‘foco’. Não há dúvida, portanto,
de que, quanto a R1, a terceira pergunta deve ser respondida no sentido
de que a caracterização desse roteiro se dá pela presença de avaliação/
interpretação de ‘gradação’. Apesar da parcialidade do resultado relativo
a R2, para ele a terceira pergunta deve ser respondida tal como o foi
relativamente a R1. Não custa relembrar que isso se justifica por meio
do critério de que a presença de uma única das categorias por sistema é
condição suficiente.
A semelhança dos resultados se repete aqui também. Quanto ao
ranqueamento das categorias, R1 e R2 são avaliativos/interpretativos
em ‘gradação’ porque tem-se, para ambos, o seguinte: ‘força’ > ‘foco’.
Quanto às frequências de ocorrência, são próximas mais uma vez. Essa
semelhança e as demais, nos dois níveis de delicadeza, deve decorrer do

33
Audiodescrição: práticas e reflexões

fato de que são roteiros de AD de curtas-metragens que pertencem ao


mesmo gênero fílmico: ficção.
A baixa frequência de ocorrência de ‘gradação’ pode ser um reflexo
da ausência de ‘engajamento’-‘heteroglossia’. Se os audiodescritores
escolheram ser categóricos – evitando a área de significados indeterminados
que caracterizam, em grande parte, a heteroglossia –, devem também ter
escolhido evitar quantidades e intensidades indefinidas (‘força’) (alguns
alunos / muito velozmente) e a não prototipicalidade ou imprecisão
(‘foco’) (tipo um amigo).
Vale considerar que tanto o ‘engajamento’-‘heteroglossia’
quanto ‘gradação’ precisam de mais itens lexicais para sua realização
lexicogramatical: ela está aqui (‘monoglossia’) vs. ela pode estar aqui
(heteroglossia) / há pessoas (sem ‘gradação’) vs. há poucas pessoas
(com ‘gradação’). Essa pode ser a explicação para a baixa frequência de
ocorrência de ‘gradação’ e a ausência de ‘engajamento’-‘heteroglossia’. Se,
via de regra, demandam mais itens lexicais, acabam por serem evitados
para que o texto do roteiro consiga se ajustar aos espaços e tempos
curtos das cenas sem diálogo.
Exemplos retirados dos roteiros são apresentados a seguir no
Quadro 3.

Quadro 3 – Exemplos de TIPOS DE GRADAÇÃO

ROTEIRO EXCERTO CATEGORIA

Sua esposa coloca mais


R1 ‘gradação’ – ‘força’
linguiças na mesa para assar.

Em sua imaginação, em tons


R1 ‘gradação’ – ‘foco’
avermelhados...

Eles estão sentados em um


R2 ‘gradação’ – ‘força’
parque com muitas árvores.

No segundo exemplo, a realização do significado de ‘foco’ se dá


pelo sufixo ‘ado’, que denota imprecisão em relação ao protótipo de cor
vermelha. É o mesmo que acontece em inglês com o sufixo ‘ish’ (redish).
Dado que a característica dos roteiros de AD dos curtas-
metragens do corpus é marcada pela presença de avaliações/
interpretações pertencentes às três áreas de significados avaliativos
nos dois primeiros níveis de delicadeza da rede de sistemas de
avaliatividade, podemos afirmar que os audiodescritores, apesar
de previamente terem sido instruídos a utilizarem o parâmetro da
neutralidade na elaboração de seus roteiros, não obtiveram êxito.
Não poderia ter sido diferente uma vez que não existe a possibilidade

34
Audiodescrição: práticas e reflexões

de haver neutralidade em língua, o que fica claro ao lermos o que


dizem Martin e White (2005): “[...] as asserções categóricas… são tão
carregadas intersubjetivamente e, portanto, ‘posicionadas’ quanto
os enunciados que contêm marcadores mais explícitos de opinião ou
atitude”16. Esse resultado corrobora os resultados de Praxedes Filho e
Magalhães (2013 [língua inglesa]; 2015 [língua portuguesa]), segundo
os quais os roteiros de AD de pinturas em PB e em IA são avaliativos/
interpretativos quanto a todas as categorias e o são também de forma
semelhante, tendo sido as categorias mais presentes as de ‘atitude’-
‘apreciação’ e ‘gradação’-‘força’ (as pinturas foram avaliadas em sua
aparência e a percepção sobre a aparência foi graduada).

5. Considerações finais

Ressaltamos que o tamanho do corpus, dois roteiros de AD de


curtas-metragens, gênero ficção, totalizando 1.101 palavras, é pequeno.
Contudo, parece-nos ser possível afirmarmos, como o fizeram Praxedes
Filho e Magalhães (2013; 2015), que não existe neutralidade em roteiros
de AD, quer sejam de filmes de curta-metragem, quer sejam de pinturas.
Esta afirmação se justifica pelo fato de que avaliamos como eficiente
e robusto o aparato metodológico, o que nos viabilizou atingirmos os
objetivos estabelecidos e respondermos as perguntas levantadas de modo
adequado. Julgamos que a eficiência e robustez do aparato metodológico
decorra da escolha que fizemos pelo SA no âmbito da teoria linguística LSF.
Sendo assim, o SA-LSF se mostrou, mais uma vez, adequado para o fim
de demonstrar empiricamente que roteiros de AD elaborados sob a égide
do parâmetro da neutralidade são, de fato, tão avaliativos e interpretativos
como qualquer outro tipo de texto. Portanto, a interface TAVa-AD – SA-LSF se
mostrou produtiva.
Esperamos que nossos resultados, ao serem associados aos de
Praxedes Filho e Magalhães (2013; 2015), representem um passo a mais
rumo ao objetivo maior de convencer a profissão de audiodescritor de
que o parâmetro da neutralidade tem que ser abolido definitivamente.
Não temos dúvida de que as PcDVs vão se beneficiar, pois, com certeza,
seu acesso a produtos culturais (audio)visuais se dará por meio de
roteiros de AD muito mais interessantes. Esperamos, ainda, contribuir
com a formação de novos audiodescritores.
Resta-nos, agora, indagar sobre a possibilidade de existência de
um estilo avaliativo de roteiro de AD (uma espécie de ‘impressão digital’
avaliativa). Um olhar atento aos resultados mostrados na Tabela 1 indica
que, para o corpus usado na pesquisa que ora acabamos de relatar,

16 Fonte: “[...] categorical … assertions … are just as intersubjectively loaded and hence
‘stanced’ as utterances including more overt markers of point of view or attitude”.

35
Audiodescrição: práticas e reflexões

parece emergir um padrão avaliativo caracterizado pela predominância de


avaliações/interpretações atitudinais de ‘afeto’ e ‘julgamento’17. A fim de
verificar se essa não é apenas uma tendência aleatória, sugerimos que o
presente estudo seja replicado com corpus ampliado de curtas-metragens
do gênero fílmico ficção e de outros gêneros fílmicos com o propósito de
evidenciar se o possível estilo avaliativo varia com o gênero do filme.

Referências bibliográficas

ADERALDO, M. F. Proposta de parâmetros descritivos para Audiodescrição à luz


da interface revisitada entre Tradução Audiovisual Acessível e semiótica social
– multimodalidade. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) – Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. An introduction to functional


grammar. 3.ed. London: Arnold, 2004.

MARTIN, J. R.; WHITE, P. R.R. The language of evaluation: appraisal in


English. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2005.

PRAXEDES FILHO, P. H. L.; MAGALHÃES, C. M. A neutralidade em


audiodescrições de pinturas: resultados preliminares de uma descrição
via Teoria da Avaliatividade. In: ARAÚJO, V. L. S.; ADERALDO, M. F. (Orgs.)
Os novos rumos da pesquisa em audiodescrição no Brasil. Curitiba: CRV,
2013, p. 73-87.

_____; _____. Audiodescrições de pinturas são neutras? descrição de um


pequeno corpus em português via sistema de avaliatividade. In: PONTES,
V. de O.; CUNHA, R. B.; CARVALHO, E. P. de; TAVARES, M. da G. G. (Orgs.) A
tradução e suas interfaces: múltiplas perspectivas. Curitiba: CRV, 2015,
p. 99-130.

STANDARDS FOR AUDIO DESCRIPTION AND CODE OF


PROFESSIONAL CONDUCT FOR DESCRIBERS. Disponível em:
<http:audiodescriptioncoalition.org/adc_standards_090615.pdf>. Acesso
em: 10 jan. 2012.

VIAN JR., O. O sistema de avaliatividade e os recursos para gradação em


língua portuguesa: questões terminológicas e de instanciação. DELTA, v.
25, n. 1, p. 99-129. 2009.

17 Relembramos que Praxedes Filho e Magalhães (2013; 2015) encontraram, em ambas


as línguas, o padrão caracterizado por ‘atitude’-‘apreciação’ e ‘gradação’-‘força’ em seus
roteiros de AD de pinturas.

36
Audiodescrição: práticas e reflexões

Impactos da
audiodescrição de
charges políticas para
o leitor com
deficiência visual

Melina Cardoso de Paula Braghirolli1

Resumo: Este artigo tem o objetivo de debater a importância da


audiodescrição das charges políticas de um jornal para o público com
deficiência visual. Veículos de grande circulação no Brasil usam e abusam
de imagens para ilustrar suas reportagens. Fotografias, gráficos, vídeos
e as próprias charges são alguns exemplos de materiais encontrados

1 Jornalista, formada pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), em 2007.
Especializada em Audiodescrição pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2015, es-
pecializada em Jornalismo Político, Econômico e Cultural pela FIAM (Faculdades Integradas
Alcântara Machado), em 2009. Responsável pela implantação da acessibilidade na TV Folha
(departamento de vídeos do jornal Folha de S.Paulo). O jornal foi o primeiro veículo de co-
municação de grande circulação a disponibilizar vídeos com reportagens acessíveis na web.

37
Audiodescrição: práticas e reflexões

diariamente nos jornais impressos e nos sites dos grandes portais


noticiosos. Porém, na maioria das vezes, todo conteúdo imagético é
inacessível. À parte dessas informações contidas nas imagens, as pes-
soas com deficiência visual deixam de compreender e assimilar as in-
formações do jornal. Essa barreira comunicacional pode ser eliminada
por meio da audiodescrição (AD). O recurso de acessibilidade traduz em
palavras o conteúdo visual e expande a compreensão das pessoas com
deficiência visual, colocando os cegos em condição de igualdade com
os demais leitores do jornal. Este artigo tem como base a pesquisa “Au-
diodescrição de Charges Políticas e Formação Crítica do Leitor com De-
ficiência Visual”, realizada para a conclusão do curso de Especialização
em Audiodescrição na Universidade Federal de Juiz de Fora.

1. Pessoas com Deficiência Visual no Brasil


No Brasil, de acordo com último Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística), 506.337 afirmaram ser cegas (0,3% da população).
Ainda de acordo com a pesquisa, 35.774.392 pessoas declararam ter alguma
dificuldade para enxergar, mesmo com uso de óculos ou lentes de contato.
Isso significa que 18,8 % de toda população do Brasil enfrentam barreiras ao
se depararem com produtos visuais, como fotografias, imagens em um site,
artes, gráficos, vídeos ou charges quando não estão acessíveis.
Segundo Lima, Nassif e Cruz Felippe (2008), cegueira é a acuida-
de visual igual ou inferior a 0,05 no melhor olho, com a melhor cor-
reção óptica. Já a baixa visão é identificada como acuidade visual entre
0,3 e 0,5 no melhor olho, também com a melhor correção óptica; “os
casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os
olhos for igual ou menor a 60º; ou a ocorrência simultânea de quaisquer
das condições anteriores”.

2. Acessibilidade

No Brasil, a acessibilidade é lei. O item D do artigo 2° da Lei 1.098,


de 2.000 menciona a necessidade da eliminação do “obstáculo que dificulte
ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio
dos meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa”. Já o Decreto
Federal 5.296 de 2004 considera em seu oitavo artigo que “ acessibilidade:
condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos
espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços
de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informa-
ção, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida”.
Ademais, o artigo 63, da Lei 13.146/2015, destaca que é

38
Audiodescrição: práticas e reflexões

obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por


empresas com sede ou representação comercial no País ou por
órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência, garantin-
do-lhe acesso às informações disponíveis, conforme as melhores
práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente.

Infelizmente, ainda é muito comum as pessoas se surpreenderem


com cegos que estudam, trabalham, se deslocam pelas cidades e levam
uma vida absolutamente autônoma. O estranhamento social faz parte
do que Ramos (2010) chama de “mitos cristalizados”. Esses mitos seriam
as ideias enraizadas na sociedade de que a pessoa com deficiência é
limitada, incapaz e inferior às demais sem deficiência.
Spelta (2009) afirma que a “nossa visão de realidade é sempre dis-
torcida, pois tendemos a nos aproximar e conhecer somente aquilo que
nos é semelhante”. Essa forma autônoma, que ainda gera espanto é total-
mente possível graças à oferta de recursos de acessibilidade. Segundo a
ABNT 9050, acessibilidade é a: “possibilidade e condição de alcance, per-
cepção e entendimento para a utilização com segurança e autonomia de
edificações, espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos”.

3. Audiodescrição

A audiodescrição é um dos recursos de acessibilidade comunica-


cional. Ela é modalidade intersemiótica que transforma o visual em ver-
bal. Essa tecnologia assistiva amplia o entendimento e o acesso à cultura
e informação de pessoas cegas e faz com que elas sejam incluídas em to-
das as áreas da sociedade. Na definição de Motta, a AD pode ser aplicada

[...] em eventos culturais, gravados ou ao vivo, como: peças de


teatro, programas de TV, exposições, mostras, musicais, óperas,
desfiles e espetáculos de dança; eventos turísticos, esportivos, pe-
dagógicos e científicos tais como aulas, seminários, congressos,
palestras, feiras e outros, por meio de informação sonora. (2010).

Ao discutirem as pesquisas de Packer, Schmelidler e Kirchner, Fran-


co e Silva (2010, p. 24), destacam a autonomia gerada pela audiodescrição,
“com consequente liberação de familiares e amigos da tarefa de descrever
os programas e eventos, além da ampliação do repertório cultural”.
Motta (2010, p. 20) lembra que vivemos mergulhados em um
mundo visual no qual todas as imagens, sejam em jornais, revistas, livros
ou internet exprimem significados.

Tanto as imagens estáticas como as dinâmicas são utilizadas não so-


mente para ilustrar, chamar a atenção e tornar as aulas mais atraen-
tes, mas também para complementar o entendimento do texto, do
tema em estudo e torná-los mais facilmente compreendidos ou assi-

39
Audiodescrição: práticas e reflexões

milados. Todas têm significado, daí a necessidade de fazer a leitura e


traduzi-las em palavras, considerando principalmente a diversidade
de alunos em sala de aula e as possíveis barreiras comunicacionais.

As vantagens da audiodescrição não estão limitadas somente às


pessoas com deficiência visual. Sabe-se hoje que o público-alvo da audio-
descrição tem sido ampliado. Seja pelo aumento no número de pessoas
cegas no Brasil, ou pela experiência com outros públicos, como pessoas
idosas, disléxicas e com de síndrome de Down. Portanto, é possível dizer
que novos públicos da AD serão formados, “para todos aqueles com difi-
culdades de compreensão de audiovisuais e leitura de textos contidos em
imagens” (MOTTA; ROMEU FILHO, 2010).
Além disso, o fato de aumentar o senso de observação e ampliar
a percepção de tudo que é visual, a AD também atende pessoas sem de-
ficiência, pois “mostra e desvela detalhes que passariam despercebidos”
(MOTTA, 2015). 
O uso da expressão audiodescrição nesse artigo se dá com base
na função do recurso de acessibilidade e não por ser uma descrição reali-
zada em áudio. Tavares (2013) diferencia a audiodescrição em: gravada,
ao vivo (voice over) ou escrita (em braile ou salva em um programa que
permita leitura de tela) – que é o caso dessa pesquisa.
Araújo (2010) também debate a responsabilidade do audiodescritor
ao escolher as palavras adequadas para realizar um bom trabalho. Para a au-
tora, a audiodescrição deve ser realizada por profissionais preparados para
decidir quais estratégias devem adotar quando as dificuldades aparecerem.

Um audiodescritor competente precisa estar preparado para


lidar com problemas, tais como: 1. Que informação priorizar?;
2. A sobreposição entre o áudio do filme e da AD é sempre não
recomendável? 3. Como deve ser a narração? Semelhante a uma
contação de histórias? Monocórdia ou com inflexões de voz?
4. Quais as características do texto da AD? Semelhante a um
texto literário? Com descrições detalhadas dos personagens, do
enredo e da ação? Ou deve somente privilegiar a ação?

Por fim, Motta (2015, p. 101) compara o audiodescritor a um artis-


ta que vai pintando a cena,

[...] fornecendo elementos descritivos que permitam que o outro


construa seu entendimento e interpretação. E nesta pintura é preciso
haver sensibilidade na seleção das palavras, na escolha dos elemen-
tos imagéticos que serão descritos; responsabilidade para pesquisar
e conhecer os termos que mais se adequam à realidade retratada.

Oferecer recursos de acessibilidade para as pessoas com deficiên-


cia não será somente um cumprimento de lei, e sim, o respeito às dife-
renças e a promoção da inclusão social.

40
Audiodescrição: práticas e reflexões

4. A missão do jornalismo

A função do jornalismo é informar. O profissional que atua


nessa área deve ter como missão investigar e divulgar fatos e
informações de interesse público, provocar a reflexão e formar
a opinião.
Kotscho (1989, p. 8), diz que a missão de um repórter é “infor-
mar para transformar”. Logo, à imprensa é dado o papel de atuar na
mudança da sociedade. Como as pessoas que não enxergam poderão
participar desse processo se são excluídas? Sem acesso às informações
imagéticas, são privadas de perceber, experimentar, refletir e reagir fren-
te ao conteúdo apresentado.
Motta (2010) afirma que as imagens motivam, promovem a curio-
sidade, completam e antecipam os sentidos que serão construídos pela
leitura, contribuindo para o entendimento do próprio texto. Sem acessi-
bilidade, os jornais excluem o público cego e contrariam a teoria
de Bordenave (1985, p. 17), que afirma que um dos papéis da comu-
nicação é fazer com que o receptor “seja ‘membro’ de sua sociedade”.

5. Pesquisa e seus resultados

Para avaliar a falta que a audiodescrição faz e como sua


existência amplia o entendimento de pessoas cegas, dez pessoas
com deficiência visual foram entrevistadas. Seis delas são cegas
e quatro possuem baixa visão.
No primeiro momento, foram enviadas, por e-mail, as
seguintes perguntas:
• Costuma ler jornais online?

• Já teve contato com o conteúdo das charges políticas do


jornal? Como?

• Em que medida a falta de informação sobre a imagem


comprometeu o seu entendimento e o (a) deixou a margem da crítica
política expressada na charge? 

• Em que medida a falta de informação sobre a imagem


comprometeu o seu entendimento sobre as demais informações contidas
no jornal (arte, fotografias)? 

Destacaram-se as seguintes respostas.

41
Audiodescrição: práticas e reflexões

“Só busco informações em jornais online quando quero


Participante 7
me aprofundar em algum assunto”.

“Prefiro obter informações pelo rádio e pela televisão.


Participante 8 Notícias são mais agradáveis quando lidas por voz
humana. Às vezes, a voz sintetizada cansa”.

Os quatro participantes que responderam não ter o hábito de ler


jornais online disseram preferir o rádio e a TV para se informarem. Apesar
do “cansaço” causado pela voz sintetizada, o participante 8 afirmou que
prefere obter informações sobre a charge fazendo uso do software de
voz, caso esse conteúdo fosse disponibilizado de maneira acessível.

Já teve contato com o conteúdo das charges políticas do jornal?


Como?
SIM 4

NÃO 6

Destacam-se sete respostas:

“A falta de acessibilidade mínima […] nunca me anima a


Participante 1
aventurar-me por esse estilo”.

“Às vezes, em bate-papos, as pessoas comentam e tentam


Participante 2 explicar (audiodescrever), mas isso somente ocorre quando
tem algo que gerou alguma polêmica, ou é muito engraçado”.

Participante 3 “Tive contato somente na época em que enxergava”.

Participante 5 “Só vejo que há um quadro, mas não dá para lê-lo”.

“Bem que tentei, mas só há imagens e por conta disso não


Participante 6
tenho acesso ao conteúdo”.

“Depois de perder a visão nunca mais tive contato com esse


Participante 7
tipo de conteúdo”.

“Só leio as charges se tiver alguém por perto para descrevê-


Participante 9
las para mim”.

Fica evidente que os participantes que tiveram contato com as in-


formações contidas nas charges só as obtiveram antes da perda da visão
ou quando alguma pessoa próxima realizou a audiodescrição das imagens.
Nenhum dos participantes obteve as informações de forma autônoma.

42
Audiodescrição: práticas e reflexões

Afastadas do convívio social e sem a possibilidade de estabelecerem


eficientemente uma comunicação que as permitisse compartilhar
saberes e atuar contributivamente na construção da sociedade em
que viviam, às pessoas com deficiência foi negligenciado o acesso e,
consequentemente, o usufruto dos bens culturais, sociais, artísticos
e educacionais que as poderiam ter tornado, de fato, cidadãs. Foi
a partir desse entendimento preconceituoso sobre as pessoas com
deficiência que, historicamente, muitas barreiras atitudinais foram
construídas e consolidadas, podendo ser encontradas até hoje, nos
mais diversos ambientes sociais e sob variadas formas, dentre elas
na própria comunicação. (LIMA; GUEDES; GUEDES, 2010)

Ademais, Molina (2014) aponta que garantir a acessibilidade ultra-


passa o entendimento apenas das estruturas físicas, urbanísticas e arquite-
tônicas e ganha uma dimensão muito maior se agregadas a recursos da tec-
nologia assistiva voltadas para o acesso à informação de qualidade. Logo,
a qualidade das informações recebidas pelo público cego está diretamente
ligada à acessibilidade promovida por quem disponibiliza o conteúdo.

Em que medida a falta de informação sobre a imagem comprometeu


o seu entendimento e o (a) deixou à margem da crítica política
expressada na charge?

“Talvez tenha perdido mais do que imagino quando li


Participante 2
alguma matéria e nem percebi [a charge]”.
“Sinto que falta algo para compreender a informação.
Participante 3 Sem a informação sobre as imagens, o meu entendi-
mento é prejudicado”.
“Comprometeu completamente o entendimento da
Participante 6
charge e inviabilizou a compreensão da crítica”.

“Acredito que totalmente, visto que […] os leitores


Participante7
não conseguem acessar”.

“Não tenho noção do alcance de uma charge […]. Com a


audiodescrição, sinto-me motivada pela possibilidade
Participante 8
de relacioná-las aos respectivos textos. No momento,
ainda acho a charge ‘sem imagens’ bastante insossa”.

A partir dessas respostas, já é possível verificar que as pessoas com


deficiência visual, às vezes, nem se dão conta do quanto perdem de infor-
mação por causa da falta de acessibilidade. Como consequência, compreen-
der a crítica expressada na charge sem AD é impossível. Ao verificar a im-
portância da audiodescrição na sala de aula, Motta afirma que:

[...] aprender a ler imagens pode colaborar para a formação de


alunos mais críticos, mais capazes de compreender os aspectos
culturais, históricos e sociais contidos nas informações visuais.
Aprender a ler imagens terá um impacto na leitura do próprio
texto. (2015, p. 21)

43
Audiodescrição: práticas e reflexões

O participante 8 afirmou sempre achar as charges insossas porque


seu leitor de tela apenas lia a informação de que ali havia uma imagem,
mas nunca a descrevia. O mesmo pesquisado fez um relato surpreendente
sobre uma experiência com a audiodescrição em uma publicação que mes-
cla poesia e imagens: “Esses dias descobri que os escritos da literatura de
cordel costumam ter imagens ilustrativas associadas a eles! Foi uma sur-
presa”. As palavras “descobri” e “surpresa” evidenciam o poder que audio-
descrição tem e pode impactar a uma pessoa com deficiência visual. Além
disso, como também já discutido anteriormente, as imagens despertam a
curiosidade, geram interesse, motivam, como aponta Motta (2015).

Em que medida a falta de informação sobre a imagem comprometeu


o seu entendimento sobre as demais informações contidas no jornal
(arte, fotografias)?

“Em grande medida, já que tais imagens representam um


Participante 1 complemento, uma proximidade e ambientação do leitor
em relação à informação publicada. […] É um cerceamento”.

“É difícil avaliar. O certo é que, a falta de acesso às imagens,


não me permite ter a riqueza que uma imagem pode trazer.
Participante 2
[…] Figuras dão vida ao texto. Uma pessoa cega perde
muito quando estas não são descritas”.

“É muito bom ter a mesma oportunidade que as outras


pessoas. A oportunidade de enxergar as mesmas coisas e
Participante 4 isto a descrição nos possibilita com muita precisão, o que
nos torna satisfeitos e interessados em ler mais e mais os
conteúdos, uma vez que sabemos que seremos respeitados”. 

“Muitas vezes não compreendo a função da foto, pois sem a


Participante 5
descrição, não é possível absorver toda a informação da foto”.

“A falta de informação sobre a imagem compromete


Participante 6
totalmente o entendimento sobre esta”.

“Compromete. A maioria das pessoas entendem tudo


Participante 7 apenas vendo as imagens. Para nós, cegos, é muito difícil
entender sem contar com algum tipo de descrição”.

“O jornal, a meu ver, é um meio de informação em que


texto e imagens ‘conversam’ […]. Descrever as imagens
Participante 8 consideradas importantes vai tornar a leitura do jornal
muito mais agradável, divertida, motivadora e cativante”.
“Nas demais informações dos jornais, onde há mais texto
que imagem, já estou tão acostumada a ler somente o
Participante 9
texto, que não percebo o prejuízo da falta de descrição
para o meu entendimento sobre o assunto”.

44
Audiodescrição: práticas e reflexões

“É um cerceamento”, destacado pelo participante 1 ou “uma


pessoa cega perde muito”, relatado pelo entrevistado 2 vai na con-
tramão da própria legislação brasileira que diz no artigo 63, da Lei
13.146/2015:

[...] obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet mantidos


por empresas com sede ou representação comercial no País ou
por órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência, ga-
rantindo-lhe acesso às informações disponíveis, conforme as
melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas inter-
nacionalmente.

Estar “acostumado” e não perceber a falta que as imagens signi-


ficam é um importante alerta para os veículos de comunicação que se
esquecem do público cego.
Como já tratado anteriormente, Motta (2010) afirma que todas
as imagens, sejam em jornais, livros ou internet têm um significado.
Logo, a pessoa cega deixa de ter contato com esse significado, quando
ele não é acessível, como aponta o participante 7.
A falta de acesso aos conteúdos imagéticos, além de contrariar a
lei e desrespeitar o leitor, o desmotiva a buscar informações nos veículos
que têm essa lacuna.
A fala do participante 4 prova o que Spelta (2009) disse. Além de
atingir os usuários da internet que não podiam acessar devido às barrei-
ras encontradas, a acessibilidade também cria condições para que novas
pessoas se animem a usar a internet.
O “respeito” apontado pelo participante 4 ressalta a fala de Borde-
nave (1985, p. 17), quando afirma que um dos papéis da comunicação é
fazer com que o receptor “seja ‘membro’ de sua sociedade”. Dar acesso às
pessoas que não enxergam é fazer com que sejam incluídos e se tornem
efetivamente membros da sociedade.
Já o participante 8 diz que a descrição das imagens tornaria a lei-
tura mais agradável. Isso ocorre porque a audiodescrição permite ao in-
divíduo estabelecer e construir ligações, contribuindo dessa forma, para
o processo de aprendizagem, como afirma Motta (2013).
Em um segundo momento, foram enviadas a audiodescrição de
cinco charges políticas publicadas no jornal Folha de S.Paulo entre os dias
1 e 5 de maio de 2015. São elas:

45
Audiodescrição: práticas e reflexões

Data: 01/05/2015

Audiodescrição: “A charge de Jean Galvão, intitulada ‘1º de Maio’,


mostra um operário na sala do patrão. O patrão sentado à mesa de tra-
balho em uma cadeira alta preta entrega um papel ao funcionário onde
está escrito DEMISSÃO e diz: VOCÊ É O PRIMEIRO DE MAIO! Cabisbaixo, o
funcionário, que usa camisa azul e capacete de segurança branco, olha
para a folha desolado. Ao fundo, três outros funcionários espiam a cena
pelo vão da porta. Eles estão um sobre o outro e têm olhos arregalados”.

Data: 02/05/2015

Audiodescrição: “A charge de João Montanaro, publicada no dia


02/05/2015, mostra um menino e um psicanalista durante uma consulta.
O menino, em pé sobre o divã tira bonequinhos de dentro de uma caixa
de papelão e atira com raiva na cabeça do psicanalista. O menino usa

46
Audiodescrição: práticas e reflexões

camiseta branca e vermelha, bermuda alaranjada e boné. O psicanalista,


um senhor careca, de barbas longas e brancas, de óculos e terno marrom,
está sentado próximo ao divã. Enquanto é atingido por um dos bonecos,
faz anotações em um bloco de papel e diz: Desculpe dar a notícia assim,
mas seu filho é um governador do PSDB em potencial, senhora”. 

Data: 03/05/2015

Audiodescrição: “A charge de Angeli, publicada em 03/05/2015,


intitulada PSDB: Modus Operandi, mostra sete policiais de costas, um ao
lado do outro. Eles estão empunhando armas de cano longo, apontadas
para o alto. Usam uniformes azul escuro, capacete, cinto com cartucho e
botas. Todos têm os ombros largos e pernas curtas”.

Data: 04/05/2015

47
Audiodescrição: práticas e reflexões

Audiodescrição: “A charge de Jean Galvão, publicada em


04/05/2015, é dividida em dois quadros. No primeiro, um homem de
terno e gravata desce a escadaria de uma casa luxuosa. Há quadros na
parede e um lustre grande de cristais no centro da sala. No andar de bai-
xo, um tapete redondo, cadeiras e um vaso enfeitam a sala onde está a
empregada. Ela avisa o patrão: Chegou o carro da Ópera. Da escada, o
homem questiona: Ópera? No segundo quadro, no lado de fora da casa,
olhando para dois homens com coletes pretos e óculos escuros levarem o
homem de terno e gravata para um carro da Polícia Federal, ela responde:
Operação Lava Jato”.  

Data: 05/05/2015

Audiodescrição: “A charge de Laerte, publicada em 05/05/2015


com quatro quadros, mostra um homem de terno marrom, sempre de
costas, no campo. No primeiro, tira sementes de um alforje, bolsa grande
cruzada no peito, onde está escrita a palavra ACUSAÇÕES, e lança no solo.
No segundo quadro, carrega um regador preso nas costas e direciona o
jato d’água para a terra. No aparelho está escrito: SUSPEITAS. No solo, as
plantas já começam a crescer. No terceiro quadro, o homem observa a
plantação de coloração rosada, que está quase na altura de sua cintura.
No quarto, o homem dirige um trator que corta a plantação e a transfor-
ma em diversos blocos condensados. No trator está escrito: PESQUISAS”. 

Com as charges, foram enviadas as seguintes perguntas:

• O que você achou da audiodescrição das charges publicadas


entre os dias 01 e 05 de maio de 2015 na Folha de São Paulo?

• Em que medida a informação sobre a imagem auxiliou o

48
Audiodescrição: práticas e reflexões

entendimento da crítica política expressada na charge?


• As informações contidas na audiodescrição contribuíram
para ampliar sua crítica em relação à atualidade política do país?
• Faça outros comentários que julgar necessários sobre a
audiodescrição de charges em jornais.
Tiveram destaque os seguintes comentários:

O que você achou da audiodescrição das charges publicadas


entre os dias 01 e 05 de maio de 2015 na Folha de São Paulo?

“Considerei a audiodescrição precisa quanto ao


nível de informação compartilhada, agradável
Participante 1 pela sequência descritiva e surpreendente por
revelar todo um universo até então inimaginável
para nós, pessoas cegas”.

“Achei muito bem feitas. Consegui fazer uma


Participante 2
imagem mental muito boa da situação”.

Participante 3 “Gostei bastante, dá para imaginar bem a cena”.

Participante 4 “Muito boas e engraçadas”.

Participante 5 “Gostei muito das audiodescrições. Bem feitas”.

“Achei excelentes. São objetivas, claras e precisas.


Participante 6 As informações não são em demasia, mas sufi-
cientes para uma boa compreensão das charges”.

“Achei muito boa, pertinente, sucinta e fácil de


compreender. Acho que as descrições devem ser
Participante 7
assim mesmo, sem detalhes demasiados e ape-
nas realmente dar noção do que está na imagem”.

“Achei excelentes, já que forneceram detalhes im-


portantes sobre as imagens. Posso quase enxergar a
Participante 8
plantação e o trator, os policiais com as armas, o me-
nino e o psicanalista, a empregada e o patrão […]”.

“Excelentes. Possibilitam o pleno entendimento


Participante 9
do conteúdo visual”.

“Muito boa. Sem ela, não poderia compreender


Participante 10
nada, já que as charges são imagens”.

49
Audiodescrição: práticas e reflexões

A luz se acendeu. Pessoas cegas ou com baixa visão tiveram aces-


so, de forma autônoma, aos conteúdos das charges e puderam compreen-
der o que as imagens revelavam. A audiodescrição cumpriu seu papel ao
ampliar o entendimento e promoveu a ilustração, provocação, reflexão,
além de estimular, motivar e promover a curiosidade, contribuindo para o
entendimento do próprio texto citada por Motta (2015).
É possível afirmar que os dez participantes gostaram da audiodes-
crição realizada. Isso se deu por um conjunto de fatores sugeridos por
Motta (2010). Entre eles: a sistematização da audiodescrição; o uso de
períodos curtos; o uso do presente do indicativo, ou presente contínuo
para dar maior fruição ao texto.

