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AS PAIXÕES DA ALMA

PRIMEIRA PARTE

DAS PAIXÕES EM GERAL


E OCASIONALMENTE
DE TODA A NATUREZA DO HOMEM
Art. 1. O que é paixão em relação a agente e o paciente sejam amiúde
um sujeito é sempre ação a qualquer muito diferentes, a ação e a paixão não
outro respeito. deixam de ser sempre uma mesma
coisa com dois nomes, devido aos dois
Nada há em que melhor apareça sujeitos diversos aos quais podemos
quão defeituosas são as ciências que relacioná-la.
recebemos dos antigos do que naquilo
que escreveram sobre as paixões; pois, Art. 2. Que para conhecer as paixões
embora seja esta uma matéria cujo da alma cumpre distinguir entre as
conhecimento foi sempre muito procu- suas funções e as do corpo.
rado, e ainda que não pareça ser das
mais difíceis, porquanto cada qual, Depois, também considero que não
sentindo-as em si próprio, não neces- notamos que haja algum sujeito que
sita tomar alhures qualquer observa- atue mais imediatamente contra nossa
ção para lhes descobrir a natureza, alma do que o corpo ao qual está
todavia o que os antigos delas ensina- unida, e que, por conseguinte, devemos
ram é tão pouco, e na maior parte tão pensar que aquilo que nela é uma pai-
pouco crível, que não posso alimentar xão é comumente nele uma ação; de
qualquer esperança de me aproximar modo que não existe melhor caminho
da verdade, senão distanciando-me dos para chegar ao conhecimento de nos-
caminhos que eles trilharam. Eis por sas paixões do que examinar a dife-
que serei obrigado a escrever aqui do rença que há entre a alma e o corpo, a
mesmo modo como se tratasse de uma fim de saber a qual dos dois se deve
matéria que ninguém antes de mim atribuir cada uma das funções existen-
houvesse tocado; e, para começar, con- tes em nós.
sidero que tudo quanto se faz ou acon-
tece de novo é geralmente chamado
pelos filósofos uma paixão em relação Art. 3. Que regra se deve seguir para
ao sujeito a quem acontece, e uma esse efeito.
ação com respeito àquele que faz com
que aconteça 1 ; de sorte que, embora o E nisso não se encontrará grande
dificuldade, se se tomar em conta que
1
"Ora, sempre julguei que é uma e mesma coisa tudo o que sentimos existir em nós, e
que é denominada ação quando a relacionamos ao que vemos existir também nos corpos
termo de onde ela procede e paixão com respeito ao
termo no qual ela é recebida." (A Hyperaspistes, inteiramente inanimados, só deve ser
agosto de 1641.) atribuído ao nosso corpo; e, ao contra-
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rio, que tudo o que existe em nós, e que sos corpos dependem da alma 3 , ao
não concebemos de modo algum como passo que se devia pensar, ao contrá-
passível de pertencer a um corpo, deve rio, que a alma só se ausenta, quando
ser atribuído à nossa alma 2 . se morre, porque esse calor cessa, por-
que os órgãos que servem para mover
Art. 4. Que o calor e o movimento dos o corpo se corrompem.
membros procedem do corpo, e os
pensamentos, da alma. Art. 6. Que diferença há entre um
corpo vivo e um corpo morto.
Assim, por não concebermos que o
corpo pense de alguma forma, temos
razão de crer que toda espécie de pen- A fim de evitarmos, portanto, esse
samento em nós existente pertence à erro, consideremos que a morte nunca
alma; e, por não duvidarmos de que sobrevêm por culpa da alma, mas
haja corpos inanimados que podem somente porque alguma das principais
mover-se de tantas diversas maneiras partes do corpo se corrompe; e julgue-
que as nossas, ou mais do que elas, e mos que o corpo de um homem vivo
que possuem tanto ou mais calor (o difere do de um morto como um reló-
que a experiência mostra na chama, gio, ou outro autômato (isto é, outra
que possui, ela só, muito mais calor e máquina que se mova por si mesma),
movimento do que qualquer de nossos quando está montado e tem em si o
membros), devemos crer que todo o princípio corporal dos movimentos
calor e todos os movimentos em nós para os quais foi instituído, com tudo o
existentes, na medida em que não
que se requer para a sua ação, difere
dependem do pensamento, pertencem
do mesmo relógio, ou outra máquina,
apenas ao corpo.
quando está quebrado e o princípio de
seu movimento pára de agir 4 .
Art. 5. Que é erro acreditar que a alma
dá o movimento e o calor ao corpo. Art. 7. Breve explicação das partes do
corpo e de algumas de suas funções.
Por esse meio, evitaremos um erro
considerável em que muitos caíram, de Para tornar isso mais inteligível,
sorte que o reputo a principal causa explicarei, em poucas palavras, a
que até agora impediu que se pudessem forma toda de que se compõe a má-
explicar bem as paixões e as outras 3
A alma está implantada na máquina do corpo,
coisas pertencentes à alma. Consiste mas não é seu princípio de formação nem conserva-
em ter-se imaginado, vendo-se que ção. "Trata-se simplesmente de íntima associação
da alma com o todo e as partes da máquina já fei-
todos os corpos mortos são privados ta. . . Assim a natureza física realizaria mecanica-
de calor e depois de movimento, que mente uma máquina muito complicada, com dispo-
era a ausência da alma que fazia cessar sições tais que uma alma poderia de alguma forma
calçá-la, sem que tenha tido algo com a fabricação
esses movimentos e esse calor; e assim e a imbricação de suas partes." (Guéroult, II, pág.
se julgou, sem razão, que o nosso calor 181.)
4
natural e todos os movimentos de nos- No caso do homem, a deterioração da máquina
não conduz apenas à sua destruição, mas também à
separação da alma e do corpo. A doutrina da união
2
Lembrança do princípio da distinção das subs- da alma e do corpo na separação exclui, assim, radi-
tâncias enunciado na Meditação Sexta. calmente todo animismo ou vitalismo.
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quina de nosso corpo 5 . Não há quem dam de que todas as veias e artérias do
já não saiba que existem em nós um corpo sejam como regatos por onde o
coração, um cérebro, um estômago, sangue não pára de correr muito rapi-
músculos, nervos, artérias, veias e coi- damente, começando seu curso na
sas semelhantes; sabe-se também que cavidade direita do coração pela veia
os alimentos ingeridos descem ao estô- arteriosa, cujos ramos se espalham por
mago e às tripas, de onde o seu suco, todo o pulmão e se juntam aos da arté-
correndo para o fígado e para todas as ria venosa, pelo qual ele passa do pul-
veias, se mistura com o sangue que mão ao lado esquerdo do coração; de-
elas contêm, aumentando, por esse pois segue daí para a grande artéria,
meio, a sua quantidade 6 . Aqueles que cujos ramos, esparsos pelo resto do
ouviram falar, por pouco que seja, da corpo, se unem aos ramos da veia que
medicina sabem, além disso, como se levam de novo o mesmo sangue à cavi-
compõe o coração e como todo o san- dade direita do coração, de sorte que
gue das veias pode facilmente correr essas duas cavidades são como eclu-
da veia cava para seu lado direito, e sas, através de cada uma das quais
daí passar ao pulmão pelo vaso que passa todo o sangue em cada volta que
denominamos veia arteriosa, depois faz pelo corpo. Demais, sabe-se que
retornar do pulmão ao lado esquerdo todos os movimentos dos membros
do coração pelo vaso denominado dependem dos músculos e que estes
artéria venosa 7 , e, enfim, passar daí músculos se opõem uns aos outros, de
para a grande artéria, cujos ramos se tal modo que, quando um deles se
espalham pelo corpo inteiro. E mesmo
encolhe, atrai para si a parte do corpo
todos os que não foram cegados intei-
a que está ligado, o que provoca ao
ramente pela autoridade dos antigos, e
que quiseram abrir os olhos para exa- mesmo tempo o alongamento do mús-
minar a opinião de Harvey no tocan- culo que lhe é oposto; depois, se acon-
te à circulação do sangue8, não duvi- tece numa outra vez que este último se
encolha, leva o primeiro a alongar-se e
5
puxa para si a parte a que eles estão
Sendo possível (arts. 3, 4, 5) e indispensável à ligados. Enfim, sabe-se que todos esses
inteligência das paixões a distinção entre as funções
que dependem do corpo e as funções que dependem movimentos dos músculos, assim
da alma, Descartes irá agora descrever sucessiva- como todos os sentidos, dependem dos
mente as funções essenciais de um e de outro. Até o
§ 17, as funções do corpo.
nervos, que são como pequenos fios ou
6
Cf. Tratado do Homem (Plêiade, págs. 808-809): como pequenos tubos que procedem,
devido à fermentação que se produz no estômago, todos, do cérebro, e contêm, como ele,
"as partes mais sutis" dos alimentos formam o
quilo, que é levado para o fígado, onde sofre a ação
certo ar ou vento muito sutil que cha-
da hematose. "Este licor aí se sutiliza. . . adquire mamos espíritos animais9.
cor e toma a forma do sangue. . . Ora, este sangue,
assim contido nas veias, só tem uma única passa-
gem manifesta por onde possa sair delas, a saber, a Art. 8. Qual é o princípio de todas
que conduz à concavidade direita do coração."
7
Veia arteriosa: artéria pulmonar; artéria venosa: essas funções.
veia pulmonar.
8
Descartes recusava atribuir a ação do coração a Mas não se sabe comumente de que
uma contração muscular, mas aderia inteiramente à
teoria circulatória de Harvey. "A opinião do Sr. forma esses espíritos animais e nervos
Descartes sobre a circulação do sangue", relata contribuem para os movimentos e os
Baillet, "granjeara-lhe grande crédito entre os dou- sentidos, nem qual é o princípio corpo-
tos e contribuíra maravilhosamente para restabe-
lecer nesta matéria a reputação de William Harvey,
9
que se vira maltratada por diversos médicos dos O Tratado do Homem dirá: "Um certo vento
Países-Baixos, a maioria dos quais ignorante ou muito sutil, ou melhor, uma chama muito viva e
obstinada em antigas máximas de suas faculdades." muito pura".
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ral que os faz agir; eis por que, embora mente, em todas as artérias e veias,
já tenha tratado algo do assunto em mediante o que leva o calor que adqui-
outros escritos1 °, não deixarei de dizer re no coração a todas as outras partes
aqui sucintamente que, enquanto vive- do corpo e lhes serve de alimento.
mos, há um contínuo calor em nosso
coração, que é uma espécie de fogo aí Art. 10. Como se produzem no cérebro
mantido pelo sangue das veias, e que os espíritos animais.
esse fogo é o princípio corporal de
todos os movimentos de nossos mem- Mas o que há nisso de mais notável
bros1 \ é que todas as partes mais vivas e mais
sutis do sangue que o calor rarefez no
Art. 9. Como se faz o movimento do coração entram incessantemente em
coração12. grande quantidade nas cavidades do
cérebro. E a causa que as conduz para
O seu primeiro efeito é dilatar o san- aí, de preferência a qualquer outro
gue que enche as cavidades do cora- lugar, é que todo sangue saído do cora-
ção; e isso é causa de que esse sangue, ção pela grande artéria toma seu curso
tendo necessidade de ocupar maior em linha reta para esse sítio, e que, não
espaço, passe com impetuosidade da podendo entrar todo, porque o lugar
cavidade direita para a veia arterial, e possui apenas passagens muito estrei-
da esquerda para a grande artéria; tas, só passam as suas partes mais agi-
depois, cessando essa dilatação, torne tadas e mais sutis, enquanto o resto se
incontinenti a entrar da veia cava para espalha por todos os outros locais do
a cavidade direita do coração, e da corpo. Ora, tais partes do sangue
artéria venosa para a esquerda; pois há muito sutis compõem os espíritos ani-
pequenas peles nas entradas desses mais1 3 ; e não precisam, para tal efeito,
quatro vasos, dispostas de tal modo receber qualquer modificação no cére-
que fazem com que o sangue não possa bro, exceto a de serem separadas das
penetrar no coração senão pelas duas outras partes do sangue menos sutis1 4 ;
últimas, nem sair dele exceto pelas pois o que denomino aqui espíritos não
duas outras. O novo sangue que entra são mais do que corpos e não têm
no coração é aí imediatamente rarefei- qualquer outra propriedade, exceto a
to, do mesmo modo que o precedente; de serem corpos muito pequenos e se
é só nisso que consiste a pulsação ou o
batimento do coração e das artérias; 13
Em Galeno (De Usu Partium), os espíritos vitais
de sorte que esse batimento se reitera chegam pela carótida aos ventrículos do cérebro,
tantas vezes quantas entra sangue onde são transformados em espíritos animais e
novo no coração. É também só isso disponíveis para a função sensório-motora. Em
Descartes, a distinção clássica entre espíritos ani-
que dá ao sangue o seu movimento, e o mais (elaborados no cérebro), espíritos vitais (saí-
faz correr, muito rápida e incessante- dos do coração) e espíritos naturais (produzidos no
fígado) é abolida. "Não mais há entre essas três for-
mas de espíritos diferença qualitativa real, mas
1 somente uma diferença de calibre e mobilidade
1
° Nomeadamente na quinta parte do Discurso.
' "Uma observação errónea lhe informa que o entre elementos mais ou menos refinados." (Mes-
coração é o mais quente de todos os órgãos. Tem, nard, "Espirit de la Physiologie Cartésienne",
portanto, um ponto de partida: o coração é um foco Archives de Philosophie, vol. XIII.)
de calor, deve esquentar e dilatar o sangue que o ' 4 "E assim, sem outro preparo ou mudança, exce-
atravessa." (Osório de Almeida, "Descartes Physio- to que elas são separadas das mais grosseiras e que
logiste". Eludes Cartésiennes, Hermann, 1937.) retêm ainda a extrema velocidade que o calor do
12 coração lhes deu, deixam de ter a forma do sangue
Cf. a quinta parte do Discurso e Gilson, Le
Role de la Pensée Médiévale dans la Formalion du e se chamam espíritos animais." (Tratado do
Svstème Cartésien, cap. 2. Homem.)
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moverem muito depressa, assim como acham, a saber, quando não encon-
as partes da chama que sai de uma tram passagens abertas para sair, e às
tocha; de sorte que não se detêm em vezes correndo para o músculo oposto.
nenhum lugar e, à medida que entram Tanto mais que há pequenas aberturas
alguns nas cavidades do cérebro, tam- em cada um desses músculos por onde
bém saem outros pelos poros existentes tais espíritos podem correr de um para
na sua substância, poros que os condu- 0 outro e que estão de tal modo dispos-
zem aos nervos e daí aos músculos, tas que — quando os espíritos vindos
por meio dos quais movem o corpo em do cérebro para um deles possuem, por
todas as diversas maneiras pelas quais pouco que seja, mais força do que os
esse pode ser movido1 5 . que vão para o outro 1 6 — abrem
todas as entradas por onde os espíritos
Art. 11. Como se fazem os movimen- do outro músculo podem passar para
tos dos músculos. ele e fecham, ao mesmo tempo, todas
por onde os espíritos desse podem pas-
Pois a única causa de todos os sar ao outro; dessa maneira, todos os
movimentos dos membros é que os espíritos antes contidos nesses dois
músculos se encolhem e seus opostos músculos se reúnem num deles mui
se alongam, como já foi dito; e a única prontamente e assim o inflam e o enco-
causa que faz um músculo encolher-se lhem, enquanto o outro se alonga e se
mais do que seu oposto é que recebe, distende.
por pouco que seja, mais espírito do
cérebro do que o outro. Não que os Art. 12. Como os objetos de fora
espíritos que vêm imediatamente do atuam sobre os órgãos dos sentidos.
cérebro bastem por si sós para move-
rem tais músculos, mas determinam os Resta ainda saber as causas que
outros espíritos que já existem nesses levam os espíritos a não correrem sem-
dois músculos a saírem todos mui pre da mesma forma do cérebro para
prontamente de um deles e a passarem os músculos e a se dirigirem às vezes
ao outro; dessa maneira, aquele de mais a uns do que a outros1 7 . Pois,
onde saem torna-se mais longo e mais afora a ação da alma, que é verdadei-
lasso e aquele no qual entram, sendo ramente em nós uma dessas causas,
rapidamente inflado por eles, se enco- como direi mais abaixo, há ainda duas
lhe e atrai o membro a ele ligado. E outras que não dependem senão do
isso é fácil de conceber, desde que se corpo e que é preciso observar. A pri-
saiba que pouquíssimos espíritos ani- meira consiste na diversidade dos
mais vêm continuamente do cérebro movimentos excitados nos órgãos dos
para cada músculo, mas que em cada sentidos por seu objetos, a qual já foi
um há sempre grande quantidade de por mim assaz amplamente explicada
outros encerrados no mesmo músculo na Dióptrica; mas, para que os que
que nele se movem muito depressa, às 16
vezes girando apenas no lugar onde se "Os espíritos", dirá Descartes no artigo seguin-
te, "nem sempre correm do cérebro para os múscu-
los da mesma maneira." Esta diferença na força de
' 5 Cumpre imaginar o encéfalo "como uma espé- lançamento comanda a regulamentação dos espíri-
cie de reservatório central, o ventrículo, onde vem tos já contidos nos músculos e, por esse meio, os
abrir-se a tubagem dos nervos destinada a engolfar movimentos musculares.
17
todos os espíritos disponíveis: estes filtram-se atra- Por que esta diversidade no escoamento dos
vés dos poros do tecido coroidiano, que reveste espíritos? Primeira causa (arts. 11 e 12): os movi-
como um dossel o ventrículo". (Mesnard, art. cil.. mentos produzidos no cérebro por ocasião das
pág. 207.) impressões sensíveis.
232 DESCARTES

