Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Phil Fingerprint/Random, 1979 universitárias, e se deixa guiar por uma única linha em
Tinta de carimbo sobre papel suas leituras. Roquentin se justifica: “As leituras do Autodi-
101,6 × 66 cm
Foto de Al Mozell, data sempre me desconcertam. De repente voltam à minha
cortesia Pace Gallery memória os nomes dos últimos autores cujas obras consul-
tou: Lambert, Langlois, Larbalétrier, Lastex, Lavergne. É uma
iluminação; entendi o método do Autodidata: instruiu-se por
3. Ibidem, p. 48. ordem alfabética.”3 A formação enciclopédica pelo alfabeto
tem muito a ver com a que se depreende durante uma visita
de turista maravilhado pelas aleias dum cemitério de cele-
bridades, como o famoso Père-Lachaise, em Paris. Na lógica
planejada e na anarquia do acaso, sobram e faltam cadáveres.
Aliás, em virtude de a enumeração das pessoas públicas
seguir obrigatoriamente a ordem alfabética, o nome próprio
é sempre soberano nas enciclopédias, a não ser que se siga o
modelo da China, que a descontrói. A enciclopédia chinesa
foi apresentada e descrita por Jorge Luis Borges e endossada
por Michel Foucault em As palavras e as coisas. No texto de
Borges se lê que “os animais se dividem em: a) pertencen-
tes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) lei-
tões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade”, e assim
por diante. Para o francês Michel Foucault, “a monstruosi-
dade que Borges faz circular na sua enumeração consiste
[…] em que o próprio espaço comum dos encontros se acha
arruinado. O impossível não é a vizinhança das coisas, é o
4. Michel Foucault, As palavras e as lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se.”4 A ordem do
coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. x.
alfabeto (a, b, c, d…), que sempre serviu para ordenar a abun-
dância de seres humanos e, no caso, de animais diferentes,
se encontra arruinada na enciclopédia chinesa de que fala
Borges. Os seres circunvizinhos se organizam pelo disparate.
remissões e fragmentação
Dentre as muitas enciclopédias recentes, contamos no Brasil
com os 20 volumes e as 11.565 páginas da Enciclopédia
Mirador Internacional. Foi publicada em 1975, tendo sido
5. Coeditores: Alberto Passos Antônio Houaiss o seu editor-chefe.5 Os direitos pertencem à
Guimarães, Antônio Geraldo da Cunha,
Francisco de Assis Barbosa, Otto Maria
Encyclopaedia Britannica do Brasil. A menção à data de publi-
Carpeaux, Carlos Francisco de Freitas cação não é gratuita. Muitos dos assessores editoriais (redato-
Casanovas. Coordenador editorial:
Paulo Geiger.
res) eram jornalistas ou jovens artistas e intelectuais – com ou
sem formação universitária – que estavam sendo perseguidos
pelo regime militar de exceção instalado no Brasil em 1964, ou
que tinham sido privados do emprego público por defesa de
pensamento revolucionário ou por atividade dita subversiva.