[...] os elementos imagéticos devem ser organizados de forma a fa-


cilitar a construção da imagem mental; as palavras bem articuladas
para trazer sentido e harmonia ao texto, sem repetições desneces-
sárias, com o uso de sinônimos, advérbios e adjetivos que ajudam
a pintar a cena, a colorir o texto. (MOTTA, 2010, p. 60)

Ou seja, textos muito longos e prolixos são cansativos e certa-


mente contribuem para que a pessoa o deixe de ler.

Em que medida a informação sobre a imagem auxiliou o


entendimento da crítica política expressada na charge?

Participante 1 “Por completo”.


“Ao conseguir fazer uma imagem mental da
Participante 2 charge, tive clareza do seu significado no
contexto da matéria”.
“Muito contribuiu, pois vi como um complemen-
Participante 4
to para as informações contidas no texto”.
“As informações da descrição foram fundamen-
Participante 5
tais para a compreensão da charge”.
“A audiodescrição foi fundamental; sem ela não
Participante 6 haveria a menor possibilidade de compreensão
da crítica política”.
“Por estar um pouco distante do contexto político,
tive alguma dificuldade em compreender o
Participante 9 conteúdo da crítica. Porém, a informação contida
na audiodescrição foi fundamental para que eu
atingisse determinado nível de compreensão”.

“Totalmente. A única via de informação foi a au-


Participante 10
diodescrição”.

50
Audiodescrição: práticas e reflexões

Os participantes 1, 2, 6 e 10 afirmaram ter compreendido a críti-


ca contida na charge. Esses apontamentos mostram que a afirmação de
Ramos (2009) é apropriada, quando ressalta que o humor é um excelente
instrumento de crítica e reflexão. Já as respostas dos participantes 5 e 9
chamam a atenção para a compreensão do que o chargista criticava. En-
quanto o 5 afirmou ter entendido a charge – não a crítica contida nela –, o
9 foi mais a fundo ao reconhecer que a distância com o contexto político
nacional gerou certa dificuldade para compreender a charge.
Kuntz (2006) diz que o leitor está acostumado a utilizar matérias
jornalísticas como fonte de informação. Para o autor, a formação da opi-
nião se dá durante o contato com os jornais. Logo, para compreender as
charges, é necessário estar “antenado” aos acontecimentos recentes, o
que independe de a pessoa ter ou não deficiência visual.
O fato de a charge estar com audiodescrição já permitiu a todos
os participantes afirmarem que houve acréscimo na crítica em relação
à atualidade política no país – inclusive para os dois participantes que
responderam anteriormente que a falta de familiaridade com o noticiário
gerou dificuldades para compreender a charge.
Destacam-se as seguintes repostas:

“Ler as charges provocou o aprofundamento da


Participante 1
minha reflexão”.

“Não há dúvida que, para eu criticar a posição


Participante 2 apresentada por uma matéria é imprescindível que
eu tenha acesso ao seu todo”.

“Não sou entendedor de política, e a charge [com


Participante 3
audiodescrição] facilitou meu entendimento”.

“[...] eu pude refletir sobre algo que antes seria im-


Participante 4
possível”.

“Compreender as intenções de uma imagem está para


além do que a audiodescrição pode proporcionar,
Participante 9
uma vez que isso necessita de certa capacidade de
interpretação”.

Apesar do participante 3 ter assumido a falta de familiaridade com


assuntos políticos, disse que a charge audiodescrita facilitou seu enten-
dimento sobre a situação política do país. O participante 4 declarou que
a audiodescrição causou uma reflexão, e esse é o papel da AD, segundo
Motta (2010). Para a autora, o recurso de acessibilidade provoca refle-
xões, emoções, estimulam, motivam e causam a curiosidade no leitor.
Mais uma vez o participante 9 aponta para a necessidade de estar bem

51
Audiodescrição: práticas e reflexões

informado para poder compreender a crítica contida na charge política.


Citada em Ramos (2011, p. 49), Gil relata em sua tese doutoral:
“Caso a visão de mundo do leitor/ouvinte não lhe permita recuperar o sig-
nificado pretendido, o texto não terá sentido para ele. Não o surpreende.
Portanto, ele não ri. Não entende a piada”.
Motta (2015) também aponta que o desconhecimento do contexto
social e político pode dificultar a compreensão da charge. Isso foi o que
os participantes 3 e 9 responderam.

Faça outros comentários que julgar necessários sobre a


audiodescrição de charges em jornais.

“é a primeira vez que leio alguma matéria com


Participante 3 audiodescrição e percebi a riqueza dos detalhes da
imagem”.

“Me senti incluído, capaz de ler e discutir com outras


Participante 4
pessoas de igual para igual”.

“[...] muitas vezes as informações contidas nas ima-


Participante 7 gens são muito importantes e as pessoas cegas aca-
bam por perder grande parte delas”.

“Gostaria de ter acesso a mais charges audiodescritas,


pois é divertido construir uma ideia própria
sobre o estilo de cada autor, além de permitir o
desenvolvimento da habilidade de ler e interpretar
Participante 8 imagens, relacionando-as a textos, capacidade essa
requerida, por exemplo, em concursos públicos e
em exames como o ENEM. Assim, ao termos acesso
às charges audiodescritas, somos mais incluídos
social, política e pedagogicamente”.

Após ler todas as respostas e refletir sobre elas, é possível afir-


mar que todos os participantes se beneficiaram com a audiodescrição
nas charges publicadas na Folha de S.Paulo entre os dias 01 e 05 de
maio de 2015. A partir das respostas colhidas também é possível com-
provar a lacuna existente pela não existência da audiodescrição nas
charges políticas.
Em relação à ampliação da crítica política, foi possível notar que
a falta de contato com o noticiário político refletiu na compreensão das
charges políticas. Logo, a audiodescrição, apesar de ampliar o entendi-
mento sobre o que se trata na imagem, não é por si só responsável pela
compreensão do assunto criticado pelo cartunista.
Os entrevistados aproveitaram o ensejo para também cobrar mais
acessibilidade nas publicações de notícias online. Segundo Ramos (2010),

52
Audiodescrição: práticas e reflexões

“as pessoas com deficiência não têm de pedir licença ou permissão para
ser incluídas. Têm apenas de ocupar seu lugar no universo humano de
que fazem parte”.
Oferecer a audiodescrição não só das charges, mas de todo
conteúdo imagético nos jornais online, além de ampliar considera-
velmente o número de leitores, fará com que as demais empresas
concorrentes se espelhem e também promovam a acessibilidade. As-
sim, permitirá que o leitor vivencie seu amplo papel, de não só ser
aquele que lê livros, e sim o que também lê imagens. Ao aprender a
ler as imagens, as pessoas com deficiência visual terão um impacto
na leitura do próprio texto, na compreensão de mundo e das coisas
do mundo (Motta, 2015).

4. Considerações finais
Esse artigo mostrou como a falta de acessibilidade, em especial
a audiodescrição das imagens estáticas, pode afastar o púbico cego dos
portais noticiosos. Perdem as empresas de comunicação, que deixam
de atender pelo menos 35 milhões de brasileiros e perdem as pessoas
com deficiência, que não têm acesso a um conteúdo que, por direito,
deveriam receber.
Foi possível refletir sobre: o quanto as pessoas com deficiên-
cia visual ainda têm dificuldades para ter acesso a todo o conteúdo
de um veículo de informação, que a audiodescrição é essencial para
o público com deficiência visual poder ter completo acesso às char-
ges, que a oferta do recurso de acessibilidade faz com que o públi-
co cego se sinta respeitado e capaz de debater de igual para igual
qualquer assunto, que seguir a sistematização na audiodescrição
colabora para a fruição do texto. Também é possível concluir que a
audiodescrição por si só não é capaz de ampliar a formação crítica
de uma pessoa com deficiência visual, pois para compreendê-las,
é preciso estar bem informado sobre os acontecimentos recentes
publicados nos jornais (e isso independe se a pessoa tem ou não
deficiência). Por fim, nota-se que os veículos de comunicação são
deficientes quando não oferecem a audiodescrição para o público
cego, uma vez que a deficiência é sanada quando há a oferta do re-
curso de acessibilidade.
A audiodescrição oferecida nas charges políticas da Folha não
serviu somente para as pessoas com deficiência ouvidas aqui. Ela tam-
bém tornou os meus olhos mais atentos. “Quantas vezes nós nos da-
mos conta que ‘olhamos’, mas não vimos?”, questiona Marta Gil em
Motta (2010).

53
Audiodescrição: práticas e reflexões

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Audiodescrição: práticas e reflexões

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56
Audiodescrição: práticas e reflexões

Da arte de fazer rir:


Uma reflexão acerca
do humor na
audiodescrição de
filmes de comédia

Letícia Schwartz1

A definição de audiodescrição, enquanto tradução intersemiótica,


favorece o estabelecimento de parâmetros para a investigação da
relação entre a tradução literária e esse recurso de acessibilidade que
visa apresentar impressões visuais em palavras. As discussões acerca da
audiodescrição fazem eco, em muitos aspectos, às questões controversas

1 Coordenadora de produção da Mil Palavras Acessibilidade Cultural. Tem experiência


na área de Artes, com ênfase em Acessibilidade Cultural para pessoas com deficiência
visual. Atua como audiodescritora-roteirista e narradora, além de ministrar cursos e
prestar serviços de consultoria. Possui graduação em Artes Cênicas pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS (1996) e Especialização em Audiodescrição pela
Universidade Federal de Juiz de Fora/UFJF (2015).

57
Audiodescrição: práticas e reflexões

da tradução literária. Afinal, buscamos a literalidade ou a interpretação? A


neutralidade ou a expressividade? Qual é nosso grau de liberdade, quais
as nossas limitações?
Para muitos estudiosos e profissionais da área, à audiodescrição
cabe descrever imagens da maneira mais objetiva e neutra possível. Para
outros, porém, o objetivo final é equiparar as condições entre espectadores
com e sem deficiência visual, ainda que para isso seja preciso abrir mão
da rigidez das normas estabelecidas. O presente artigo é norteado por
essa segunda alternativa, concentrando-se sobre as possibilidades de
apreciação em detrimento da mera aquisição de informação. Equiparar
condições significa oferecer oportunidades para que o espectador
com deficiência visual envolva-se com a obra na mesma medida que o
espectador vidente. Dessa forma, a audiodescrição não pode ficar restrita
a desenhar uma imagem na mente do ouvinte, e sim desenvolver formas
de despertar emoções e sentimentos.
Emoções e sentimentos podem ser observados por meio
de reações. Um suspiro, um sobressalto, os olhos marejados ou os
lábios apertados são demonstrações palpáveis do que se passa com
o espectador ao longo de um filme. O riso talvez seja o mais objetivo
dos expedientes para a avaliação do sucesso de uma audiodescrição.
A exibição de uma cena cômica pode resultar em uma demonstração
prática da diferença entre uma audiodescrição informativa e uma
audiodescrição sensível, pois as reações da plateia demonstram com
clareza se a cena foi compreendida de maneira puramente racional ou
preferencialmente emocional. A questão crucial pode ser respondida
por meio da simples observação: o espectador com deficiência visual
riu como os espectadores videntes, nos mesmos momentos e com a
mesma intensidade?
O presente artigo aborda a audiodescrição, enquanto uma
forma de tradução audiovisual, enquanto busca elementos da tradução
literária do humor que possam ser aplicados à roteirização e à narração
de audiodescrição na busca do efeito desejado, o riso do espectador. A
intenção é trazer à tona alguns dos recursos que possibilitam traduzir em
texto e voz aquilo que é risível na cena.
A fim de desvendar as características de uma tradução apropriada
a cenas cômicas, resulta fundamental compreender a audiodescrição
enquanto narrativa cinematográfica. Para tanto, tomamos por base
as definições e parâmetros definidos por Catalina Jiménez-Hurtado,
resultantes de suas pesquisas acerca dos fundamentos teóricos
e metodológicos para a produção e análise da audiodescrição. A
autora oferece uma série de critérios para a decomposição da cena,
direcionando o olhar do audiodescritor para os elementos relevantes ao
desenvolvimento do roteiro.
A locução tem papel igualmente determinante para o sucesso
de uma audiodescrição. Seja gravada ou ao vivo, é apenas na emissão

58
Audiodescrição: práticas e reflexões

do roteiro pela fala e na recepção do mesmo por parte do espectador


que o processo se completa. A habilidade em desenhar imagens, por
meio da voz, confere ao audiodescritor-narrador participação ativa no
processo tradutório.
Há grande dificuldade em encontrar qualquer publicação que
investigue o humor na audiodescrição de maneira específica, donde
presumimos que ainda não existam muitos estudos acadêmicos acerca
do assunto. Por essa razão, a pesquisa deteve-se sobre os aspectos
linguísticos da comicidade, os estudos da tradução do humor na produção
de legendas e dublagem para cinema, e as análises acerca da tradução do
humor na literatura.
A partir do cruzamento entre a narrativa cinematográfica e a
narrativa literária, buscaremos identificar elementos que permitam
relacionar a tradução do humor à audiodescrição da comicidade e encontrar
subsídios para o desenvolvimento de uma audiodescrição que equipare
efetivamente as condições de apreciação de um filme de comédia por
parte de espectadores cegos e videntes.

A audiodescrição enquanto narrativa


cinematográfica

A audiodescrição é a tradução de impressões visuais em palavras,


com o objetivo primordial de promover o acesso de pessoas cegas ou
com baixa visão a todo e qualquer produto ou atividade cultural, artística,
didática ou de entretenimento.
Enfatiza-se, aqui, o uso da expressão “impressões visuais”,
utilizada por Franco e Araújo na seguinte definição: “ A audiodescrição
(audiodescription) é a tradução em palavras das impressões visuais de
um objeto, seja ele um filme, uma obra de arte, uma peça de teatro,
um espetáculo de dança ou um evento esportivo. ” (FRANCO et al,
2011, p. 17). O conceito foge à concepção tradicional de “tradução de
imagens” e vem ao encontro do pressuposto fundamental deste artigo,
que propõe uma audiodescrição sensível em oposição a um formato
meramente informativo. A noção de impressão visual subentende a
percepção e a interpretação do tradutor acerca daquilo que a imagem
pretende transmitir.
É importante salientar, ainda, a intenção de promover a
acessibilidade, delimitando, dessa forma, o público alvo da audiodescrição
e o critério fundamental para a efetivação da tradução, qual seja estabelecer
a equivalência das condições para apreciação de uma obra por parte de
espectadores cegos e videntes. Tal equivalência depende da compreensão
do audiodescritor acerca dos elementos cinematográficos que compõem
uma narrativa traduzível em palavras.

59
Audiodescrição: práticas e reflexões

Uma vez que a audiodescrição deve ser adequada ao estilo


fílmico que se propõe a traduzir, é coerente considerar que a
audiodescrição de um filme de terror faça uso de um estilo narrativo
bastante distinto daquele utilizado em um romance ou em uma
comédia. A definição do estilo apropriado é baseada no fato de que
as imagens podem ser lidas e que os filmes podem ser comparados
a livros, em função de exigirem processos de decodificação muito
semelhantes. (JIMÉNEZ-HURTADO, p. 37).
De acordo com a autora, o roteiro audiodescrito deve funcionar
como um elemento de mediação entre o espectador e a obra, relacionando
e buscando equivalências funcionais entre dois códigos de comunicação
distintos: o visual e o linguístico. O roteiro deve prever e responder
às perguntas do espectador, característica que define a audiodescrição
como narração.

Narrar é, portanto, uma atividade comunicacional que


reconstrói, no presente, fatos que aconteceram no passado.
A AD pode adaptar-se a esta definição e, portanto, é
suscetível de ser analisada como uma narrativa que
reconstrói o que está acontecendo na tela e responde aos
possíveis questionamentos do espectador cego. A resposta
a essas questões gira em volta de três eixos fundamentais
da narrativa: os personagens, as ações e a ambientação.
(JIMÉNEZ-HURTADO, p. 78, tradução nossa)2

Cabe ao audiodescritor identificar, em cada imagem, os


componentes produtores de significado, com o propósito de traduzir
a cena de maneira adequada. Ao analisar um corpus de mais de 200
roteiros de audiodescrição, Jiménez-Hurtado estabelece diretrizes
básicas que podem conduzir o olhar do audiodescritor na percepção
dos elementos que constituem a narrativa cinematográfica. (JIMENEZ-
HURTADO, p. 71-72).
No que se refere à análise da narrativa, a autora aponta elementos
verbais e não verbais. Os elementos verbais são aqueles que aparecem
por escrito na tela, como título, patrocinadores, créditos iniciais e finais,
didascálias, entre outros. Elementos não verbais compreendem os
personagens e a ambientação, por exemplo. No caso dos personagens,
pode-se descrever sua caracterização física (incluindo faixa etária,
vestuário e expressão facial e corporal) e seus estados emocionais (que
podem ser divididos entre positivos e negativos), físicos e mentais. Já
a ambientação inclui a descrição de cenários, adereços, iluminação e

2 Narrar es, por lo tanto, una actividad comunicativa que reconstruye en presente
hechos que ocurrieron en el pasado. La AD se puede adaptar a esta definición y, por lo
tanto, es susceptible de ser analizada como una narración que reconstruye lo que está
ocurriendo en la pantalla y responde a las posibles preguntas del espectador ciego. La
respuesta a esas preguntas gira en torno a los tres ejes fundamentales de la narración:
los personajes, las acciones y la ambientación.

60
Audiodescrição: práticas e reflexões

cores, além da localização espacial (interior e exterior) e temporal (dia


ou noite, por exemplo).
Em relação à análise de imagens, a autora toma por critério
a linguagem de câmera, baseada em enquadramento e montagem.
O enquadramento é definido pelo plano, o modo de filmagem e a
fotografia. A filmagem pode ser feita com a câmera na mão, em imagem
acelerada ou em câmera lenta. Quanto à fotografia, pode ser feita com
lentes ou focos especiais, filtros especiais e profundidade de campo. Já
a montagem é caracterizada pelas transições, pelo ritmo ou pelo tipo
de montagem.
Ainda que existam divergências, em relação ao uso da
terminologia cinematográfica no texto da audiodescrição, é unânime
o reconhecimento de que o domínio da linguagem de câmera é
fundamental para o desenvolvimento de uma audiodescrição eficaz.
Cada ângulo ou movimento imprime um significado que não pode ser
ignorado ou omitido.
É importante observar que não se trata de incluir todos os
elementos mencionados nos roteiros de audiodescrição. Não haveria
tempo disponível para isso, considerando-se que as janelas de inserção
são sempre restritas. Além disso, o acúmulo de informações poluiria o
texto, de forma que este, ainda que primasse pelo detalhamento da cena,
prejudicaria a compreensão. É o olhar do audiodescritor, aliando técnica e
sensibilidade, que deve definir o que é relevante a cada cena para que se
atinja o efeito desejado sobre o espectador.
Ainda que a audiodescrição exija um roteiro que transforme as
impressões visuais em texto, deve-se levar em conta que o resultado
difere de uma narração literária em função da sua característica de dupla
subordinação, a saber:

O roteirista de uma audiodescrição submete sua coesão e sua


coerência lexical e gramatical à coerência acústica propiciada
por outros meios que não seu texto (linguagem oral e musical).
Assim sendo, o texto audiodescrito nem sempre é coerente ou
perfeitamente coeso e inclui anáforas e catáforas linguísticas
a partir de um referencial acústico externo ao seu próprio
acontecer como texto. (JIMÉNEZ-HURTADO, 2007, p. 145,
tradução nossa)3

Em outras palavras, a audiodescrição é subordinada tanto à


imagem que aparece na tela quanto às janelas de inserção. A leitura
final, por parte do espectador, exige a associação dos elementos

3 El guionista de una audiodescripción subordina su cohesión y su coherencia léxica y


gramatical a la coherencia acústica proporcionada por otros medios que no son su texto
(lenguaje oral y musical). De ahí que el texto audiodescrito no sea siempre coherente
ni perfectamente cohesivo e incluya anáforas y catáforas lingüísticas a partir de un
referente acústico externo a su propio acontecer como texto.

61
Audiodescrição: práticas e reflexões

oferecidos pelo roteiro a toda informação sonora da obra. Ou seja,


diferente da narrativa puramente literária, a audiodescrição só ganha
significado na interação entre o roteiro e o áudio do filme (diálogos,
trilha e efeitos sonoros). Cabe à locução completar esse processo, por
meio da habilidade do audiodescritor-narrador em desenhar imagens,
impor ritmos e estabelecer climas fazendo uso de sua voz.
Carvalho et al (2013) dedicaram-se à coleta de dados sobre
a locução na audiodescrição, buscando estabelecer o papel dos
recursos vocais para o sucesso do resultado final. Os autores tomam
como ponto de partida as recomendações de Snyder, Cintas e da
Norma Inglesa, que evidenciam a relevância da locução no processo
narrativo: Snyder aponta a necessidade de oferecer significação ao
conteúdo audiodescrito através do uso apropriado da entonação e das
pausas; Cintas exige do locutor competências que envolvem dicção,
entonação e impostação de voz; e a Norma Inglesa recomenda que
o tom de voz encarregue-se de expressar as diferentes nuances da
cena. Tais posicionamentos deixam clara a intenção de abandonar o
critério de neutralidade da locução em prol de uma expressividade
“bem dosada”, que vá ao encontro da estética, do ritmo e do clima da
obra a ser audiodescrita.
A despeito dessas considerações, os autores observam que
o locutor tem permanecido em segundo plano dentro do processo de
audiodescrição. Grande parte da bibliografia sobre o assunto menciona
que o locutor deve evitar chamar a atenção, mantendo uma voz clara e
agradável, porém sem expressividade.
Carvalho et al (2013) sugerem que

(...) concomitantemente ao conteúdo linguístico, poder-se-ia


considerar a dimensão vocal na AD como uma ferramenta eficaz
na tradução da emoção e do afeto, o que seria possível pelo
controle vocal de variáveis de qualidade vocal e recursos vocais.
Acreditamos, portanto, que devemos considerar a dimensão vocal
da locução de modo a contribuir para a recepção das imagens
mentais a serem construídas pelas pessoas de baixa visão, pois,
determinados estados afetivos, como o medo, a ira, a alegria
etc, são mais rapidamente inferidos a partir da expressão vocal.
Em outras palavras, as emoções são mais facilmente projetadas/
materializadas pela voz. (CARVALHO et al, 2013, p. 4)

Assim, os autores trazem à tona a carência de maior investimento


na investigação das possibilidades vocais do audiodescritor-narrador
e propõem um sistema de análise de locuções que leva em conta as
características de qualidade vocal (fonação, ressonância, pitch, loudness,
articulação, velocidade de fala, coordenação pneumofonoarticulatória e
ataque vocal) e de recursos vocais (uso de ênfases, uso de pausas, curva
melódica e ritmo).
Em nossa opinião, o estudo aponta para a necessidade de que o

62
Audiodescrição: práticas e reflexões

audiodescritor-narrador passe a ser considerado como um “profissional da


voz”, à semelhança de atores, ledores, dubladores, cantores e locutores,
apresentando as devidas habilidades e competências e elevando a prática
à categoria de profissão.

A tradução do humor

A fim de oferecer fundamentos teóricos para a análise de uma


cena cômica, dedicaremos essa seção a um apanhado de estudos que
investigam a questão do humor no que se refere à Linguística e à
Tradução. Ao considerar a audiodescrição como narrativa, acreditamos
que tais estudos possam servir de embasamento, uma vez que parece ser
possível transpor os conceitos apresentados pelos autores selecionados
à tradução de imagens. Visando utilizar tais informações como subsídios,
traçamos alguns comentários relacionando os temas propostos por cada
um dos autores à audiodescrição.
Em seu livro Comicidade e Riso, referência na investigação dos
recursos que provocam efeito cômico, Vladimir Propp discorre sobre
a relação entre humor e narrativa. O autor define as dificuldades da
transposição de uma situação cômica para a linguagem escrita ou falada:

Quando alguém torna a contar uma comédia qualquer ou uma


peça humorística “com as suas palavras” percebe que elas não
resultam cômicas. Na arte verbal, portanto, a palavra não é
um invólucro, mas constitui um único todo com o conjunto da
obra. Nas obras de narrativa é preciso separar dois âmbitos: a
linguagem do autor e a linguagem das personagens. (PROPP:
1992, p. 202)

Em uma relação direta com a audiodescrição, podemos


observar a mesma dificuldade: a narração de um filme de comédia
raras vezes é capaz de resgatar a comicidade da cena através da
palavra. Isso se torna ainda mais evidente em filmes mudos, em que
a imagem é a principal responsável por provocar o riso. Por outro
lado, obras em que a comicidade se encontra nos diálogos podem
prescindir do humor na audiodescrição. Nesses casos, é suficiente que
a audiodescrição respeite o clima do filme e “prepare terreno” para as
piadas a serem inseridas pelos diálogos, tomando os devidos cuidados
para preservar o humor da obra, mas sem assumir responsabilidade
direta pelo efeito cômico.
Propp também aponta que “a língua constitui um arsenal muito
rico de instrumentos de comicidade e zombaria” (PROPP, p. 119),
entre os quais destaca os trocadilhos, o chiste, a pilhéria, a ironia e
o calembur (jogo de palavras com fonética semelhante e significados
distintos). Fica evidente que nem todas as formas do humor verbal se

63
Audiodescrição: práticas e reflexões

aplicam à audiodescrição. Percebemos de imediato que a comicidade


deve ficar por conta da obra, enquanto que os recursos relacionados
ao caráter espirituoso da narrativa podem conferir bons resultados ao
roteiro e à locução da audiodescrição. Retomaremos esse raciocínio
um pouco adiante.
A graça fonética também é abordada por Propp, ao determinar
que “para as finalidades cômicas pode ser utilizada também a língua
enquanto tal, ou seja, sua estrutura fônica” (PROPP, p. 126). O autor cita
Gógol: “esta sensação só pode ser comparada àquela de fazer cafuné ou
de fazer cócegas com um dedo na planta do pé”, conferindo ao discurso
o dom de oferecer a quem fala e a quem ouve “um prazer fisiológico que
prescinde do conteúdo” (PROPP, p. 127). Eis aqui outro recurso que pode
ser utilizado pelo audiodescritor na produção de um roteiro. A seleção do
vocabulário e a construção das sentenças não precisam obedecer apenas
ao conteúdo informativo da cena, mas pode ser utilizado para provocar,
por si só, o riso do espectador.
Encontramos nas indicações de Propp uma íntima relação com as
diretrizes apontadas por Snyder em relação ao texto da audiodescrição.
Propp aponta que:

Querendo definir em poucas palavras em que consiste a


sugestividade de uma língua, diremos que as maiores exigências
são o colorido e a expressividade. É sabido que a intelligentsia
na vida cotidiana se expressa, via de regra, de modo bastante
incolor. Isso se deve ao fato de que a pessoa culta pensa por
categorias abstratas e se expressa de acordo com elas. Pelo
contrário, a camada média, até pouco tempo atrás, tal como
as pessoas simples que realizam um trabalho físico, muitas
vezes se expressa de forma figurada e expressiva. Seu discurso
caracteriza-se por imagens visuais. (PROPP, p. 133)

e exemplifica através da fala “saborosa e colorida” dos personagens


de Ostróvski:

Lá onde uma falante sem cor diria: “Ele não é par para você”, a
velhinha de Ostróvski diz: “Ele não serve para dançar a quadrilha
com você”. Quando o marido quer afastar a mulher do quarto, ele
não diz “saia da porta”, mas “pra fora da porteira!”. Examinando
estes dois canais é fácil perceber que a expressão incolor opera
por conceitos, enquanto a colorida procede por imagens visuais.
(PROPP, p. 133)

Podemos encontrar em Snyder discurso semelhante, a saber:

[A audiodescrição] oferece uma versão verbal do visual.


Fazendo uso de palavras sucintas, vívidas e imaginativas, os
audiodescritores inserem frases entre fragmentos do diálogo
ou de elementos sonoros relevantes durante eventos artísticos
e em vídeos e filmes; em outros contextos, o timing não é tão

64
Audiodescrição: práticas e reflexões

importante, mas o objetivo fundamental permanece o mesmo:


transmitir o conteúdo visual que não é completamente
acessível a um determinado segmento da população e que
não é plenamente percebido pelo resto de nós, pessoas que
enxergam mas que nem sempre observam. (SNYDER, p. 1,
tradução nossa)4

Se há distinção entre os objetivos de Propp e Snyder, quais


sejam a comicidade para o primeiro e a acessibilidade para o segundo,
a vivacidade e a expressividade do texto em um discurso que prioriza
imagens visuais parece ser território comum a ambos.
Silva (2006) desenvolve um estudo acerca da recepção do humor
traduzido em cinema. Ainda que o autor tenha se dedicado à tradução
interlinguística para legendas e dublagens, algumas de suas conclusões
podem orientar nossa pesquisa em relação à audiodescrição.
Silva define as condições para a tradução que visa a legendagem
ou a dublagem de um filme de comédia:

(...) algumas condições (BREZOLIN, 1997, p. 29), por parte


do tradutor, são necessárias para que isso ocorra de maneira
satisfatória. A primeira diz respeito ao conhecimento substancial
das línguas envolvidas no processo de tradução, pois, dessa
forma, o tradutor terá mais sensibilidade para perceber o
rompimento das regras (lingüísticas, culturais), fator importante
na construção do humor. A segunda diz respeito à capacidade
de compreensão e interpretação da piada. A terceira condição
envolve a capacidade de expressão do tradutor, que deverá estar
atento não apenas aos padrões da língua alvo, mas também às
necessidades do seu público. (SILVA, 2006, p. 13)

São evidentes os pontos de encontro entre os elementos apontados


pelo autor e os requisitos básicos exigidos de um audiodescritor. A
audiodescrição demanda a compreensão e o domínio dos componentes
produtores de significado em imagens (conforme categorizados por
Jiménez-Hurtado) e da língua portuguesa. Também a capacidade de
compreensão e interpretação é indispensável ao audiodescritor, assim
como sua habilidade de expressão e o conhecimento profundo acerca das
características específicas do público alvo. Ou seja, a tradução do humor
na audiodescrição requer competências idênticas àquelas utilizadas na
tradução interlinguística de diálogos cômicos.
Essa relação fica ainda mais clara no seguinte trecho:

4 [Audio Description] provides a verbal version of the visual. Using words that are
succinct, vivid, and imaginative, audio describers insert phrases between pieces of
dialogue or critical sound elements during performing arts events and on video or film;
in other contexts, timing is less critical but the fundamental goal is the same: to convey
the visual image that is not fully accessible to a segment of the population and not fully
realized by the rest of us, sighted folks who see but who may not observe.

65
Audiodescrição: práticas e reflexões

Confira Leibold (1989 apud ROSAS, 2002, p. 23-24) que a resume


como uma atividade que:
[...] requer a precisa decodificação de um discurso humorístico em
seu contexto original, sua transferência para um ambiente diferente
e, muitas vezes, discrepante em termos linguísticos e culturais
e sua reformulação em um novo enunciado que tenha sucesso
na recaptura da intenção da mensagem humorística original,
suscitando no público-alvo uma reação de prazer e divertimento
equivalentes (grifos da autora). (SILVA, 2006, p. 46)

A noção de que o prazer e o divertimento resultantes da tradução


devem ser equivalentes àquele produzido pelo texto de partida, ressoa
perfeitamente com a intenção da audiodescrição sensível, defendida por
este artigo, na busca de uma audiodescrição, que preserve o humor da cena,
lidando com a transferência para um ambiente diferente e discrepante em
termos linguísticos e exigindo a reformulação e a recaptura da intenção
da mensagem original.
É em Rosas e sua busca por uma teoria de tradução do humor
que encontramos bases sólidas para a audiodescrição de cenas cômicas.
A autora estabelece, de início, que a tradução de qualquer texto, e em
especial de textos humorísticos, deve levar em conta “a indissociabilidade
entre o elemento linguístico e o cultural, a função do texto traduzido
e o papel de intérprete que cabe ao tradutor no cumprimento de sua
tarefa” (ROSAS, 2003, p. 134). A tradução, assim como a audiodescrição,
é avessa a qualquer tentativa de isenção ou neutralidade, e subentende,
sempre, a interpretação. No caso da tradução/audiodescrição do humor,
a habilidade de interpretação é ainda mais fundamental, na medida em
que é necessário compreender os elementos que provocam o riso a fim de
traduzi-los e, especificamente, encontrar equivalências possíveis visando
a manutenção do humor.
Rosas define a tradução como uma prática, na intenção de dirimir
“o dilema da indefinição histórica entre ‘ciência’ e ‘arte’” (ROSAS, 2003,
p. 134). Também no campo da audiodescrição este dilema é presente e
as discussões que opõem técnica e arte permanecem uma constante. Em
nossa opinião, o uso do termo “prática” não é de todo acertado, uma vez
que confere foco à execução em oposição à idealização, manifestando um
sentido tão frio quanto “ciência” ou “técnica” e sufocando, justamente, o
caráter sensível do processo de trabalho.
Em sua pesquisa, acerca da tradução do humor, a autora depara-se
com a dificuldade primordial apontada pelos profissionais das mais variadas
áreas de atuação ligadas à comicidade, seja no campo da escrita, da atuação
ou da música: o humor costuma ser encarado como uma arte menor e, como
tal, não tem forte apelo junto aos estudiosos. Nas palavras de Rosas,

Apesar da importância da tradução e do humor como fatos da


língua e da cultura e embora a tradução permita evidenciar
com muita nitidez os contornos dos mecanismos linguísticos

66
Audiodescrição: práticas e reflexões

utilizados na produção do humor – e por isso represente um


ângulo privilegiado para esse tipo de análise –, aparentemente
as instigantes questões (linguísticas ou não) levantadas pela
tradução de textos humorísticos não tiveram muito apelo entre
os estudiosos da linguística, do humor ou da própria tradução.
(ROSAS, 2006, p. 134)

Dessa forma, sabemos de antemão que o material de pesquisa na


área da linguística é limitado, o que nos leva a uma maior compreensão
acerca da escassez de estudos específicos no campo da audiodescrição.
O ponto de maior interesse para a abordagem desejada pelo
presente artigo encontra-se na diferenciação entre o cômico e o espirituoso.
A partir desses conceitos damos os primeiros passos no sentido de
elucidar a relação entre uma cena cômica e sua audiodescrição.