virem o presente escrito não tenham disso, é fácil conceber que os sons, os
necessidade de ler outros, repetirei odores, os sabores, o calor, a dor, a
aqui que há três coisas a considerar fome, a sede e, em geral, todos os obje-
nos nervos, a saber: a sua medula, ou tos, tanto dos nossos demais sentidos
substância interior, que se estende na externos como dos nossos apetites
forma de pequenos filetes a partir do internos, excitam também alguns mo-
cérebro, onde toma origem, até as vimentos em nossos nervos, que se
extremidades dos outros membros aos transmitem por meio deles até o cére-
quais esses filetes estão ligados; depois bro; e além de esses diversos movimen-
as peles que os envolvem e que, sendo
tos do cérebro fazerem com que a alma
contíguas com as que envolvem o cére-
bro, compõem pequenos condutos em tenha diversos sentimentos, podem
que ficam encerrados esses pequenos também fazer, sem ela1 9 , que os espíri-
filetes; depois, enfim, os espíritos ani- tos sigam mais para certos músculos
mais que, levados por esses mesmos do que para outros, e, assim, que
condutos do cérebro até os músculos, movam nossos membros, o que prova-
são a causa de tais filetes permane- rei aqui somente através de um exem-
cerem aí inteiramente livres e estendi- plo. Se alguém avança rapidamente a
dos, de tal modo que a menor coisa mão contra os nossos olhos, como
que mova a parte do corpo à qual se para nos bater, embora saibamos tra-
liga a extremidade de algum deles leva tar-se de nosso amigo, que faz isso só
a mover, pelo mesmo meio, a parte do por brincadeira e tomará muito cuida
cérebro de onde vem, tal como ao se do para não nos causar nenhum mal,
puxar uma das pontas de uma corda temos todavia muita dificuldade em
move-se a outra 18 . impedir que se fechem; isso mostra que
não é por intermédio de nossa alma
Art. 13. Que esta ação dos objetos de que eles se fecham, pois é contra a
fora pode conduzir diversamente os nossa vontade, a qual é, se não a única,
espíritos aos músculos. ao menos a sua principal ação; assim
porque a máquina de nosso corpo é de
Expliquei também na Dióptrica tal modo composta que o movimento
como todos os objetos da visão comu- dessa mão contra os nossos olhos exci-
nicam-se conosco apenas porque ta outro movimento em nosso cérebro,
movem localmente, por intermédio dos
corpos transparentes que existem entre 0 qual conduz aos músculos os espíri-
eles e nós, os pequenos filetes dos ner- tos animais que fazem baixar as
vos ópticos que se acham no fundo de pálpebras 20 .
nossos olhos, e em seguida os lugares
do cérebro de onde provêm esses ner-
Art. 14. Que a diversidade existente
vos; que os movem, digo eu, de tantas
maneiras diversas que nos fazem ver entre os espíritos também pode diversi-
diversidades nas coisas, e que não são Jicar-lhes o curso.
imediatamente os movimentos que se 19
Há, portanto, dois circuitos possíveis: a) movi-
efetuam no olho, mas sim os que se mento sensorial-sentimento da alma-ação; b) movi-
efetuam no cérebro, que representam mento sensorial-ação automática. O art. 16 especifi-
para a alma esses objetos. A exemplo cará o funcionamento desta ação automática.
20
Sobre a teoria cartesiana do reflexo, consultar o
livro indispensável de Canguilhem: La Formation
18
Cf. Meditação Sexta, § 35. du Concept de Réflexe. . .
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A outra causa 21 que serve para con- lido mais de certas partes do que de
duzir diversamente os espíritos ani- outras, porque os nervos e os músculos
mais aos músculos é a agitação desi- que respondem a essas partes o pres-
gual desses espíritos e a diversidade de sionam ou agitam mais, e porque, con-
suas partes. Pois, quando algumas de forme a diversidade das partes de onde
suas partes são mais grossas e mais vem mais, dilata-se diversamente no
agitadas do que as outras, passam coração, e em seguida produz espíritos
mais à frente em linha reta nas cavida- dotados de qualidades diferentes.
des e nos poros do cérebro, e por esse Assim, por exemplo, o que provém da
meio são levadas a músculos diferentes parte inferior do fígado, onde está o fel,
daqueles para onde iriam se tivessem dilata-se no coração de maneira dife-
menos força. rente da do sangue oriundo do baço, e
este de modo diferente do do prove-
Art. 15. Quais são as causas de sua niente das veias dos braços ou das per-
diversidade. nas, e enfim este diferentemente do
suco dos alimentos, quando, tendo de
E essa desigualdade pode proceder novo saído do estômago e dos intesti-
das diversas matérias de que se com- nos, passa rapidamente pelo fígado até
põem, como se vê nos que beberam o coração.
muito vinho cujos vapores, entrando
prontamente no sangue, sobem do Art. 16. Como todos os membros
coração ao cérebro, onde se convertem podem ser movidos pelos objetos dos
em espíritos que, sendo mais fortes e sentidos e pelos espíritos sem a ajuda
mais abundantes do que aqueles que aí da alma.
se encontram comumente, são capazes
de mover o corpo de muitas maneiras Enfim, é preciso notar que a má-
estranhas. Esta desigualdade dos espí- quina de nosso corpo é de tal modo
ritos pode também proceder das diver- composta que todas as mudanças que
sas disposições do coração, do fígado, ocorrem no movimento dos espíritos
do estômago, do baço e de todas as ou- podem levá-los a abrir alguns poros do
tras partes que contribuem para a sua cérebro mais do que outros, e recipro-
produção; pois cumpre principalmente camente que, quando algum desses
observar aqui certos pequenos nervos poros está pouco mais ou menos aber-
insertos na base do coração, que ser- to que de costume pela ação dos ner-
vem para alargar e estreitar as entra- vos que servem aos sentidos 22 , isso al-
das dessas concavidades, por meio do tera algo no movimento dos espíritos e
que o sangue, dilatando-se nelas mais determina que sejam conduzidos aos
ou menos fortemente, produz espíritos músculos destinados a mover o corpo
diversamente dispostos. É preciso
notar também que, embora o sangue 22
O Tratado do Homem descreve com maior pre-
que penetra no coração provenha de cisão este mecanismo. "Se o fogo A se encontra
todos os outros lugares do corpo, toda- perto do pé B", as partes do fogo estirarão um nervo
e abrirão "no mesmo instante a entrada do poro
via acontece muitas vezes ser ele impe- contra o qual este pequeno fio termina. . . Ora,
estando assim aberta a entrada do poro, os espíritos
animais da concavidade entram nele, e são levados
2 por ele, em parte aos músculos que servem para reti-
' Segunda causa: o efeito de lançamento variável
segundo a desigualdade dos espíritos, podendo esta rar este pé deste fogo, em parte aos que servem para
desigualdade provir de causas diversas que o artigo volver os olhos e a cabeça a fim de olhá-lo, e em
seguinte especificará. A terceira causa: a ação da parte aos que servem para adiantar as mãos e do-
alma (cf. art. 12) será analisada nos arts. 34-36. brar todo o corpo para defendê-lo."
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da forma como ele é comumente movi- Art. 18. Da vontade.