12
flaubert e maupassant
A oscilação entre a observação atenta da figura na esfera
pública, que adestra a percepção e a sensibilidade do escri-
tor, e a livre invenção do protagonista no universo privado,
em que a sensibilidade do criador de ficção se exercita obs-
tinadamente na busca da expressão artística – em suma, a
arte do romance no seu nascimento e apogeu –, se encon-
tram magnificamente apreendidas num pequeno e precioso
volume de anotações críticas de Ezra Pound, intitulado abc
da literatura. Ele narra a seguinte anedota:
parêntese
Por outro lado, acentua Virginia, a imaginação do roman-
cista “é uma faculdade que não custa a se cansar e precisa
revigorar-se em repouso”. A observação extraída do já citado
ensaio sobre “A arte da biografia” nos remete à dupla pisada
do artista, a que se refere Ezra Pound em sua anedota sobre
Flaubert, e serve para alertar sobre a apatia e o silêncio que
intranquilizam o romancista no momento em que a imagi-
nação criadora entra em ritmo de desânimo. Para retirá-la
da letargia, de que se alimenta a imaginação combalida do
artista? Virginia sabe que não será da poesia nem da ficção
menores, que só entorpecem e corrompem a invenção que
se quer destemida e forte. Por essa razão é que a notável
romancista se arrisca a tirar da cartola o coelhinho que traz a
24. Como exemplo delas, lista Virginia, resposta justa: a boia de salvação do romancista em repouso
seguindo as pegadas de Flaubert/Pound:
“Onde e quando viveu o homem real; que
virá das informações autênticas24 a partir das quais é feita a
aparência tinha; se ele usava botas com boa biografia. Explica-se:
cadarços ou com elástico nos lados; quem
eram suas tias, seus amigos; como ele
assoava o nariz; a quem amou, e como; e, Contando-nos os fatos verídicos, peneirando na grande massa
quando veio a morrer, morreu ele em sua
os pormenores e modelando o todo para que percebamos seu
cama, como cristão, ou…”. In: Virginia
Woolf, op. cit., “A arte da biografia”, p. 401. contorno, o biógrafo faz mais para estimular a imaginação [do
24
ferida narcísica
Northrop Frye é quem primeiro põe o dedo embaraçoso
da teoria dos gêneros na ferida narcísica sofrida pelo pro-
tagonista do romance na história da literatura universal.
A instituição tardia do gênero romance (chamado não por
casualidade de novel em inglês) reafirma, antes de mais
nada, o descrédito por que passa o mito como moldura da
história narrada. Põe-se no seu lugar a biografia como traba-
lhada pela enciclopédia. Como consequência direta, o novo
gênero literário contesta o herói como ser divino ou semidi-
vino, tal como vinha sendo propagado pela literatura antiga
até a épica renascentista.
O herói clássico tradicional é substituído pelo mari-
nheiro desconhecido cuja caravela naufraga nas costas
do Novo Mundo. Sobrevivente solitário, o protagonista do
romance Robinson Crusoé encontra abrigo numa ilha deserta,
onde tem de reconstruir, com a precariedade das mãos
demasiadamente humanas, todo o ambiente civilizatório
que o desastre marítimo lhe rouba. No capítulo dedicado
ao romance de Defoe em A ascensão do romance, observa o
crítico Ian Watt: “Ele [Robinson] era responsável pela deter-
minação de seus papéis econômico, social, político e reli-
25. Ian Watt, A ascensão do romance. gioso”.25 O planeta desaparece por acidente marítimo e rea-
Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Cia.
das Letras, 2010, p. 64.
parece milagrosamente pelos olhos e as mãos de Robinson.
O mundo (nosso conhecido) é construção dele, exclusiva-
mente dele.
26. Esclareça-se que, segundo Frye,
Em Anatomia da crítica, no capítulo “Teoria dos modos”,
“elevado” e “baixo” não têm conotações Frye demonstra como, na sucessão histórica das obras artís-
de valor comparativo, mas são
puramente diagramáticos. Significam
ticas, o protagonista passa gradativa e substantivamente
apenas que a ficção europeia vem do “modo imitativo elevado” (high mimetic) para o “modo
“descendo constantemente seu centro
de gravidade” e, nos últimos 100 anos,
imitativo baixo” (low mimetic),26 e ainda esclarece: “Se não
“tendeu a ser crescentemente do modo for superior aos outros homens, nem ao seu ambiente, o
irônico”, já que o herói passa a ser
“inferior em poder ou inteligência a
herói é um de nós: respondemos a uma percepção de sua
nós mesmos”. humanidade comum e exigimos do poeta os mesmos
27. Northrop Frye, Anatomia da crítica.
Trad. Marcus de Martini. São Paulo:
cânones de probabilidade que encontramos em nossa pró-
É Realizações, 2014, p. 146. pria experiência”.27
25