Por provocarem o riso, o cômico e o espirituoso são conceitos


muitas vezes considerados intercambiáveis. Porém, como já
chamara a atenção Bergson (1983: 61), “será cômica talvez a
palavra que nos faça rir de quem a pronuncie, e espirituosa
quando nos faça rir de um terceiro ou de nós”. Desse modo,
quando rimos de nosso interlocutor (porque ele fez ou disse
algo ridículo), nós: a) não nos identificamos com ele e b) somos
superiores a ele. Já quando rimos com nosso interlocutor
(porque ele disse algo espirituoso acerca de si mesmo, de nós
ou de um terceiro), nós: a) nos identificamos com ele e b) não
podemos ser, portanto, nem superiores nem inferiores a ele.
Isso pode ocorrer porque, enquanto na relação cômica bastam
dois elementos (observado e observador) entre os quais se exige
distanciamento, na espirituosa há de haver três: o observador
comunica aquilo que sabe do observado (que, independente de
ser ele próprio ou o receptor da mensagem, é funcionalmente
o segundo elemento na relação) a um terceiro. O observador se
torna, portanto, o emissor de uma mensagem sobre a situação
ou o indivíduo cômico (o observado) que visa a aliciar o receptor,
provocando-lhe o riso através da identificação e da cumplicidade
na observação compartilhada. (ROSAS, 2006, p. 138)

Eis aqui uma definição precisa das possibilidades da audiodescrição


do humor. A comicidade fica, então, a cargo do filme, enquanto o
audiodescritor, como observador e emissor da mensagem, assume um
caráter espirituoso, promovendo a graça a partir do discurso acerca
da imagem, e não reproduzindo diretamente a comicidade visual. O
audiodescritor envolve-se na narrativa, mas permanece distanciado da
ação. Rosas resume essa questão ao colocar que

(...) a relação cômica é, por conseguinte, uma relação de primeira


mão, que pode inclusive prescindir do verbal (...), ao passo que
a espirituosa é uma relação de segunda mão (o receptor tem
do observado um relato, formulado de uma certa maneira, que
lhe é comunicado pelo emissor). (...) essa distinção nos importa
aqui por destacar a importância do enunciado, ou seja, o modo

67
Audiodescrição: práticas e reflexões

de formulação do elemento verbal, que é o que especificamente


interessa ao estudo da tradução do humor. (ROSAS, 2006, p.
138-139).

Estamos de acordo com a conclusão da autora, que estipula que a


tradução do humor, assim como a tradução poética, exige a transcriação
do efeito provocado pelo texto de partida, e acreditamos que tal conceito
aplique-se à perfeição à tradução do humor na audiodescrição.

Considerações finais

A busca pela equiparação de condições entre espectadores com e


sem deficiência visual na apreciação de um filme de comédia demonstra
a necessidade imperiosa de uma definição de critérios para a produção
de roteiros e locuções que preservem o caráter humorístico da obra. A
verdadeira acessibilidade não se restringe à transmissão de informações a
respeito das cenas, mas à experiência de sensações e emoções análogas.
Ou seja, a audiodescrição de um filme de comédia só cumpre seu papel
quando leva o espectador cego a rir, nos mesmos momentos e com a
mesma intensidade dos espectadores videntes.
O fato de que a linguagem é responsável por definir o estilo
da obra é consenso entre os audiodescritores. No entanto, isso não é
suficiente. Um roteiro leve e uma locução sorridente podem definir o
tom da comédia, porém não levam ao riso. A dificuldade encontra-se,
justamente, na efetivação da graça. Da mesma forma que a tradução de
poesia exige que se faça poesia e a tradução de um provérbio ou um
trocadilho exige sempre uma equivalência, a tradução de impressões
visuais cômicas precisa produzir efeito semelhante àquele produzido
pela imagem em si.
Não é tarefa fácil, posto que as técnicas que produzem a comicidade
da imagem diferem em muito das técnicas de humor literário. Por isso,
é absolutamente pertinente o cruzamento dos componentes produtores
de significado na narrativa cinematográfica, alcançando uma leitura
objetiva dos elementos que produzem graça no filme, com as diferentes
teorias acerca da tradução literária do humor, fornecendo subsídios para
a produção textual da audiodescrição.
É de grande valia a análise de Rosas acerca da distinção entre
o cômico e o espirituoso, levando-nos a uma provável definição das
especificidades exigidas da audiodescrição do humor: a tradução da
comicidade da imagem para o espirituoso da narração, a partir do olhar de
um mediador (audiodescritor) que comunica o fato (as impressões visuais)
a um receptor (espectador), estabelecendo uma relação de cumplicidade.
De forma ainda superficial, podemos apontar algumas

68
Audiodescrição: práticas e reflexões

conclusões acerca do processo de trabalho de um audiodescritor na


tradução do humor.
O primeiro passo está em realizar uma leitura criteriosa da cena,
com o objetivo de identificar os elementos que provocam o riso. O
roteiro deve ser estruturado por frases breves, uma vez que a brevidade
é uma das características da comicidade. O vocabulário selecionado deve
contar com palavras divertidas, seja em função de sua sonoridade ou das
relações que provocam na mente do ouvinte. Recomenda-se o uso de
expressões populares. O ritmo é um elemento crucial, tanto no que se
refere ao roteiro quanto à locução.
A locução exige um timbre apropriado. Uma voz infantil ou doce
terá maior dificuldade em fazer rir. Sugere-se ao locutor interessado na
audiodescrição do humor que busque referenciais específicos em estudos
sobre timing, recurso habilmente utilizado por muitos comediantes para
conseguir o efeito desejado. Quando à edição, deve-se investir no diálogo
com a trilha, que serve como pano de fundo em alguns momentos e toma
a frente em outros, dando suporte à narrativa como elemento significante.
Acreditamos que essa proposta mereceria uma investigação mais
aprofundada, preferencialmente na forma de pesquisa de recepção, à
semelhança do estudo desenvolvido por Silva, em que o autor busca
avaliar a eficácia da tradução interlinguística do humor para filmes de
comédia. Para tanto, Silva estipula as categorias de Reação Neutra,
Sorriso e Gargalhada, a fim de comparar a reação de espectadores com
acesso a uma comédia americana no original em inglês, com legendas em
português ou em versão dublada.
A audiodescrição do humor pode ser considerada uma tradução de
alta complexidade, que demanda um olhar específico e uma transcriação
sensível. Afinal, fazer rir é sempre uma arte.

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Audiodescrição: práticas e reflexões

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70
Audiodescrição: práticas e reflexões

Videoinstalação com
Audiodescrição:
incluindo pessoas com
deficiência visual na
apreciação da marca
Desnudez Declamada

Patrícia Gomes de Almeida1

Resumo: Percurso de produção de uma videoinstalação poética com au-


diodescrição. Estudo em forma de relato e com base científica em diferen-
tes linhas de pesquisa: artes, linguagens e inclusão. O objetivo é incluir

1 Graduada em Comunicação Social/UFJF com habilitação em Rádio e Televisão (1995).


Especialista em Arte, Cultura e Educação pelo Instituto de Artes e Design/UFJF (2008) e
em Audiodescrição pela Faculdade de Educação Física e Desportos/UFJF (2015). Coor-
denadora da Sessão Escola do Primeiro Plano, autora do livro Vendo Pão & Água - poe-
mas e canções (2010) e microempreendedora da marca Desnudez Declamada. E-mail:
soetudo@yahoo.com.br.

71
Audiodescrição: práticas e reflexões

culturalmente pessoas com deficiência visual e na apreciação da marca


Desnudez Declamada, concebida pela própria autora-pesquisadora. Com
base na tradução intersemiótica, traduz em palavras as imagens do pro-
cesso criativo até a concepção final do produto, partindo do pressuposto
da concepção da arte como agente transformador e inclusivo e na am-
pliação dos conceitos de arte e linguagem. A autora dialoga com outros
autores, dentre eles, Almeida (1986), Bechara (2009), Michelon (2013),
Rivera (2009) e Vygotsky (2011).

Este artigo tem por base uma pesquisa descritiva qualitativa na


forma de relato da produção de uma videoinstalação com Audiodescri-
ção. Mais especificamente, da marca Desnudez Declamada2, criada por
mim mesma como pesquisadora-autora para representar peças que de-
senvolvo como designer de moda e como experiência piloto como au-
diodescritora. A proposta de apresentação de um produto com audiodes-
crição surgiu a partir do contato com o recurso e suas possibilidades de
aplicação por meio do primeiro curso de Especialização em Audiodescri-
ção do Brasil3, no qual fiz parte como aluna.
A curiosidade por ateliers de costura e suas sobras de tecidos,
bem como a utilização dos mesmos retalhos como matéria-prima de com-
posição plástica audiovisual, compõem a base de expressão visual deste
trabalho. E por buscar novas técnicas e recursos para me comunicar com
um maior número de pessoas, neste caso específico, com aquelas que
têm deficiência visual, busquei descrever as imagens contidas na pesqui-
sa para contribuir com a divulgação da Audiodescrição como recurso de
acessibilidade no meio acadêmico. Assim, busco aplicar o privilégio da
palavra em função da compreensão da informação visual. Na dinâmica
poética, mas não julgadora e na objetividade informativa sem perder a
subjetividade da arte.
O recurso da Audiodescrição ainda é pouco utilizado em território
brasileiro. A proposta de se comunicar as informações visuais através
das palavras com intuito de incluir os cegos em um maior número de
possibilidades artísticas, culturais e sociais, foi inaugurada publicamente
em 2003, com a experiência ocorrida no Festival Assim Vivemos4. E como
dispõe o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-
cia (2008), temos que reconhecer a importância para a pessoa com defi-

2 Disponível em <https://www.facebook.com/pages/Desnudez-Declamada/14626
53730673944>. Acesso: 06 de setembro de 2015
3 O curso foi promovido pela Secretaria Nacional da Pessoa com Deficiência em parceria
com a Universidade Federal de Juiz de Fora através da NGime (Núcleo de Pesquisa em
Inclusão, Movimento e Ensino à Distância) da Faculdade de Educação Física e Desporto.
4 COSTA, Lara Valentina Pozzobon da. Audiodescrição como Tradução – A Aventura da
Primeira Experiência. Anais do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência –
SEDPcD/Diversitas/USP Legal. São Paulo, junho/2013.

72
Audiodescrição: práticas e reflexões

ciência visual da garantia de sua autonomia, independência individual e


liberdade para fazer as próprias escolhas.
Incluir pessoas com deficiência visual na apreciação de um pro-
duto, por mim mesma criado, não poderia ser em outro campo que não
o das Artes. Além de fazerem parte do meu dia-a-dia desde criança, não
apenas pelo incentivo e influência familiar, mas, sobretudo pelo fascí-
nio que me despertam, sempre quis desenvolver meus próprios talentos,
inicialmente através do desenho e depois, através da escrita de versos.
Quanto à questão da inclusão, acredito que minha maior experiência veio
a partir do momento no qual quis movimentar projetos que incluíssem
crianças em produções de vídeo.
Com o intuito de levar a linguagem cinematográfica às crianças e
divulgar o trabalho do Primeiro Plano Festival de Cinema de Juiz de Fora e
Mercocidades, visitei várias escolas, sendo que, certa vez, a presença de
um menino surdo na turma marcou a exibição de um vídeo. Pois em um
determinado dia, eu havia preparado o material de maneira não eficiente
e um DVD ficou sem áudio. Pedi desculpas à turma e justifiquei que não
poderia passar o vídeo por estar com defeito. Falei com eles que a produ-
ção havia sido elaborada por um grupo de crianças. Também contei que
haviam sido premiadas com ela no Festival do Minuto de 1997. Romeu e
Dom Capeta5 conseguiu provocar imediata curiosidade nos alunos, prin-
cipalmente por se tratar de uma produção infanto-juvenil. Com a curio-
sidade instigada, as crianças começaram a argumentar que eu deveria
exibir o trabalho, pois, assim como o colega surdo presente na sala de
aula, eles também poderiam apreciá-lo.
Não sei o que mais me tocou naquele momento. A impressão que
ainda temos muito a aprender com as crianças ou a presença do garoto
surdo, que veio a nos servir de exemplo. Precisamos estar aptos a adaptar
o mundo para eles, e não eles para o mundo. Na sala havia uma intérpre-
te de libras, que pôde ir passando para ele toda a discussão gerada pelo
vídeo, assim como nos passar as opiniões do aluno surdo. Esta situação
também nos mostra que não podemos deixar à margem uma oportunidade
única de conhecer um trabalho original e criativo. Provavelmente, foi aque-
la a única vez que as crianças presentes assistiram Romeu e Dom Capeta.
As áreas de Comunicação, Artes e Educação sempre estiveram
para mim relacionadas, o que me levou à minha primeira especialização.
Nela desenvolvi um projeto de adaptação de um personagem para as
Histórias em Quadrinhos6. E agora, mais recentemente, por buscar novos
conhecimentos, acabei por conhecer a Audiodescrição. Acredito que por
ter tido esta oportunidade, passei a me comprometer socialmente com

5 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=j9xmiZ5Yffk>. Acesso: 06 de se-


tembro de 2015.
6 Estudo de Adaptação do mascote João Lanterninha para Quadrinhos. Monografia de
Conclusão de Curso de Especialização em Arte, Cultura e Educação/IAD – UFJF, 2010

73
Audiodescrição: práticas e reflexões

todos aqueles que até agora estão deixando de consumir ou de apreciar


as diversas formas de arte, seja por não enxergarem mais ou por nunca
terem enxergado. Por serem pessoas com deficiência visual não significa
que não têm curiosidade, interesse ou mesmo necessidade. Ou, porque
não dizer desejos não despertados. Até porque a curiosidade não sur-
ge aleatoriamente; precisa ser instigada, trabalhada e incentivada. Este
exercício de acessibilidade surge a partir de uma demanda notória, como
nos fala Marilena Assis7 em seu depoimento no documentário Olhares8,
muitas vezes não se busca mais apenas a inclusão, mas sim, a satisfação.
E, para que o público fique satisfeito, deve-se se dar a ele o poder da es-
colha, apresentando o máximo de possibilidades de consumo.
Em Palavras que levam a imagens: Fotografia para ouvir (MICHE-
LON, 2013) tem-se uma amostra de resultados obtidos por meio do uso da
audiodescrição para divulgar a exposição de fotografias históricas da Foto-
teca Memória da Universidade Federal de Pelotas e sobre este despertar. A
proposta de utilizar o recurso, veiculado pela Rádio Federal FM, foi de atin-
gir não apenas deficientes visuais, mas também o público em geral. A ideia
era causar curiosidade nas pessoas, com o intuito de fazer com que elas se
interessassem pela exposição, além de trazer o recurso de acessibilidade
para este contexto. Neste caso, a audiodescrição foi escolhida por sua ca-
pacidade inclusiva. Michelon relata sobre uma audiodescrição expressiva,
em que se inclui adjetivos e interpretações por parte do descritor, “sem se
furtar da subjetividade que busca encontrar aspectos capazes de imprimir
relevo à imagem imaginada através da palavra” (MICHELON, p.196, 2013).
Peço licença para contar como comecei a me interessar por reta-
lhos de tecidos. Culturalmente, brincar de boneca não é incomum entre
as meninas e nem a vontade de que o pequeno mimo tenha suas rou-
pinhas. No meu caso, por ser filha de costureira, minha boneca sempre
ganhava roupas novas. Não que minha mãe fizesse o agrado, mas eu
mesma, ainda com sete, oito anos, já produzia peças variadas. Minha
boneca tinha uniforme de jogadora de futebol, com direito a meias com
calcanhar, já que aprendi a fazer tricô na máquina com minhas irmãs mais
velhas. Também aprendi pontos de crochê, tricô à mão e, com linhas e
lãs, fiz bolsinhas e bordados. Para compor várias possibilidades de rou-
pas, buscava conhecer os diversos tipos de tecidos, sempre aproveitando
as pequenas sobras. Com pedaços de espuma e tecido sintético fiz até
botas de astronauta para a minha boneca. Com as rodinhas de trilhos de
cortina fazia os patins. O que mais me intrigava era como iria fazer um
belo vestido com babados e armação, para ficar rodado, como nos filmes
de época do século XIX. A armação, que poderia ser de arcos de metal era
chamada de crinolina (POLLINI, 2007).

7 Marilena Assis é consultora e especialista em Audiodescrição.


8 Assis, M. (2013) Olhares. Recuperado em 18 de agosto de 2015 em https://www.you-
tube.com/watch?v=GGgcBL6rRVE&feature=youtu.be.

74
Audiodescrição: práticas e reflexões

Fig.1: Exemplo de um vestido de crinolina:

Descrição da imagem: ilustração satírica em preto e branco de


George Cruikshank salienta como eram os vestidos de crinolina do sécu-
lo XIX. Uma mulher com vestido com armação rodada no meio de várias
pessoas em um salão. Em função da roda do vestido em torno da dama
ser muito grande, o garçom utiliza uma extensa colher para lhe entregar
a bebida até sua mão.

Esta façanha, de produzir o guarda-roupa da minha boneca, me


fazia estar sempre em contato com minha mãe à máquina de costura.
Além de assistir como ela costurava, eu ficava atenta a possibilidade dos
pequenos retalhos que pudessem sobrar das peças que produzia. Na épo-
ca, vivíamos em Posse, distrito da cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro.
Era final da década de setenta e minha mãe, naquela fase, costurava pra-
ticamente apenas para a nossa família. Mas não deixava de contar de
suas histórias de quando ainda morava em Juiz de Fora, Minas Gerais.
Por ter perdido minha avó quando ainda tinha apenas quatorze anos e de
ter sido a filha mulher mais velha dos sete filhos, minha mãe começou
a trabalhar cedo em fábricas têxteis e depois, para alfaiatarias. A parte
de sua introdução nas fábricas me marcou tanto que quando comecei a
escrever roteiros, sugeri como enredo para um filme curta-metragem que
foi produzido em 2001 em Juiz de Fora, O Fio e a Cidade9.
Este mesmo viés de colecionadora de pequenos retalhos, também
pode ser encontrado como marca da estilista Zuzu Angel, conforme é
contado em sua biografia (VALLI, 1896). A artista, natural de Curvelo,
Minas Gerais, tem seu trabalho reverenciado pelo seu caráter inovador
e revelador no campo da moda. Além de sua dedicação à costura, Zuzu
Angel, que se opôs à ditadura militar no Brasil, principalmente depois do

9 ALMEIDA JR, T. Curta-metragem / Sonoro / Ficção Material original 16mm, p/b, 7min.
Juiz de Fora: 2002.

75
Audiodescrição: práticas e reflexões

desaparecimento de seu filho Stuart, em 1971, clamou pela paz e pelo


fim da violência imposta pelas autoridades repressoras. Em suas roupas,
Zuzu expôs toda a fragilidade de uma mãe que perde um filho, se trans-
formando em uma figura forte e emblemática para outros que tiveram
perdas semelhantes. A utilização de materiais nordestinos em suas pro-
duções, como o de rendas do nordeste, foi uma de suas marcas e tam-
bém, da valorização de matéria-prima especificamente brasileira. Além
de seu ineditismo dentro da moda nacional, teve uma grande aceitação
em todo o mundo, consolidada principalmente nos Estados Unidos, onde
havia surgido o movimento hippie. Era o auge dos movimentos de protes-
tos contra a guerra no Vietnã na década de 1960, com discursos pela paz
e a liberdade, vindo a culminar na contracultura. (VALLI, 1986)
Voltando ao meu relato sobre minhas vivências com a costura,
entre os anos de 2004 e 2006, residi na cidade de Carangola. Em uma
visita à Cooperativa de Artesões local, presenciei a confecção de uma blu-
sa com fuxicos. Mas não eram fuxicos redondos, e sim em forma de flor.
A delicadeza e a harmonia de cada uma daquelas flores me chamaram
a atenção. Acredito que o momento foi um divisor de águas. Juntou-se
àquela prática o meu gosto por colecionar pequenos retalhos e acabei me
tornando posteriormente uma “especialista” em fuxicos em forma de flor.
Além de colecionar ainda mais diferentes tipos de retalhos, passei tam-
bém a lidar mais ainda com a especificidade de cada um destes pequenos
tesouros. Descobri quais eram mais apropriados para a confecção das
flores, suas diferentes texturas e cores. A seguir, uma pequena amostra
da prática que iniciei em Carangola:

Fig. 2: Tecidos e peça de fuxico finalizada em forma de flor:

Descrição da imagem: Pequenos pedaços de tecido e peça de fu-


xico em forma de flor. Os tecidos são coloridos e estão ao fundo. Um tem
pequenos arabescos e tons de rosa, vermelho e salmão. O outro é salmão

76
Audiodescrição: práticas e reflexões

com bordados coloridos. A peça de fuxico está na parte superior, na di-


reita do quadro. A flor é composta por cinco pétalas, nas cores: verde,
rosa e marrom. Ao centro da flor, pequenas miçangas brancas. Abaixo da
flor, três pedados de tecidos cortados em forma de círculo. Um é rosa os
outros dois são marfim.

Em torno do ano de 2005 estive na cidade de Belo Horizonte e,


caminhando pelas ruas e reparando as vitrines como um flaneur10, vi
uma flor confeccionada com tecido que compunha um broche. Não era
um fuxico. Mas o que me chamou atenção é que para não desfiar, as pé-
talas que formavam a peça, parecia que haviam sido finalizadas, como
uma bainha, em contato com calor. Como quando se aproxima plástico
do fogo, podendo ser de uma vela, por exemplo. Esta observação trouxe
um grande diferencial para os meus fuxicos. Como eu ganhava muitos
retalhos finos de tecidos musselina11, passei desta forma a tratá-los.
Em 2006 voltei a morar em Juiz de Fora e continuei a realizar
peças de fuxico em forma de flor e até as vendia. Foi neste período que
escrevi o poema Retalhos:

Retalhos

mundo divino e mágico


trouxe a solidão como resposta
e a companhia como pergunta
o espanto e o pavor se misturam
e a prece aparece
para firmar a vida
e zelar pela harmonia
panos plissados
cores e dores descobertas
em tons variados
dissonantes
incessantes
amantes
a origem de cada retalho
contornados pelo fogo
em círculos, músculos e pessoas
perde-se nos movimentos e pensamentos
transformados em trilhas

10 O conceito de flaneur foi amplamente debatido nos textos sobre a Modernidade de


Walter Benjamin. O observador que caminha à deriva, sem rumo certo. Mas sempre com
o olhar atento de um filósofo sobre a sua realidade. Disponível em <http://pt.scribd.
com/doc/52826681/O-Flaneur#scribd>. Acesso em 22 de novembro de 2015.
11 BECHARA (2009)

77
Audiodescrição: práticas e reflexões

tocadas e pisadas por poucos


são tantos panos plissados
com cores tão convergentes
que as dores se calam
e tudo em paz recomeça
sem se saber o destino de cada peça (ALMEIDA, 2010)

Meu encanto não era apenas com as diversas texturas e cores, mas
também com as várias formas que sobravam dos trabalhos. Não eram
apenas pedaços retangulares e padronizados, mas sim, repito, como pe-
quenos tesouros, uma vez que cada um tinha sua diferença, seu recorte
e essência. Comecei a compor imagens originais colocando os tecidos
sobre a tela do scanner, o qual faz a conversão de fotografias e impressos
em sinais elétricos, ou seja, registra imagens transformando elas em um
arquivo eletrônico (BECHARA, 2009). De forma não figurativa e quase que
aleatoriamente, as imagens começaram a ser compostas digitalmente:

Fig. 3: Minhas primeiras experiências com a digitalização de tecidos:

Descrição da Imagem: Retalhos de tecidos em várias cores, textu-


ras e estampas. Na parte superior, tecido vermelho com desenhos florais
em branco e verde. No centro, tecidos em formas circulares em diversas

78
Audiodescrição: práticas e reflexões

cores sobre tecido azul. Na base, tecido preto com flores douradas dis-
posto na quina do quadro, chegando até o tecido superior. Na ponta des-
te, um círculo de tecido liso verde. Parte de um círculo com estampa tribal
aparece na base esquerda do quadro.

Nesta fase que comecei a relacionar a composição plástica usan-


do os retalhos de tecidos digitalizados com meus versos. A prática da
digitalização transformou o trabalho mais criativo e dinâmico, pois fazer
artesanato de flores de fuxico era cansativo e até doloroso para as mãos.
Desta forma, comecei a incluir também meus poemas, como 3 Beijos:

Fig. 4: Arte com o poema 3 Beijos:

Descrição da Imagem: Poema 3 Beijos sobre arte com retalhos.


Por baixo dele tem um tecido em tons de verde que corta em diagonal
o quadro do canto esquerdo superior até o canto até próximo ao canto
direito inferior. A outra parte do quadro, vários círculos com tecidos dife-
rentes. Um círculo se sobressai por formar uma espiral em preto e azul,
provocando uma ilusão de profundidade. Na parte superior direita está
disposto o poema:

79
Audiodescrição: práticas e reflexões

3 Beijos

o ciúme rola embolado


não solto não soltando você
acaba se prendendo
às doses de muito medo de se perder
tenho um ponto em comum
com ela, com você e com ele
sou gente que se perde
sou gente que se prende só não sei se sou gente que prende
(ALMEIDA, 2010)

A partir de uma parceria iniciada com o Atelier Olho de Horus, Juiz


de Fora, pude ter meus primeiros contatos com a técnica de silk digital
ou sublimação. Que resultou posteriormente no trabalho que desenvolvo
com a minha marca, a Desnudez Declamada. Desenvolvemos composi-
ções visuais ao misturar os retalhos que eu havia digitalizado com foto-
grafias ou obras consagradas oriundas das pesquisas de imagens feitas
por Romer Angel no universo infinito da internet. Desta fusão surgiram
nossas experiências, como a conhecida escultura grega de Psique reani-
mada pelo beijo de Eros:

Fig. 5: Arte feita em parceria com Romer Angel:

80
Audiodescrição: práticas e reflexões

Descrição da Imagem: Arte com retalhos de tecido sobre foto de es-


cultura grega Psiquê reanimada pelo beijo de Eros12. A foto passa a ter um
novo colorido, com diversas formas sobre a superfície da escultura. Temas
florais e traços da composição gráfica dos tecidos sobrepostos se confundem
com uma nova pele para as figuras mitológicas, lembrando salamandras.

Desde quando iniciei as pesquisas de tecidos diversos e passei a


digitalizá-los, muitas destas composições visuais ficaram arquivadas no
computador. Com a base de áudio de alguns poemas que foram gravados
de forma experimental, fiz pequenos vídeos. Estas experiências foram
realizadas a partir de 2013 com auxílio do programa movie maker, que
possui ferramentas básicas de edição e sequência de imagens.
Dentre outros, editei os poemas Menino do Espelho Partido13 e Bike
Psicolétrica14, os quais foram apresentados em abril de 2015 em uma vi-
deoinstalação da marca Desnudez Declamada montada em um evento
coletivo chamado DIGA – Dia Intenso da Galera das Artes15. Na ocasião,
foram expostas algumas peças da produção da marca e no mesmo am-
biente foi montada a videoinstalação.
Para apontar historicamente o surgimento da videoarte no Brasil,
Candido José Mendes de Almeida (1986) conta que foi no início da década
de 60 que o vídeo começou a ser utilizado como um meio de expressão
artística. Dentre as possibilidades citadas, a das instalações seria quan-
do um ou vários aparelhos televisores eram “inseridos em determinadas
situações ou acoplados a outros materiais, criando um espaço cênico
dentro do qual serão exibidos os programas” (ALMEIDA, 1986, p. 48).
Neste caso havia uma particularidade: o aparelho televisor passava a ser
o protagonista da obra, saindo da mera função de transmissor de ima-
gens para uma espécie de humanização, como se pudesse alcançar um
estágio de “existência própria” (ALMEIDA, 1986, p. 50). Outra proposta
inicial de expressão da videoarte seria a da performance. Nela o corpo
humano passa a ser o “veículo condutor do processo” onde se realiza a
“associação da figura humana e do televisor como suporte da criação”. A
partir da chegada das novas tecnologias, como as câmeras e televisores
digitais, novas formas de expressão foram se somando, se infiltrando nas
produções audiovisuais e participando inclusive do cotidiano das pes-
soas de forma mais abrangente.
Na videoinstalação que apresentei no DIGA projetei os videopoe-
mas sobre três manequins de loja. Entre o projetor e os manequins, os es-

12 Casanova, Antonio. 1757- 1822. Psiquê revivida pelo beijo de Eros: escultura em gesso.
13 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9YRY_HqobfQ. Acesso: 10 de se-
tembro de 2015.
14 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mnAwz4LnHZg. Acesso: 10 de
setembro de 2015.
15 Disponível em https://www.facebook.com/DIGAindependente/. Acesso: 10 de se-
tembro de 2015.

81
Audiodescrição: práticas e reflexões

pectadores poderiam passar, permitindo, assim, que as mesmas imagens,


de múltiplas formas de tecidos, ficassem momentaneamente projetadas
sobre os corpos de cada espectador. Como já estava pesquisando sobre
a Audiodescrição e como incluir pessoas com deficiência visual em di-
versos contextos, comecei a pensar como seria para que tivessem como
apreciar o meu trabalho?
Explicando um pouco mais sobre a produção, aqui chamo de vi-
deoinstalação levando em consideração todo o ambiente, as peças ex-
postas e a projeção do videopoemas. O espectador ouvia o som dos poe-
mas através de fones de ouvidos e as imagens, que foram projetadas
sobre três bustos de manequins de loja. Estes manequins não estavam
vestidos. Sobre a superfície dos manequins, que seria a pele, se os com-
pararmos a seres humanos, as diferentes texturas e letras advindas dos
videopoemas se movimentavam através da projeção. Ao adentrar na sala
pouco iluminada, o espectador já se sentia atraído por um misto de mis-
tério, formas diversas e estampas coloridas, todas oriundas dos retalhos
utilizados na montagem dos vídeos. Ainda sem ouvir o poema, as pes-
soas, em sua maioria, sentiam-se atraídas pelos movimentos, como se
estivessem hipnotizadas. Alguns até relacionavam como uma “viagem
alucinógena”, como irei falar mais adiante. Já dentro da sala e sob o meu
convite, o espectador se sentava ao lado do notebook e colocava os fo-
nes. Dirigindo o olhar para a projeção sob os bonecos, ouvia os poemas.
E nesta apreciação permaneciam por alguns instantes.

Fig. 6: Foto de manequins na videoinstalação16:

16 Foto de Reinaldo Kreppke, em 19 de abril de 2015.

82
Audiodescrição: práticas e reflexões

Descrição da imagem: sobre fundo preto, parte de manequins co-


loridos por diversos desenhos de linhas, arabescos e formas não figurati-
vas. Chama a atenção o busto de um que está mais à frente, onde os pei-
tos femininos estão sendo iluminados de forma que uma sombra escura
se forma sobre o peito da esquerda. Atrás deste, aparece apenas o pesco-
ço de um manequim masculino, com outras tonalidades de cor, no caso,
avermelhadas. O manequim mais da direita está virado e suas costas es-
tão no escuro, formando uma silhueta feminina com a cintura acentuada.

Rivera (2009) discute a relação entre imagem e linguagem a partir


da análise de dois trabalhos de videoarte de Gary Hill. O autor se apoian-
do na concepção de Jacques Lacan sobre a letra. Primeiramente, citando
Barthes, traz à tona a ideia de que a letra é trazida como imagem e que
a linguagem é uma aventura para a poesia e a psicanálise freudiana. Pois
da mesma forma que com a letra se faz imagem, assim também do sonho
se faz a letra, ao ser relatado. Com múltiplos sentidos, o sonho é tradu-
zido do inconsciente para a forma das palavras, por meio do uso das
letras e da interpretação. Mas não há como preencher todas as lacunas e
o inconsciente fica sendo aquilo que se a tem a possibilidade de ser lido.
A letra não permite diretamente a leitura, mas consegue problematizar o
sentido e a visualidade. Para introduzir Gary Hill ao contexto discutido,
Rivera faz um breve histórico do artista, ao mesmo tempo em que expli-
ca a que veio a Videoarte: potencializar a crítica em relação à linguagem
televisiva e sua sede em distorcê-la propositalmente. Propõe questionar
este patamar de privilégio que a imagem possui dentro do campo da
consciência a partir de seu envolvimento com a visão. Rivera concebe
que não há, nas obras do artista em questão, relação entre texto e ima-
gem de forma ilustrativa. A autora entende que nos trabalhos em vídeo
de Hill, cada imagem é concebida como uma sílaba, compondo sucessões
de frases e, consequentemente, sua própria linguagem. Em uma relação
de aventura infinita, o visual e a linguagem se entrecruzam, questionan-
do a própria representação.
Como havia citado anteriormente, o efeito psicodélico foi citado
por alguns espectadores que tiveram acesso à videoinstalação da Desnu-
dez Declamada no DIGA. E, eu mesma, desde que assisti e mostrei pe-
las primeiras vezes os videopoemas, tive uma forte sensação através do
sentido da visão. Um dos espectadores chegou a dizer que parecia que
estava sendo fortemente atraído, como se aquelas imagens tivessem um
poder hipnótico, como uma droga alucinógena. Alguns falavam: “bem
psicodélico”. Este conceito, bastante vago de certa forma, traduz muito
para mim esta sequência de imagens que estão nos videopoemas.
Bechara (2009) define que “psicodélico” é um adjetivo que carac-
teriza um “estado psíquico gerado por drogas alucinógenas”. No senti-
do figurativo, nesta definição, as visões psicodélicas lembram, têm ou
nos remetem a coisas coloridas. A definição do próprio radical da pa-

83
Audiodescrição: práticas e reflexões

lavra, “psico”, como “alma”, “espírito’, “mente”. A origem vem do grego


“psykhé”. E que cor é a “percepção visual causada pela ação de feixes de
luzes sobre a célula da retina, que por meio do nervo óptico chega até o
sistema nervoso onde é codificada”. Já a percepção das cores depende do
olho humano, que capta apenas uma parte das radiações luminosas, sen-
do que a luz branca é composta por sete cores fundamentais. Ao falarmos
de decodificação significa que temos um código, ou seja, uma linguagem
que nos permite nos comunicar. Se cada pessoa resolvesse chamar uma
determinada cor por um nome seríamos incomunicáveis a respeito delas.
Para a pessoa cega, desprovida da percepção visual, não há, a princípio,
como estabelecer uma referencia para a cor. A capacidade do olho huma-
no de registrar a existência de uma cor é a luminância. E o termo cor é
sempre equivalente à expressão cor-luz. Podemos dizer que a cor é uma
palavra mágica e lúdica, que invade todos os domínios da nossa vida e
participa deles de forma a constituir um evento psicológico. A física nos
explica que a luz é incolor. Somente adquire cor quando passa através da
estrutura do espectro visual. Podemos dizer que a cor não é uma matéria,
nem uma luz, mas uma sensação.
Ao aceitarmos esta definição, ou seja, se cor é uma sensação, pode-
mos dar a ela a significância de acordo com que sentimos. Contudo, para o
audiodescritor que tende a ser neutro em suas descrições, isso pode soar
um pouco desconfortável, mas o que é melhor, o cego receber uma referên-
cia dentro de sua contextualização ou simplesmente ter que acreditar que
vivemos em um mundo desprovido de cores e sensações diversas?
Para esta questão podemos nos remeter a várias discussões e pon-
deramentos. Mas, certamente, um bom exemplo pode ser encontrado no
filme Vermelho como o céu17 na sequência dos meninos Mirco e Felice na
árvore. Tudo começa quando Felice convida Mirco a subir e já sentados
na copa, eles conversam. Felice pergunta a Mirco, que não nascera cego,
como são as cores. A cena marca com delicadeza a conotação das cores
para o personagem Mirco, que mais à diante, no desenrolar da história,
apresentará todo seu caráter sensível. A seguir, transcrevo o diálogo da
sequência da árvore:

Felice: “Como são as cores?”