do por ocasião de tal ação; de sorte
que todos os movimentos que fazemos Nossas vontades são, novamente, de
sem que para isso a nossa vontade con- duas espécies; pois umas são ações da
tribua (como acontece muitas vezes alma que terminam na própria alma,
quando respiramos, andamos, come- como quando queremos amar a Deus
mos e, enfim, quando praticamos todas ou, em geral, aplicar nosso pensa-
mento a qualquer objeto que não é
as ações que são comuns a nós e aos
material; as outras são ações que ter-
animais) não dependem senão da con-
minam em nosso corpo, como quando,
formação de nossos membros e do pelo simples fato de termos vontade de
curso que os espíritos, excitados pelo passear, resulta que nossas pernas se
calor do coração, seguem natural- mexam e nós caminhemos.
mente no cérebro, nos nervos e nos
músculos, tal como o movimento de
Art. 19. Da percepção.
um relógio é produzido para exclusiva
força de sua mola e pela forma de suas
Nossas percepções também são de
rodas.
duas espécies: umas têm a alma como
causa, outras o corpo2 4 . As que têm a
Art. 17. Quais são as funções da alma como causa são as percepções de
alma. nossas vontades e de todas as imagina-
ções ou outros pensamentos que dela
Depois de ter assim considerado dependem; pois é certo que não pode-
todas as funções que. pertencem so- ríamos querer qualquer coisa que não
mente ao corpo, é fácil reconhecer que percebêssemos pelo mesmo meio que a
nada resta em nós que devemos atri- queremos; e, embora com respeito à
buir à nossa alma, exceto nossos nossa alma seja uma ação o querer al-
pensamentos, que são principalmente guma coisa, pode-se dizer que é tam-
de dois géneros, a saber: uns são as bém nela uma paixão o perceber que
ações da alma, outros as suas paixões. ela quer; todavia, dado que essa per-
Aquelas que chamo suas ações são cepção e essa vontade são efetivamente
todas as nossas vontades, porque senti- uma mesma coisa2 6 , a sua denomina-
mos que vêm diretamente da alma e ção faz-se sempre pelo que é mais
parecem depender apenas dela; do nobre, e por isso não se costuma cha-
mesmo modo, ao contrário, pode-se má-la paixão, mas apenas ação.
em geral chamar suas paixões toda
espécie de percepções ou conheci-
Art. 20. Das imaginações e outros
mentos existentes em nós, porque mui-
tas vezes não é nossa alma que os faz pensamentos que são formados pela
tais como são, e porque sempre os re- alma.
cebe das coisas por elas representa-
das 2 3 Quando nossa alma se aplica a ima-
24
Arts. 19-20: a) as percepções que têm a alma
23
Trata-se da primeira definição das paixões, como causa.
25
muito geral, pois compreende todas as percepções e "Não poderíamos querer coisa alguma sem
conhecimentos, isto é, tudo o que, na alma, não tem saber que a queremos, nem sabê-lo a não ser por
a alma como única origem. A partir daí, Descartes, uma ideia; mas não afirmo de modo algum que esta
por distinções sucessivas, irá delimitar as paixões ideia seja diferente da própria ação." (Cartas, a
no sentido estrito. Mersenne, 28 de julho de 1641.)
AS PAIXÕES DA ALMA 235

ginar alguma coisa que não existe2 6 , mesmo a nada 29 . Ora, ainda que algu-
coino a representar um palácio encan- mas dessas imaginações sejam paixões
tado ou uma quimera, e também quan- da alma, tomando a palavra na sua
do se aplica a considerar algo que é mais própria e mais perfeita significa-
somente inteligível e não imaginável, ção, e ainda que possam ser todas
por exemplo a sua própria natureza, as assim denominadas, se se tomar o
termo em uma acepção mais geral,
percepções que tem dessas coisas de-
todavia, posto que não têm uma causa
pendem principalmente da vontade que tão notável e tão determinada como as
a leva a percebê-las; eis por que se cos- percepções que a alma recebe por
tuma considerá-las como ações mais intermédio dos nervos, e parecem ser
do que como paixões2 7 . apenas a sombra e a pintura destas,
antes que as possamos distinguir bem
Art. 21. Das imaginações que só têm cumpre considerar a diferença que há
por causa o corpo. entre estas outras.

Entre as percepções que são causa- Art. 22. Da diferença que existe entre
das pelo corpo, a maior parte depende as outras percepções.
dos nervos; mas há também algumas
que deles não dependem, e que se cha- Todas as percepções que ainda não
mam imaginações 28 , como essas de expliquei vêm à alma por intermédio
que acabo de falar, das quais, não obs- dos nervos 30 , e existe entre elas essa
tante, diferem pelo fato de nossa vonta- diferença pelo fato de relacionarmos
umas aos objetos de fora, que ferem
de não se empenhar em formá-las, o nossos sentidos, e as outras ao nosso
que faz com que não possam ser incluí- corpo ou a algumas de suas partes, e
das no número das ações da alma, e outras enfim à nossa alma.
procedam apenas de que, sendo os
espíritos diversamente agitados, e en- Art. 23. Das percepções que relacio-
contrando os traços de diversas im- namos com os objetos que existem fora
pressões que precederam no cérebro, de nós.
tomem aí seu curso fortuitamente por As que referimos a coisas situadas
certos poros mais do que por outros. fora de nós, a saber, aos objetos de
Tais são as ilusões de nossos sonhos e nossos sentidos, são causadas, ao
também os devaneios a que nos entre- 29
Acerca desses devaneios, cf. Cartas, a Elisabeth,
gamos muitas vezes estando despertos, de 6 de outubro de 1645. Se o sonho não suprime o
quando nosso pensamento erra negli- pensamento, a imaginação aí se liberta da vontade:
não posso sair do sonho à minha vontade (é o corpo
gentemente sem se aplicar por si que é responsável pelo despertar). Permitindo às
representações resultantes do corpo viver uma vida
26 própria, o sonho não ameaça, todavia, o Cogito,
A imaginação voluntária ("se aplica") ou cria- visto que o pensamento passivo ainda acolhe aí as
dora também pertence a este grupo. imagens como imagens. Eis por que é sempre possí-
27
O campo das paixões propriamente ditas já está vel passar da imaginação-paixão à imaginação
reduzido: só "as percepções que têm o corpo como controlada. (Cf. Cartas, a Elisabeth, maio ou junho
causa" merecem verdadeiramente esse nome. de 1645.)
28 3
Arts. 21 a 27: b) as percepções que têm o corpo ° 2." as que dependem dos nervos. Podemos divi-
como causa. Distinguem-se: 1." as que não resultam di-las em três rubricas: a) percepções referidas aos
de uma mensagem sensorial e são produzidas pelo objetos (art. 23); b) às afecções do corpo (art. 24); c)
curso fortuito dos espíritos. à alma em particular (art. 25).
236 DESCARTES

menos quando nossa opinião não é julguemos que a primeira já existe em


falsa, por esses objetos que, provo- nós e que a outra, a seguinte, não está
cando alguns movimentos nos órgãos ainda em nós, mas no objeto que a
dos sentidos externos, os provocam causa.
também no cérebro por intermédio dos
nervos, os quais levam a alma a senti- Art. 25. Das percepções que relacio-
los. Assim, quando vemos a luz de um namos com a nossa alma32.
facho e ouvimos o som de um sino,
esse som e essa luz são duas ações
As percepções que se referem so-
diversas que, somente por excitarem
mente à alma são aquelas cujos efeitos
dois movimentos diversos em alguns
de nossos nervos, e por meio deles no se sentem como na alma mesma e de
cérebro, dão à alma dois sentimentos que não se conhece comumente nenhu-
diferentes, os quais relacionamos de tal ma causa próxima à qual possamos
modo aos objetos que supomos serem relacioná-las: tais são os sentimentos
sua causa, que pensamos ver o próprio de alegria, de cólera e outros seme-
facho e ouvir o sino, e não sentir unica- lhantes, que são às vezes excitados em
mente movimentos que procedem nós pelos objetos que movem nossos
deles 31 . nervos, e outras vezes também por ou-
tras causas. Ora, ainda que todas as
Art. 24. Das percepções que relacio- nossas percepções, tanto as que se refe-
namos com o nosso corpo. rem aos objetos que estão fora de nós
como as que se referem às diversas
As percepções que relacionamos afecções de nosso corpo, sejam verda-
com o nosso corpo ou com qualquer de deiramente paixões com respeito à
suas partes são as que temos da fome, nossa alma, quando tomamos esse
da sede e de nossos demais apetites termo em sua significação mais geral,
naturais, aos quais podemos juntar a todavia costuma-se restringi-lo a fim
dor, o calor e as outras afecções que de significar somente as que se relacio-
sentimos como nos nossos membros, e nam com a própria alma, e apenas
não como nos objetos que existem fora essas últimas é que me propus explicar
de nós: assim, podemos sentir ao aqui sob o nome de paixões da alma.
mesmo tempo, e por intermédio dos
mesmos nervos, a frieza da nossa mão
e o calor da chama de que ela se apro- Art. 26. Que as imaginações que de-
xima, ou então, ao contrário, o calor pendem apenas do movimento fortuito
da mão e o frio do ar a que está expos- dos espíritos podem ser também pai-
ta, sem que haja qualquer diferença xões tão verdadeiras quanto as percep-
entre as ações que nos fazem sentir o ções que dependem dos nervos3 3 .
quente ou o frio que existe em nossa
mão e as que nos fazem sentir aquele Resta notar aqui que exatamente as
que está fora de nós, a não ser que,
sucedendo uma dessas ações à outra, 32
Delimitação das paixões ao sentido restrito. Cf.
o "quadro sinótico" que resume essa classificação
no Ensaio sobre a Moral de Descartes, de Lívio Tei-
3
' As palavras importantes são "diversos" e "dife- xeira, pág. 151.
33
rentes". As percepções sensíveis nos informam não Retorno às "imaginações" descritas no art. 21.
só sobre a existência dos corpos, mas também sobre "Sombra e pintura" das percepções (a, b), elas não
as variedades' geométricas desses corpos, às quais podem imitar as percepções que se referem à alma
elas correspondem por intermédio da variedade dos (c). Razão suplementar para distinguir a terceira
movimentos que eles produzem no cérebro. categoria das duas primeiras.
AS PAIXÕES DA ALMA 237

mesmas coisas que a alma percebe por ções da alma, que referimos particular-
intermédio dos nervos lhe podem ser mente a ela, e que são causadas, manti-
também representadas pelo curso for- das e fortalecidas por algum
tuito dos espíritos, sem que haja outra movimento dos espíritos3 s .
diferença exceto que as impressões vin-
das ao cérebro por meio dos nervos Art. 28. Explicação da primeira parte
costumam ser mais vivas e mais dessa de/inição3 6 .
expressas do que as excitadas nele
pelos espíritos; o que me levou a dizer Podemos chamá-las percepções
no art. 21 que as últimas são como a quando nos servimos em geral desse
sombra e a pintura das outras. É preci- termo para significar todos os pensa-
so também notar que ocorre algumas mentos que não constituem ações da
vezes ser essa pintura tão semelhante à alma ou vontades, mas não quando o
coisa representada, que podemos enga- empregamos apenas para significar
nar-nos no tpcante às percepções que conhecimentos evidentes; pois a expe-
se relacionam aos objetos fora de nós, riência mostra que os mais agitados
ou então quanto às que se relacionam por suas paixões não são aqueles que
a algumas partes de nosso corpo, mas melhor as conhecem, e que elas perten-
não podemos equivocar-nos do mesmo cem ao rol das percepções que a
modo no tocante às paixões, por- estreita aliança entre a alma e o corpo
quanto são tão próximas e tão interio- torna confusas e obscuras 3 7 . Podemos
res à nossa alma que lhe é impossfvel também chamá-las sentimentos, por-
senti-las sem que» sejam verdadeira- que são recebidas na alma do mesmo
mente tais como ela as sente. Assim, modo que os objetos dos sentidos exte-
muitas vezes quando dormimos, e riores, e não são de outra maneira 38
mesmo algumas vezes estando acorda- conhecidos por ela; mas podemos cha-
dos, imaginamos tão fortemente certas
coisas que pensamos vê-las diante de 35
nós, ou senti-las no corpo, embora aí 36
Definição das paixões no sentido estrito.
Explicação da definição precedente do ponto de
não estejam de modo algum; mas, vista da alma. Em que podem as paixões ser deno-
ainda que estejamos adormecidos e minadas percepções (no sentido mais amplo do
termo), sentimentos (ou sensações), emoções?
sonhemos, não podemos sentir-nos 3
' Não pode haver, portanto, conhecimento claro
tristes ou comovidos por qualquer das paixões. Lívio Teixeira observa: "Ele emprega
outra paixão, sem que na verdade a para o conhecimento das paixões a forma gramati-
cal do comparativo destinada a exprimir a relativi-
alma tenha em si esta paixão 3 4 . dade desse conhecimento: o conhecimento me-
lhor. . . Existe, pois, o conhecimento melhor ou
pior das paixões, não o conhecimento perfeito
Art. 27. A definição das paixões da delas". (Op. cit., pág. 152.)
38
alma. "Autrement se refere, pode-se interpretar razoa-
velmente, ao conhecimento pelas ideias claras e dis-
tintas, possível para o objeto das sensações, mas
Depois de haver considerado no que não para o fenómeno misto da paixão." (Lívio Tei-
as paixões da alma diferem de todos os xeira, op. cit., pág. 153.) A ciência das paixões será,
portanto, um conhecimento claro e distinto de uma
seus outros pensamentos, parece-me vivência intrinsecamente obscura e confusa. Eis por
que podemos em geral defini-las por que, se Descartes quer explicar as paixões "na qua-
percepções, ou sentimentos, ou emo- lidade de físico", isso não significa "que pretenda
explicá-las unicamente pela Física, isto é, pela fisio-
logia do corpo, mas que deseja considerá-las segun-
34 do um método racional que procura evidências.
A hipótese do sonho infirma apenas a validade
objetiva dos juízos sobre o mundo exterior. Ela apropriadas, todavia, à natureza mesma do objeto,
deixa intacto o vivido pela consciência enquanto a qual é aqui obscuridade e confusão intrínsecas".
vivido. (Guéroult, t. II, pág. 253.)
238 DESCARTES

má-las melhor ainda emoções da alma, exclusão de outras, porque o corpo é


não só porque esse nome pode ser atri- uno e de alguma forma indivisível4 n ,
buído a todas as mudanças que nela em virtude da disposição de seus ór-
sobrevêm, isto é, a todos os diversos gãos, que se relacionam de tal modo
pensamentos que lhe ocorrem, mas uns com os outros que, quando algum
particularmente porque, de todas as deles é retirado, isso torna o corpo
espécies de pensamentos que ela pode todo defeituoso; e porque ela é de uma
ter, não há outros que a agitem e a natureza que não tem qualquer relação
abalem tão fortemente como essas com a extensão nem com as dimensões
paixões. ou outras propriedades da matéria de
que o corpo se compõe, mas apenas
Art. 29. Explicações de sua outra com o conjunto dos seus órgaõs 4 2 ,
parte. como transparece pelo fato de não
podermos de maneira alguma conceber
Acrescento que elas se relacionam a metade ou um terço de uma alma,
particularmente com a alma, para nem qual extensão ocupa, e por não se
distingui-las dos outros sentimentos tornar ela menor ao se cortar qualquer
que referimos, uns aos objetos exterio- parte do corpo, mas separar-se inteira-
res, como os odores, os sons, as cores, mente dele quando se dissolve o con-
e os outros ao nosso corpo, como a junto de seus órgãos.
fome, a sede, a dor. Acrescento, ou-
trossim, que são causadas, sustentadas Art. 31. Que há uma pequena glân-
e fortalecidas por algum movimento dula no cérebro, na qual a alma exerce
dos espíritos, a fim de distingui-las de suas funções mais particularmente do
nossas vontades, que podemos denomi- que nas outras partes.
nar emoções da alma que se relacio- É necessário também saber que, em-
nam com ela, mas que são causadas bora a alma esteja unida a todo o
por ela própria, e também a fim de corpo, não obstante há nele alguma
explicar sua derradeira e mais próxima parte em que ela exerce suas funções
causa, que as distingue novamente dos mais particularmente do que em todas
outros sentimentos. as outras 4 3 ; e crê-se comumente que

Art. 30. Que a alma está unida a 4


' Essa indivisibilidade própria ao organismo hu-
todas as partes do corpo conjuntamen- mano resulta de sua união com a alma: "Nosso
corpo, enquanto corpo humano, permanece sempre
te3*. o mesmo número durante o tempo em que está
unido à mesma alma. E inclusive, nesse sentido, é
indivisível. . .". (Carta a Mesland, citada in Gué-
Mas, para compreender mais perfei- roult, II, pág. 181.)
tamente todas essas coisas, é neces- 42
Essa penetração da alma em lodo o corpo per-
sário saber que a alma está verdadeira- mite falar de uma "alma corporal" em um sentido
muito particular, que Descartes ressalta na carta de
mente unida ao corpo todo 4 0 , e que 26 de julho a Arnauld: "Se por corporal entende-
não se pode propriamente dizer que ela mos o que pertence ao corpo, embora seja de outra
esteja em qualquer de suas partes com natureza, a alma também pode ser dita corporal, na
medida em que está apta a unir se ao corpo; mas se
por corporal entendemos o que participa da natu-
39 reza do corpo, esse peso não é mais corporal do que
Constituindo as paixões um dos aspectos da
comunicação entre o corpo e a alma, serão agora a nossa própria alma".
43
analisadas as modalidades desta. Segunda modalidade da união: a alma deve ter
40
Primeira modalidade da união: a alma, justa- sua sede em um órgão que governa o movimento
mente por não ter extensão alguma, não enforma dos espíritos animais. (Cf. Lívio Teixeira, op. cil.,
qualquer parte do corpo humano, em especial. pág. 154.)
AS PAIXÕES DA ALMA 239