Mirco: “São lindas.”
Felice: “Qual a sua predileta?”
Mirco: “O azul.”
Felice: “Como é o azul?”
Mirco: “É como quando anda de bicicleta e o vento bate na sua

17 Vermelho como o céu é um filme sobre um menino que perde a visão aos 10 anos e
vai morar em um colégio interno. Direção: Cristiano Bortone. Duração: 96 min. Itália:
2006. Disponível em < https://cinemahistoriaeducacao.wordpress.com/cinema-e-peda-
gogia/vermelho-como-o-ceu/>. Acesso: 10 de setembro de 2015.

84
Audiodescrição: práticas e reflexões

cara. Ou também é como o mar. O marrom... sinta isto (enquanto coloca


a mão de Felice sobre a superfície do tronco da árvore). É como a casca
da árvore, sente como é áspera?”
Felice: “Muito áspera. E o vermelho?”
Mirco: “O vermelho é como o fogo. Como o céu no pôr-do-sol.

Para transmitir as informações visuais da videoinstalação da


marca Desnudez Declamada, defini alguns pontos para o um áudio-guia
no ambiente, dentre eles, que seria usada uma voz masculina, ou seja,
seria necessário escolher e preparar um narrador audiodescritor com
bastante cuidado. Pesquisando em minha memória sonora pessoal, lem-
brei da voz de Edson Ferenzini18. Apesar de conhecer vários nomes de
profissionais que trabalham com a voz, acreditei nesta escolha, não só
por ele conhecer parte do meu repertório poético e artístico, mas tam-
bém a própria videoinstalação.
Outra justificativa importante seria a de colocar em prática os co-
nhecimentos adquiridos com o curso de audiodescrição com uma boa
escolha para a locução. Além de uma pronúncia clara, timbre marcante
e com graves intensos e, o aspecto profissional de aceitar ser dirigido.
Esta minha escolha e minha direção compactuam com o pensamento da
audiodescritora e colega de curso, Letícia Schwartz:

É consenso que o tom da narração deve ser neutro. Acrescento,


porém, que ele deve ser expressivo. É preciso perceber,
no entanto, que há uma diferença entre expressividade e
interpretação. É função da narração propiciar o envolvimento do
espectador com aquilo a que ele está assistindo e não roubar a
atenção do próprio filme. (SCHWARTZ, 2010, p. 225)

Segundo Vygotsky (2011), a necessidade do desenvolvimento de


caminhos indiretos para o contato com a cultura se faz a partir da cons-
cientização de que nossa sociedade é planejada para a pessoa dotada
de todas as funções “normais”19 dos órgãos dos sentidos, mas da não
aceitação desta máxima. A proposta de se abrir “caminhos alternativos”,
cada um com suas especificidades, surge deste pensamento desbravador

18 Edson Leão Ferenzini é mestre em Teoria Literária pela Faculdade de Letras da UFJF,
cantor e compositor. Também ministra palestras sobre música popular e participa de
projetos didático/musicais sobre história do rock e Música Popular Brasileira em insti-
tuições educacionais e centros culturais.
19 Grifo original do autor. De acordo com as propostas atuais de inclusão, não podemos
nos referenciar às pessoas sem deficiência como normais, pois desta forma já estamos
excluindo socialmente aquelas que possuem algum tipo de deficiência. Certamente, o
contexto no qual esta teoria foi inicialmente desenvolvida ainda não se discutia a fundo
como nos referenciar à diversidade de maneira geral e muito menos específica. Consi-
derei o grifo por considerar o pensamento de Vygotsky como revolucionário, no sentido
de abrir novas perspectivas de diálogo dentro do tema ainda em tempos tão remotos
(início do século XIX).

85
Audiodescrição: práticas e reflexões

e corajoso. Colocando o “defeito” exatamente como nossa tarefa inspira-


dora e de estímulo:

Exatamente porque o defeito produz obstáculos e dificuldades


no desenvolvimento e rompe o equilíbrio normal, ele serve de
estímulo ao desenvolvimento de caminhos alternativos de adap-
tação, indiretos, os quais substituem ou superpõem funções que
buscam compensar a deficiência e conduzir todo o sistema de
equilíbrio rompido a uma nova ordem. (VYGOTSKY, p. 869, 2011)

Conclui-se, portanto, que “o desenvolvimento cultural é a prin-


cipal esfera em que possível compensar a deficiência” (2011, Id Ibid). E
acreditando que o próprio conceito da marca Desnudez Declamada car-
rega, não somente a marca de produtos artesanais e de uma confecção,
mas também, a priorização em se comunicar com o público, de forma
plena e consciente de que temos que ampliar nossas formas de se fazer
presente a ele. Seja por meio das palavras, do som ou das imagens, como
nas linguagens artísticas usadas nas videoinstalações.
Escolher os cegos para ampliar o público a ser atingido pela marca
significa, para mim, abraçar esta proposta de Vygotsky, de ultrapassar-
mos os limites da “normalidade”. Ampliar o conceito e reverter a ordem
é a carga que todo artista assume quando se identifica como tal. Em se
tratando do campo da Arte e Educação, esta ordem vigente, estagnada,
ultrapassada, tem que ser definitivamente e, preferencialmente, rompida
de forma sistemática.

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88
Audiodescrição: práticas e reflexões

Roteirizar, gravar,
editar:
Os efeitos da edição
sobre os filmes audio-
descritos exibidos na
TV brasileira1
Mônica Magnani Monte2

1 Artigo redigido a partir do Trabalho de Conclusão do primeiro curso brasileiro de


Especialização em Audiodescrição, oferecido pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF) em parceira com a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência (SNPD), 2015.
2 Especialista em Audiodescrição (UFJF/SNPD [Universidade Federal de Juiz de Fora /
Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência], 2015), Espe-
cialista em Artes Cênicas (Faculdade da Cidade, 2001), Mestre em Língua Portuguesa
(PUC-RIO, 1998), Bacharel em Letras/Tradução (PUC-RIO, 1994). É audiodescritora ro-
teirista de filmes para TV Globo e TV Brasil e portais onlines. Atua na área desde 2011,
com mais de 100 roteiros de audiodescrição de filmes para TV. Recebeu o Prêmio de
Melhor Roteiro de Audiodescrição, para o curta “Um Lance do Acaso”, de Beatriz Taunay,
no Festival Ver Ouvindo 2015 (Festival de Filmes com Acessibilidade, Recife). Atriz em
dublagem, teatro e TV, tradutora (Inglês/Português), revisora e produtora de audiolivros.
Capacitadora para gravação de audiolivros visando a acessibilidade para a pessoa com
deficiência visual. Narradora voluntária no Projeto Livro Falado durante a parceria IBC/
FACHA e narradora de chamadas e livros para editoras. Narradora de audiodescrição.
E-mail: magnani.monica50@gmail.com.

89
Audiodescrição: práticas e reflexões

Resumo: A audiodescrição (AD) é modalidade de tradução audiovisual


– uma tradução intersemiótica, que traduz imagens em palavras. Seu ob-
jetivo primário é permitir o acesso à cultura e à informação para público
com deficiência visual. É um recurso de acessibilidade recente nas emis-
soras brasileiras de televisão (TV), com a implementação regida por leis,
mas ainda aplicado apenas na programação pré-gravada (séries, novelas
dubladas, filmes), que costuma ser editada para caber na grade em que
será exibida. No caso específico de filmes, esta edição é feita no estágio
da pós-produção da AD. Isto significa que editar um filme audiodescrito
é editar o roteiro da AD. Diante deste quadro, por meio de um corpus de
dois filmes audiodescritos exibidos na TV, esta pesquisa investiga como
a prática de editar a programação pré-gravada pode afetar a coesão, coe-
rência e fluidez do roteiro de AD desses filmes, comprometendo (ou não)
a fruição para o público com deficiência visual e/ou o entendimento das
cenas ou da trama. Para validar a investigação, recorremos a teóricos
nacionais e estrangeiros que inserem a AD nos Estudos da Tradução e
estabelecem uma interface com os elementos da Narrativa Fílmica. Os re-
sultados apontam para a relevância das pesquisas e testagens e formação
do profissional da AD. Também sugerem a necessidade de se repensar
meios de adequação da AD à TV e vice versa.

1. Introdução

Desde 2011, a audiodescrição (AD) passou a ser obrigatória nas


emissoras brasileiras de televisão (TV) com transmissão digital. A imple-
mentação deste recurso de acessibilidade na TV instaurou um divisor de
águas na minha vida profissional, pois foi quando comecei a produzir
roteiros de AD para emissoras de TV, num total de mais de 100 roteiros
de AD até o momento.
A AD de filmes se materializa sob a forma de uma locução adi-
cional inserida nos espaços sem fala, descrevendo os elementos visuais
significativos da trama para a compreensão de cenas, ambientes, per-
sonagens, efeitos visuais e sonoros. A oferta de filmes audiodescritos
no mercado (geralmente feita no formato DVD acessível) ainda é peque-
na, mas tem-se expandido e ganhado mais visibilidade. Em dezembro de
2014, a Instrução Normativa 1163 determinou que todos os projetos de
produção audiovisual financiados com recursos públicos federais geridos
pela Agência Nacional de Cinema (ANCINE) deveriam contemplar serviços
de acessibilidade nos seus orçamentos. Em julho de 2015, foi sancionada

3 http://www.ancine.gov.br/legislacao/instrucoes-normativas-consolidadas/instru-o-no
rmativa-n-116-de-18-de-dezembro-de-2014

90
Audiodescrição: práticas e reflexões

a Lei Brasileira da Inclusão4 que, em seu Artigo 67, determina que a AD


esteja entre os recursos disponibilizados pelos serviços de radiodifusão
de sons e imagens.
É fato, porém, que, no caso específico de filmes audiodescritos
veiculados na TV, pouco se conhece acerca da cadeia de produção até sua
efetiva exibição. Há quatro anos atuando neste mercado, percebi que a
edição desses filmes é feita no estágio da pós-produção, ou seja, após a
narração da AD ser gravada e mixada ao filme. Isso significa que a edição
do filme também edita o roteiro de AD. Tal constatação me leva a fazer
alguns questionamentos:
1. de que forma esta edição do filme afeta o roteiro de AD?
2. quais seriam suas consequências para os espectadores com
deficiência visual?
3. em que medida esta edição pode (ou não) comprometer a
coesão, a coerência e a fluidez do roteiro e, consequentemente, compro-
meter a fruição e/ou o entendimento das cenas ou da trama como um
todo para estes espectadores?
Estas ainda são perguntas sem respostas. E este artigo visa ins-
taurar o debate salutar. Para tal, encontra-se dividido em quatro seções,
além desta Introdução. Na primeira, situo a AD no escopo dos Estudos de
Tradução. Na segunda, discorro sobre a AD na TV. Na terceira, analiso os
efeitos da edição sobre o roteiro de AD a partir de trechos de dois filmes.
Na quarta, além de enumerar as principais conclusões, aponto possíveis
perspectivas para investigações futuras.

2. A audiodescrição nos Estudos de Tradução –


Novos modos de ver um novo mercado

Sacks (2010) questiona em que grau a descrição, a imagem posta


em palavras, pode funcionar como substituto para o ato real de ver ou
para a imaginação visual pictórica. E afirma:

Se de fato existe uma diferença fundamental entre a vivência


e a descrição, entre o conhecimento direto e o conhecimento
mediado do mundo, por que então a linguagem é tão poderosa?
A linguagem, a mais humana das invenções, pode possibilitar
o que, em princípio, não deveria ser possível. Pode permitir a
todos nós, inclusive os cegos congênitos, ver com os olhos de
outra pessoa. (p. 210, grifos nossos)

4 Lei 13.146, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/


2015/Lei/L13146.htm

91
Audiodescrição: práticas e reflexões

Esta é a proposta básica da audiodescrição (AD): por meio da lin-


guagem, ao transformar imagens em palavras, permitir que a pessoa com
deficiência visual “veja” com os olhos de outra pessoa e, assim, incluí-la
de forma plena e autônoma na sociedade, fazendo com que se sinta res-
peitada em seus direitos como cidadão, consumidor e espectador dos
mais diversos eventos culturais. Mas de que forma isso acontece?
Para Jakobson (1991), toda experiência cognitiva pode ser tradu-
zida e classificada em qualquer língua existente, distinguindo-se aí três
maneiras de interpretar um signo verbal: ele pode ser traduzido em ou-
tros signos da mesma língua, numa tradução que chama de intralingual
ou reformulação; em outra língua, que seria a tradução como usualmente
a conhecemos, de um idioma para outro; ou em outro sistema de signos
não verbais, que seria a tradução intersemiótica, ou transmutação, em
que os signos estariam em meios semióticos diferentes, como na AD, que
seria uma tradução do código visual para o verbal. Enquanto tradução de
imagens em palavras, teria então a AD encontrado seu lugar?
Até a década de 70/80, grande parte dos modelos de tradução era
de cunho linguístico e tendia a se concentrar no nível da palavra ou da
oração, com a preocupação principal de dar conta da equivalência linguís-
tica, ou seja, da transposição de significados estáveis do texto de partida
para o texto de chegada, com claro predomínio da objetividade Saus-
suriana dos elementos puramente linguísticos, os quais flanavam acima
de qualquer envolvimento ideológico. Na década de 90, com o advento
do cultural turn nos estudos tradutórios, a tradução passa a ser consi-
derada como “transferência” cultural ao invés de linguística; o processo
tradutório, como um ato de comunicação, e não mais uma “transcodifica-
ção”; e o texto traduzido, como parte integrante do mundo e não como
um espécime isolado da linguagem.
Portanto, para se analisar as inúmeras situações comunicativas de
um texto traduzido, não basta considerar apenas aspectos estruturais,
lexicais ou estilísticos; não basta se deter na estrutura da língua, isto
é, no nível da oração, nas escolhas de léxico ou de registros. É preciso
considerar a dimensão pragmática do contexto situacional e sociocultu-
ral, o uso que se faz da língua, nesse contexto, na cultura de chegada e
também o uso estratégico que se faz desta língua. A linguagem passa a
ser fenômeno profundamente social e histórico e, por isso mesmo, ideo-
lógico. A unidade básica de análise linguística volta-se para o enunciado,
ou seja, elementos linguísticos produzidos em contextos sociais reais e
concretos como participantes de uma dinâmica comunicativa. E a tradu-
ção claramente transcende o escopo da linguística meramente lexical.
Qualquer modelo de tradução estaria, na verdade, lidando com a língua
em uso em duas culturas distintas, criando, assim, um novo texto, em
uma nova cultura.
Barthes (1987), por sua vez, nos mostra que o texto em si é mais
do que um diálogo com outro texto. São várias vozes, vários sentidos,

92
Audiodescrição: práticas e reflexões

vários caminhos e viagens pelos espaços infinitos da linguagem e das vi-


sões de mundo de quem se debruça sobre ele. Essa polifonia leva o leitor
a preencher lacunas, espaços vazios e a pensar o que a obra significa para
ele, para que a possa ressignificar. Assim, os sentidos são construídos a
cada leitura. E o texto é recuperado a cada vez que é lido. Texto enquanto
tecido que se produz em um entrelaçamento contínuo de vozes, lugares,
poderes, contextos, ideologias.
Esse mesmo deslocamento do texto que se move e se constrói a
cada leitura pode ser observado ao nos debruçarmos sobre a AD quando
a inserimos nos estudos da Tradução Audiovisual (TAV) como uma tradu-
ção intersemiótica, i.e., uma tradução de imagens em palavras.
Na verdade, a visão que norteou os primeiros audiodescrito-
res pressupõe um modelo de AD de cunho estritamente linguístico,
transferindo significados imagéticos e mantendo-se fiel ao que se vê,
que seria o “texto original”, “fielmente” traduzido na diretriz “descre-
va, objetivamente, apenas o que você vê”. No entanto, conforme de-
monstrado pelo cultural turn nos estudos tradutórios, assim como não
existem traduções idênticas, não existirão roteiros idênticos de AD.
As informações visuais priorizadas por um audiodescritor podem ser
diversas das priorizadas por outro, porque, seja ao traduzir ou audio-
descrever colocamos ideias e informações em palavras. No caso da AD
de filmes, traduzimos em palavras as informações visualizadas nas ima-
gens. Só que o olhar é muito mais do que função fisiológica. É universo
carregado de sentido. É linguagem carregada de força e impregnada
de tudo o que somos e de como vemos o contexto em que estamos
inseridos. Assim, o audiodescritor de filmes vai se aproximar do leitor
de Barthes (1987), que interpreta e ressignifica as imagens e todos os
elementos (visuais e auditivos) que vão tecendo a narrativa fílmica. Ele
também é um observador do que vê, buscando compreender o filme
como um todo para pinçar os elementos visuais mais significativos que
proporcionem uma leitura lógica, coesa, coerente, fluida e fluente da
obra para, então, reescrevê-la de forma que seu público alvo, a pessoa
com deficiência visual, a (re)interprete. Suas escolhas sintáticas e lexi-
cais devem, portanto, reconstituir, em palavras, a mesma carga ima-
gética, acompanhando todas as curvaturas das cenas. O ritmo da cena
deve guiar o ritmo do roteiro, para que se atinja a fruição da obra. Mas o
tempo quase sempre exíguo para a inserção da AD exige precisão e con-
cisão da informação e, mesmo quando diante de brechas sem fala mais
generosas, o audiodescritor deve tentar solucionar seu maior desafio
que, segundo Braun (2008), é selecionar as informações de forma a
descrever o que considera essencial, sem subestimar ou sobrecarregar
o seu público alvo. Deixá-lo usufruir também a experiência estética do
filme refletida nos silêncios, na música, nos sons e nos efeitos, pois um
filme vai além das imagens, e a forma como elas são captadas também
importa e significa. E, como afirma Payá (2007, p. 80, tradução nossa),

93
Audiodescrição: práticas e reflexões

“é absolutamente imprescindível que o audiodescritor conheça e domi-


ne os códigos cinematográficos, uma vez que é o ‘idioma’ de seu texto
de partida”5.
As imagens em um filme podem ser apresentadas em tempo real,
em flashback, intercaladas ou sobrepostas; os diálogos são acompanha-
dos de movimentação cênica, gestual e expressões faciais. Elas formam
um mosaico, um entrelaçar de imagens, palavras e sons variados. For-
mam uma narrativa que possui uma “liga”, uma tessitura que lhe confere
coesão e coerência visual e verbal, segundo seus vários gêneros – mu-
sical, comédia, drama, ação, terror, policial, suspense, infantil, erótico,
entre outros, cada qual com suas particularidades próprias. E sua audio-
descrição deverá estar acessível para um público que é extremamente
heterogêneo na forma como constrói suas imagens mentais do mundo.
De fato, “os modos de ver” de uma pessoa cega perpassam por con-
dições proporcionadas a partir da interação dela com o mundo e com os
outros. Pesquisas e testagens com pessoas com deficiência visual denotam
que, no caso da cegueira adquirida, elas constroem os conteúdos imagéti-
cos com base em uma memória visual. Já pessoas cegas congênitas usam
seus outros sentidos para construir esses conteúdos imagéticos a partir
da interação com o mundo e com as pessoas que os cercam (VILARONGA,
2010). E, por fim, há o público de baixa visão, que consegue vislumbrar
vultos e cores e muitas vezes até acha desnecessário utilizar o recurso.
No entanto, independente da forma como enxerga o mundo, é
fato que a pessoa com deficiência visual necessita de experiências e in-
terações em variados espaços de cultura e comunicação, vivenciando
prazeres e saberes que certamente contribuirão para a formação de seu
universo conceitual. Assim, embora seja necessário que esse público se
familiarize com o recurso, também é preciso que o audiodescritor esteja
capacitado a construir um discurso acessível a estes.
Segundo Farias (2013), é necessário um processo de formação e es-
pecialização para que o audiodescritor refine seus conhecimentos linguísti-
cos e tradutórios e também aprofunde sua capacidade de leitura de imagens.
Após aprofundar conhecimentos e misturá-los de forma criativa e expressiva
à sua bagagem pessoal de mundo, talvez possa tornar-se um leitor de ima-
gens apto a desconstruí-las e reconstruí-las com fluência e fluidez. Diante da
diversidade humana, entretanto, que ultrapassa toda e qualquer deficiência,
o audiodescritor nunca será plenamente capaz de construir as imagens da
mesma forma que a pessoa com deficiência visual. Por isso, é extremamente
importante a revisão do roteiro por um consultor com deficiência visual – um
consultor-revisor, que vivencia a deficiência, que tenha a devida formação e
a sensibilidade de perceber essa diversidade de construções imagéticas fei-
tas pelo público alvo da AD, igualmente respeitando a diversidade inerente

5 es absolutamente imprescindible para el audiodescriptor conocer y dominar los códigos


cinematográficos puesto que son el “idioma” de su texto de partida. (Payá, 2007, p. 80)

94
Audiodescrição: práticas e reflexões

ao ser humano e à própria deficiência visual. O pretenso saber conferido


pela visão deve respeitar o sabor da escuta.
Hoje, há um consenso acerca da importância da formação de pro-
fissionais para a prática da AD de forma a capacitá-los a tomar as decisões
tradutórias que melhor se adequem ao produto que tiver em mãos. Nin-
guém nasce audiodescritor. É competência adquirida por meio de prática
e de estudo. E a formação é imprescindível para se oferecer um produto
de qualidade – para se aprender a ver palavras e escrever imagens.
No tocante à elaboração de um roteiro de AD, tanto as diretrizes6
quanto as pesquisas acadêmicas (ARAÚJO, 2010), (SEOANE, 2013), (COS-
TA, 2014), (NÓBREGA, 2014), entre outros, sinalizam para o processo de
carpintaria e maturação e apontam para uma clara divisão em etapas no
momento de sua elaboração:

• assistir ao filme e elaborar o roteiro;

• ajustar o roteiro às brechas sem fala, ou seja, ajustar as des-


crições ao tempo disponível para inseri-las;

• submeter o roteiro à outro roteirista vidente;

• submeter o roteiro a um consultor com deficiência visual;

• gravar o roteiro em estúdio;

• editar e mixar a gravação à trilha original do filme;

• revisar a gravação.

Este seria então o modus operandi ideal de elaboração de um ro-


teiro de AD para filmes. Braga (2013, p. 141) ainda explicita a função do
consultor: “[...] revisar o texto [sua compreensão], examinar o ritmo da
narração e o sincronismo das imagens com as descrições de forma que as
mesmas não se sobreponham aos diálogos”.
A velocidade com que o mercado da AD na TV vem se expandindo,
entretanto, joga o profissional de AD na prática, sem redes de proteção, porque
a TV pauta-se por um ritmo industrial em todas as suas produções. Assim, en-
quanto as pesquisas acadêmicas demonstram a importância da maturação da
escrita de um roteiro e de toda uma infraestrutura para sua realização, a prática
mostra-se diversa no mercado televisivo. É preciso então entender o modus ope-
randi da TV, verificar como se dá a inserção da AD neste grande universo ima-
gético e buscar soluções para possíveis desencontros entre o ideal preconizado
pela teoria e a efetiva prática da elaboração de roteiros de AD para este veículo.

6 Ver documento do Media and Culture Department, do Royal National Institute of Blind
People, que compila várias diretrizes estrangeiras. Disponível em: http://audiodescrip-
tion.co.uk/uploads/general/RNIB._AD_standards.pdf

95
Audiodescrição: práticas e reflexões

3. A audiodescrição na TV

O mercado de AD para TV surge como fruto da necessidade de


cumprimento de uma Norma da Portaria 188/2010 do Ministério das Co-
municações7. O não cumprimento desta norma acarreta pesadas multas e
sanções. Até o estágio atual, que determina a exibição de seis horas se-
manais de conteúdo audiodescrito apenas na TV aberta, ocorreram mui-
tos atrasos e impasses, postergando o início efetivo da AD na TV para
junho de 20118. Hoje, a expectativa é a de se atingir a cota de 24 horas
semanais até 2020.
A primeira emissora a oferecer o recurso foi o Sistema Brasileiro
de Televisão (SBT), com o seriado “Chaves”, um dos seriados latino-ame-
ricanos mais famosos em todo o mundo9. Os jornais noticiaram o fato
e informaram a programação de algumas emissoras10. Em reportagem
veiculada no Fantástico, A TV Globo anunciou os programas que teriam o
recurso, informando também que a AD só estaria disponível nas TVs com
sinal digital11.
As primeiras diretrizes para a elaboração de um roteiro de AD para
TV foram definidas ainda em 2005 pela NBR 15.290 da Associação Brasi-
leira de Normas Técnicas (ABNT). Segundo esta Norma, “[...] a descrição
em áudio de imagens e sons deve transmitir de forma sucinta o que não
pode ser entendido sem a visão [...] deve ser compatível com o programa
[...] a descrição subjetiva deve ser evitada”. A Norma ainda orienta que
“em filmes de época devem ser fornecidas informações que facilitem a
compreensão do programa”12.
A complexidade da produção de um roteiro de AD para TV, entre-
tanto, exige que se vá além dessas recomendações imprecisas e vagas
para a sua boa prática. De fato, o aumento da demanda pelo recurso,
inclusive na TV, levou vários países a estabelecerem suas próprias dire-
trizes visando auxiliar os audiodescritores no processo de elaboração de
seus roteiros de AD. A Britânica é a mais antiga e data de 200013; a Espa-

7 http://www.mc.gov.br/images/2011/6_Junho/portaria_188.pdf.
8 Para mais detalhes, ver http://www.blogdaaudiodescricao.com.br/a-saga-da-audio-
descricao-no-brasil.
9 https://www.youtube.com/watch?v=vAwugcNo_rM.
10 http://www1.folha.uol.com.br/colunas/zapping/937425-sbt-adapta-chaves-para-tel
espectadores-cegos-por-meio-da-audiodescricao.shtml (é necessário ser assinante da
Folha para ter acesso à matéria).
11 https://www.youtube.com/watch?v=sZGzJDksicc.
12 ABNT NBR 15290:2005, disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/112957
/6985444/NBR_15290_2005_Comunicacao_TV.pdf.
13 ITC Guidance on Standards for Audio Description (Inglaterra, 2000), disponível em
http://www.ofcom.org.uk/static/archive/itc/itc_publications/codes_guidance/audio_
description/index.asp.html.

96
Audiodescrição: práticas e reflexões

nhola foi elaborada em 200514 e a americana, em 200815. Todas abordam


os princípios da AD e orientam o processo de elaboração do roteiro.
Em 2010, o Media and Culture Department, do Royal National
Institute of Blind People publicou um documento que se propõe a com-
parar e mapear as semelhanças das diretrizes existentes em seis países
diferentes: Reino Unido, Grécia, França, Alemanha, Espanha e EUA16. É
interessante observar que o documento respalda a argumentação de Re-
mael e Vercauteren (2007), para quem as diretrizes sempre apontam para
as questões básicas de “o que” e “como” descrever, “quando” e “quan-
to”. Em 2012, foi publicado o Relatório ADLAB17 – um estudo sobre a AD
na Europa, que analisa, define e exemplifica diretrizes para audiodescri-
tores. O Relatório é fruto de três anos de um projeto de pesquisa que
resultou em um dos livros mais recentes sobre as novas perspectivas da
AD, ilustrado com a análise da AD do filme de Quentin Tarantino “Inglo-
rius Bastard” (2008). Os capítulos abordam várias questões pertinentes
à elaboração de um roteiro de AD para filmes, como Inserção de Notas
Introdutórias, Tratamento dos Elementos Verbais e Não Verbais, Intertex-
tualidade, Coesão Textual, Caracterização de Personagens, Ambientação
espaço-temporal, Referências Culturais, etc. O livro, em inglês, já está
disponível para compra online no Google Play18.
No Brasil, boa parte dos pesquisadores19 adota os modelos espa-
nhol e/ou britânico na elaboração de roteiros de AD de filmes, que são
submetidos a testes de recepção. Vale lembrar que a norma britânica
sugere um roteiro mais centrado nos detalhes, enquanto a espanhola su-
gere um roteiro mais centrado nas ações. Há também quem paute seus
roteiros pela norma americana – o único modelo com tradução para o Por-
tuguês, disponibilizada pela Revista Brasileira de Tradução Visual20. Um
grupo de pesquisadores, profissionais da AD e pessoas com deficiência
visual estão envolvidos em um Projeto de Norma Técnica de Acessibilida-

14 AENOR UNE 153020 (Espanha, 2005), disponível para compra em: https://www.
aenor.es/aenor/normas/normas/fichanorma.asp?codigo=N0032787%20&tipo=N&PDF=-
Si#.VcFcPPlVikp
15 Audio description coalition – Standards for Audio Description and Code of Profes-
sional conduct for describers (EUA, 2008), disponível em: http://www.nps.gov/hfc/ac-
quisition/pdf/audio-description/shared/attach-a.pdf
16 http://audiodescription.co.uk/uploads/general/RNIB._AD_standards.pdf
17 Remael, Vercauteren e Reviers (eds.). 2014. Pictures painted in words. The ADLAB au-
dio description guidelines. Disponível em: http://www.adlabproject.eu/Docs/adlab%20
book/index.html
18 Maszerowska, Matamala & Orero, Pilar (ed.), 2014. Audio Description. New Perspec-
tives Illustrated. Benjamin Translation Library, v. 112. Disponível para compra em: ht-
tps://play.google.com/books
19Aqui refiro-me a pesquisadores das universidades da Bahia, Ceará, Minas e Brasília,
responsáveis pelas principais contribuições acadêmicas brasileiras (artigos e/ou disser-
tações) para o entendimento da AD.
20 Disponível em http://www.rbtv.associadosdainclusao.com.br/index.php/principal/
article/view/54

97
Audiodescrição: práticas e reflexões

de na Comunicação – Audiodescrição, segundo diretiva da ABNT, visando


ampliar o escopo da NBR 15.290 e consolidar uma diretriz nacional para
o recurso de AD. Outro grupo, composto por pesquisadores da Universi-
dade de Brasília (UnB), da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e profis-
sionais da área, elaborou um Guia da Produção Audiovisual Acessível21,
que servirá de referência para os realizadores do audiovisual no Brasil. O
grupo teve o apoio do Ministério da Cultura (MinC), por meio da Secre-
taria do Audiovisual (SAv), que utilizará as normas sugeridas no referido
Guia para futuros projetos.
Destacamos aqui a orientação no tópico do referido Guia que
aborda as “questões técnicas na elaboração de roteiros de audiodescrição
para filmes e programas de TV”:

Os roteiros de audiodescrição de produções audiovisuais preci-


sam conter os seguintes elementos: tempos iniciais e finais das
inserções da AD, as unidades descritivas, as deixas, ou seja, a
última fala antes de entrar a AD e as rubricas, que consistem nas
instruções para a narração da AD (p.10).

O motivo é plenamente justificável, posto que, como relata na se-


quência da orientação, “nem sempre o audiodescritor-roteirista será o au-
diodescritor-narrador. Portanto, esses elementos são importantes para au-
xiliar na gravação da voz e dar à narração o teor adequado a cada cena”.
Mas será que o modus operandi da TV permite que tais orienta-
ções, que retratam condições ideais de trabalho, sejam de fato seguidas
à risca?
Lente que reflete o momento, a TV é uma fábrica de sonhos em
um parque industrial, em que impera a agilidade ao oferecer informação
e entretenimento, por vezes, em tempo real. E o espetáculo não para,
embora seja sempre interrompido, fragmentado pelos comerciais. Apre-
sentada em blocos, a programação pode ter diversos formatos (progra-
mas de variedades, telejornais, novelas, séries, entre outros), é regida por
uma classificação etária e obedece a uma grade prévia de programação,
que pode ser alterada de última hora, para noticiar o minuto. A grade con-
siderada nobre, por exemplo, que ocupa o período de 20h à meia noite,
sempre será mais fragmentada pelos comerciais do que a da madrugada.
Assim, os filmes exibidos neste horário costumam passar por uma edição
mais severa, mais repleta de cortes e recortes, para caber na grade. Como
esta edição também atinge o roteiro de AD destes filmes, não há como
fugir dos desencontros entre teoria e prática na elaboração do roteiro de
AD para este veículo.
Esses desencontros se iniciam nos prazos, em média de 48 a 72
horas para se elaborar o roteiro de um filme, cuja duração oscila entre 90

21 https://dl.dropboxusercontent.com/u/10004244/Blog/Normas%20T%C3%A9cnicas/
guia_audiovisuais.pdf.