esta parte é o cérebro, ou talvez o cora- duas mãos, duas orelhas, e enfim todos
ção: o cérebro, porque é com ele que se os órgãos de nossos sentidos externos
relacionam os órgãos dos sentidos; e o são duplos; e que, dado que não temos
coração, porque é nele que parece senão um único e simples pensamento
sentirem-se as paixões. Mas, exami- de uma mesma coisa ao mesmo tempo,
nando o caso com cuidado, parece-me cumpre necessariamente que haja
ter reconhecido com evidência que a algum lugar onde as duas imagens que
parte do corpo em que a alma exerce nos vêm pelos dois olhos, onde as duas
imediatamente suas funções não é de outras impressões que recebemos de
modo algum o coração, nem o cérebro um só objeto pelos duplos órgãos dos
todo 4 4 , mas somente a mais interior de outros sentidos, se possam reunir em
suas partes, que é certa glândula muito uma antes que cheguem à alma, a fim
pequejia, situada no meio de sua subs- de que não lhe representem dois obje-
tância, e de tal modo suspensa por tos em vez de um só. E pode-se conce-
cima do conduto por onde os espíritos ber facilmente que essas imagens ou
de suas cavidades anteriores mantêm outras impressões se reúnem nessa
comunicação com os da posterior, que glândula, por intermédio dos espíritos
os menores movimentos que nela exis- que preenchem as cavidades do cére-
tem podem contribuir muito para mo- bro, mas não há qualquer outro local
dificar o curso desses espíritos, e, no corpo onde possam assim unir-se,
reciprocamente, as menores modifica- senão depois de reunidas nessa glându-
ções que sobrevêm ao curso dos espíri- la46.
tos podem contribuir muito para alte-
rar os movimentos dessa glândula 4 5 . Art. 33. Que a sede das paixões não
fica no coração.
Art. 32. Como se conhece que essa
Quanto à opinião dos que pensam
glândula é a principal sede da alma.
que a alma recebe as suas paixões no
coração, não pode ser de modo algum
A razão que me persuade de que a
considerável, pois se funda apenas no
alma não pode ter, em todo o corpo,
fato de que as paixões nos fazem sentir
nenhum outro lugar, exceto essa glân-
aí alguma alteração 4 7 ; e é fácil notar
dula, onde exerce imediatamente suas
que essa alteração só é sentida, como
funções é que considero que as outras
que no coração, por intermédio de um
partes do nosso cérebro são todas
pequeno nervo que desce do cérebro
duplas, assim como tempos dois olhos,
para ele, assim como a dor é sentida
44
como que no pé, por intermédio dos
Objetar-se-á a Descartes que a gente não tem
cérebro em excesso para pensar. Já Galeno, no De 46
Usu Partium, escrevia: "Crer que esse corpo (a A glândula pituitária, pregada no osso esfe-
glândula pineal) preside a passagem do espírito é nóide, satisfaria essa condição, mas não dispõe da
dar prova de ignorância e atribuir demasiado a essa mobilidade da pineal. (Cartas, a Mersenne, 24 de
glândula. Se assim fosse, uma glândula desempe- dezembro de 1640.)
47
nharia o papel e teria a dignidade de cérebro". Mes- Trata-se de uma ruptura com a tese peripatética
nard, que cita esse texto no artigo já mencionado e estóica. Mme Rodis-Lewis, na sua edição do Trai-
(págs. 208-209), conclui daí que Descartes não té (pág. 91), assinala um texto de 1641 onde esse
conhecia Galeno, a não ser por uma obra de J. Syl- rompimento com a tradição é atenuado: "As pai-
vius, aparecida em 1555, onde o autor assume por xões, na medida em que pertencem ao corpo, têm
desventura, precisamente sobre este ponto, posição como sede principal o coração, visto ser o principal
oposta
45
à do grande empírico. órgão que elas alteram; mas, na medida em que afe-
A mobilidade da glândula é uma das condições tam também a alma, aquela reside somente no cére-
essenciais que Descartes invoca a fim de convertê-la bro, pois só por meio dele é que a alma pode ser
em sede da alma. imediatamente tocada".
240 DESCARTES

nervos do pé, e os astros são percebi- mas que pode também ser diversa-
dos como que no céu por intermédio de mente movida pela alma 4 8 , a qual é de
sua luz e dos nervos ópticos; de sorte tal natureza que recebe em si tantas
que não é mais necessário que nossa impressões diversas, isto é, que ela tem
alma exerça imediatamente as suas tantas percepções diversas quantos
funções no coração para nele sentir as diferentes movimentos sobrevêm nessa
suas paixões do que é necessário que glândula; como também, reciproca-
ela esteja no céu para nele ver os mente, a máquina do corpo é de tal
astros. forma composta que, pelo simples fato
de ser essa glândula diversamente mo-
vida pela alma ou por qualquer outra
Art. 34. Como agem a alma e o corpo causa que possa existir, impele os espí-
um contra o outro.
ritos animais que a circundam para os
Concebamos, pois, que a alma tem a poros do cérebro, que os conduzem
sua sede principal na pequena glândula pelos nervos aos músculos, mediante o
que existe no meio do cérebro, de onde que ela os leva a mover os membros.
irradia para todo o resto do corpo, por
intermédio dos espíritos, dos nervos e Art. 35. Exemplo da maneira como as
mesmo do sangue, que, participando impressões dos objetos se unem na
das impressões dos espíritos, podem glândula que fica no meio do cérebro.
levá-los pelas artérias a todos os mem-
bros; e, lembrando-nos do que já foi Assim, por exemplo, se vemos
dito acima com respeito à máquina de algum animal vir em nossa direção, a
nosso corpo, a saber, que os pequenos luz refletida de seu corpo pinta duas
filetes de nossos nervos acham-se de imagens dele, uma em cada um de nos-
tal modo distribuídos em todas as suas sos olhos, e essas duas imagens for-
partes que, por ocasião dos diversos mam duas outras, por intermédio dos
movimentos aí provocados pelos obje- nervos ópticos, na superfície interior
tos sensíveis, abrem diversamente os do cérebro defronte às suas concavida-
poros do cérebro, o que faz com que os des; daí, em seguida, por intermédio
espíritos animais contidos nessas cavi- dos espíritos que enchem suas cavida-
dades entrem diversamente nos múscu- des, essas imagens irradiam de tal
los, por meio do que podem mover os
sorte para a pequena glândula envol-
membros de todas as diversas manei-
vida por esses espíritos, que o movi-
ras que esses são capazes de ser movi-
mento componente de cada ponto de
dos, e também que todas as outras cau-
uma das imagens tende para o mesmo
sas que podem mover diversamente os
ponto da glândula para o qual tende o
espíritos bastam para conduzi-los a
diversos músculos; juntemos aqui que movimento que forma o ponto da
a pequena glândula, que é a principal 48
sede da alma, está de tal forma sus- É a terceira causa da diversidade no curso dos
espíritos que procedem do cérebro (cf. arts. 12 a
pensa entre as cavidades que contêm 16). Cabe notar que a correspondência entre as
esses espíritos que pode ser movida por impressões da alma e os movimentos da glândula
constitui uma descrição e de maneira alguma uma
eles de tantos modos diversos quantas explicação da união (cf. Lívio Teixeira, op. cit., pág.
as diversidades sensíveis nos objetos; 155).
AS PAIXÕES DA ALMA 241

outra imagem, a qual representa a lar nessa glândula, o qual é instituído


mesma parte desse animal, por meio pela natureza para fazer sentir à alma
do que as duas imagens existentes no essa paixão, e, como esses poros se
cérebro compõem apenas uma única relacionam principalmente com os pe-
na glândula, que, agindo imediata- quenos nervos que servem para apertar
mente contra a alma, lhe faz ver a figu- ou alargar os orifícios do coração, isso
ra desse animal. faz que a alma a sinta principalmente
como que no coração 4 9 .
Art. 36. Exemplo da maneira como as Art. 37. Como todas parecem causa-
paixões são excitadas na alma. das por qualquer movimento dos espí-
ritos.
E, além disso, se essa figura é muito E como acontece coisa semelhante
estranha e muito apavorante, isto é, se 49
O mecanismo aqui descrito é muito complexo.
ela tem muita relação com as coisas De uma parte, verifica-se um condicionamento: a
que foram anteriormente nocivas ao ligação "instituída pela natureza" entre a abertura
de certos orifícios ventriculares e a paixão sentida
corpo, isto excita na alma a paixão do pela alma. De outra parle, verifica-se um auto-refor-
medo e, em seguida, a da ousadia, ou çamento circular (feedback): '"Os espíritos refleti-
dos pela imagem assim formada sobre a glândula",
então a do temor e a do terror, con- quer por áção direta sobre o coração, quer por uma
forme o diverso temperamento do variação no regime do sangue, modificam o regime
dos espíritos animais que seguem do coração para o
corpo ou a força da alma, e conforme cérebro, de modo que a alma, sentindo a paixão,
nos tenhamos precedentemente garan- torna a lançar os espíritos no mesmo circuito. O que
corresponde ao seguinte esquema:
tido pela defesa ou pela fuga contra as
coisas prejudiciais com as quais se cérebro

relaciona a presente impressão; pois glãnduiapineal

isso dispõe o cérebro de tal modo, em


certos homens, que os espíritos refleti-
dos da imagem assim formada na glân-
dula seguem, daí, parte para os nervos
que servem para voltar as costas e
mexer as pernas para a fuga, e parte
para os que alargam ou encolhem de
tal modo os orifícios do coração, ou
então que agitam de tal maneira as ou-
tras partes de onde o sangue lhe é
acão sobre
enviado, que este sangue, rarefazendo- variação do regime
sanguíneo devido ã
o coração

se aí de forma diferente da comum, hematopoese visceral

envia espíritos ao cérebro que são pró- \


prios para manter e fortificar a paixão
do medo, isto é, que são próprios para \ vanacao na
abertura dos
variação do
orifícios
manter abertos ou então abrir de novo volume cardíaco
cardíacos

os poros do cérebro que os conduzem


aos mesmos nervos; pois, pelo simples
*
fato de esses espíritos entrarem nesses variação na produção dos
espíritos e alimentação
poros, excitam um movimento particu- anormal da glândula
242 DESCARTES

com todas as outras paixões, a saber, sobre a glândula a presença de um ob-


que são principalmente causadas pelos jeto pavoroso, e que causa o medo em
espíritos que estão contidos nas cavi- alguns homens, pode excitar, em ou-
dades do cérebro, enquanto tomam seu tros, a coragem e a audácia, isto por-
curso para os nervos que servem para que nem todos os cérebros estão dis-
alargar ou estreitar os orifícios do postos da mesma maneira, e o mesmo
coração, ou para impelir diversamente movimento da glândula que em alguns
em sua direção o sangue que se encon- excita o medo faz com que, em outros,
tra nas outras partes, ou, de qualquer os espíritos entrem nos poros do cére-
outra maneira que seja, para sustentar bro que os conduzem, parte aos nervos
a mesma paixão, pode-se claramente que servem para mexer as mãos na de-
compreender, de tudo isso, por que fesa e parte nos que agitam e impelem
afirmei acima, ao defini-las, que são o sangue ao coração, da maneira
causadas por algum movimento parti- requerida a produzir espíritos próprios
cular dos espíritos 5 0 . para continuar esta defesa e manter a
vontade de prossegui-la 51 .
Art. 38. Exemplo dos movimentos do
corpo que acompanham as paixões e
não dependem da alma. Art. 40. Qual é o principal efeito das
paixões.
De resto, assim como o curso segui-
do por essesespíritos para os nervos do Pois cumpre notar que o principal
coração basta para imprimir movi- efeito de todas as paixões nos homens
mento à glândula pela qual o medo é é que incitam e dispõem a sua alma a
posto na alma, do mesmo modo, pelo querer as coisas para as quais elas lhes
simples fato de alguns espíritos irem preparam os corpos; de sorte que o
ao mesmo tempo para os nervos que sentimento de medo incita a fugir, o da
servem para mexer as pernas na fuga, audácia a querer combater e assim por
causam eles um outro movimento na diante 52 .
mesma glândula por meio do qual a
alma sente e percebe tal fuga, que Art. 41. Qual é o poder da alma com
dessa forma pode ser excitada no respeito ao corpo.
corpo pela simples disposição dos ór-
gãos e sem que a alma para tanto Mas a vontade é, por natureza, de
contribua. 5
' Tal constatação, comenta Lívio Teixeira, "mos-
tra o caráter aleatório e não científico das paixões,
Art. 39. Como a mesma causa pode mas permite ao mesmo tempo compreender por que
excitar diversas paixões em diversos o mesmo fato produz efeitos diferentes: é que os cé-
homens. rebros não são dispostos do mesmo modo. .. Desse
modo, ainda que não se saiba como o corpo e a
alma se comunicam, pode-se explicar por que o
A mesma impressão que exerce mesmo fato produz efeitos diferentes". (Op. cit.,
pág. 156.)
50
Comentário da expressão algum movimento dos 62 A "paixão" aparece, assim, como testemunho
espíritos (art. 27 e 29). O que significa "movimento exemplar da união íntima entre alma e corpo. Na
particular dos espíritos"? 1." que esse movimento medida em que produzem esta acomodação espon-
dos espíritos não é comumente fortuito; 2.° que não tânea é que "as paixões são todas boas" (art. 211).
é produzido pela variação da figura do movimento Cf. a definição das paixões dada no Tratado do
(como nas sensações ou "sentimentos"), mas pela Homem: "Movimentos. . . que servem para dispor
variação da quantidade de movimento com respeito o coração e o fígado, bem como todos os outros ór-
à normal. Do ponto de vista psicofisiológico, pode- gãos dos quais pode depender o temperamento do
se definir a "paixão" como emoção da alma ligada sangue e em seguida o dos espíritos, de tal sorte que
a um automatismo circular de auto-reforçamento os espíritos que nascem então estejam aptos a cau-
capaz de múltiplos condicionamentos. sar os movimentos exteriores que devem seguir".
AS PAIXÕES DA ALMA 243

tal modo livre que nunca pode ser outros, excitando, por esse meio, um
compelida; e, das duas espécies de movimento particular na glândula, que
pensamentos que distingui na alma, representa à alma o mesmo objeto e
das quais uns são suas ações, isto é, lhe faz saber que se trata daquele do
suas vontades, e os outros as suas pai- qual queria lembrar-se.
xões, tomando-se esta palavra em sua
significação mais geral, que com- Art. 43. Como a alma pode imaginar,
preende todas as espécies de percep- estar atenta e mover o corpo.
ções, os primeiros estão absolutamente
em seu poder e só indiretamente o Assim, quando se quer imaginar
corpo pode modificá-los, assim como, algo que nunca se viu, essa vontade
ao contrário, os últimos dependem tem o poder de levar a glândula a
absolutamente das ações que os produ- mover-se da maneira necessária para
zem, e a alma só pode modificá-los impelir os espíritos aos poros do cére-
indiretamente, exceto quando ela pró- bro por cuja abertura essa coisa pode
pria é sua causa 5 3 . E toda a ação da ser representada; assim, quando se pre-
alma consiste em que, simplesmente tende fixar a atenção para considerar
por querer alguma coisa, leva a peque- por algum tempo um mesmo objeto, tal
na glândula, à qual está estreitamente vontade retém a glândula, durante esse
unida, a mover-se da maneira neces- tempo, inclinada para um mesmo lado;
sária a fim de produzir o efeito que se assim, enfim, quando se quer andar ou
relaciona com esta vontade. mover o próprio corpo de alguma
maneira, essa vontade faz com que a
Art. 42. Como encontramos em nossa glândula impila os espíritos para os
memória as coisas de que nos quere- músculos que servem para tal efeito.
mos lembrar.
Assim, quando a alma quer lem- Art. 44. Que cada vontade é natural-
brar-se de algo, essa vontade faz com mente unida a algum movimento da
que a glândula, inclinando-se sucessi- glândula; mas que, por engenho ou por
vamente para diversos lados, impila os hábito, se pode uni-la a outros.
espíritos para diversos lugares do cére-
bro, até que encontrem aquele onde Todavia, nem sempre é a vontade de
estão os traços deixados pelo objeto de provocar em nós algum movimento ou
que queremos nos lembrar; pois esses algum outro efeito que pode levar-nos
traços não são outra coisa senão os a excitá-lo; mas isso muda conforme a
poros do cérebro, por onde os espíritos natureza ou o hábito tenham diversa-
tomaram anteriormente seu curso devi- mente unido cada movimento da glân-
do à presença desse objeto, e adquiri- dula a cada pensamento 5 4 . Assim, por
ram, assim, maior facilidade que os
54
outros, para serem de novo abertos da Nossa vontade não pode excitar quaisquer
mesma maneira pelos espíritos que movimentos em nós. Certos movimentos, reflexos
ou mecanismos adquiridos só podem ser executados
para eles se dirigem; de sorte que tais por ocasião de outros movimentos voluntários. A
espíritos, encontrando esses poros, en- alma ignora como se efetuam esses movimentos que
são executáveis apenas mediatamente: "Esta incli-
tram neles mais facilmente do que nos nação da vontade é seguida pelo curso dos espíritos
nos nervos, e de tudo o que é requerido para o movi-
53 mento, o que ocorre por causa da disposição conve-
"Se existe algo absolutamente em nosso poder,
são os nossos pensamentos, a saber, aqueles que niente do corpo, de que a alma pode realmente não
provêm da vontade e do livre arbítrio." (Cartas, a ter de modo algum conhecimento..." (Cartas, a
Mersenne, 3 de dezembro de 1640.) Arnauld, 29 de julho de 1648.)
244 DESCARTES

exemplo, se se quer dispor os olhos mos rejeitar. Assim, para excitarmos


para olhar um objeto muito distan- em nós a audácia e suprimirmos o
ciado, essa vontade faz com que a pu- medo, não basta ter a vontade de fazê-
pila se dilate; e se se quer dispô-los a lo, mas é preciso aplicar-nos a conside-
olhar um objeto muito próximo, essa rar as razões, os objetos ou os exem-
vontade faz com que a pupila se con- plos que persuadem de que o perigo
traia; mas se se pensa apenas em alar- não é grande; de que há sempre mais
gar a pupila, em vão teremos tal vonta- segurança na defesa do que na fuga; de
de, pois nem por isso conseguiremos que teremos a glória e a alegria de
alargá-la, já que a natureza não uniu o havermos vencido, ao passo que não
movimento da glândula que serve para podemos esperar da fuga senão o pesar
impelir os espíritos ao nervo óptico da e a vergonha de termos fugido, e coisas
maneira necessária a dilatar ou a con- semelhantes.
trair a pupila com a vontade de dilatar
ou contrair, mas antes com a de olhar Art. 46. Qual é a razão que impede a
objetos afastados ou próximos. E alma de dispor inteiramente de suas
quando, ao falar, pensamos apenas no paixões.
sentido do que queremos dizer, isto faz
com que mexamos a língua e os lábios Há uma razão particular que impe-
de a alma de poder alterar ou estancar
muito mais rapidamente e muito me-
rapidamente suas paixões, a qual me
lhor do que se pensássemos em mexê-
deu motivo de pôr mais acima, em sua
los de todas as formas necessárias para
definição, que elas não são apenas cau-
proferir as mesmas palavras, dado que sadas, mas também mantidas e fortale-
o hábito que adquirimos de aprender a cidas por algum movimento particular
falar fez com que juntássemos a ação dos espíritos 5 6 . Esta razão é que elas
da alma, que, por intermédio da glân- são quase todas acompanhadas de al-
dula, pode mover a língua e os lábios, guma emoção que se produz no cora-
mais com a significação das palavras ção, e, por conseguinte, também em
que resultam desses movimentos do todo o sangue e nos espíritos, de modo
que com os próprios movimentos. que, enquanto essa emoção não cessar,
elas continuam presentes em nosso
Art. 45. Qual é o poder da alma com pensamento da mesma maneira que os
respeito às suas paixões 5 s . objetos sensíveis aí permanecem pre-
sentes, enquanto agem contra os ór-
Nossas paixões também não podem gãos de nossos sentidos. E como a
ser diretamente excitadas nem suprimi- alma, tornando-se muito atenta a qual-
das pela ação de nossa vontade, mas quer outra coisa, pode impedir-se de
podem sê-lo, indiretamente, pela repre- ouvir um pequeno ruído ou de sentir
sentação das coisas que costumam uma pequena dor, mas não pode impe-
estar unidas às paixões que queremos dir-se, do mesmo modo, de ouvir o tro-
ter, e que são contrárias às que quere- vão ou de sentir o fogo que queima a
55 66
A possibilidade de ligar artificialmente certos A vontade não pode vencer o automatismo cir-
automatismos a certos atos voluntários constituirá cular que está unido à paixão; neste caso. ela só
a base de um tratamento racional das paixões: pode reter os gestos aos quais a paixão me dispõe.
pode-se modificar a paixão mudando a represen- Neste "esforço último" Lívio Teixeira vê "o último
tação da coisa a ela unida. reduto da vontade". (Op. cií., pág. 158.)
AS PAIXÕES DA ALMA 245

mão, assim pode sobrepujar facilmente pode ser advertido em nós que repugne
as paixões menores, mas não as mais a nossa razão; de modo que não há
violentas e as mais fortes, a não ser de- nisso outro combate exceto que, como
pois que se apaziguou a emoção do a pequena glândula que fica no meio
sangue e dos espíritos. O máximo que do cérebro pode ser impelida, de um
pode fazer a vontade, enquanto essa lado, pela alma, e, de outro, pelos espí-
emoção está em vigor, é não consentir ritos animais, que são apenas corpos,
em seus efeitos e reter muitos dos como já disse acima, acontece às vezes
movimentos aos quais ela dispõe o que esses dois impulsos sejam contrá-
corpo. Por exemplo, se a cólera faz rios e que o mais forte impeça o efeito
levantar a mão para bater, a vontade do outro. Ora, podemos distinguir
pode comumente retê-la; se o medo in- duas espécies de movimentos excitados
cita as pessoas a fugir, a vontade pode pelos espíritos na glândula: uns repre-
detê-las, e assim por diante. sentam à alma os objetos que movem
os sentidos, ou as impressões que se
Art. 47. Em que consistem os comba- encontram no cérebro e não efetuam
tes que se costuma imaginar entre a qualquer esforço sobre a vontade; ou-
parte inferior e a superior da alma. tros efetuam algum esforço sobre ela, a
saber, os que causam as paixões ou os
E tão-somente na repugnância que movimentos dos corpos que as acom-
existe entre os movimentos que o panham; e, quanto aos primeiros, em-
corpo por seus espíritos e a alma por bora impeçam amiúde as ações da
sua vontade tendem a excitar ao alma, ou sejam impedidos por ela,
mesmo tempo na glândula é que con- todavia, por não serem diretamente
sistem todos os combates que se costu- contrários, não se verifica neles ne-
ma imaginar entre a parte inferior da nhum combate. Só os observamos
alma, denominada sensitiva, e a supe- entre os últimos e as vontades que lhes
rior, que é racional, ou então entre os repugnam: por exemplo, entre o esfor-
apetites naturais e a vontade; pois não ço com que os espíritos impelem a
há em nós senão uma alma, e esta glândula a causar na alma o desejo de
alma não tem em si nenhuma diversi- alguma coisa e aquele com que a alma
dade de partes 5 7 : a mesma que é sensi- a repele, pela vontade que tem de fugir
tiva é racional e todos os seus apetites da mesma coisa; e o que faz principal-
são suas vontades. O erro que se come- mente surgir esse combate é que, não
teu em fazê-la desempenhar diversas tendo a vontade o poder de excitar
personagens que são comumente con- diretamente as paixões, como já foi
trárias umas às outras provém apenas dito, é obrigada a usar de engenho e
de não se haver distinguido bem suas aplicar-se a considerar sucessivamente
funções das do corpo, ao qual unica- diversas coisas, das quais, se acontece
mente se deve atribuir tudo quanto que uma tenha a força de modificar
por um momento o curso dos espíritos,
57
A representação precedente da relação entre a pode acontecer que a seguinte não a
vontade e as paixões apresenta a vantagem de con tenha e que os espíritos retomem o
firmar a unidade da alma contra os que querem
dividi-la em faculdades; a doutrina dos espíritos curso logo depois, porque a disposição
animais confirma que o irracional no homem não é precedente nos nervos, no coração e no
imputável às almas inferiores (vegetativa e sensiti- sangue não mudou, o que leva a alma a
va), mas ao corpo.
246 DESCARTES