98
Audiodescrição: práticas e reflexões

e 130 minutos. Esses prazos exíguos se refletem na forma de elaboração


do roteiro, pois inviabilizam qualquer aprofundamento a respeito do es-
tilo do diretor e das particularidades de sua obra, como postula Ballester
(2007), e todo o processo de maturação apontado pelos vários estudos
acadêmicos já mencionados. Inviabilizam também as recomendações en-
contradas em diretrizes e pesquisas acadêmicas sobre a inserção dos
tempos iniciais e finais da AD e das deixas no corpo do roteiro. Como o
filme já vem com o TCR aparente, o roteiro costuma ser montado no edi-
tor de textos Word, informando-se apenas minuto e segundo de entrada
da AD – a “minutagem” (ou TCR) do filme. No máximo, quando neces-
sário, são inseridas instruções para a narração (as rubricas). Quando a
emissora faz alterações de última hora na grade, há chances de o roteiro
ser feito quase em tempo real – são as famosas “emergências”, quando
o roteirista vai enviando por e-mail trechos do roteiro já finalizado e o
narrador vai gravando no estúdio. Alterações posteriores são inseridas na
etapa da revisão feita no estúdio.
Nesta cadeia (im)produtiva, o audiodescritor costuma ser mão de
obra terceirizada. Ele não tem acesso ao cliente final, não dispõe de tem-
po hábil para revisar o roteiro e tampouco submetê-lo a um consultor.
Ele sequer acompanha a gravação da narração da AD. A revisão pode
ser feita pelo narrador – que não costuma ser um profissional da AD –,
no momento da gravação, por um diretor do audiovisual ou passar pelo
controle de qualidade da empresa/estúdio, via de regra feita por um pro-
fissional de Letras e/ou Comunicação, que também não costuma ser um
profissional da AD.
Assim, o modus operandi da elaboração de um roteiro de AD para
a TV se resumiria a:
• assistir ao filme e elaborar o roteiro, já ajustando às brechas
sem fala;

• entregar o roteiro para o estúdio.

A partir desta etapa, não há mais qualquer envolvimento do audio-


descritor. O estúdio grava, edita, mixa, revisa e entrega o produto final para
a emissora, onde o filme é editado para caber na grade da programação.
Na verdade, observamos vários tipos de edição: a feita pelo narra-
dor e/ou pelo diretor no momento da gravação, pelo Controle de Qualida-
de do estúdio, após a gravação, e pela emissora, após a entrega do filme
com a AD já mixada. Na emissora, é feita pelos editores de áudio e vídeo,
via Pro Tools – uma ferramenta de produção de áudio muito utilizada na
pós-produção de filmes e programas de TV, para sincronizar imagem e
vídeo e fazer edição. Na edição do vídeo, corta-se imagem e áudio. Ao
comparar alguns roteiros de AD com os respectivos filmes audiodescritos
já veiculados na TV, não observamos palavras cortadas ao meio; apenas
orações, sugerindo que a edição do filme é feita com o canal da AD liga-

99
Audiodescrição: práticas e reflexões

do. Na verdade, esta necessidade de enxugar o filme para caber na grade


leva a cortes em todo tipo de sequências, tenham elas falas ou não, como
no caso dos trechos com os créditos iniciais e os finais, que costumam
ser sumariamente cortados, trechos com paisagens e trilhas sonoras, ou
mesmo com ações, mas sem diálogos ou narrações. Cabe então reiterar
que a pesquisa deteve-se apenas na edição feita pela emissora, depois
que o filme é entregue já com a AD gravada e mixada. Assim, a partir de
um corpus de dois filmes, procurou-se investigar como esses recortes
afetam a AD dos filmes.

4. Metodologia

4.1 Corpus

O corpus da pesquisa é formado por trechos de dois filmes:


“Madagascar 3: Os Procurados” e “Código de Honra”. O critério de seleção
foi a disponibilidade desses filmes na internet. A justificativa da seleção
deve-se a cláusulas de confidencialidade e direitos autorais, que impe-
dem a divulgação do material22, o qual contém logomarcas do estúdio,
distribuidora e/ou da emissora na tela de abertura.
Os dois roteiros de AD, de minha autoria, foram elaborados em 48
horas para um estúdio que presta serviços para a Rede Globo de Televi-
são. Foram feitos no editor de texto do Word, com inserção apenas das
minutagens (TCR) de entrada e de algumas rubricas consideradas perti-
nentes para auxiliar na narração (pronúncias de nomes, ritmo/velocidade
da narração, sugestões de ênfases em palavras, notificações de sobrepo-
sições viáveis e/ou necessárias). O estúdio se encarregou do controle de
qualidade do roteiro, da narração e da mixagem da AD ao filme – etapas
que não acompanho.
Para efeitos da pesquisa, trabalhamos com filmes oriundos de
gravações diretas da TV (para os filmes editados e efetivamente exibi-
dos pela emissora) e baixados do youtube (os filmes dublados, na ínte-
gra). Como as gravações diretas da TV foram feitas por terceiros, não foi
possível precisar o tempo de exibição destes filmes, pois não sabemos se
os trechos iniciais, aparentemente editados, foram resultantes de cortes
da emissora ou da gravação da TV. Podemos apenas afirmar que os dois
filmes sofreram uma edição relativamente pequena: “Madagascar” passou
de 93 minutos para cerca de 74 minutos, e “Código de Honra”, de 100
para aproximadamente 87 minutos. As ADs desses dois filmes, entretan-
to, apresentaram resultados distintos diante das edições. Para analisar o

22 Informações decorrentes de troca de e-mails, em abril de 2015, com a Globo Univer-


sidade, área de relacionamento da Rede Globo de TV com o meio acadêmico. Sediada em
São Paulo, é o canal oficial da emissora para fins de pesquisas acadêmicas.

100
Audiodescrição: práticas e reflexões

impacto das edições nos trechos selecionados, primeiro contextualiza-


mos esses trechos; em seguida, confrontamos a AD original com a AD
editada, exibida na TV, e verificamos como a edição afetou a AD original.

4.2 Análise das edições de Madagascar

“Madagascar 3: Os Procurados” (2012), desenho de animação exi-


bido na grade do Temperatura Máxima da TV Globo, tem 93 minutos,
com classificação livre para todos os públicos. É o terceiro da série, e
se inicia com os personagens principais (o leão Alex – e seus amigos)
abandonados na África pelos pinguins e pelos macacos. Saudosos do
zoológico, eles partem atrás dos pinguins, que estão em Monte Carlo, e
logo se metem em enrascadas, atraindo a atenção de Chantel Dubois, a
grande vilã da história e capitã do controle de animais da cidade, que se
entusiasma ao ter que caçar um leão (Alex), na verdade a grande meta de
toda a sua vida. Para fugirem de Dubois e chegarem ao zoológico, Alex
e seus amigos se escondem em um circo itinerante, onde as estrelas são
um tigre, um jaguar fêmea e um leão marinho. Em meio aos dramas pes-
soais dos animais do circo e a vários números circenses, seguem viagem
até um desfecho inesperado e sugestivo de mais uma continuação.
Logo no início do filme, Marty acorda Alex de um pesadelo e diz
ter uma surpresa para ele. A partir daí já observamos uma primeira edi-
ção, como demonstra o quadro a seguir, no qual cotejamos a AD da ver-
são completa (versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV:

AD Original AD Editada
TCR
(filme baixado do youtube) (filme gravado da TV)

01:31 Marty empurra Alex, que cai em uma ribanceira.

01:37 Alex olha para prédios feitos de argila.

02:00 Alex corre de braços abertos.

Close na miniatura do leão Alex. Em um flashback,


a cena muda para o zoológico de Nova Iorque, onde
uma multidão ergue placas com o nome do leão. As
02:22
pessoas usam uma grande luva amarela em forma de
mão com o indicador em riste e o nome “Alex” grava-
do nela. Alex está de pé sobre um pedestal.

Alex se vira e vê Melman, também de luva. Gloria pis-


ca o olho e aponta o indicador da luva dela para Alex.
Marty ergue a pata. Também usa uma luva. Alex exi-
02:35
be duas luvas. Ele salta até os amigos. Ele passa do
riso ao choro quando a cena volta para o grupo na
África, diante da réplica da cidade em argila.

101
Audiodescrição: práticas e reflexões

Na versão completa do filme, após dizer que tem uma surpresa


para Alex e puxá-lo pelo braço, Marty venda-lhe os olhos com as patas
e o conduz pela savana africana. Alex bate a cabeça em um galho, é
empurrado por Marty e rola uma pequena ribanceira, onde encontra seu
presente de aniversário: uma réplica em argila da cidade de Nova Iorque.
Nela, seus amigos ocupam os lugares dos monumentos históricos e ver-
balizam quais são esses monumentos. Feliz, Alex corre entre as ruas da
cidade de argila e para diante da réplica do zoológico. Saudoso, relembra
os velhos tempos. Cenas em flashback mostram os animais, felizes em
suas jaulas, cercados pelo público que clama por Alex. A cena retorna
à savana africana, onde Alex está triste e choroso. Glória pede que ele
sopre as velas de seu bolo de aniversário, de onde surgem os lêmures.
Na versão editada, que efetivamente foi ao ar, vemos dois cortes.
No primeiro, de quase 15 segundos, após agarrar Alex pelo braço, Marty
grita “Chega mais” e, em seguida exclama “Feliz aniversário”. Corta-se a
ação de conduzir Alex pela savana e o momento em que rola ribanceira
abaixo. Na sequência, Alex já arregala os olhos diante dos prédios fei-
tos de argila e exclama: “Nossa! É Nova Iorque!”. Em seguida nomeia os
monumentos representados por cada amigo (Glória é a estátua da Liber-
dade, Melman é uma ponte) e, tocando na réplica em argila, pergunta se
foram os amigos que fizeram “isso”. Aqui, ocorre o segundo corte, que
elimina as cenas de flashback, um trecho de quase um minuto. A cena
passa então para a fala de Alex, dizendo que a surpresa o alegrou, mas
também o deixou triste e saudoso.
Para o público sem deficiência visual, não observamos perdas de
coesão e coerência, fluência ou fluidez no primeiro corte, pois este pú-
blico literalmente vê Alex arregalar os olhos diante dos prédios feitos de
argila. Já para o espectador com deficiência visual, falta uma descrição
da cena que o situe diante desta réplica em argila dos principais pontos
turísticos e do zoológico de Nova Iorque. Sem ela, ele perde o referencial
imediato de ambientação espacial e da surpresa de Alex, manifesta em
suas exclamações. O que Alex vê, que o deixa estupefato? Tal informação
só será recuperada mais à frente (em 03:19 no filme na íntegra), quando
Marty literalmente explica que é uma cidade feita de argila. Até lá, resta
ao espectador com deficiência visual fazer as devidas inferências apenas
a partir das falas dos personagens, da trilha e dos ruídos.
Já as cenas em flashback, que remetem o grupo às lembranças do
zoológico e foram suprimidas na edição, podem ter sido encaradas como
informação que nada acrescenta e que, portanto, não faz falta23. No en-
tanto, é um longo trecho sem fala. Assim, aparentemente, instaura-se um
conflito entre os objetivos da edição e da AD, pois o que para a emissora

23 No jargão da TV são as “barrigas”: aquela fase de um produto audiovisual em que


nada acontece, que está ali apenas para preencher espaço. Aqui, podemos também con-
siderá-la como um trecho que não acrescenta informação nova à narrativa.

102
Audiodescrição: práticas e reflexões

se revela uma brecha preciosa para enxugar o filme, para o audiodescri-


tor é uma brecha preciosa para inserir a AD.
Uma nova edição ocorre após a explosão de um carro, como ve-
mos no quadro a seguir, que coteja a AD da versão completa (versão bai-
xada do youtube) com a editada, exibida na TV:

AD Original AD Editada
TCR
(filme baixado do youtube) (filme gravado da TV)

O carro vermelho explode / Em meio às


10:20 chamas, surge o vulto da mulher de que- O carro vermelho explode.
pe, pilotando uma moto.

Ela tem cabelos curtos, ruivos e cachea-


dos. Na placa da moto, close de um cír-
10:26 culo com uma faixa vermelha sobre uma
pata e as palavras “controle de animais”
[rápido].

Dubois, a mulher de quepe, fareja o ar


e arregala os imensos olhos azuis. De
quatro, fareja o chão. Um dos ajudantes
10:44 admira-lhe o traseiro grande e empinado
e um colega o estapeia. Dubois ergue as
sobrancelhas finas, arregala os olhos e
sorri. Ela sente o cheiro dos animais.

11:04 O furgão segue pela rua

Na versão completa do filme, o furgão, pilotado por um pinguim e


utilizado na fuga de Alex e seus amigos de um cassino, arrebenta uma porta
de aço, cai sobre um carro vermelho e passa por cima dele, acelerando pela
rua. O carro vermelho explode e, em meio às chamas, surge um vulto de
uma mulher de quepe, pilotando uma moto. Em seguida, um close revela as
feições da mulher (descrita no roteiro de AD). Na sequência, um novo close
detalha uma placa na frente da moto, onde se lê “controle de animais” acima
de um círculo com uma faixa vermelha sobre uma pata (também descritos
no roteiro de AD). Um policial aborda a mulher pelo nome e ficamos sabendo
que é a capitã Dubois. Pelo close da frente da moto, inferimos ser a capitã do
Departamento de Controle de Animais da cidade. Dubois estapeia o policial,
fareja o ar, fica de quatro e fareja o chão. Um dos ajudantes admira-lhe o
traseiro grande e empinado e um colega o estapeia. Ainda de quatro, Dubois
ergue as sobrancelhas finas, arregala os olhos e sorri ao sentir o cheiro dos
animais. Toda a ação ocorre em um trecho de quase 40 segundos, divididos
em aproximadamente 14 segundos sem fala, com uma trilha sonora ao fun-
do, a interrupção do policial que nomeia a mulher e novo trecho sem fala, de
cerca de 15 segundos, repleto de ações.
Na versão editada, de novo não há perdas de coesão e coerência,
fluência ou fluidez para o público sem deficiência visual. Com a edição, após

103
Audiodescrição: práticas e reflexões

a explosão do carro vermelho, a cena passa para o furgão em fuga pelas ruas
da cidade, com Dubois e sua equipe no seu encalço. Na sequência da perse-
guição, há um momento em que um dos pinguins levanta a ficha de Dubois
no computador e ficamos então sabendo que é a capitã Chantel Dubois, do
departamento de controle de animais, e que tem uma ficha impecável.
Aqui, novamente observamos a prática de usar as brechas sem fala
do filme para “enxugá-lo” na edição. No entanto, nas brechas, aqui anali-
sadas, temos dois closes (do rosto da capitã e da moto) e a AD fornece ao
seu público alvo informações significativas para a construção do perfil da
vilã da trama – uma mulher astuciosa, quase cruel, que consegue farejar os
animais. Além disso, a personagem é nomeada neste trecho, em 10:36, e
só volta a ser nomeada em 12:39. Com a edição, parece erro do roteirista a
nomeação feita bem antes do que seria devido, uma vez que as diretrizes
existentes recomendam nomear o personagem só depois que ele é efeti-
vamente nomeado na cena. Quanto à descrição de Dubois, observamos
que, se o roteirista acompanhasse a edição feita na emissora, a descrição
de suas feições poderia ter sido deslocada para outro trecho, quando, por
exemplo, ela salta de moto entre dois telhados, ou um pouco mais adiante,
quando ela desvia de um ataque dos macacos no velho avião. Em qualquer
um desses momentos, entre as minutagens de 14:34 a 14:50, ou entre
14:57 e 15:08 haveria brecha hábil para tal, já que são trechos em que há
closes de Dubois e nos quais foram feitas a AD de seu biotipo.
Observamos outra edição em uma mudança de cena, que passa
da reunião de Alex com a trupe do circo, para uma enfermaria de hospi-
tal, como vemos no quadro a seguir, que coteja a AD da versão completa
(versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV:

AD Original AD Editada
TCR
(filme baixado do youtube) (filme gravado da TV)

Os ajudantes de Dubois estão em leitos


43:35 de hospital, com braços, pernas e até o
rosto engessados.

Pilotando a moto vermelha, Dubois en- Pilotando a moto vermelha,


43:44
tra. Dubois entra.

Dubois sorri, fica séria e encara os aju- Dubois sorri, fica séria e enca-
43:51
dantes adormecidos. ra os ajudantes adormecidos.

Na versão completa do filme, temos um trecho de quase 10 se-


gundos sem fala, quando a câmera passeia pelos ajudantes de Dubois,
deitados em leitos de um hospital (mais precisamente, em uma enferma-
ria). Um deles tem a perna engessada, outro, de óculos escuros, tem parte
do rosto enfaixado, e um terceiro está com o rosto todo enfaixado, só

104
Audiodescrição: práticas e reflexões

com o nariz pontudo de fora. De repente, Dubois irrompe na enfermaria


pilotando sua moto vermelha. Ela salta da moto e anuncia que encontrou
o leão. Seus ajudantes, no entanto, estão adormecidos. Ela os encara,
sorri, fica séria, atira nas lâmpadas do teto e deixa apenas uma acesa,
bem acima dela, que a ilumina feito um holofote de palco. Dubois então
abaixa os braços e a cabeça e começa a cantar a música ne me quite pas.
Na versão editada do filme, a cena se inicia com Dubois pilotando a
moto enfermaria adentro e segue, sem mais cortes. Novamente observamos
a opção de editar o filme nos trechos sem fala. Tal procedimento não afeta
a compreensão da cena para o espectador sem deficiência visual, como já
afirmamos anteriormente, pois, na sequência, as informações sobre o esta-
do dos ajudantes são visualmente retomadas à medida que vão despertando
ao som da canção e, pouco a pouco, livram-se das faixas e do gesso com
chutes e socos, e arrancam os curativos. Já não podemos afirmar o mesmo
para o espectador com deficiência visual, que tem como pista auditiva ape-
nas o ruído de uma moto e a AD, que informa: “pilotando a moto vermelha,
Dubois entra”. Como houve uma mudança de cena, da reunião de Alex com
a trupe do circo para o hospital, a primeira pergunta que pode vir à mente
do espectador com deficiência visual é: “Onde Dubois entrou?”. Esta perda
do referencial de lugar pode gerar uma lacuna no entendimento da cena
para o público alvo da AD. Além disso, mais uma vez, revela-se problema
que poderia ser sanado caso o roteirista acompanhasse a edição. A título de
ilustração, a AD poderia ser alterada para, por exemplo: “pilotando a moto
vermelha, Dubois entra em uma enfermaria”. E, em seguida: “Dubois sorri,
fica séria e encara os ajudantes engessados, adormecidos nos leitos”.

4.3 Análise das edições de “Código de Honra”

“Código de Honra” (2011), filme exibido na grade do Supercine da


TV Globo, é um drama jurídico de 100 minutos, baseado em fatos reais e
com classificação etária para 14 anos. Aborda o caso da seringa segura,
mostrando como o escritório Danziger & Weiss encarou o caso contra a
máfia de suprimentos de produtos médicos. É protagonizada pelos advo-
gados, sócios e amigos Mike Weis e Paul Danziger, que têm histórias de
vida completamente diferentes. Mike é viciado em drogas pesadas e Paul
leva uma vida familiar estável, com a mulher grávida do primeiro filho.
Os dois aceitam o caso de uma enfermeira contaminada pelo vírus HIV
através de uma agulha infectada. Ela defende a comercialização de uma
inovadora agulha segura e retrátil, impedindo assim sua reutilização, e
Mike e Paul decidem levar o caso aos tribunais. Abraçar esta causa é en-
trar em uma batalha jurídica contra um grupo de saúde, que na verdade
encobre a enorme máfia da indústria farmacêutica. Paralelamente à bata-
lha judicial, vemos a luta pessoal de Mike, uma mente brilhante movida
pelas drogas, em uma nítida rota de autodestruição.

105
Audiodescrição: práticas e reflexões

Uma das edições ocorre em um trecho de aproximadamente 13


segundos sem fala, quando Paul e Mike se aproximam de um galpão onde
trabalha Dancort, engenheiro que fabrica as seringas seguras. O quadro a
seguir coteja a AD da versão completa (versão baixada do youtube) com a
editada, exibida na TV. Nele, verificamos ainda edições feitas no estúdio,
mas que fogem à discussão aqui proposta.

AD Original AD Editada
TCR
(filme baixado do youtube) (filme gravado da TV)

Em um outro dia, Paul e Mike chegam a uma


fábrica. Paul carrega uma maleta e usa gra-
Eles entram em um grande
vata, camisa e calça sociais. Mike usa jaque-
galpão cheio de caixas empi-
ta de couro sobre gravata e camisa estam-
15:42 lhadas. Uma máquina produz
padas e calça de brim. Eles entram em um
agulhas em série. Um ho-
grande galpão cheio de caixas empilhadas.
mem a manuseia
Uma máquina produz agulhas em série. Um
homem a manuseia

Na versão completa do filme, a cena, que vai 15:42 a 15:55 mostra


os dois sócios chegando à fábrica de Dancort e entrando no galpão onde
ele produz as seringas. Na sequência, a partir de 15:56, Paul se apresen-
ta a Dancort, que olha para Mike e pergunta: “ele também é advogado?”.
Paul então diz que Mike é sócio dele. Mike e Dancort se cumprimentam e
a cena muda para o escritório do engenheiro.
Na versão editada, o trecho sem fala e a AD inserida neste trecho
(que descreve Paul e Mike) são cortados. Assim, o espectador com defi-
ciência visual fica sem entender o motivo da pergunta de Dancort, uma
vez que é uma pergunta pautada por informações estritamente visuais:
os trajes de Mike. Ele e Paul têm temperamentos e estilos de vida radical-
mente opostos e isso também se reflete no modo como se vestem. Nesta
primeira visita a Dancort, Paul carrega uma maleta e usa gravata, camisa
e calça sociais – traje sóbrio, culturalmente associado a um advogado. Já
Mike usa jaqueta de couro marrom sobre gravata e camisa estampadas e
calça de brim – traje casual, despojado e colorido. Ao olhar para Mike, o
cliente fica confuso e pergunta se ele também é advogado.
De fato, no decorrer deste filme, estruturamos a diferença entre os
personagens não só por suas ações, mas também pela descrição física e
pelo figurino, sempre que possível. Mike tem cabelo arrepiado, cheira co-
caína, tem várias tatuagens pelo corpo, usa roupas coloridas e despojadas,
sua casa é o retrato do caos, com a papelada de trabalho em caixotes ou
espalhada pelo chão. Já Paul está sempre barbeado e com o cabelo pentea-
do, tem hábitos metódicos, veste-se com sobriedade, mora em uma casa
bem decorada. Essas informações vão sendo fornecidas à medida que apa-
recem, inseridas nos intervalos sem fala, que é o ambiente de trabalho da
AD. Cortá-las impede que a AD cumpra o seu papel de traduzir as imagens

106
Audiodescrição: práticas e reflexões

de forma que o espectador com deficiência visual possa construir seu en-
tendimento da cena e da narrativa fílmica como um todo.
Em outro momento, a edição mostra como um único corte pode
gerar perda de sincronia entre a imagem e a AD, resultando em informa-
ção incorreta. No quadro a seguir, cotejamos a AD da versão completa
(versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV:

AD Original AD Editada
TCR
(filme baixado do youtube) (filme gravado da TV)

A imagem mostra os arranha-


Detalhe de arranha-céus vistos de bai- céus de baixo para cima. Na
xo para cima. Na calçada, Paul e Dan- calçada, Paul e Dancort olham
cort olham para um prédio alto e envi- para um prédio alto e envidra-
28:09 draçado. Na caminhonete, Mike e Susie çado. Na caminhonete, Mike e
dormem. Em uma sala de reuniões, Paul Susie dormem. Em uma sala de
e Dancort olham uma grande mesa ova- reuniões, Paul e Dancort olham
lada de mármore. uma grande mesa ovalada. Uma
mulher se junta a eles.

Homens de terno e gravata entram na


28:36 sala de reuniões e tomam seus lugares
à mesa.

28:40 Uma mulher se junta a eles

Na versão completa do filme, Paul e Dancort olham da rua para o


prédio imponente onde vão se reunir com a equipe do advogado que repre-
senta uma indústria farmacêutica. Mike e sua assistente chegaram cedo,
cheiraram cocaína e adormeceram no carro, estacionado na garagem do
prédio. Paul e Dancort chegam à sala de reuniões e admiram uma grande
mesa ovalada de mármore. Vários homens trajando terno entram na sala e
tomam lugar à mesa. Em seguida, uma única mulher se junta a eles. Assim,
observamos que o pronome pessoal no plural (“eles”) refere-se, na verdade,
mais à equipe assistente do advogado do que a Paul e Dancort.
Na versão editada, chama a atenção o corte preciso de 18 segundos
(de 28:22 a 28:40), sugerindo que a edição foi feita com o canal da AD liga-
do: Primeiro corta-se um predicativo (“ovalada”) e depois uma oração inteira
(“Homens de terno e gravata entram na sala de reuniões e tomam seus lu-
gares à mesa”). A próxima oração (“Uma mulher se junta a eles”) é colada à
primeira. Assim, a cena editada informa que Paul e seu cliente estão em uma
sala de reuniões, olham para uma grande mesa ovalada e uma mulher se
junta a eles. O espectador com deficiência visual pode inferir que o pronome
pessoal no plural refere-se apenas a Paul e Dancort, uma vez que a edição
elimina a AD que informa a entrada da equipe na sala. Mas a informação
visual permanece, revelando que a mulher se junta, na verdade, aos outros
membros da equipe – os homens trajando terno. Este tipo de edição que

107
Audiodescrição: práticas e reflexões

gera falta de sincronia entre a imagem e a AD e ainda resulta em informa-


ções equivocadas não só impede que a AD cumpra seu papel como também
suscita questionamentos acerca da qualidade do trabalho do audiodescritor.
A próxima edição ocorre em um trecho de pouco mais de dois
minutos, repleto de ações, falas e mudanças de ambientação espacial
(cenas), como vemos no quadro a seguir, que coteja a AD da versão com-
pleta (versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV:

AD Original AD Editada
TCR
(filme baixado do youtube) (filme gravado da TV)

De sobretudo sobre camisa e calça De sobretudo sobre camisa e calça


34:04 preta, Mike aborda um homem na preta, Mike aborda um homem na
rua. rua.

Ele compra drogas. A cena é vista Ele compra drogas. A cena é vista
34:18 pelo vidro fumê de um carro esta- pelo vidro fumê de um carro estacio-
cionado em uma ponte logo acima. nado em uma ponte logo acima.

De novo, a cena é vista pelo vidro De novo, a cena é vista pelo vidro
35:09
fumê de um carro estacionado. fumê de um carro estacionado.

Mike olha relógios e roupas em um


35:15
camelô.

Ele pega dinheiro na carteira. O


carro estacionado parte. Vista
[Imagem] de baixo para cima da
fachada de um prédio. O sol bri-
35:23 lha no céu azul em meio a fiapos O carro estacionado parte. imagem...
de nuvens. A cena muda para um
tribunal. De um lado, Price e toda a
sua equipe. De outro, Paul está só
e olha para trás, para a porta.

Mike entra. Vicky, a enfermeira


35:46 com HIV, e os filhos, estão na as-
sistência.

O careca que passou um envelope O careca que passou um envelope


35:59 pardo a Price também está na as- pardo a Price também está na assis-
sistência. tência.

36:07 Mike vira-se e sorri para Vicky. Mike vira-se e sorri para Vicky.

Na versão completa do filme, Mike aborda um homem na rua para


comprar drogas e a cena é vista pelo vidro fumê de um carro estaciona-
do nas proximidades. Mike fala ao telefone com Dancort e passeia pelos

108
Audiodescrição: práticas e reflexões

quiosques de camelôs, onde olha um relógio e um terno de grife, que


o camelô diz ser um Armani. A cena muda para a fachada do tribunal,
mostra as nuvens se deslocando pelo céu azul, denotando passagem de
tempo, e depois passa para o interior do tribunal onde, de um lado ve-
mos Price e sua equipe e, do outro, Paul, que está só e se vira para trás,
olhando para a porta. A cena também mostra a enfermeira que contraiu
o vírus do HIV, na assistência com os filhos. Mike chega, senta-se ao lado
de Paul, que pergunta se ele está de smoking. Mike responde que é um
Armani, sugerindo que ele o comprou no camelô. A câmera focaliza um
homem careca, de terno, na assistência, e volta para Mike, que toma no-
tas. De repente, Mike se vira e sorri para a enfermeira.
O trecho que mostra a fachada e o interior do tribunal, o céu azul
com nuvens e a chegada de Mike, até ele sentar ao lado de Paul, é um tre-
cho sem fala, de 24 segundos (de 35:28 a 35:52). Aqui, além de mencionar
a fachada do prédio e descrever o céu, a AD nomeia a enfermeira. Depois
que Mike senta-se ao lado de Paul, eles trocam algumas palavras e a cena
volta a ficar sem falas por mais 18 segundos (de 35:58 a 36:11). É a bre-
cha que a AD encontra para mencionar a presença de um homem careca
de terno, que é feita por dois motivos: Primeiro, em uma cena anterior no
escritório de Price (o advogado de uma indústria farmacêutica), este ho-
mem lhe passou um envelope. Segundo, em um diálogo posterior, também
com Price, este mesmo homem afirma que a situação pode tomar rumos
desagradáveis se não for contida, sugerindo que ele é o elo com a máfia
dos medicamentos. Só essas duas ocorrências, fornecidas pela estrutura
narrativa do filme, já nos levariam a apontar sua presença na assistência. E
a linguagem cinematográfica nos fornece mais uma pista da relevância da
presença deste homem na assistência, pois mostra nitidamente seu rosto
e retira o foco do rosto de duas pessoas perto dele. Assim, mesmo sem
descrever o recurso de enquadramento fornecido pela linguagem cinema-
tográfica, ele reforça a decisão do audiodescritor de acusar a presença do
homem careca na assistência, conforme observamos na Figura a seguir.

Figura ilustrativa da utilização de um recurso da linguagem cinematográfica.

109
Audiodescrição: práticas e reflexões

A figura retrata uma cena do filme. De terno e gravata escuros, o ho-


mem careca que esteve no escritório de Price está sentado em um dos bancos
da assistência de um tribunal. Ele está sério, com o olhar fixo em um ponto.
Perto dele, há dois homens sentados – um no banco de trás e outro no banco
da frente. O enquadramento da câmera focaliza o rosto homem careca com
nitidez. Já os dois homens perto dele estão com os rostos desfocados.
A versão editada apresenta uma sucessão de cortes e recortes,
que comprometem a coesão e a coerência da AD. A edição manteve uma
informação considerada relevante: a de que Mike é visto comprando dro-
gas. No entanto, optou por cortar o passeio de Mike pelos quiosques de
camelôs, a descrição do dia e da fachada do prédio. Por ser uma edição
delicada, em que se manteve uma única oração de uma longa sequên-
cia narrativa, observamos os seguintes efeitos sobre a AD: Primeiro, ao
fundo, ouve-se parte da AD que foi cortada, mas perde-se o referencial
da mudança de ambientação espacial (em 35:23). A cena muda da rua
para o tribunal, sem nenhum referencial desta mudança, apenas a palavra
“assistência”, como é possível observar na sequência das ADs na versão
editada: “o carro estacionado parte”; “o careca que passou um envelope
pardo a Price também está na assistência”. Em segundo lugar, elimina-se
a AD que nomeia Vick, mas mantém-se a seguinte, em que ela é identi-
ficada apenas pelo nome, sem fazer conexão com o fato de ser a enfer-
meira com HIV. Por fim, como a AD que menciona o homem careca vinha
após a que nomeia a enfermeira, a AD utilizou a conjunção coordenativa
aditiva “também”, que funciona, ainda, como advérbio de inclusão. Seu
uso sinaliza para uma relação de interdependência entre as duas orações:
“Vick está na assistência e o careca também está”. Esta interdependência
se perde ao se cortar uma das orações, gerando quebra na fluência e coe-
rência do todo. Aqui, levantamos a hipótese de que, talvez, textos mais
telegráficos e/ou bem mais enxutos, sem grandes detalhamentos, sejam
mais adequados para atender as demandas deste veículo que corta, re-
corta, e volta a juntar as cenas em um único trecho da narrativa fílmica.
Estes e outros trechos, analisados na pesquisa original, revelam,
portanto, os vários problemas recorrentes e decorrentes de uma edição
feita na etapa de pós-produção da AD, sem o acompanhamento de um
profissional na área.

5. Considerações Finais

Esta pesquisa, pautada pela prática da roteirista e embasada pela


teoria de estudiosos da AD que a inserem nos Estudos da Tradução e es-
tabelecem uma interface com elementos da Narrativa Fílmica, teve como
objetivo analisar se a edição pode (ou não) afetar a coesão, coerência e
fluidez do roteiro de AD e comprometer a fruição e o entendimento de
cenas ou da trama.

110
Audiodescrição: práticas e reflexões

De um modo geral, a edição parece ser uma das linhas não


tão tênues que separa a TV do Cinema. Afinal, nos casos em que o
enxugamento do filme, para caber na grade da programação, lhe con-
fere uma nova roupagem, o espectador, com ou sem deficiência, se
vê privado da possibilidade de fruição da estética cinematográfica,
observada nos enquadramentos, planos e montagens. A edição pode
também privar todo e qualquer espectador de sequências inteiras
que são cortadas, ficando disponíveis apenas no telão do cinema. A
TV revela-se, portanto, outro veículo, com outra linguagem. São ou-
tros modos de ver.
A partir da constatação de que, na TV, editar um filme com AD
é editar o roteiro de AD, os achados revelam o corte preciso, quase
cirúrgico da edição, que recorta e junta palavras e orações, sugerindo
que ela é feita com o canal da AD aberto. Os filmes escolhidos, talvez
por serem de gêneros diferentes (drama e aventura), apontam para re-
sultados diversos diante da edição no roteiro de AD. Em filmes de ação
e aventura, recortar trechos que não acrescentam informação nova pa-
rece conferir uma roupagem mais ágil à trama. Já em filmes com uma
trama psicológica mais densa, qualquer recorte pode causar uma apa-
rente desordem na narrativa fílmica, uma vez que os mínimos gestos
e as menores ações são importantes à compreensão do todo. Mesmo
assim, independente do gênero, em vários momentos o espectador com
deficiência visual é compelido a fazer inferências sobre diversas cenas
editadas apenas com base nas falas dos personagens, na trilha e nos
ruídos. Nesses momentos, a edição não permite que a AD cumpra o seu
papel de traduzir as imagens em palavras e conferir a acessibilidade.
Semelhante ao olhar que Alves, Teles e Pereira (2011) lançam so-
bre o audiodescritor, observamos que o profissional de edição literalmen-
te edita o que vê, visando priorizar a informação que considera mais re-
levante à compreensão e apreciação da trama. Ou ainda, tal qual quando
associamos o audiodescritor ao leitor de Barthes (1987), vemos que o
editor também interpreta e ressignifica as imagens e todos os elemen-
tos (visuais e auditivos) que vão tecendo a narrativa fílmica. Ele observa
e busca compreender o filme como um todo para pinçar os elementos
que considera mais relevantes a uma leitura fluente da obra. Ou seja, o
editor também interpreta essas imagens ao cortar e recortar a cena. No
entanto, aí reside um dos maiores desencontros entre o ofício do editor
e do audiodescritor roteirista, pois, segundo nossos achados, o editor vê
os trechos sem fala como brechas relevantes e preciosas para os cortes
e recortes, enquanto o audiodescritor vê esses mesmos trechos como
brechas igualmente relevantes e preciosas para inserir informações que
tornem o filme acessível ao seu público alvo.
Em muitas das situações, observamos que as perdas de coesão,
coerência, fluência e fluidez decorrentes da edição poderiam ser contor-
nadas se um profissional da AD acompanhasse a edição na emissora.

111
Audiodescrição: práticas e reflexões

Elaborar o roteiro de AD após a edição do filme para caber na grade seria


uma hipótese. No entanto, a agilidade da TV e a fluidez das grades da
programação inviabilizam esta opção.
Sem dúvida, os achados requerem um corpus maior, mais pes-
quisas e testes de recepção. Pesquisas que investiguem como é feita a
revisão nos estúdios e como efetivamente se processa a edição nas emis-
soras; testes de recepção com o filme audiodescrito antes e depois da
edição da emissora, para confirmar se certas edições seriam percebidas
de forma semelhante, ou não, pelo público com e sem deficiência visual.
Estes seriam alguns dos possíveis desdobramentos para pesquisas futu-
ras. É igualmente importante que tanto os usuários quanto os profissio-
nais deste recurso de acessibilidade conheçam a realidade do mercado
da AD de filmes para TV e, por extensão, da programação pré-gravada
de um modo geral, pois, apesar de ser um mercado em franca expansão,
percebe-se, ainda, uma clara falta de sintonia entre a edição feita pela TV
e a audiodescrição. Afinal, a edição corta onde a audiodescrição insere,
ou seja, a edição ocorre justo no ambiente de trabalho do recurso – os
trechos sem fala – instaurando aí um conflito de objetivos em áreas de
trabalho que deveriam ser complementares.
Se editar é preciso e inevitável, se a TV é um veículo pautado por
um ritmo de trabalho industrial, pela agilidade da tela que tudo vê, é
preciso que também enxergue o audiodescritor e a acessibilidade que
ele instaura com seu ofício. O ideal seria que as emissoras tivessem um
departamento interno, exclusivo para a produção de conteúdo acessí-
vel. Esta junção de saberes só aumentaria a probabilidade de se fazer
um trabalho mais amplo, que atingisse seus objetivos sem se ater a gos-
tos pessoais ou ficar engessado por leis que precisam ser cumpridas.
Sem isto, resta ao audiodescritor se instrumentalizar para ser capaz de
tomar as melhores decisões e encontrar meios de driblar esses cortes e
recortes que incidem justamente sobre o ambiente de trabalho da AD.
E os achados sugerem que, talvez, roteiros mais enxutos e menos deta-
lhados possam atender melhor a este nicho específico de mercado, vi-
sando minimizar os prejuízos de uma acessibilidade que não se cumpre
na sua totalidade.
Esperamos que esta pesquisa contribua para se (re)pensar o sta-
tus da AD na cadeia de produção da TV, instaurando novas formas de ver
e pensar a AD neste veículo, buscando viabilizar a acessibilidade plena
nesta grande tela onde a vida espoca em flashes e reflete um mundo cada
vez mais imagético. Afinal, a TV é olhar que reflete o mundo, a sociedade,
o indivíduo – ela atua do macro ao microcosmo. Tal alcance gera respon-
sabilidade social. No entanto, contemplar a diversidade ainda se mostra
uma pauta em aberto.

112
Audiodescrição: práticas e reflexões

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114
Audiodescrição: práticas e reflexões

Referências Videográficas

CÓDIGO DE HONRA. Título Original: Puncture. Direção: Adam Kassen;


Mark Kassen. Produção: Focus Films. Roteiro: Chris Lopata, Ela Thier. Elen-
co: Chris Evans, Mark Kassen, Marshall Bell, Vanessa Shaw, Brett Cullen.
Música: Ryan Bingham. Distribuição: Focus Films, 2011. Classificação: 14
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em: <https://www.youtube.com/watch?v=ojRaNKM0LQc>.

Madagascar 3: Os Procurados. Título Original: Madagascar 3: Eu-


ropes´s Most Wanted. Direção: Eric Darnell; Tom McGrath; Conrad Ver-
non. Produção: DreamWorks Animation. Roteiro: Noah Baumbach. Elenco
(Vozes Originais): Ben Stiller, Chris Rock, David Schwimmer, Jada Pinkett
Smith, Sacha Baron Cohen. Música: Hans Zimmer. Distribuição: Paramount
Pictures, 2012. Classificação: Livre. Gênero: animação, ação, aventura. 93
minutos. Cópia dublada na íntegra, disponível em <https://www.youtu-
be.com/watch?v=T_n9ou3S-bs>.

115
Audiodescrição: práticas e reflexões

A audiodescrição
na escola

Lísia Regina Ferreira Michels1


Mara Cristina Fortuna da Silva2

Resumo: A audiodescrição é uma técnica que descreve cenas ou imagens,


traduzindo o visual em palavras para pessoas com deficiência visual. Este
artigo procura trazer algumas reflexões sobre a necessidade do uso desta
técnica em ambientes educacionais, em nível de Educação Básica ou En-
sino Superior, considerando-a uma tecnologia assistiva necessária para a
atual inclusão educacional. Percebe-se a morosidade da aplicabilidade da

1 Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo (2007). Atualmente é professora da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia da Educação,
atuando principalmente nos seguintes temas: educação inclusiva, educação especial,
desenvolvimento humano e formação de professores. E-mail: lisia.michels@uffs.edu.br.
2 Mestre em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Chapecó
(UFFS). Atua como professora na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), e pro-
fessora de Educação Especial da Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Tem
experiência na área da Educação, com ênfase em Educação Especial, Deficiência Visual,
Deficiência Intelectual, Transtornos Funcionais Específicos. E-mail: maracris193@yahoo.
com.br ou mara.silva@uffs.edu.br.

116
Audiodescrição: práticas e reflexões

legislação brasileira, na cobrança da inclusão desse recurso nas programa-


ções das redes de televisão, nos espaços de lazer e educação por parte do
Poder Público. Destaca-se a necessidade de atualizar alguns programas de
formação continuada de professores, para incluir a audiodescrição como
importante tecnologia assistiva e como acesso a linguagem imagética.

Introdução

Nesta contemporaneidade, as pessoas estão cada vez mais en-


volvidas com o acesso as informações e conhecimentos, advindos da
mídia televisiva, e com a crescente ampliação da produção de vídeos,
revistas, e mídias acessadas pela internet. Paralelamente a essa situação,
percebe-se que grande parte das pessoas com deficiência visual, ainda fi-
cam à margem do acesso às informações, imagens, lazer e conhecimento,
principalmente no quesito de descrição das imagens em livros, jornais,
revistas, vídeos e sites publicados na internet. Dessa forma, conhecer
figuras e imagens, assistir filmes, peças teatrais, shows, esportes foi ne-
gado por muitos anos a estas pessoas, por meio de barreiras atitudinais
que restringiam o acesso à cultura, ao lazer e a educação, construídos no
decorrer de diversos contextos históricos. Além das pessoas com defi-
ciência visual, a audiodescrição amplia as possibilidades de acesso ao pa-
trimônio cultural produzido pela humanidade às pessoas com deficiência
intelectual, disléxicos e outros.
Para que todas as pessoas possam fazer uso do direito consti-
tucional brasileiro à educação, à cultura e a profissionalização, torna-se
necessário abrir caminhos e criar meios para que esse direto seja usu-
fruído por todas as pessoas. Assim, diante dos direitos referendados na
Constituição Brasileira, a audiodescrição vem contribuir com a inclusão
de todas as pessoas com deficiência visual, ao conhecimento por meio do
uso da audiodescrição, a qual de acordo com Motta (2004) é:

[...] recurso de acessibilidade que amplia o entendimento das pes-


soas com deficiência visual em eventos culturais (peças de teatro,
programas de TV, exposições, mostras, músicas, óperas, desfiles,
espetáculo de dança), turísticos (passeios), visitas esportivos (jogos,
lutas, competições), acadêmicos (palestras, seminários, congressos,
aulas, feiras de ciências, experimentos científicos, histórias) e ou-
tros, por meio de informação sonora (MOTTA, 2011, p. 30).

Com a audiodescrição, o conhecimento se complementa por meio


de descrições de cenas, figuras, imagens, encenações em ambientes de
lazer e educação, proporcionando um amplo conhecimento para as pes-
soas privadas do uso da visão, derrubando um silêncio e descrevendo o
que os olhos não podem enxergar.

117
Audiodescrição: práticas e reflexões

A Audiodescrição no Contexto Brasileiro

A audiodescrição surge pela primeira vez no Brasil, no ano de 2003,


com o Festival Internacional de Filmes sobre deficiência: Assim Vivemos.
Logo em 2005, lançou-se o primeiro DVD do filme com audiodescrição:
Irmão de Fé, de autoria do Padre Reginaldo Rossi e Ensaio Sobre a Ceguei-
ra em 2008. No teatro a audiodescrição em peças teatrais foi introduzida
com a peça: Andaime, em 2007, seguida da audiodescrição de ópera, em
2009 (FRANCO e Silva, 2010).
A partir de 2008, a Associação Laramara, de São Paulo, passou a
promover sessões mensais de filmes audiodescritos ao vivo, especifica-
mente para o público com deficiência visual. Neste mesmo ano, formou-
se a primeira associação de audiodescritores do Brasil: Associação Mídia
Acessível- MIDIACE, realizando o Primeiro Encontro Nacional de Audio-
descritores na cidade de São Paulo, com o intuito de discutir a situação
da audiodescrição no Brasil (FRANCO e SILVA, 2010).
A Constituição Federal de 1988 enfatiza que: “[...] todos são iguais
perante a Lei [...]”, estabelecendo normas para que a igualdade abarque
a todos os cidadãos, bem como que todas as pessoas com deficiência,
recebam atendimento educacional especializado, habilitação e reabilita-
ção, sendo garantida a eliminação de barreiras, sejam elas arquitetônicas,
físicas, educacionais ou sociais, facilitando o acesso aos bens e serviços
coletivos, e forma que não haja nenhum tipo de discriminação ou exclu-
são (BRASIL, 1988).
Esclarece-se no Art. 215, da referida CF que o Estado deve garan-
tir o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, devendo apoiar e incentivar a valorização e a difusão das mani-
festações culturais (BRASIL, 1988). No entanto, garantir a igualdade de to-
dos e o direito ao acesso à cultura, ainda é uma realidade muito distante,
considerando que há contextos históricos com grandes disparidades, em
que a oferta ao lazer e a educação não atinge grande maioria da parcela
de cidadãos brasileiros.
Em 2000, com a Lei da Acessibilidade nº 10.098, iniciou-se um
caminho para a eliminação dessas barreiras nas comunicações, afir-
mando a responsabilidade do Poder Público em estabelecer “alternati-
vas técnicas que tornassem acessíveis os sistemas de comunicação e
sinalização às pessoas com deficiência sensorial e com dificuldade de
comunicação”, garantindo a esses o “direito de acesso à informação, à
comunicação, trabalho à educação, ao transporte, à cultura, ao esporte
e ao lazer” (BRASIL, 2000).
Já o Decreto nº 5.296 de 2004 vem regulamentar a Lei da Aces-
sibilidade, determinando inclusive adaptações nos aparelhos de televi-
sores, para que esses possam ser utilizados e manuseados por pessoas
com deficiência, atribuindo a Agência Nacional de Telecomunicações –

118
Audiodescrição: práticas e reflexões

ANATEL, a regulamentação de acessibilidade em programas de televisão


como legendas, audiodescrição e janelas para intérprete de Libras (PENA
e FERREIRA, 2011).
Em 2004 houve uma regulamentação da Lei nº 10.048 de 2000, a
qual preconizava a prioridade de atendimento às pessoas com deficiência,
e a Lei nº 10.009/2000 que estabelece normas e critérios básicos para a
promoção de acessibilidade das pessoas com deficiência ou imobilidade
reduzida. Essa regulamentação decreta em seu Art. 53, parágrafo 2º, a
responsabilidade da Anatel em regulamentar a utilização dos sistemas de
reprodução das mensagens veiculadas para as pessoas com deficiência
visual e auditiva, utilizando a subtitulação por meio de legenda oculta,
janela com intérprete de Libras e a descrição e narração em voz de cenas
e imagens. Com a aprovação da Portaria nº 310 de 27 de junho de 2006
pelo Ministério das Comunicações, definiu-se a audiodescrição como um
recurso de acessibilidade que corresponde a: “[...] uma locução, em lín-
gua portuguesa, sobreposta ao som original do programa, destinada a
descrever imagens, sons, textos e demais informações que não poderiam
ser percebidos ou compreendidos por pessoas com deficiência visual”
(BRASIL, 2006, s/p).
Diante dos decretos e leis nacionais estabelecidas para o acesso a
cultura, lazer e educação das pessoas com deficiência estão sendo cria-
das e reformuladas constantemente. Porém, percebe-se que as direciona-
das a pessoas com deficiência auditiva estão sendo cumpridas, deixando
a desejar as destinadas às pessoas com deficiência visual, como sinaliza
Araujo (2011):

No que diz respeito aos surdos e ensurdecidos, a lei foi cumpri-


da, porém o mesmo não aconteceu com as pessoas com defi-
ciência visual, já que o Ministério das Comunicações vem adian-
do a implantação da AD (Portarias 403, 466, 661) desde junho
de 2008. Enquanto essa implantação não acontece, estamos
realizando pesquisas que investigam padrões de audiodescrição
para serem usados no país e promovendo cursos de formação
de profissionais comprometidos com a acessibilidade (ARAUJO,
2011, pag. 82).

Para a autora, mesmo com o não cumprimento das leis, em


que se adia a audiodescrição nas emissoras de televisão, impedindo
assim, o acesso das pessoas com deficiência visual a essa mídia, as
pesquisas voltadas para esse tema tem sido continuamente debatido
em eventos nacionais, bem como a promoção de formações de pro-
fissionais em audiodescrição. Considera-se que a ampliação das pes-
quisas e das formações de profissionais, bem como os eventos rela-
cionados a audiodescrição, possam contribuir com o fortalecimento
de sua implantação, objetivando o cumprimento das legislações, que
ainda não foram implantadas.

119
Audiodescrição: práticas e reflexões

O uso da audiodescrição nos espaços educacionais

Diante da falta de rigor, em cumprir com a legislação estabelecida


do uso da audiodescrição em termos sociais, daremos ênfase ao uso des-
ta técnica nos espaços educacionais.
Considerando que a escola é um espaço de construção de saberes e
de formação de cidadãos, no qual se encontra uma diversidade de alunos,
entre eles, alunos com deficiência visual, e nela há uso de vídeos, figuras
e imagens, apresentações culturais em diversos momentos, é importante
destacar a necessidade da implantação dos recursos de audiodescrição.
De acordo com Silva (2015) essa técnica, mesmo sendo necessária para
que o conhecimento atinja a todos, não está presente nas escolas.

[...] o recurso da audiodescrição, considerada uma forma de


acessibilidade para os alunos com deficiência visual são pou-
co encontrados nas escolas regulares que possuem alunos com
deficiência visual. Na maioria das escolas, os vídeos educativos
não possuem audiodescrição ou professores com formação con-
tinuada em audiodescrição para que possam orientar e auxiliar
os professores do ensino comum diante dessas situações (SILVA,
2015, pag. 05).

Com a inclusão de alunos com deficiência nas escolas regulares,


após a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva – PNEE-EI (2008), as escolas se mobilizaram para se adaptarem
para o recebimento desses alunos. Desde então, o Ministério da Educação
começou a implantar nas escolas o Atendimento Educacional Especializa-
do, destinado aos alunos com algum tipo de deficiência. Os professores
especialistas na área da Educação Especial atuam nesta complementação
do ensino e necessitam ter conhecimentos para atuarem com alunos com
deficiências variadas. Os professores que atuam no Atendimento Educa-
cional Especializado com os alunos com deficiência visual, necessitam
estar preparados para trabalhar diversas técnicas e para isso, são neces-
sárias capacitações. De acordo com Silva (2015):

As capacitações aos professores especialistas envolvem: Escri-


ta Braile, Soroban, Orientação e Mobilidade, Atividades de Vida
Diária, Informática, Reeducação visual entre outras que auxiliam
estes a complementar o processo de aprendizagem dos alunos
cegos ou com baixa visão (SILVA, 2015, pag. 07).

Ao investigar a oferta de cursos de capacitação o Centro de Apoio


Pedagógico ao Deficiente Visual - CAP, um dos responsáveis em capacitar
esses professores, ressalta que a técnica em audiodescrição, não faz par-
te dos conteúdos programáticos, deixando lacunas para a complemen-
tação dos professores especialistas na área da deficiência visual. Visto
que, os professores especializados nas escolas regulares têm como uma

120
Audiodescrição: práticas e reflexões

das suas funções, orientar demais professores, sobre meios de adaptação


curricular, adaptação de materiais e meios pedagógicos para que desen-
volva as funções psicológicas superiores dos alunos com deficiência. As-
sim, orientar estes profissionais sobre o uso de vídeos, imagens e figuras,
se torna essencial para que aluno com deficiência visual complemente
seus conhecimentos, e para que essa meta seja cumprida, o uso da au-
diodescrição, precisa fazer parte do conteúdo programático dos cursos
de capacitação desses professores.
Parece que descrever figuras, cenas e imagens, principalmente em
momentos na sala de aula, é algo fácil. No entanto, há que se ter alguns
cuidados, pois sendo uma técnica ou tecnologia assistiva, em que se rea-
liza uma tradução visual, requer estratégia e procedimentos especiais,
para que possibilite a pessoa com deficiência visual uma forma de apren-
der ou conhecer, no mesmo patamar que as pessoas videntes.
Para Lima (2011), a tradução visual na forma de audiodescrição
pode ser considerada uma tecnologia assistiva, pois:

[...] consiste em uma atividade que proporciona uma nova expe-


riência com as imagens, em lugar da experiência visual perdida
(no caso de pessoas cegas adventícias), e consiste em tecnolo-
gia assistiva, porque permite acesso aos eventos imagéticos, em
que a experiência visual jamais foi experimentada (no caso das
pessoas cegas congênitas totais). Em ambos os casos, porém, é
recurso inclusivo, à medida que permite participação social das
pessoas com deficiência, com igualdade de oportunidade e con-
dições com seus pares videntes (LIMA, 2011, p. 09).

Nesta perspectiva, a audiodescrição sendo uma tecnologia assis-


tiva em que se realiza uma tradução visual, se torna uma técnica inclu-
siva, a qual deveria ser utilizada também nas salas de aula da educação
básica, bem como no ensino superior. Neste sentido, percebe-se a grande
relevância da presença urgente do uso da audiodescrição na educação,
merecendo cobranças por meio de legislações, não apenas com ênfase
nas cobranças desta técnica nas redes de televisão, visto que esta é de
suma importância para as pessoas/alunos que estão desenvolvendo suas
funções psicológicas superiores, por meio de todas as formas e meios
construídos ao longo dos processos históricos socialmente construídos.

Considerações Finais

Diante do exposto, percebe-se que há leis e decretos que são for-


mulados e reformulados, em relação ao uso da audiodescrição em diver-
sos ambientes de lazer, social e educacional no contexto brasileiro. No
entanto, a aplicabilidade destas legislações tem sido pouco efetivada e
fiscalizada, o que ainda marginaliza as pessoas com deficiência visual em

121
Audiodescrição: práticas e reflexões

relação à inclusão, tanto social como educacional.


Assim, percebe-se que em diversos momentos da aplicabilidade de
legislações brasileiras, iniciou-se em âmbito educacional, o que não pode-
ria ser diferente com o uso da técnica da audiodescrição, a qual é consi-
derada uma tecnologia assistiva, que amplia as possibilidades de acesso
aos conhecimentos e oportuniza o acesso aos processos históricos acumu-
lados socialmente e culturalmente pelos indivíduos, por meio de figuras,
imagens e cenas de filmes utilizados na educação básica ou universidade.
Para concluir, sugerimos que nos programas de formação conti-
nuada de professores, seja incluído a audiodescrição, para que os pro-
fessores tenham condições de fazer a leitura desse mundo imagético e
também ensinem seus alunos a fazer esta leitura de imagens, cenários,
gráficos, mapas, entre outros.

Referências bibliográficas

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e em Minas Gerais: uma proposta baseada em pesquisa acadêmica. In:
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______. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educa-


ção Inclusiva. Brasília: Ministério da Educação – Secretaria de Educação
Especial, 2008. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/
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de Mello. FILHO, Paulo Romeu. Audiodescrição: Transformando Imagens
em Palavras. Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com deficiência.
Governo do Estado de São Paulo: 2010.

122
Audiodescrição: práticas e reflexões

LIMA, Francisco José. Introdução aos estudos do roteiro para áudio-descri-


ção: sugestões para a construção de um script anotado. Revista Brasileira
de Tradução Visual, v. 7, n. 7, 2011.

MOTTA, Livia Maria Villela de Mello. Inclusão Escolar e audiodescrição:


Orientações aos educadores. São Paulo: 2011. Disponível em: <http://
educadorainclusiva.blogspot.com/2011/05inclusão-escolar-e-audiodes-
cricao.html>. Acesso em 06 nov. 2014.

SILVA, Mara Cristina Fortuna da. MICHELS, Lísia Regina Ferreira. A impor-
tância de cursos de formação continuada em audiodescrição para profes-
sores do Atendimento Educacional Especializado. Revista Brasileira de
Tradução Visual – RBTV. v.18, nº18, 2015.

123
Audiodescrição: práticas e reflexões

Audiodescrição
no jornalismo
laboratorial

Daiana Stockey Carpes 1

Demétrio de Azeredo Soster 2

Resumo: O artigo consiste na reflexão de um produto experimental aces-


sível aos cegos, no qual o jornal Unicom e a revista Exceção do curso de
Comunicação Social da Unisc foram audiodescritos, garantindo a aces-
sibilidade e o direito à informação. O processo de inclusão das pessoas
com deficiência é um dos grandes desafios da sociedade atual e trazer
a temática da acessibilidade para sala de aula é promover a consciência
dos acadêmicos para refletir nos materiais acessíveis a todos. Então, em
2013, o curso implantou o projeto nas disciplinas de Jornalismo de Revis-
ta e Jornalismo Impresso. Justificamos esta pesquisa por ser inovadora,
pois dialoga com a acessibilidade e com a comunicação.

1 Jornalista. Mestranda do PPG Letras Unisc. Voluntária do grupo de pesquisa “Jornalis-


mo e literatura: narrativas complexificadas” da Unisc. E-mail: daiacarpes@hotmail.com.
2 Coordenador do projeto de pesquisa “Jornalismo e literatura: narrativas complexifica-
das”. Professor do Curso de Jornalismo e professor-pesquisador do PPG Letras da Unisc.
Doutor pela Unisinos. E-mail: deazeredososter@gmail.com.

124
Audiodescrição: práticas e reflexões

1 Práticas acessíveis

Este artigo observa, com base em experiências realizadas por alu-


nos do Curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do
Sul (Unisc), como a formação de jornalistas pode ser pensada em termos
inclusivos por meio da audiodescrição, uma ferramenta comunicacional
acessível aos cegos. Os objetos de análise são o jornal-laboratório Unicom
e a revista-laboratório Exceção, cujos conteúdos passaram a ser elabora-
dos, a partir do desenvolvimento didático-pedagógico de técnicas audio-
descritivas, para pessoas que não enxergam totalmente ou parcialmente.
Com isso, a formação acadêmica se qualifica e se torna, como
dito, inclusiva ao permitir que os alunos da graduação possam pensar na
elaboração e execução de produtos comunicacionais acessíveis a todos.
Quanto ao local em que esta experiência tem lugar, o jornal-laboratório,
trata-se de um espaço particularmente importante, segundo Dirceu Lopes
(1989, p. 34), pioneiro na área, porque, nele, é possível contrabalançar a
reprodução dos padrões jornalísticos dominantes com a criação de novos
modelos que possam constituir alternativas viáveis.
Para dar conta de nosso propósito, qual seja, analisar a utilização
de técnicas de audiodescrição nas atividades laboratoriais do Curso de
Comunicação da Unisc, realizaremos, em um primeiro momento, uma
revisão bibliográfica sobre audiodescrição e acessibilidade. Após, abor-
daremos a temática jornalismo de laboratório, ilustrando com exemplos
retirados da prática acadêmica e encaminharemos, então, nossas consi-
derações interpretativas.

2 A audiodescrição e a acessibilidade comunicacional

A acessibilidade é uma realidade. São leis, decretos que giram


em torno deste tema. Segundo o portal Brasil Gov. Br3, acessibilidade é o
termo usado para indicar a possibilidade de qualquer pessoa usufruir de
todos os benefícios da vida em sociedade, entre eles o uso da internet. É
o acesso a produtos, serviços e informações de forma irrestrita.
O Decreto 5.296, de 2 de dezembro de 2004, Art. 8º, define aces-
sibilidade como:

Condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou


assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos,
das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos,
sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoa
portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida.

3 http://www.brasil.gov.br

125
Audiodescrição: práticas e reflexões

A acessibilidade é um direito garantido por lei no Brasil, em que


além do Decreto 5.296, existem outras leis que tratam do tema como
a nº 10.046, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de aten-
dimento às pessoas que necessitam de acesso específicos, e a Lei nº
10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e
critérios básicos para a promoção da acessibilidade entre a população.
A acessibilidade também é um dos oito Princípios Gerais da Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é um
dos signatários.
Durante muito tempo, a sociedade deixou de lado o deficien-
te visual, pois acreditava que era impossível passar a informação
por meio de imagens. Neste período, marcado pelo desconhecimen-
to de que a pessoa com deficiência visual é capaz de produzir e
compreender imagens, a acessibilidade à informação/comunicação
esteve fragilizada.
Pessoas com deficiência visual, auditiva, intelectual ou mesmo fí-
sica, enfrentam diariamente barreiras para sua inserção na sociedade, e,
muitas vezes, passam por discriminação. Esta realidade se dá, principal-
mente, pelos obstáculos criados, como por exemplo, a falta do recurso
de audiodescrição.
Pelo censo IBGE de 2010, são 6,6 milhões de pessoas que possuem
grande dificuldade de enxergar, sendo que 506,3 mil se declararam cegos
no Brasil. E, 2,8 milhões de pessoas com deficiência intelectual, entre au-
tistas, síndrome de Down e outras. Além das pessoas com transtorno de
aprendizagem como os disléxicos, os idosos e os deficientes intelectuais,
também podem se beneficiar com a audiodescrição, por ser um segundo
canal sensorial a ser aproveitado para uma compreensão mais rápida das
informações visuais.
Um meio de minimizar a exclusão comunicacional, a que as pes-
soas com deficiência visual têm sido submetidas, está na oferta de um
recurso tradutório, da imagem em palavras, conhecido como audiodes-
crição. Esse recurso não só é de direito constitucional da pessoa com
deficiência visual, uma vez que a todos é devido o direito à informação,
à educação e ao lazer.

2.1 O que é audiodescrição?

Segundo Lima et al. (2009) a audiodescrição vem constituir-se


numa ferramenta de acesso laboral tanto para o lazer quanto para a
educação. Se às pessoas videntes está garantido o acesso às infor-
mações visuais, estas devem, igualmente, serem disponibilizadas às
pessoas com deficiência visual. De outra forma, essas pessoas estarão
novamente sendo discriminadas por razão de deficiência, já que nem

126
Audiodescrição: práticas e reflexões

mesmo o conceito de “adaptação razoável” pode servir de justificativa


para a não oferta da audiodescrição.
Conforme Franco e Silva (2010) a audiodescrição consiste na
transformação de imagens em palavras para que informações chave se-
jam transmitidas visualmente, não passem despercebidas e possam tam-
bém ser acessadas por pessoas cegas ou com baixa visão. O recurso,
cujo objetivo é tornar os mais variados tipos de materiais audiovisuais
acessíveis a pessoas não videntes. “A audiodescrição não é meramente
uma descrição falada, e nem uma descrição exclusivamente transmitida
por áudio, como o nome pode sugerir” (LIMA e LIMA 2013. p, 3). Assim,
este recurso é uma forma de tradução, e, enquanto tradução, pode, ser
feita oralmente ou também por escrito.
Alves salienta a importância de este recurso ser reconhecido:

A noção da audiodescrição como tradução é de fundamental im-


portância para o seu reconhecimento como trabalho intelectual,
pois vai muito além do que a descrição de informações percebi-
das pela visão. Questões técnicas, linguísticas e fílmicas preci-
sam ser observadas para que se possa realizar a audiodescrição.
As respostas a essas questões dependem do gênero da obra a
ser audiodescrita (ALVES, s/d).

A audiodescrição é um recurso de acessibilidade e, uma atividade


de mediação linguística, que transforma o visual em verbal, abrindo pos-
sibilidades maiores de acesso à cultura e à informação, contribuindo para
a inclusão cultural, social e escolar. A reflexão a respeito dessas barreiras
é pertinente para remoção de entraves à construção de uma sociedade
justa e sem discriminação.

2.1 Um novo mercado

Mais que uma realidade, a acessibilidade está posta na sociedade.


E pensar em materiais com audiodescrição, como impressos e audiovi-
suais é garantir a inserção dos cegos e promover a igualdade.

Em vários países, como Estados Unidos e Inglaterra, por exem-


plo, a audiodescrição também já é regulamentada e existe, no
caso dos EUA desde a década de 70. Espanha, Alemanha, Cana-
dá e outros países, também já adotaram a AD em sua produção
audiovisual e programações televisivas.
Apesar da audiodescrição ainda ser um recurso muito novo no uni-
verso da produção audiovisual brasileira, e ainda passar por alguns
“ajustes de rota” devido ao seu ineditismo em algumas áreas, tem
ganhado espaço em muitos projetos por todo o país. São inúmeros
festivais e mostras de cinema (SANTANA, 2010, p, 106).

Santana (2010, p. 113) salienta que os anunciantes e as agências cer-

127
Audiodescrição: práticas e reflexões

tamente ficarão atentos a essa nova possibilidade de mostrar e vender seus


produtos para um novo mercado, um novo público. A competitividade é muito
acirrada e cada nova fatia conquistada, significa muito dentro dessa disputa.
Embora para a criação de um roteiro e locução de um material
audiodescrito seja necessário um conjunto de regras a serem seguidas
em âmbito geral, não há dúvidas de que cada meio artístico tem suas
especificidades. “Definir tais regras, mais do que um profundo estudo,
terá papel fundamental para o desenvolvimento de uma cultura de con-
sumo do produto audiodescrição” (SANT’ANA, 2010, p, 141). Para isso é
fundamental que, cada vez mais, sejam oferecidos eventos que possuem
audiodescritores. Sant’ana explica ainda que é importante a criação de
mecanismos que garantam uma evolução harmoniosa entre os mais di-
versos segmentos da audiodescrição, para que o movimento ganhe força
e coesão, tratando o assunto de maneira ampla, ficando somente as es-
pecificidades de cada segmento como algo a ser tratado particularmente.

A audiodescrição é, sem sombra de dúvidas, um mercado de tra-


balho cujo potencial é riquíssimo, tanto para os audiodescritores
roteiristas e narradores, quanto para as próprias pessoas com defi-
ciência visual, que são os mais adequados para trabalharem como
consultores de obras audiodescritas. (CAMPOS, 2010, p. 119)

A audiodescrição é um meio para promover a inclusão sociocultural


e a autonomia no campo da informação e do entretenimento audiovisual.