sentir-se impelida quase ao mesmo mas se deixa arrastar continuamente


tempo a desejar e a não desejar uma pelas paixões presentes, as quais,
mesma coisa; e daí é que se teve oca- sendo muitas vezes contrárias umas às
sião de imaginar nela duas potências outras, a puxam, ora umas, ora outras,
que se combatem. Todavia, ainda se para seu partido e, empregando-a para
pode conceber algum combate, pelo combater contra si mesma, põem a
fato de muitas vezes a mesma causa alma no estado mais deplorável possí-
que excita na alma alguma paixão vel. Assim, quando o medo representa
excitar também certos movimentos no a morte como um extremo mal, que só
corpo, para os quais a alma em nada pode ser evitado pela fuga, se a ambi-
contribui, e os quais detém ou procura ção, de outro lado, representa a infâ-
deter tão logo os apercebe, como senti- mia dessa fuga como um mal pior que
mos quando aquilo que excita o medo a morte, essas duas paixões agitam
faz também com que os espíritos en- diversamente a vontade, que, obede-
trem nos músculos que servem para cendo ora a uma, ora a outra, se opõe
mexer as pernas na fuga, e com que continuamente a si própria, e assim
sejam sustados pela vontade que temos torna a alma escrava e infeliz.
de ser audazes.
Art. 48. Em que se conhece a força ou Art. 49. Que a força da alma não
a fraqueza das almas, e qual é o mal basta sem o conhecimento da verdade.
das mais fracas5 8 .
Na verdade, há pouquíssimos ho-
Ora, é pela sorte desses combates mens tão fracos e irresolutos que nada
que cada qual pode conhecer a força queiram senão o que suas paixões lhes
ou a fraqueza de sua alma; pois aque- ditam. A maioria tem juízos determi-
les em quem a vontade pode, natural- nados, segundo os quais regula parte
mente, com maior facilidade, vencer as de suas ações; e, embora muitas vezes
paixões e sustar os movimentos do tais juízos sejam falsos e fundados
corpo que os acompanham têm, sem mesmo em algumas paixões pelas
dúvida, as almas mais fortes; mas há quais a vontade se deixou anterior-
os que não podem comprovar a pró- mente vencer ou seduzir, todavia,
pria força porque nunca levam a com- como ela continua seguindo-os quando
bate a sua vontade juntamente com a paixão que os causou está ausente,
suas armas próprias, mas apenas com podemos considerá-los como suas
as que lhes fornecem algumas paixões armas próprias, e pensar que as almas
para resistir a algumas outras. O que são mais fortes ou mais fracas em vir-
denomino as armas próprias são juízos tude de poderem seguir mais ou menos
firmes e determinados sobre o conheci- esses juízos e resistir às paixões pre-
mento do bem e do mal, consoante os sentes que lhes são contrárias 59 . Mas
quais ela resolveu conduzir as ações de há, entretanto, grande diferença entre
sua vida; e as almas mais fracas de as resoluções que procedem de alguma
todas são aquelas cuja vontade não se falsa opinião e as que se apoiam tão-
decide assim a seguir certos juízos,
59
Cf. terceira parte do Discurso: "Quando não
58
Outra vantagem: a possibilidade de distinguir as está em nosso poder discernir as opiniões mais
atitudes com respeito às paixões. As almas fortes verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis" (se-
dominam suas paixões por meio da só vontade gunda máxima da moral "provisória"). Ora, ver-se-
esclarecida. As almas mais fracas abandonam sua á que, no art. 170, Descartes prefere os juízos "cer-
vontade como presa das paixões contrárias que as tos e determinados", embora erróneos, à
agitam. irre solução.
AS PAIXÕES DA ALMA 247

somente no conhecimento da verdade; alimento que comemos com apetite, a


visto que, se seguirmos as últimas, surpresa do achado pode mudar de tal
estamos certos de não ter jamais do forma a disposição do cérebro que, em
que nos lamentar nem arrepender, ao seguida, não possamos mais ver esse
passo que o teremos sempre, se seguir- alimento exceto com horror, ao passo
mos as primeiras, quando lhes desco- que até então o comíamos com prazer.
brimos o erro 6 0 . É pode-se notar a mesma coisa nos
animais; pois, embora não possuam a
Art. 50. Que não existe alma tão fraca menor razão, nem talvez 61 nenhum
que não possa, sendo bem conduzida, pensamento, todos os movimentos dos
adquirir poder absoluto sobre as suas espíritos e da glândula que provocam
paixões. em nós as paixões não deixam de exis-
tir neles também e servem-lhes para
E é útil aqui lembrar que, como já
manter e fortalecer, não como em nós,
foi dito mais acima, embora cada
movimento da glândula pareça ter sido as paixões 62 , mas os movimentos dos
unido pela natureza a cada um de nos- nervos e dos músculos que costumam
sos pensamentos desde o começo de acompanhá-las. Assim, quando um
nossa vida, é possível todavia juntá-los cão vê uma perdiz, é naturalmente le-
a outros por hábito, assim como a vado a correr em sua direção, e, quan-
experiência mostra nas palavras que do ouve um tiro de um fuzil, tal ruído o
excitam movimentos na glândula, os incita naturalmente a fugir; mas, não
quais, segundo a instituição da nature- obstante, adestram-se comumente de
za, representam à alma apenas os seus tal maneira os cães perdigueiros que a
sons, quando proferidas pela voz, ou a vista de uma perdiz os leva a deter-se e
figura de suas letras, quando escritas, e o ruído que ouvem depois, quando
que, não obstante, pelo hábito adqui- alguém atira à perdiz, os leva a correr
rido em pensar no que significam para ela. Ora, essas coisas são úteis de
quando ouvimos o som delas, ou saber para encorajar cada um de nós a
então, quando vemos suas letras, cos- aprender a observar suas paixões; pois,
tumam fazer conceber mais essa signi- dado que se pode, com um pouco de
ficação do que a figura de suas letras, engenho, mudar os movimentos do cé-
ou então o som de suas sílabas. É útil rebro nos animais desprovidos de
também saber que, embora os movi- razão, é evidente que se pode fazê-lo
mentos, tanto da glândula como dos melhor ainda nos homens, e que
espíritos e do cérebro, que representam mesmo aqueles que possuem as almas
à alma certos objetos sejam natural- mais fracas poderiam adquirir um
mente unidos aos que provocam nela império absoluto sobre todas as suas
certas paixões, podem todavia, por há- paixões, se empregassem bastante en-
bito, ser separados destes e unidos a genho em domá-las e conduzi-las.
outros muito diferentes, e, mesmo, que 61
esse hábito pode ser adquirido por uma Por que "talvez"? Sem dúvida, como nota Mme
Rodis-Lewis, porque a hipótese dos animais-má-
única ação e não requer longa prática. quinas "beneficia-se somente do máximo de proba-
Assim, quando encontramos inopina- bilidade".
62
damente uma coisa muito suja num Os animais não têm paixões, visto que a paixão
é um fenómeno especificamente psicofísico: eles só
possuem reflexos. Mas, como se podem condicionar
60
Unicamente a vontade de fazer o melhor possí- os reflexos, a fortiori poder-se-á, por meio da razão,
vel não basta, portanto, se ela não tende ao menos a modificar o efeito das paixões. Cumpre observar
ser esclarecida pela razão. Ainda aqui verifica-se que não se trata aqui de uma terapêutica das pai-
quão distanciado está Descartes do voluntarismo xões: estas não são de modo algum fenómenos pato-
cego. lógicos. Cf. Lívio Teixeira, op. cit., pág. 219.
SEGUNDA PARTE

DO NÚMERO E DA ORDEM DAS PAIXÕES


E A EXPLICAÇÃO DAS SEIS PRIMITIVAS"

63
PI ano desta parte:
Arts. 51-52: pesquisa de um critério para a enumeração das paixões;
53-69: enumeração das paixões;
70-137: estudo das paixões primitivas;
138-148: conclusões morais.
251

Art. 51. Quais as primeiras causas das Art. 52. Qual o seu emprego e como
paixões. podemos enumerá-las.