2.2 Produção da audiodescrição

Para produzir a audiodescrição de filme ou comercial de TV, le-


va-se em princípio que este recurso é sempre produzido a partir de um
produto finalizado. “Primeiramente fazemos o que podemos chamar de
decupagem desse material” (SANTANA, 2010, p. 112), ou seja, a sepa-
ração de todas as informações para se entender o filme, seu ritmo, seu
enredo, enfim, todas as características que se julga importantes para esse
primeiro reconhecimento.
Santana (2010, p. 112) cita os principais passos para realizar uma
audiodescrição:

- Assistir ao filme na íntegra no mínimo uma vez;


- Elencar os personagens – seus nomes e características principais;
- Detectar no filme seu “tempo e espaço”, ou seja, quando e onde acontece
a história. Um filme pode conter diferentes passagens de “tempo e espaço”.
- Mapear o que é imprescindível se audiodecrever, o que tem relevância para
o melhor entendimento da mensagem, e o que pode, caso precisemos, ser
cortado em termos de descrição.
A segunda etapa desse processo é a “Marcação de Cena”:
- Detectar os espaços entre os diálogos, pausas, silêncios e pontos importan-
tes que o filme nos apresenta para inserção da audiodescrição.

128
Audiodescrição: práticas e reflexões

O roteiro de audiodescrição é a terceira etapa. Aqui definimos e criamos


o conteúdo descritivo do filme, o texto da audiodescrição. É importante
respeitar integralmente a obra original, tomando cuidado para não fazer
suposições nem antecipar alguma situação ou informação que ainda não foi
apresentada concretamente pelo filme.
A gravação da audiodescrição é a quarta etapa do processo, e a dividimos
em duas partes:
- Pré-Produção: selecionamos a voz que mais se adequar ao filme. É sempre
interessante contrapor a voz, ou seja, no caso de um filme com predominân-
cia de voz feminina, a narração deve feita por um ator, e vice-versa.
- Produção: momento da gravação das falas da audiodescrição – realizada
em um estúdio devidamente projetado com tratamento acústico e isolamen-
to de sons externos. Acompanhado de um diretor e um técnico de estúdio, o
audiodescritor-narrador grava suas falas, acompanhando o filme por um mo-
nitor de vídeo e com o som original transmitido para o seu fone de ouvido.
É um processo muito parecido com o da dublagem, gravado através de um
software que integra recursos de áudio e vídeo. (SANTANA, 2010, p. 112)
Tratamento, Mixagem e Finalização são os trabalhos que constituem a últi-
ma etapa do processo de produção de uma audiodescrição.
- Tratamento de Áudio é o trabalho de “limpar” o som, tirando, por exemplo,
sons e respirações indesejáveis que, por ventura, foram captados no mo-
mento da narração.

Conforme Lima e Silva (2010, p. 13) a objetividade, ética e as ha-


bilidades linguísticas deverão estar presentes na materialização do pilar
“descreva o que você vê”, ou seja, nas escolhas intelectuais do que e
como dizer, a objetividade, a ética e as habilidades linguísticas do áudio-
descritor deverão ser justificadas em favor da obra. Além desses passos
é fundamental que o audiodescritor seja objetivo, que siga uma trajetória
lógica de modo que haja a melhor compreensão do ouvinte. Também é
importante utilizar um vocábulo rico para traduzir diferentes ações da-
quilo que está ocorrendo e utilizar uma entonação de voz correta, com
pausas bem marcadas para a produção de sentidos, para um bom enten-
dimento daquele que está ouvindo uma audiodescrição.
Em se falando de roteiro para produzir materiais com recurso da
audiodescrição, Silva et al (2010, p. 12) relata a importância da execução
do roteiro:

O roteiro é um recurso de suporte para a execução do trabalho


do áudio-descritor que deverá ser discutido, preferencialmente,
por mais de um profissional, por isso recomenda-se que o tra-
dutor dialogue com artistas ou pessoas envolvidas na atividade
em questão. Assim, quanto mais o roteiro é debatido, analisado
e revisado, mais susceptível a acertos.

Silva et al (2010, p. 12), lembra que nem sempre quem faz o ro-
teiro realizará a locução, portanto, “é essencial que o texto seja claro e
fiel ao objeto da audiodescrição para que qualquer pessoa possa fazer a
elocução dele”.
Lima e Silva (2010, p. 10) defendem o direito à acessibilidade à in-

129
Audiodescrição: práticas e reflexões

formação em uma dimensão da inclusão social, em que o áudio-descritor,


possui papel fundamental nesse contexto.

O áudio-descritor deve estar consciente dos benefícios da au-


diodescricao para os usuários diretos e indiretos do serviço. O
tradutor também precisa considerar claramente que a acessibi-
lidade comunicacional é um direito assegurado pela legislação
internacional e nacional. Logo, advogar pela oferta do serviço
deverá ser uma atitude profissional cotidiana do áudio-descritor,
para o que ele deverá estar atualizado quanto as leis, normas e
resoluções, garantidoras da tecnologia assistiva da audiodescri-
cao (LIMA e SILVA, 2010, p. 10)

Apesar de todo o referencial teórico que embasa os audiodescrito-


res e os grupos de pesquisas acadêmicos, “é fato que a pessoa com defi-
ciência visual não pode iniciar o processo de construção do roteiro, uma
vez que não está vendo a cena” (FRANCO 2010, p. 3).

2.3 A importância da prática

Para além do que já dissemos, a importância da audiodescrição


está no fato de garantir a inclusão informacional dos cegos.

A linguagem tem papel fundamental, seja em sua forma oral,


seja através de seu código substitutivo escrito. E, através dela,
o contato com o mundo que nos cerca é permanentemente atua-
lizado. Daí, entendermos que toda a nossa vida em sociedade
supõe um problema de comunicação e intercâmbio que se reali-
za fundamentalmente por meio dela, a maneira mais comum de
que dispomos para tal. Assim, a linguagem é o suporte de uma
dinâmica social, que compreende, além das relações diárias en-
tre os membros de uma comunidade, as atividades intelectuais,
que vão desde o fluxo informativo dos meios de comunicação de
massa, até suas vidas cultural, científica e literária (SANT’ANA,
2010, p. 135).

São sons, gestos e imagens que compõem a mensagem para serem


transmitidas através de diversos canais comunicacionais, como o rádio,
televisão, cinema, cartazes, música, entre tantos. O problema está quando
esse canal não é acessível para aqueles que possuem alguma deficiência.
Na realidade que estamos vivendo, quando o mecanismo visual assume
uma interação imprescindível entre emissor e receptor da mensagem, a
audiodescrição surge como um recurso para atender os cegos ou aqueles
que possuem baixa visão. Conforme Sant’anna (2010, p. 137), não há dúvi-
das de que a ausência da audiodescrição cria uma situação de desconforto,
sendo assim, são inúmeros os momentos em que sentimos falta de um
detalhamento do que está acontecendo. Ela é fundamental para a partici-
pação efetiva das pessoas com deficiência na interação com a sociedade.

130
Audiodescrição: práticas e reflexões

No Reino Unido, a audiodescrição está mais difundida, e serve


como ponto de partida para outros países que pretendem avançar na
questão de inclusão social de pessoas com deficiência visual através dos
meios de comunicação, principalmente, a televisão. Machado (2010, p.
2) cita o estudo realizado pelo Ofcom (Office of Communication - órgão
regulador do setor de comunicação do Reino Unido), sobre a política de
implantação do recurso da audiodescrição no país:

A satisfação de espectadores que utilizam o serviço de audiodes-


crição foi comprovada em uma pesquisa do Ofcom em 2008 com
espectadores que utilizam esse recurso. Entre os principais be-
nefícios apontados estão: o ato de assistir a televisão ficou mais
agradável, a sensação de igualdade por poder comentar com
pessoas sem deficiência os programas de TV, independência e
inclusão social. Porém, segundo o mesmo estudo, ainda há mui-
to para ser melhorado. Os espectadores com deficiência visual
responderam que se deve aumentar o número de programas que
disponibilizam o recurso, bem como a ampliar dos gêneros de
programas e ainda melhorar a forma como é informada a exis-
tência da opção do serviço no programa (MACHADO, 2010, p. 2).

A audiodescrição é um gênero tradutório que vem gradativamente


conquistando espaço na academia e no mercado. Segundo Lima e Silva
(2010, p. 15), trabalhar em parceria com outros tradutores repercutirá
em aprendizagem para ambos, oportunidade ímpar de permutar saberes,
experiências, percepções e ampliar habilidades linguísticas situadas no
campo da tradução visual.
Segundo Lima (2011, p. 3), a audiodescrição insere-se, de um lado
no conceito de adaptação razoável4, de baixo custo, por conseguinte,
não onera os projetos culturais, educacionais e de lazer que a ofertem.
De outro, é recurso que, uma vez não ofertado pelos promotores desses
projetos, constitui crime de discriminação.

“Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer dife-


renciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o
propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimen-
to, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com
as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, ci-
vil ou qualquer outra. Abrange todas as formas de discriminação,
inclusive a recusa de adaptação razoável; (Convenção sobre os
Direitos da Pessoa com deficiência, Decreto 6949/2009)

Na esfera acadêmica a audiodescrição vem se tornando cada vez


mais visível e, assim como na Europa, é reconhecida como uma modali-
dade de tradução audiovisual com vistas à acessibilidade. Segundo Costa

4 “Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que


não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de
assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportu-
nidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

131
Audiodescrição: práticas e reflexões

e Frota (2011, p. 6), no Brasil, existem três importantes pesquisadores na


área e, em decorrência disso, três importantes polos de pesquisa: um na
Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenado pela professora Eliana
Franco; outro, na Universidade Estadual do Ceará (UECE), coordenado pela
professora Vera Lucia Santiago Araújo; e o terceiro, na Universidade Fe-
deral de Pernambuco (UFPE), coordenado pelo professor Francisco Lima.
A importância e a relação da linguagem e da comunicação na
formação do sujeito crítico e participativo são claras e notórias, que não
podem ser negadas às pessoas com deficiência visual. Portanto, o re-
curso da audiodescrição precisa ser valorizado e aproveitado para que
a existência destas pessoas seja cada vez mais produtiva e significativa
enquanto cidadãos.

2.4 Jornal-laboratório
A legislação que rege os cursos de Jornalismo no Brasil exige
que toda instituição que ofereça tal habilitação deve dispor de um
jornal-laboratório, em que os futuros profissionais possam, na práti-
ca, aplicar os conhecimentos adquiridos e experimentar novas propos-
tas. Assim, a disciplina que integra um jornal-laboratório é oferecida
aos alunos como uma oportunidade de por em prática o que foi visto
nas disciplinas teóricas, além de possibilitar a execução da técnica
em situações que simulam o ambiente profissional das redações. Este
exercício é importante para o acadêmico conhecer o jornal em vários
sentidos, desde a pauta, checagem das fontes envolvidas no assunto,
entrevistas, pesquisa no banco de dados, leitura complementar e a
produção do texto.
Um dos primeiros pesquisadores que trouxeram a temática do jor-
nalismo de laboratório para a discussão foi o jornalista Dirceu Fernandes
Lopes. Em seu livro, resultado de sua tese de doutorado em Comunicação
Social, pela USP, Jornal Laboratório: do exercício escolar ao compromis-
so com o público leitor, lançado em 1989, pela editora Summus, Lopes
procurou retratar a prática laboratorial, avaliando as questões teóricas
fundamentais relacionadas com o ensino do jornalismo.
Em 1982, durante o VII Encontro de Jornalismo sobre órgãos labo-
ratoriais impressos, na Faculdade de Comunicação de Santos, chegou-se
ao seguinte conceito:

O jornal-laboratório é um veículo que deve ser feito a partir de


um conjunto de técnicas específicas para um público também
específico, com base em pesquisas sistemáticas em todos os âm-
bitos, o que inclui a experimentação constante de novas formas
de linguagem, conteúdo e apresentação gráfica. Eventualmente
seu público pode ser interno, desde que não tenha caráter insti-
tucional (LOPES, 2001, p.17).

132
Audiodescrição: práticas e reflexões

A introdução dos órgãos laboratoriais provocou o início de mudan-


ça nos cursos de jornalismo, iniciando a articulação teórico-prática, indis-
pensável na formação do profissional. Nessa passagem, Lopes (1989, p.
33) relata que o ensino discursivo foi cedendo lugar a uma aprendizagem
prática. O ponto fundamental do avanço foi a aprovação, pelo Conselho
Federal de Educação, da resolução que determinava que as escolas deves-
sem contar também com órgãos laboratoriais.
Lopes (1989) questiona o papel fundamental sobre os jornais la-
boratório e a prática do jornalismo:

O órgão laboratório é um instrumento de reprodução da prática


jornalística vigente ou um veículo para a criação das alternati-
vas em relação ao que existe na sociedade? As duas opções são
fundamentais: reproduzir a realidade, criar inovações. É impor-
tante manter as duas formas combinando-as, intercalando-as e
integrando-as. Nos próprios exercícios didáticos que se realizam
nos laboratórios é possível contrabalançar a reprodução dos pa-
drões jornalísticos dominantes com a criação de novos modelos
que possam constituir alternativas viáveis (LOPES, 1989, p. 34).

É neste âmbito de inovação, de experimentações e da criação de


novos vínculos que a proposta deste trabalho dialoga com os conceitos
de jornalismo de laboratório e acessibilidade.

2.5 Jornalismo-laboratorial x acessibilidade

Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Jornalismo,


o Ministério da Educação propõe ao curso utilizar metodologias que privi-
legiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e a
integração entre os conteúdos, propiciando sua articulação com diferentes
segmentos da sociedade. Além de utilizar diferentes cenários de ensino
-aprendizagem permitindo ao aluno conhecer e vivenciar situações varia-
das em equipes multiprofissionais e cuidar da preparação de profissionais
para atuar num contexto de mutação tecnológica constante. Entendemos
que produzir materiais acessíveis aos cegos é uma forma de preparar o fu-
turo jornalista a conhecer as demandas de uma sociedade e as exigências
que possui, além de criar uma consciência inclusiva aos acadêmicos.
O fato é que o conceito de acessibilidade está cada vez mais
presente nas discussões do MEC. Assim, o ministério publicou em
junho de 2015, o Instrumento de Avaliação de Cursos de Graduação
presencial e a distância5, no qual apresenta a acessibilidade como

5 Este Instrumento subsidia os atos autorizativos de cursos – autorização, reconheci-


mento e renovação de reconhecimento – nos graus de tecnólogo, de licenciatura e de
bacharelado para a modalidade presencial e a distância. De acordo com o art. 1º da Por-
taria Normativa 40/2007, consolidada em 29 de dezembro de 2010.

133
Audiodescrição: práticas e reflexões

critério de avaliação em diversos quesitos. Como:

Estrutura curricular
A estrutura curricular contempla, em uma análise sistêmica e glo-
bal, os aspectos: flexibilidade, interdisciplinaridade, acessibilidade peda-
gógica6 e atitudinal7, articulação da teoria com a prática.

Conteúdos curriculares
Possibilitar o desenvolvimento do perfil profissional do egresso,
considerando, em uma análise sistêmica e global, os aspectos: atualiza-
ção, adequação das cargas horárias (em horas), adequação da bibliogra-
fia, abordagem de conteúdos referentes às relações étnico-raciais, direi-
tos humanos, políticas ambientais, bem como acessibilidade.

Metodologia
Quando as atividades pedagógicas apresentam excelente coerên-
cia com a metodologia prevista/implantada, inclusive em relação aos as-
pectos referentes à acessibilidade pedagógica e atitudinal.

Além dos quesitos elencados acima, o documento propõe aces-


sibilidade em outros aspectos, como apoio ao discente, tecnologias de
informação e comunicação – no processo ensino aprendizagem, mate-
rial didático institucional, infraestrutura da universidade, equipamentos
de informática, laboratórios didáticos especializados.
E foi com base nestas premissas que inserimos, na Unisc, a pro-
posta de desenvolver técnicas jornalísticas laboratoriais para cegos no
ambiente de formação dos acadêmicos por meio de um trabalho que
buscasse transformar jornais e revistas impressos em áudio, atendendo,
assim, diretamente aos cegos e pessoas com baixa visão. Sobretudo, ins-
trumentalizando os futuros profissionais em atividades inclusivas. Há de
se considerar, ainda, que a experiência realizada na Unisc neste sentido
é inédita em termos de país e pode servir, portanto, de referência para
outras inciativas semelhantes.

6 Ausência de barreiras nas metodologias e técnicas de estudo. Está relacionada dire-


tamente à concepção subjacente à atuação docente: a forma como os professores con-
cebem conhecimento, aprendizagem, avaliação e inclusão educacional irá determinar,
ou não, a remoção das barreiras pedagógicas.
7 Refere-se à percepção do outro sem preconceitos, estigmas, estereótipos e discrimina-
ções. Todos os demais tipos de acessibilidade estão relacionados a essa, pois é a atitude
da pessoa que impulsiona a remoção de barreiras

134
Audiodescrição: práticas e reflexões

3 A experiência do Unicom

A implantação e desenvolvimento de práticas de audiodescrição


em produções laboratoriais na Unisc se iniciou a partir da percepção
da jornalista Daiana Stockey Carpes, quando, ainda no período de for-
mação, adaptou um jornal acadêmico impresso para um meio acessível
a um aluno cego. Isso ocorreu em 2011, por meio do jornal “Àbaco”,
do curso de Ciências Contábeis da universidade8. Tratava-se, a expe-
riência, basicamente de um “jornal falado” onde todos os elementos
visuais eram descritos em áudio por um narrador. Mas foi durante as
disciplina de Projeto Experimental (2013) e Monografia em Jornalismo
(2014) de Daiana Carpes, com a orientação do professor Demétrio de
Azeredo Soster, que a iniciativa não apenas ganhou corpo como foi,
mais tarde, incorporada às práticas laboratoriais impressas do Curso
de Comunicação Social.
No Projeto Experimental foi realizada uma tentativa de produzir
a audiodescrição em algumas páginas do Jornal Unicom. Para fins deste
projeto, realizou-se uma busca por meio de fóruns de debate na inter-
net, que discutiam o tema de acessibilidade no país. A ideia era organi-
zar os principais pontos a serem observados para a construção de um
jornal em áudio, a partir das ressalvas dos cegos. Diante dos aponta-
mentos e após uma revisão bibliográfica sobre a audiodescrição, pôde-
se estabelecer um planejamento inicial desse jornal. Já na monografia,
criamos o site Jornalismo em Audiodescrição9 para hospedar os jornais
em áudio. Nessa pesquisa, exploramos as audiodescrições pelo viés da
teoria da narrativa.
No que diz respeito especificamente ao jornal-laboratório Uni-
com, a primeira versão em audiodescrição foi veiculada em 2012, a
partir do conteúdo do jornal intitulado “Memórias” 10. Para dar conta
da tarefa, logo no início do semestre, o professor solicitou à então
graduanda Daiana Carpes, aluna da disciplina, que explicasse aos co-
legas o que era a técnica de audiodescrição, que por ela vinha sendo
trabalhada. Assim que a versão em papel ficou pronta, uma equipe
de alunos criada especialmente para este propósito, e orientada por
Daiana, produziu aquele que estamos considerando e primeira edi-
ção de uma jornal-laboratório do país produzida a partir da técnica
de audiodescrição.

8 Disponível em: http://www.unisc.br/portal/pt/cursos/graduacao/ciencias-contabeis/


jornal-abaco.html. Acesso em: 10 de novembro de 2015.
9 Disponível em www.jornalismoemaudiodescricao.combr. Em 2014, o site Jornalismo
em Audiodescrição ficou em segundo lugar no Prêmio Nacional de Acessibilidade To-
dos@Web na categoria institucionais / entretenimento / cultura / educação / blogs.
10 Disponível em: [http://issuu.com/acervoa4/docs/unicom201201] Acesso em: 17 de
novembro de 2015.

135
Audiodescrição: práticas e reflexões

Imagem 1 – Unicom Memórias

Nessa edição11, somente três textos foram audiodescritos.

Imagem 2 – Unicom Memórias em audiodescrição

Em 2013, quando o tema do Unicom foi “pornografia”12, a experiên-


cia, realizada nos moldes do ano anterior, foi acrescida de uma matéria:

11 Disponível em: http://jornalismoemaudiodescricao.com.br/jornal-unicom/


12 Disponível em: http://issuu.com/acervoa4/docs/jornal_unicom_p__ginas_ok

136
Audiodescrição: práticas e reflexões

Imagem 3 – Unicom Pornô

Imagem 4 – Unicom Pornô em audiodescrição13

Foi em 2014, no entanto, com a edição temática “Separações”,


que o processo de produção no Unicom em audiodescrição passou a
ser realizado de forma mais sofisticada e entusiasmada por parte dos
alunos. Isso desde os recursos de sonoplastia utilizados em estúdio até

13 Disponível em: http://jornalismoemaudiodescricao.com.br/jornal-unicom/.

137
Audiodescrição: práticas e reflexões

a quantidade de matérias disponibilizadas em audiodescrição: 16, mais


editorial e capa14.

Imagem 5 – Unicom Separações

Imagem 6 – Exemplo parcial do Unicom separações em audio-


descrição

14 Disponível em: http://jornalismoemaudiodescricao.com.br/jornal-unicom/.

138
Audiodescrição: práticas e reflexões

Imagem 7 – Pos t 15 no blog da disciplina comemorando a edição

A prática de audiodescrição também foi trabalhada em 2013 na


revista-laboratório Exceção, do Curso de Comunicação Social da Unisc.
À época, em um movimento semelhante ao realizado com o Unicom,
e valendo-se das mesmas metodologias, foram trabalhadas três maté-
rias da revista16. Não nos alongaremos acerca da descrição do processo,
considerando, como dissemos, que ele dialoga estreitamente com as
experiências anteriores. Observemos, no lugar disso, e sem pretensões
totalizantes, um roteiro possível sobre como proceder para criar produtos
laboratoriais em audiodescrição.

4 Implantação da audiodescrição

Para implantar o recurso da audiodescrição em um meio de comu-


nicação impressa, primeiramente é necessário fazer um roteiro, a partir
da matéria já previamente diagramada na página. Cumprida essa etapa, o
próximo passo é gravar as sonoras e editar o produto final.
A versão em áudio será uma mídia para deficientes visuais, as-
sim, a nossa preocupação é descrever imagens que contenham a edição
impressa, utilizando os mecanismos da audiodescrição, ou seja, quando
tiver algum elemento visual como ilustrações ou fotografias, estes deve-
rão ser explicados/descritos ao ouvinte.
Para as narrações das matérias em áudio, os alunos da própria dis-

15 Disponível em: http://blogdounicom.blogspot.com.br/2014/05/um-jornal-para-ser-


ouvido_16.html#more Acesso em: 17 de novembro de 2015.
16 Disponível em: http://jornalismoemaudiodescricao.com.br/revista-excecao/ Acesso
em: 23 de novembro de 2015.

139
Audiodescrição: práticas e reflexões

ciplina se encarregaram de narrar os textos, com o intuito de não tornar


o “áudio” cansativo para o ouvinte. Assim, como no impresso, folhamos
imediatamente as páginas que não queremos ler, na versão em áudio, o
produto final será dividido em faixas, com o intuito de facilitar a “leitura”
do público alvo. Uma vez que o ouvinte não se interesse pela faixa que
está escutando, basta prosseguir para a próxima.
Cada faixa terá uma trilha musical diferente e de acordo com o
assunto exposto. No início de cada áudio, o locutor narra a página do im-
presso, assim o leitor pode “conversar” com o ouvinte do jornal em áudio,
tendo ciência da página/faixa de cada edição. Também utilizamos recur-
sos com a alternância de locutores nos textos narrados. Esses elementos
são fundamentais para que o ouvinte possa situar-se em qual página está
sendo narrada. Após a edição dos áudios, o material é publicado no blog
das disciplinas, como mostram as imagens 1 e 2

Imagem 8 - Printscreen do Blog do Unicom17

Imagem 2: Printscreen do Blog da Revista Exceção18

17 Disponível em: http://blogdounicom.blogspot.com.br/


18 Disponível em: http://revistaexcecao.blogspot.com.br/

140
Audiodescrição: práticas e reflexões

5 Considerações Finais

Nestes capítulos, buscamos observar a técnica de audiodescrição


em uma perspectiva de formação universitária, tendo o cuidado, nele,
de esboçar uma possibilidade de roteiro a ser trabalhado. A força des-
ta proposta acredita-se, está, portanto, na intenção de inaugurar uma
ferramenta de acessibilidade no âmbito da formação em comunicação,
estabelecendo uma aliança talvez inédita, na esfera universitária, com a
produção do impresso com o áudio, visando a inclusão dos cegos, como,
decorrência disso, tornar a formação mais inclusiva. Assim, justifica-se o
projeto, também por estar em um movimento de ascensão em termos de
acessibilidade e comunicação em pesquisas científicas e acadêmicas.
Observe-se que a proposta deste trabalho pode ser adaptada a
qualquer meio de comunicação impresso, seja ele jornal ou revista. O que
ressaltamos, ao fazer essa tradução é, apenas, seguir nossas especifica-
ções, citadas anteriormente, para que o trabalho não seja em vão. Deste
modo, estaremos possibilitando que um número maior de pessoas co-
nheça o que a mídia está divulgando em termos de notícias, reportagens,
notas, editoriais, artigos, crônicas, entre outros gêneros jornalísticos.
Diante destas observações, apontamos uma necessidade de cons-
tante revisão das práticas jornalísticas e comunicacionais, sempre bus-
cando aprimoramento e inovação, em prol do público que queremos
atingir. Logo, podemos encaixar esse projeto como um instrumento de
acessibilidade e de fomento a comunicação, respeitando o que consta no
primeiro artigo do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros: todo cida-
dão tem direito à informação, abrangendo o direito de informar, de ser
informado e de ter acesso à informação.

Referências bibliográficas

ALVES, Soraya Ferreira. Audiodescrição para deficientes visuais: por um


modelo de audiodescrição brasileiro para a mídia. Disponível em: <www.
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141
Audiodescrição: práticas e reflexões

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143
Audiodescrição: práticas e reflexões

Audiodescrição
Jornalística:
Uma experiência
no Museu do Jango/RS

Janine da Mota Rosa1


Marco Antonio Bonito2

1 Graduada (2015) em Comunicação Social / Jornalismo pela Universidade Federal do


Pampa. Sua linha de pesquisa envolve cidadania, acessibilidade na deficiência visual e
jornalismo digital. E-mail: mottajanine@gmail.com.
2 Professor da graduação e pós-graduação em Comunicação Social, da Universidade
Federal do Pampa. Sua principal linha de pesquisa envolve temas relacionados aos Pro-
cessos Comunicacionais e a Cultura Midiática Digital, sob o viés da Acessibilidade Co-
municativa, através do Desenho Universal. Realizou seu doutorado em Ciências da Co-
municação, sob a linha de pesquisa: “Cultura, Cidadania e Tecnologias da Comunicação”,
pela Universidade do Vale dos Sinos - UNISINOS (2015). E-mail: marcobonito@gmail.com.

144
Audiodescrição: práticas e reflexões

Resumo: Este artigo apresenta os caminhos percorridos para a reali-


zação do projeto experimental de Trabalho de Conclusão de Curso que
apresenta uma proposta jornalística acessível para os cegos no museu
do ex-presidente João Goulart, em São Borja, no Rio Grande do Sul. Com
o objetivo de tornar o museu um espaço acessível para as pessoas com
deficiência visual, o projeto propôs trabalhar em união com das técnicas
de braille, radiojornalismo, audiodescrição e também criou-se uma alter-
nativa para reproduzir as imagens expostas no ambiente museológico
em alto relevo. O processo teve a consultoria de pessoas com deficiência
visual da Associação dos Deficientes Visuais e Amigos de São Borja. Com
isso, foram escolhidas três salas do museu, apontadas pelos voluntários
como as mais informativas e interessantes. Para proporcionar ao cego
uma imersão na história e fazer com que ele se sinta mais próximo pos-
sível da narrativa, foram utilizadas sonoras com os familiares e amigos;
jingles e áudios históricos da época.

Introdução

Os museus são locais de sensações históricas, de busca pela me-


mória. O primeiro espaço denominado museu que se tem registro foi no
Egito, pelo Ptolomeu I que nomeou uma parte do seu palácio onde se reu-
niam filósofos e pensadores. Segundo a lei brasileira de janeiro de 2009,
instituído pelo estatuto dos museus:

Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições


sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, in-
terpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesqui-
sa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de
valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra
natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de
seu desenvolvimento (LEI Nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009).

Esses locais contribuem para o desenvolvimento cultural da socie-


dade. Para Júlia Rocha Pinto (2012), os museus são locais de encontros,
sejam eles com o objeto, com o outro e até mesmo com a própria cultura.
No Brasil, o número de visitações nesses ambientes ainda é pequeno.
Uma pesquisa3 realizada pelo Ministério da Cultura em parceria com o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2013, revelou que o
espaço museológico continua sendo o que recebe a menor porcentagem
de pessoas, comparado com outros espaços como teatros, espaços mu-

3 Pesquisa disponível em: http://pnc.culturadigital.br/metas/aumento-em-60-no-nume-


ro-de-pessoas-que-frequentam-museu-centro-cultural-cinema-espetaculos-de-teatro-cir-
co-danca-e-musica/

145
Audiodescrição: práticas e reflexões

sicais e cinema. Apesar de ter aumentado as visitações de 7,4% em 2010


para 14,9% em 2013, o museu continua sendo lugar de referência de
passado, de coisas antigas. Diante disso, não podemos esquecer que os
museus foram criados por pessoas videntes e sob suas lógicas, implican-
do na acessibilidade. Na maioria dos museus, como é o caso do Museu do
Jango, as obras ficam expostas com legendas impressas ou dentro de ex-
positores de vidro o que dificulta o acesso, principalmente para pessoas
com deficiência visual. O museu do Jango é classificado como uma Casa-
Museu, até o próprio nome já diz: “Casa Memorial”, esta classificação para
Afonso e Serres (2014), consiste em:

Uma Casa-Museu remete a um exemplo de espaço íntimo de vi-


vências, excluindo a necessidade de ser um modelo tradicional
da mesma. Este local expositivo pode ser elaborado como um
cenário, a partir da reconstrução de uma residência, ou espa-
ço cotidiano, para ilustrar um ambiente que não é original, mas
retrata um fato, período, vida e/ou obra de um personagem de
destaque em uma comunidade, independente da condição so-
cial. Ainda assim, é importante frisar que para ser considerada
uma Casa-Museu, esta reconstituição deve ser executada com
base na utilização de objetos e pertences de cunho íntimo da
pessoa/família homenageada e com o aporte das suas reminis-
cências, levando ao público o cerne da vivência daqueles indiví-
duos. (AFONSO E SERRES, 2014, p. 6)

A Casa do ex-presidente João Goulart preserva várias mobílias


nos cômodos da residência, porém são acrescentados detalhes atuais,
como fotos da família, fotos da exumação, uma televisão que transmite
um documentário do ex-presidente. Podemos observar que se trata de
uma junção do original com objetos mais atuais que representam a vida
da família Goulart. Devido a essa preservação, as pessoas com deficiên-
cia visual acabam sendo desfavorecidas por falta de acesso. A maioria
dos objetos existentes não se pode tocar, dificultando para os cegos ou
pessoas com deficiência visual a compreensão do ambiente. O que se
torna inacessível para um grande público em nossa sociedade. Para se
ter uma ideia, segundo o último censo do IBGE/2010, 45.606.048 pes-
soas têm alguma deficiência, representando 23,9% da população. Dentre
as deficiências, a que mais predomina no país é a visual, com 78,45%4.
É importante o espaço museológico estar acessível para as pessoas,
principalmente por ser um direito. Na Declaração Universal dos Direitos
Humanos5 de 1948, destaca:

4 Considerando a pesquisa do IBGE: Cegos, Grande dificuldade e alguma dificuldade


para enxergar.
5 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://portal.mj.
gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm

146
Audiodescrição: práticas e reflexões

Artigo XXVII
1.Todo ser humano tem o direito de participar livremente da
vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar
do progresso científico e de seus benefícios. 2. Todo ser huma-
no tem direito à proteção dos interesses morais e materiais de-
correntes de qualquer produção científica literária ou artística
da qual seja autor.

Apesar da Declaração não citar explicitamente o Museu, enten-
de-se que “vida cultural da comunidade” esteja inserida, também, os
espaços museológicos. Essa inclusão é fundamental para a vida em
sociedade, respeitando as diferenças presentes. Para Berquó (2011) “a
inclusão social das pessoas com deficiência significa torná-las parti-
cipantes da vida cultural, social, econômica e política, assegurando o
respeito aos seus direitos de cidadão no âmbito da Sociedade, do Es-
tado e do Poder Público.” (BERQUÓ, 2011, p. 24). Ou seja, as pessoas
de qualquer lugar do mundo tem o direito a ter acesso aos eventos
da sociedade mesmo que essas pessoas tenham algum tipo de defi-
ciência, a mostra/museu/município, etc, precisa estar preparado para
essas pessoas.

São Borja

A cidade de São Borja6 está localizada na Fronteira Oeste do Rio


Grande do Sul, faz divisa com o município de Santo Tomé, na Argenti-
na. É uma cidade importante na história do nosso país, a primeira dos
sete povos das missões7 e também conhecida como a Terra dos Pre-
sidentes, pois Getúlio Vargas e João Goulart nasceram nesta pequena
cidade. Para Silva e Silva (2011), a importância da cidade destaca-se
pela riqueza histórica, além de ser reconhecida pelo seu valor cultural,
sua trajetória política e tendo participado de acontecimentos relevan-
tes na história do nosso país. Fundada em 1682, atualmente São Borja
tem 61 mil habitantes8 e sua economia tem foco no agronegócio. A
cidade tem quatro museus: Museu Getúlio Vargas, Museu Ergológico
da Estância, Museu Apparício Silva Rillo e Casa Memorial João Goulart
(Museu do Jango).

6 www.saoborja.rs.gov.br
7 Conjunto de 7 povos indígenas fundados pelos Jesuítas. Além de São Borja, as redu-
ções de São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz
Gonzaga e Santo Ângelo fazem parte dos 7 povos das missões.
8 Segundo último censo do IBGE/2010.

147
Audiodescrição: práticas e reflexões

Museu do Jango

O museu do Jango foi à antiga casa do ex-presidente, construído


em 1927. Há relatos que João Goulart viveu na residência até seus sete
anos. Desde 1997, a casa virou patrimônio histórico do Rio Grande do
Sul e passou por reformas/restaurações. Em 2009, o local foi inaugurado
como Casa Memorial João Goulart. Várias peças, mobílias e fotografias
estão no museu e registram os momentos vividos pelo ex-presidente. A
casa contém 13 cômodos.
A escolha de realizar um projeto experimental no Museu do Jango
se deu pelas investigações sobre a morte do ex-presidente. A mídia nacio-
nal e internacional estava publicando notícias referentes à exumação de
Jango9, a cidade vivia novamente a morte de João Goulart, após 38 anos.
Os moradores da cidade relembravam como era São Borja na época do ex
-presidente e o dia do seu falecimento. Esses registros fizeram com que o
museu e o nome Jango se tornassem mais conhecidos pelos brasileiros. O
momento contribuiu para o aumento das visitas na Casa Memorial. O am-
biente não era acessível para as pessoas com deficiência visual, fato que
instigou mais ainda a realização da audiodescrição jornalística.

Referenciais Teóricos

O referencial teórico se “fundamenta em atividades de estudo de


conceitos relevantes para a problemática” (BONIN, 2011, p. 5). Para a pes-
quisadora a apropriação do autor sobre os conceitos é que faz a adequa-
ção com os estudos. É um desafio apresentar os conceitos e fazer uma
reflexão sobre a relação deles com a pesquisa.

Jornalismo
O papel do jornalismo com a sociedade é muito mais de apresen-
tar o fato, os autores Bill Kovach e Tom Rosenstiel, no livro Elementos do
jornalismo (2003), elaboraram uma lista com os itens fundamentais para
a profissão, uma questão de missão:

A primeira obrigação do jornalismo é a verdade. 2. Sua primeira


lealdade é com os cidadãos. 3. Sua essência é a disciplina da
verificação. 4. Seus profissionais devem ser independentes dos
acontecimentos e das pessoas sobre as que informam. 5. Deve
servir como vigilante independente do poder. 6. Deve outorgar
um lugar de respeito às críticas públicas e ao compromisso. 7.
Tem que se esforçar para transformar o importante em algo in-
teressante e oportuno. (KOVACH, Bill; ROSENSTIEL,2005, p. 22)

9 Processo iniciado no dia 13 de novembro de 2013 e termino no dia 14 de novembro.


Mais de 18 horas de trabalho.

148
Audiodescrição: práticas e reflexões

A missão desta profissão é apurar o fato, organizar as informa-


ções para que a fonte (o entrevistado) não tenha sua integridade ferida
e o principal, saber como e o que divulgar como notícia relevante para a
sociedade. O jornalista Manuel Carlos Chaparro, publicou em 1994 o livro
Pragmáticas do Jornalismo, revelando a responsabilidade moral e ética da
profissão, apresentando o jornalismo além do “simples” modo de informar:

No jornalismo, as ações, os fazeres e seus contextos são de alta


complexidade, pois se trata de um processo social e cultural de
intermediação, com múltiplos emissores produtores (de informa-
ções e opiniões) e receptores usuários. (CHAPARRO,1994, p. 27)

Ou seja, o jornalismo faz parte de um processo social e cultural
da sociedade, em que o jornalista precisa ter o compromisso de captar as
informações e publicá-las de modo que seja útil para as pessoas:

É dever do jornalista combater e denunciar todas as formas de


corrupção; divulgar todos os fatos que sejam do interesse públi-
co; lutar pela liberdade do pensamento e expressão; opor-se ao
arbítrio, ao autoritarismo e à opressão; defender os princípios
expressos na Declaração dos Direitos Humanos”. (CHAPARRO,
1994, p. 36)

Diante desses deveres e missão da profissão, o papel dos jorna-


listas se impõe como desafios ante aos novos cenários e contextos cul-
turais. Neste sentido, é desafiado a promover cidadania por meio da in-
clusão das pessoas com deficiência e de conteúdos acessíveis. O meio
de comunicação mais propício para desempenhar esta função é o rádio,
conforme explicamos a seguir:

Radiojornalismo
O jornalismo no rádio está presente desde as suas primeiras ex-
periências de transmissão. Segundo, ORTRIWANO (2003), “As emissoras,
de maneira geral, são inauguradas transmitindo algum evento ou, ao me-
nos, informando sobre sua própria existência”. (ORTRIWANO, 2003, p.
2). No livro, Rádio – O veículo, a história e a Técnica do autor Luís Artur
Ferraretto, aborda a primeira exposição pública do rádio no Brasil que foi
em 7 de setembro de 1922, na Exposição Internacional do Rio de Janeiro,
que comemorava o centenário da Independência. O público que estava
na inauguração do evento escutou as transmissões por alto falantes. A
demonstração atingiu seu objetivo, e surgiram no Brasil os pioneiros do
rádio ao redor de Edgard Roquette-Pinto. Começa no ano seguinte, a traje-
tória desta mídia no país (FERRARETTO, 2001, p.94). A primeira emissora
regular do país foi a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, criada por um gru-
po, em 20 de abril de 1923, na sede da Academia Brasileira de Ciências.
O grupo era liderado por Roquette-Pinto e Morize, que conseguiu junto
ao Estado um empréstimo para transmissores da Praia Vermelha durante

149
Audiodescrição: práticas e reflexões

uma hora por dia. As transmissões começaram no dia 1º de maio do mes-


mo ano. Segundo Ferraretto, o rádio nasceu de maneira precária no país.

Em seus primeiros meses de funcionamento a Rádio Sociedade


do Rio de Janeiro operou sem uma programação definida e com
emissões esporádicas. Em outubro, começa a ser organizada
uma sequência de programas com notícias de interesse geral,
conferências literárias, artísticas e científicas, números infantis,
poesia, música vocal e instrumental. (FERRARETTO, 2001, p. 96)

Podemos perceber que, a presença do entretenimento se mistu-


rando com as informações, sem regras especificas, sem horários defini-
dos para os programas. O primeiro jornal falado do Brasil foi o jornal da
Manhã, produzido por Roquette Pinto de forma improvisada e amadora.
Segundo Haussen & Cunha (2003), a seleção das informações era realiza-
da por Roquette de uma maneira informal:

Em casa, ele lia os jornais, e marcava as notícias que considera-


va mais interessantes. E após, por telefone, entrava no ar para
apresentar o informativo, lendo os fatos que havia selecionado
e fazendo comentários. Em comparação com as técnicas atuais
de captação de informações e redação dos textos das notícias de
rádio ou mesmo com as que surgiram logo depois, na segunda
fase da história do rádio brasileiro, pode-se realmente avaliar
que Roquette Pinto utilizava recursos rudimentares, improvi-
sados e amadores para a produção do seu “Jornal da Manhã.”
(HAUSSEN & CUNHA, 2003, 16)

Observa-se que desde os primórdios do radiojornalismo, o rádio


não perdeu o contato de “captar e transmitir” informações através do
telefone. E desde o início do jornalismo nesta mídia, o jornalista já sele-
cionava o que achava que seria de interesse para o público. O evento em
comemoração ao centenário mostrou os progressos da indústria nacional
atraindo investidores estrangeiros. Foi nesse período que o Brasil come-
çou a se fortalecer para os anos 30. Roquette, teria tido uma boa ideia
para difundir o rádio, além da transformação social através do meio:

Teria visto no rádio um instrumento de transformação educa-


tiva. Conferências cientificas, música erudita e análise dos fa-
tos políticos e econômicos marcam, deste modo, as primeiras
transmissões da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Intelectuais
e cientistas estrangeiros em visita ao Brasil falam ao microfone
da primeira emissora do país. É o que ocorre quando o físico
alemão Albert Einstein ou o poeta e ensaísta italiano Felipe Tom-
maso Marieneti (criador do movimento futurista) vêm ao Brasil.
(FERRARETTO, 2001, p. 98)

No trecho anterior, conseguimos refletir sobre o papel da fonte


jornalística, dando mais credibilidade para o que o jornalista comenta.
Podemos observar que neste período já inicia uma etapa de programas

150
Audiodescrição: práticas e reflexões

de entrevistas, de debates e a relação do meio com a sociedade. Nos anos


30, a Rádio Record de São Paulo transformou o modo do rádio em vários
sentidos, mas destaca-se aqui pela programação política introduzida no
meio, levando vários políticos até o rádio para as “palestras instrutivas”
(ORTRIWANO, 2002, p. 70). Outro fator que começou a destacar-se nesta
época foi a inserção de entrevistados para legitimar o que o locutor infor-
mava. Contudo, entrevistar fontes que têm/tiveram relação com a política
e com a história do João Goulart tem todo o significado para o trabalho
que se realiza dentro do museu do ex-presidente, além de legitimar as
informações expostas.
Com o tempo o rádio se adaptou com programações e horários
específicos para o público. Segundo Ferraretto (2001), “historicamente, a
maioria das rádios buscou atingir públicos amplos com uma programa-
ção baseada em uma média de gosto generalizante”. (FERRARETTO, 2001,
p. 52). O autor explica o processo de segmentação do rádio:

Define-se segmentação como um processo em que, a partir dos


interesses dos ouvintes e dos objetivos da empresa de radiodifu-
são sonora, se adapta parte ou a totalidade de uma programação
a um público especifico. Considera-se, assim, não apenas classe
social, faixa etária, sexo e nível de escolaridade, mas sim interes-
ses determinados como, por exemplo, as preferências do grupo
ao qual o indivíduo pertence. (FERRARETTO, 2001, p. 54)

Diante da segmentação do público, o rádio precisou repensar seus


programas, sua linguagem. Ferraretto (2001) apresenta os tipos infor-
mativos: Noticiário; Programa de entrevista; Programa de opinião; Me-
sa-redonda; Documentário. Além de apresentar os tipos de programas
de entretenimentos: Programa humorístico; Dramatização; Programa
de auditório; Programa musical. Entre o programa informativo e o en-
tretenimento, tem o radiorevista e programa de variedades, que fica no
“meio termo” das duas caracterizações. Segundo McLeish (2001), para
utilizarmos o rádio de modo adequado, devemos adaptar a linguagem
que aprendemos na escola, “mais formal” para uma que represente mais
a nossa tradição oral. Com isso, é possível perceber que a linguagem
do rádio é mais coloquial. Outro ponto a ser destacado na característica
radiofônica é a comunicação entre você (radialista/locutor/jornalista) e
o ouvinte. Na séria juvenil “Mundo da Lua”, exibido pela TV cultura dos
anos de 1990 até 1995, que contava a história de Lucas Silva e Silva, um
garoto de dez anos que criava histórias e gravava no gravador. Nesta sé-
rie havia uma empregada doméstica que se chamava Rosa, e adorava ou-
vir a programação do rádio. Rosa, falava com o locutor Ney Nunes, quem
ouvia até parecia ser uma conversa por telefone ou pessoalmente, mas
a empregada falava sozinha. Neste exemplo, podemos relacionar com o
que McLeish (2001) destaca: “escreva, portanto, para o indivíduo – ele
sentirá que você está falando apenas com ele e assim, as palavras terão

151
Audiodescrição: práticas e reflexões

muito mais impacto” (MCLEISH, 2001, p. 62). Além disso, o autor destaca
12 itens que seria o modelo ideal de “texto para os ouvidos”:

Decida o que você quer dizer; Faça uma lista das suas ideias
numa ordem lógica; torne a abertura interessante e informativa;
Escreva para o ouvinte individualmente – visualize-o enquanto
escreve; Fale em voz alta o que você quer dizer, depois tome
nota; use “sinalizadores” para explorar a estrutura da sua fala;
Crie imagens, conte histórias e apele para todos os sentidos;
Use a linguagem coloquial comum; escreva sentenças ou frases
curtas; Utilize a pontuação de modo a tornar a locução clara
para o ouvinte; Digite o roteiro em espaço duplo e com margens
amplas e parágrafos nítidos; Quando estiver com dúvida, mante-
nha a simplicidade – lembre-se de que a ideia é expressar e não
impressionar. (MCLEISH, 2001, p. 65)

Utilizando esses itens na construção do texto radiofônico é possí-


vel que a informação atinja um estágio didático, com o efeito de ensinar
o ouvinte. A organização na hora de produzir uma notícia/reportagem/
programa especial ou documentário para o rádio é imprescindível. É por
meio desta organização, que conseguimos identificar quais as palavras
que realmente devem ser ditas, qual a ordem de importância da notícia,
o que é mais relevante é a última informação dita pelo locutor. É comum,
o apresentador/jornalista iniciar um programa de rádio com a segunda
informação mais importante do fato, assim também “prende” a atenção
do ouvinte. O modo como nos expressamos no jornalismo pode gerar
uma credibilidade no profissional e no meio. Podemos repensar a impor-
tância da informação e do compromisso de informar a sociedade de uma
maneira correta, seguindo os direitos humanos de liberdade de expres-
são e comunicação, como é apresentado no tópico seguinte através dos
assuntos que envolvem cidadania e direitos humanos.

Cidadania e Direitos Humanos


Fuser (2010) destaca a importância de o estado reconhecer o que
é cidadania, antes mesmo de se falar sobre:

Cidadania implica o reconhecimento por parte do Estado da


igualdade entre os homens. As dimensões que o Estado reconhe-
ce como de exercício da cidadania constituem os direitos: civis
(livre movimentação, livre pensamento, propriedade), de Justiça,
políticos (ser elegível, eleger) e sociais (acesso a bem-estar e
segurança materiais). (FUSER, 2010, p. 179)

Cidadania, entendida aqui, é a ação de reconhecer o direito do ou-


tro, o direito livre a liberdade de direitos. É assegurar, a condição do ser
humano de ser livre para ir e vir, para ter direito ao voto, de ter acesso
aos bens culturais e educativos. Funari (2003) explica que o conceito é
derivado da Revolução Francesa:

152
Audiodescrição: práticas e reflexões

Cidadania é um conceito derivado da Revolução Francesa (1979)


para designar o conjunto de membros da sociedade que têm
direitos e decidem o destino do Estado. [...] Em latim, a pala-
vra ciuis gerou civitas, ‘cidadania’, ‘cidade’, ‘Estado’. Cidadania é
uma abstração derivada da junção dos cidadãos e, para os roma-
nos, cidadania, cidade, Estado constituem um único conceito – e
só pode haver esse coletivo, se houver antes cidadãos. Civis é o
ser humano livre e, por isso, civitas carrega a noção de liberda-
de. (FUNARI, 2003, p. 49)

Entendemos a cidadania, neste trabalho, como elemento impor-


tante para gerar liberdade e autonomia para as pessoas com deficiência
visual, com segurança e de maneira digna. Não é possível ter cidadania
plena se não houver também respeito aos Direitos Humanos, por isso
esta pesquisa baseia-se nestas premissas fundamentais associadas. Os
direitos do cidadão são muitas vezes confundidos, Rabenhorst (2008)
nos explica:

Um direito, de forma muito geral, é a possibilidade de agir ou o


poder de exigir uma conduta dos outros, tanto uma ação quanto
uma omissão. Por exemplo, a Constituição Federal, em seu arti-
go 5°, diz que todo brasileiro tem direito à liberdade de expres-
são. Isso significa que temos a possibilidade de expressar livre-
mente nossas convicções religiosas, mas também que podemos
exigir que os outros, principalmente o Estado ou os membros
de outras religiões, não criem obstáculos à nossa liberdade de
culto. Observe, por conseguinte, que a cada direito corresponde
um dever. Na realidade, quando digo, por exemplo, que “tenho
direito à vida”, estou exigindo o direito de não morrer injusta-
mente, o que significa que os outros têm o dever de respeitar a
minha vida. Ter um direito, por conseguinte, é ser beneficiário de
um dever correlativo por parte de outras pessoas ou do próprio
Estado. (RABENHORST, 2013, p. 14)

Sendo assim, o conceito de direitos está diretamente ligado aos


direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), é
um documento escrito por várias culturas e nações a fim de respeitar e fir-
mar direitos universais. Esse documento foi aprovado no dia 19 de dezem-
bro de 1948, em Paris. Desde 1948, a DUDH foi traduzida para 360 idio-
mas e consta no artigo XIX o direito de liberdade de opinião e expressão:

Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expres-


são; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opi-
niões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por
quaisquer meios e independentemente de fronteiras. (DIREITOS
HUMANOS, 1948, p. 9)

Relacionamos este direito com o direito de ir e vir, que consta no


artigo XIII da DUDH: “1) Todo ser humano tem o direito à liberdade de lo-
comoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2) Todo ser

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Audiodescrição: práticas e reflexões

humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este


regressar” (DIREITOS HUMANOS, 1948, p. 7). Diante disso, já estão assegu-
rados os direitos de ir e vir dos deficientes visuais e mais do que ter acesso
é fazer dessa informação parte transformadora na vida do sujeito:

Nesse sentido, mais do que promover o direito ao acesso à infor-


mação, é necessário fomentar o direito à comunicação. Não se
trata de uma comunicação linear que envolve apenas emissores,
mensagens, canais e receptores. Refere-se a uma comunicação
orgânica e complexa, que não se localiza somente nas tecnolo-
gias e técnicas de transmissão de informações, mas que resulta
na conquista da cidadania para a transformação social. (TRESCA,
2006, p. 51)

Com isso, o intuito deste trabalho é transformar o ambiente pú-


blico para realmente deixá-lo para todos os públicos, sem segregação
por questões de falta de acessibilidade, no âmbito comunicativo. Deste
modo reconhecendo a luta pela cidadania das pessoas com deficiência
visual. Esta trajetória já possui 40 anos de lutas e algumas conquistas,
os deficientes continuam tendo seus direitos preteridos na sociedade em
detrimento a lógicas sociais dos videntes, principalmente quando se fala
em comunicação. Conforme já mencionado, a deficiência que mais pre-
domina na sociedade brasileira é a visual, são 21,5% dos cidadãos(ãs)
brasileiros(as) têm algum grau de deficiência visual. Na realidade local,
o município de São Borja tem cerca de 61.000 habitantes, destas 2.595
pessoas são cegas ou têm grande dificuldade para enxergar, o que cor-
responde a 4% da população geral. Embora o número geral de residentes
na cidade que se declaram com algum tipo de deficiência visual seja de
11.660 pessoas. Com números absolutos expressivos para uma cidade
no interior, trabalhamos a tecnologia assistiva10 para propor ao museu do
Jango uma comunicação acessível em formato jornalístico.

Braille
O braille é um sistema de leitura do público cego. Segundo Belar-
mino (2010). Quem iniciou esse processo de investigar os processos da
leitura foi Diderot. A autora ainda salienta que o autor desenvolveu esse
documento 40 anos antes que a primeira escola destinada para cegos,
em 1887, em Paris. O Braille é a combinação de “códigos” como explica
a autora: Ver-se-á como a célula Braille, associação e combinação de seis
pontos justapostos, criando símbolos que em nada se assemelhavam às
letras manuscritas convencionais (BELARMINO, 2004, p. 33).
O sistema Braille é um sistema de leitura que utiliza o tato. Para
isso, é utilizada a combinação de seis pontos que formam algarismos, si-

10 Tecnologia assistiva é uma ferramenta que oferece uma autonomia para as pessoas
com deficiência em seu cotidiano.

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Audiodescrição: práticas e reflexões

nais de pontuação, números, letras. A reglete é um instrumento no qual


você encaixa e fecha a folha e com o punção pressiona para que seja pos-
sível deixar o papel o ponto, que com uma combinação é possível escrever.

Audiodescrição
A história da audiodescrição teve início na década de 70 nos Es-
tados Unidos, com as ideias desenvolvidas por Gregory Frazier em sua
dissertação de mestrado. Porém, começou a ser trabalhado mesmo na
década de 80 pelo casal Margaret e Cody Pfanstiehl. Segundo as autoras
Eliana Paes Cardoso Franco e Manoela Cristina Correia Carvalho da Silva,
a técnica consiste na:

A audiodescrição consiste na transformação de imagens em


palavras para que informações-chave transmitidas visualmente
não passem despercebidas e possam também ser acessadas por
pessoas cegas ou com baixa visão. O recurso, cujo objetivo é
tornar os mais variados tipos de materiais audiovisuais (peças
de teatro, filmes, programas de TV, espetáculos de dança, etc.)
acessíveis a pessoas não-videntes. (2010, p. 19)

Audiodescrição, entendida aqui como uma ferramenta essencial


para a compreensão do mundo visual, não somente para as pessoas com
deficiência visual. O primeiro material (DVS) audiodescrito e gravado foi
lançado em 1990. No Brasil, a presença da audiodescrição inicia em 2003
no festival Assim Vivemos: Festival Internacional de Filmes sobre Defi-
ciência. O primeiro filme audiodescrito no Brasil surgiu em 2005, com o
título: Irmãos de Fé. Em 2008 surge a primeira propaganda audiodescrita
no Brasil, realizada pela empresa Natura. Podemos considerar que o rá-
dio colaborou inicialmente para as técnicas de audiodescrição. Segundo
Santana (2010), a narração de uma partida de futebol no rádio não deixa
de ser audiodescrita. Quando o rádio estava para completar nove anos
de existência no Brasil, foi realizada a primeira transmissão de partida
de futebol por essa mídia, no dia 19 de julho de 1931, entre os times de
São Paulo e do Paraná. O locutor da partida, Nicolau Tuma, da Rádio Edu-
cadora Paulista, inovou para além de narrar o que acontecia na partida,
explicando as regras do jogo:

Surgiram então, estilos e jargões que se consagraram, criando as-


sim uma cultura nos ouvintes, que, além de adquirirem suas pre-
ferências por um ou outro profissional, também se acostumaram
a decodificar as mensagens transmitidas de forma a entenderem
com maior exatidão o que de fato estava se passando dentro de
campo, não precisando mais, inclusive, que as regras do futebol
fossem explicadas. Qualquer amante das transmissões futebo-
lísticas no rádio sabe que, por exemplo, sempre que o narrador
aumenta a intensidade da voz e acelera o ritmo da transmissão
é um perigo de gol, ou sempre que existe uma grande defesa do
goleiro, o narrador aumenta o tom de voz, estendendo a frase

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Audiodescrição: práticas e reflexões

que indica a ação deste. ...É importante reforçar que esses jargões
só fazem sentido porque tanto o 30 receptor quanto o emissor
conhecem perfeitamente o código. Aí está, certamente, o maior
desafio da audiodescrição. (SANTANA, 2010, p.156)

Nesta pesquisa, realizamos a técnica de narração usando as prá-


ticas do radiojornalismo e da audiodescrição, tornando o áudio de fácil
compreensão para os visitantes com e sem deficiência visual.

Audiodescrição Jornalística
A escolha do nome surgiu por não utilizarmos apenas da técni-
ca de descrever, mas de inserir informações jornalísticas para o contex-
to da pessoa que irá ouvir o áudio. Além disso, acreditamos, em nossa
pesquisa, que a audiodescrição não é uma técnica destinada apenas a
pessoas que têm deficiência visual. A técnica se aproxima muito do ra-
diojornalismo. Podemos refletir sobre a presença de um idoso ou uma
criança em um museu, na qual só ouviram falar sobre as peças expostas
dentro desse ambiente, mas nunca tiveram acesso as informações de
forma precisas. A audiodescrição pode nesse caso apresentar o que não
é entendido de uma maneira clara e objetiva. Nesse sentido, a audiodes-
crição jornalística teve como objetivo ir além, e propor mais informações
que a audiodescrição, sendo possível uma compreensão mais detalhada.
Diante disso, as inserções de entrevistas, jingles neste trabalho contribui
também para o acesso de qualquer pessoa que queira saber aspectos
acerca da vida de João Goulart, um mergulho na história do nosso país e
da vida do ex-presidente.
Como este trabalho se trata de uma experiência, a proposta foi
desenvolver os conteúdos com acessibilidade, associando as técnicas
de radiojornalismo com as de audiodescrição. No desenvolvimento da
audiodescrição jornalística, nos preocupamos em informar de maneira
adequada sobre o local e sobre a mídia na qual estamos explorando – o
rádio. Nos próximos tópicos detalharemos todo o processo de constru-
ção das 24 audiodescrições jornalísticas, da presença do Braille e das
imagens em alto-relevo.

Visita guiada

A construção da audiodescrição jornalística inicia com a visita


conjunta com as pessoas com deficiência visual de São Borja, os asso-
ciados da ADEVASB – Associação dos Deficientes Visuais e Amigos de
São Borja. A técnica utilizada para conhecer melhor os usos e apropria-
ções que as pessoas com deficiência visual fazem dos ambientes cul-
turais foi a entrevista em profundidade, que segundo Lakatos (2010)
incide em:

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Audiodescrição: práticas e reflexões

[...] o encontro de duas pessoas, a fim de que uma delas obte-


nha informações a respeito de determinado assunto, mediante
uma conversação de natureza profissional. É um procedimento
utilizado na investigação social, para a coleta de dados ou para
ajudar no diagnóstico ou no tratamento de um problema social.
(LAKATOS, 2010, p. 178)

Essa visita guiada pelas pessoas com deficiência visual foi im-
prescindível para perceber o que era necessário destacar no roteiro,
além da escolha das três salas para a realização do trabalho. Como
destacado no início, a Casa contém 13 cômodos, os escolhidos foram
a Sala da Cronologia (a primeira sala do museu e que contém três qua-
dros grandes contando a vida do ex-presidente), a Sala da Lareira (Sala
no meio da casa que era um cômodo onde a família se encontrava) e a
Sala da Morte (Nome dado pelo museu por conter informações referen-
te à morte do Jango).

Entrevistas

Após a escolha das salas e das dicas dos voluntários, passamos


para uma etapa importante no trabalho: as entrevistas. Elas foram rea-
lizadas por Skype e gravadas utilizando o software gratuito Free Video
Call Recorder for Skype. As sonoras foram realizadas com os familiares
de Jango: João Vicente (filho mais velho de Jango), Christopher Gou-
lart (filho de João Vicente e neto mais velho do ex-presidente) e João
Alexandre (filho de João Vicente e neto de Jango). A entrevista com a
Maria Thereza Goulart foi cedida pelo programa OverFashion11. A es-
colha das fontes serem os familiares ocorreu em função de o museu
ser um lugar que foi a antiga casa do ex-presidente. Além disso, para
dar um tom mais próximo da história, nada melhor que as pessoas
que dividiram vários momentos com o Jango. Outra fonte foi Ramão
Aguilar, que participou do velório de Jango em 1976. Também foram
realizadas entrevistas técnicas com profissionais e pesquisadores nas
áreas de acessibilidade, museologia e comunicação, a fim de colaborar
na construção da narrativa para os cegos, foi enviado um áudio teste
para algumas pessoas com deficiência visual para realizarem a con-
sultoria. As decupagens das entrevistas ocorreram nesta etapa, pois é
uma parte fundamental para perceber o que seria necessário utilizar
das sonoras.

11 A entrevista original pode ser assistida através do link: https://www.youtube.com/


watch?v=ZpAFklMxWEI

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Audiodescrição: práticas e reflexões

Busca por áudios históricos

Realizamos uma pesquisa por áudios marcantes na história do


nosso país para que pudessem ser utilizadas na audiodescrição jorna-
lística. Entre os áudios utilizados foram o discurso de Jango como pre-
sidente, os jingles dos partidos, o discurso de Jango na China, entre
outros momentos.

Construção do roteiro

A construção do roteiro teve como base o proposto por Ferraret-


to . Utilizamos meios que fossem mais fáceis para a gravação da locu-
12

ção da audiodescrição e da locução jornalística e que não houvesse dis-


tinção no roteiro. Unindo realmente as técnicas. Nas figuras 1 e 2 estão
um modelo da faixa 3. Percebemos que havia a necessidade de indicar
quando o áudio iniciava e quando terminava, uma técnica utilizada na
audiodescrição. Usamos um BIP inicial e final igual em todos os áudios
e inserimos essa instrução no áudio instruções. As sonoras (entrevistas)
foram todas escritas sem abreviação, uma escolha para nos situarmos
na hora da locução.

Figura 1

12 No livro: Rádio – O veiculo, a história e a Técnica de 2007.

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Audiodescrição: práticas e reflexões

Figura 2

Gravação e Divulgação

A locução foi realizada pela própria acadêmica, com a participa-


ção do Relações Públicas João Batista Correia. A gravação foi realizada no
estúdio de rádio da Universidade Federal do Pampa, campus São Borja.
Foram produzidos 24 áudios, que estão disponíveis no site: http://soun-
dcloud.com/audiodescricaojornalistica.

Fotografias em auto relevo

Foram escolhidas nove fotografias expostas nas três salas para


serem confeccionadas em alto relevo. As imagens foram reproduções
das fotografias. Na sala da Lareira (sala 3) a foto que foi confeccionada
foi a de Jango com sua filha Denise, as demais fotos estão expostas na
sala “A morte” (sala 6). Para confeccionar as imagens as seguintes eta-
pas foram realizadas:
1) busca/ampliação das fotos: As fotos estão expostas ou impres-
sas no quadro, ou dentro dos expositores de vidro, como não é possível
abrir o expositor, buscamos pelas mesmas fotos na internet, algumas
não foram encontradas então, tivemos que tirar foto da foto para poder
ampliar em tamanho A3.
2) Traçando as linhas: Nesta etapa utilizamos a cola colorida para

159
Audiodescrição: práticas e reflexões

deixar os principais traços da foto com relevo.


3) Após, colocamos uma folha A4, em cima dos traços para tirar-
mos o molde e fazermos o recorte do tecido. Algumas fotos necessitam
desta etapa, pois contém nas imagens bandeiras ou roupas.
4) O último passo para a confecção das fotos, foi acrescentar os
detalhes, como o cigarro, os botões das camisas, a grama, a escada (com
a lixa de parede), etc. (Imagem 3).

Imagem 3: Imagem pronta. Nesta imagem, é o Jango com a sua


filha Denize sentados na fazenda Rancho Grande, em São Borja. Denize
está com o dedo na boca e o Jango segura um chimarrão. Na foto repro-
duzida em alto relevo foi utilizado tecidos nas roupas, grama artificial
onde mostra na imagem original que é grama, erva-mate no chimarrão,
e arame para mostrar a ideia de bomba da cuia. Além disso, foi colocado
nos cabelos, cabelo artificial.

Braille

Com as imagens prontas e o roteiro escrito e gravado, utilizamos


uma reglete e um punção e escrevemos os números para identificar as
fotos de acordo com o nosso áudio. Além disso, a impressão em braille dos

160
Audiodescrição: práticas e reflexões

roteiros em áudio foi uma opção a mais dada aos cegos, dentro do museu,
pois a pessoa pode escolher se quer ouvir os áudios ou apenas ler.

Considerações finais

A realização deste projeto experimental abriu portas para novos


conhecimentos, incomuns ao campo científico da comunicação, como
é o caso da museologia. Ao mesmo tempo firmou conhecimentos ad-
quiridos ao longo desses quatro anos. Para a realização deste projeto,
foi necessário mais que as leituras, foi imprescindível a persistência
para aprender. Contatamos as pessoas com deficiência visual para ten-
tar compreender como é chegar a um local onde existem muitas infor-
mações nas quais as pessoas não podem se apropriar. Aprender como
imprimir um texto em braille foi outro momento importante, embora
seja muito simples pensar o ato de imprimir nas impressoras utilizadas
por pessoas videntes, o processo de impressão em braille é trabalhoso
e complexo. Além disso, foi visível perceber a importância da comuni-
cação social no âmbito da acessibilidade e mais do que isso, o papel
do jornalismo. A reorganização de informações, o modo como as in-
formações são ainda “jogadas” nos ambientes culturais, causando mui-
tas vezes a desinformação. A audiodescrição jornalística provou que é
possível sim, trabalhar um jornalismo de fato mais humano, visando os
direitos dessas pessoas. E mais do que isso, proporcionando o resgate
documental, uma informação além do pontual.

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Audiodescrição: práticas e reflexões

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Audiodescrição: práticas e reflexões

Sobre a organizadora
Daiana Stockey Carpes é jornalista, formada pela Universidade de
Santa Cruz do Sul (UNISC) e aluna do Programa de Pós-Graduação Mestrado
em Letras/UNISC.
O interesse pela área da acessibilidade na comunicação surgiu em
2011. Naquele ano, era de sua responsabilidade a edição do jornal do curso
de Ciências Contábeis da Unisc. Porém, havia um aluno cego, que não teria
acesso as informações visuais daquele impresso. Então, foi o elaborado e
criado um jornal em áudio, que continha as narrações das matérias e as des-
crições de todas as imagens do impresso.
A partir desse movimento, Daiana começou a pesquisar a acessi-
bilidade no jornalismo, pelo viés da audiodescrição. Em 2013, apresentou
o Projeto Experimental em Jornalismo e em 2014 defendeu a Monografia,
ambos trabalhos discutiram a temática do jornalismo e da audiodescrição.
A experiência adquirida nestas disciplinas, sob a mesma orientação do pro-
fessor Demétrio de Azeredo Soster, foi determinante para implantar o re-
curso laboratorialmente no curso de Jornalismo, com as disciplinas Jornalis-
mo de Revista e Produção em Mídia Impressa. Os acadêmicos matriculados
nestas disciplinas tiveram que repensar na maneira de fazer jornalismo
impresso para um público cego.
Também no ano de 2014, criou o site acessível Jornalismo em Au-
diodescrição (www.jornalismoemaudiodescricao), com conteúdos que pro-
movam a inclusão dos cegos. Neste mesmo ano, o portal ficou em segundo
lugar no Prêmio Nacional de Acessibilidade Todos@Web, na categoria ins-
titucionais / entretenimento / cultura / educação / blogs. O concurso foi
promovido pelo Centro de Estudos sobre Tecnologias Web (Ceweb.br) e o
Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), em parceria com o W3C Brasil.

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