Já se sabe, pelo que se disse mais Observo, além disso, que os objetos
acima 6 4 , que a última e mais próxima que movem os nossos sentidos não
causa das paixões da alma não é outra provocam em nós diversas paixões de-
senão a agitação com que os espíritos vido a todas as diversidades que exis-
movem a pequena glândula situada no tem neles, mas somente devido às
meio do cérebro. Mas isso não basta diversas formas pelas quais nos podem
para podermos distingui-las umas das prejudicar ou beneficiar, ou então, em
outras; é mister procurar suas fontes e geral, ser importantes; e que o emprego
examinar suas primeiras causas; ora, de todas as paixões consiste apenas no
ainda que possam algumas vezes ser fato de disporem a alma a querer coi-
causadas pela ação da alma, que se sas que a natureza dita serem úteis a
determina a conceber estes ou aqueles nós, e a persistir nessa vontade, assim
objetos, e também pelo exclusivo tem- como a mesma agitação dos espíritos
peramento do corpo ou pelas impres- que costuma causá-las dispõe o corpo
sões que se encontram fortuitamente aos movimentos que servem à execu-
no cérebro, como acontece quando nos ção dessas coisas; eis por que, a fim de
sentimos tristes ou alegres sem que enumerá-las, cumpre apenas examinar,
possamos dizer o motivo 6 5 , parece, no por ordem, de quantas maneiras dife-
entanto, pelo que foi dito, que todas rentes que nos importam 6 7 podem os
elas podem também ser excitadas pelos nossos sentidos ser movidos por seus
objetos que afetam os sentidos e que objetos; e farei aqui a enumeração de
tais objetos são suas causas mais co-
muns e principais; daí se segue que, 6
' " . . . dita serem úteis a nós": sobre o alcance
para encontrar todas, basta considerar desta doutrina, cf. Col. com Burman. "É possível
que, se um médico permitisse a seus doentes os ali-
todos os efeitos desses objetos 6 6 . mentos e as bebidas que estes reclamam amiúde, a
saúde deles se restabelecesse bem melhor do que
com essas drogas que dão n á u s e a . . . em tais casos,
64
No art. 34. a natureza chega a restabelecer-se sozinha: ela tem
65
Distinção das três causas possíveis da agitação perfeita consciência, interiormente, de seu estado, e
dos espíritos. o conhece bem melhor que um médico, que só vê o
66
Não são as diferenças entre os objetos, mas exterior." " . . . que nos importam": palavras essen-
entre os efeitos que podem produzir em nós que ser- ciais; segundo Lívio Teixeira (op. cit., pág. 164) e
virão de base para a classificação. "Descartes diz Guéroult (op. cit., II, pág. 253), atestam que não se
que se devem considerar todos os efeitos dos objetos tratará de uma notação estritamente fisiológica das
exteriores sobre nós, o que entendemos incluir tanto paixões (é o programa que Mesnard atribui a
o estudo dos fenómenos fisiológicos como dos Descartes), mas que a ordem da enumeração obede-
psicológicos, que é realmente o que ele vai fazer." cerá ao critério da prática e da conveniência
(Lívio Teixeira, op cit., pág. 162.) biológicas.
252 DESCARTES

todas as principais paixões, segundo a admiremos. E podemos assim nos esti-


ordem pela qual podem ser encontra- mar ou nos desprezar a nós próprios;
das. daí provêm as paixões e, em seguida,
os hábitos 69 de magnanimidade ou de
orgulho e de humildade ou de baixeza.
A ORDEM E A ENUMERAÇÃO
DAS PAIXÕES Art. 55. A veneração e o desdém.

Mas, quando estimamos ou despre-


Art. 53. A admiração. zamos outros objetos que conside-
ramos como causas livres, capazes de
Quando o primeiro contato com fazer o bem ou o mal, da estima proce-
algum objeto nos surpreende, e quando de a veneração, e do simples desprezo,
nós o julgamos novo, ou muito dife- o desdém.
rente do que até então conhecíamos ou
do que supúnhamos que deveria ser,
isso nos leva a admirá-lo e a nos Art. 56. O amor e o ódio.
espantarmos com ele; e, como isso
Ora, todas as paixões precedentes
pode acontecer antes de sabermos de
algum modo se esse objeto nos é podem ser excitadas em nós sem que
conveniente ou não 6 8 , parece-me que a percebamos de modo algum se o obje-
admiração é a primeira de todas as to que os provoca é bom ou mau 7 0 .
paixões; e ela não tem contrário, por- Mas, quando uma coisa se nos apre-
quanto, se o objeto que se apresenta senta como boa em relação a nós, isto
nada tem em si que nos surpreenda, é, como nos sendo conveniente, isso
não somos de maneira nenhuma afeta- nos leva a ter amor por ela; e, quando
dos por ele e nós o consideramos sem se nos apresenta como má ou nociva,
paixão. isso nos incita ao ódio.

Art. 57. O desejo.


Art. 54. A estima ou o desprezo, a
generosidade ou o orgulho, e a humil-
Da mesma consideração do bem e
dade ou a baixeza.
do mal nascem todas as outras pai-
xões; mas, a fim de colocá-las por
A admiração está unida a estima ou
o desprezo, conforme seja a grandeza
69
de um objeto ou sua pequenez que Cf. Carias, a Elisabeth, de 15 de setembro de
1645: "Tem-se razão de dizer na Escola que as vir-
tudes são hábitos". "Os antigos denominavam habi-
68
Frase que proporciona a Mesnard o ensejo para tus qualidades de um género à parte, que são essen-
uma resposta à objeção anterior: como com- cialmente disposições estáveis que aperfeiçoam na
preender esta frase, se a ordem da enumeração é a linha de sua natureza o sujeito em que se acham. A
da conveniência biológica? Por que não situou Des- saúde, a beleza, são hábitos do corpo. . . outros há-
cartes em primeiro lugar as paixões em que o san- bitos têm como sujeito as faculdades da alma: tais
gue desempenha papel considerável (como a "ale- como as virtudes intelectuais e morais. Adquirimos
gria", que ele denomina "a primeira das paixões" na esta última espécie de hábito através do exercício e
carta a Chanut, de 1." de fevereiro de 1647)? Mme do costume; mas nem por isso se deve confundir o
Rodis-Lewis replica: "Isso não significa que a habitus com o hábito na acepção moderna do
admiração não tenha nenhuma importância vital". termo, isto é, com o vezo mecânico e a rotina."
(Descartes, Ed. Minuit, págs. 208-35.) O centro do (Maritain,
70
Art et Scolastique, pág. 18.)
debate reside na concepção da "união-da-alma- São, portanto, todas derivadas da admiração.
com-o-corpo": Guéroult não a substantivou em Agora, as paixões que vão ser descritas serão todas
excesso? E não terá ele concedido demasiada baseadas na representação do bem e do mal "com
importância ao "biológico" em Descartes? respeito a nós".
AS PAIXÕES DA ALMA 253

ordem, distingo os tempos 71 e, consi- ção, que nos dispõe a deliberar e tomar
derando que elas nos levam a olhar o conselho. À última opõe-se a coragem
futuro muito mais do que o presente, ou a ousadia, de que a emulação cons-
ou o passado, começo pelo desejo. titui uma espécie. E a covardia é con-
Pois, não somente quando se deseja trária à coragem, tal como o medo ou
adquirir um bem que ainda não se pos- o pavor à ousadia.
sui, ou evitar um mal que se julga pas-
sível de sobrevir, mas também quando Art. 60. O remorso.
se deseja apenas a conservação de um
bem ou a ausência de um mal, que é E, se estamos determinados a algu-
tudo aquilo a que essa paixão pode ma ação, antes que seja suprimida a
estender-se, é evidente que ela encara irresolução, isso engendra o remorso
sempre o futuro. de consciência, o qual não considera o
tempo vindouro, como as paixões
Art. 58. A esperança, o temor, o precedentes, mas o presente ou o
ciúme, a segurança e o desespero. passado.

Basta pensar que a aquisição de um Art. 61. A alegria e a tristeza.


bem ou a fuga de um mal é possível
para sermos incitados a desejá-la. Mas, E a consideração do bem presente
quando consideramos, além disso, se excita em nós a alegria, a do mal, a
há muita ou pouca probabilidade de se tristeza, quando é um bem ou um mal
obter o que se deseja, aquilo que nos que nos é representado como nosso.
representa haver muita excita em nós a
esperança, e aquilo que nos representa Art. 62. A zombaria, a inveja, a pie-
haver pouca excita o temor, de que o dade.
ciúme constitui uma espécie. Quando a
esperança é extrema, muda de natureza Mas, quando nos é representado
e chama-se segurança ou confiança, como pertencente a outros homens,
assim como, ao contrário, o extremo podemos considerá-los dignos ou in-
temor torna-se desespero. dignos disso; e, quando os conside-
ramos dignos, isso não provoca em nós
Art. 59. A irresolução, a coragem, a outra paixão além da alegria, posto
ousadia, a emulação, a covardia e o que para nós é algum bem ver que as
pavor. coisas acontecem como devem. Há
apenas a diferença de que a alegria
E podemos assim esperar e temer, procedente do bem é séria, ao passo
ainda que a realização do que aguarda- que a procedente do mal é acompa-
mos não dependa de modo algum de nhada de riso e zombaria. Mas, se nós
nós; mas, quando nos é representado os considerarmos indignos deles, o
como dependente, pode haver dificul- bem excita a inveja, e o mal, a piedade,
dade na escolha dos meios ou na exe- que são espécies de tristeza, E deve-se
cução. Da primeira deriva a irresolu- notar que as mesmas paixões relacio-
nadas aos bens ou aos males presentes
71
Outro critério: a "distinção dos tempos". Não
podem amiúde referir-se aos que estão
se trata de uma dedução a priori das paixões, como por vir, enquanto a opinião que se tem
em Spinoza, "mas de um esforço como que externo de que hão de advir os representa
à natureza profunda das paixões". (Lívio Teixeira,
op. cit., pág. 166.) como presentes.
254 DESCARTES

Art. 63. A satisfação de si mesmo e o Art. 68. Por que essa enumeração das
arrependimento. paixões é diferente da comumente
aceita.
Podemos também considerar a Eis a ordem que me parece melhor
causa do bem ou do mal, tanto pre- para enumerar as paixões. Sei muito
sente como passado. E o bem que foi bem que nisso me afasto da opinião de
feito por nós mesmos nos dá uma satis- todos os que até agora escreveram
fação interior, que é a mais doce de sobre elas, mas não o faço sem grande
todas as paixões, ao passo que o mal razão. Pois os outros tiram suas
provoca o arrependimento, que é a enumerações do fato de distinguirem
mais amarga. na parte sensitiva da alma dois apeti-
tes, que chamam um concupiscível e o
Art. 64. O favor e o reconhecimento. outro irascível72. E, como não conhe-
ço na alma nenhuma distinção de par-
Mas o bem praticado por outros é tes, o que já disse acima, isto não me
causa de que os tenhamos em favor, parece significar outra coisa senão que
ainda que não seja feito a nós; e, quan- ela tem duas faculdades, uma de dese-
do o é, ao favor juntamos o reconheci- jar e a outra de se irritar; e, posto que
mento. ela tem da mesma forma as faculdades
de admirar, amar, esperar, temer e,
Art. 65. A indignação e a cólera. assim, de receber em si cada uma das
outras paixões:, ou de praticar as ações
a que essas paixões a impelem, não
Do mesmo modo, o mal praticado
vejo por que quiseram relacionar todas
por outros, não se relacionando a nós, com a concupiscência ou a cólera.
faz somente com que desperte a nossa Além do que, tal enumeração não
indignação para com eles; e, quando se compreende todas as principais pai-
relaciona conosco, suscita também a xões, como creio que esta o faz. Falo
cólera. apenas das principais, porque se pode-
riam ainda distinguir muitas outras
Art. 66. A glória e a vergonha. mais particulares, pois seu número é
indefinido.
Além disso, o bem que existe ou
existiu em nós, quando relacionado Art. 69. Que há somente seis paixões
com a opinião que os outros podem ter primitivas7 3 .
a seu respeito, excita em nós a glória, e
o mal, a vergonha. Mas o número das que são simples e
72
As obras que tratam das paixões, numerosas no
Art. 67. O fastio, o pesar e a alegria. século XVI, respeitavam ainda quase todas a divi-
são escolástica dos apetites entre o concupiscível e
o irascível (proveniente de Platão, cf. República,
E às vezes a duração do bem provo- 436 a 441 c). No concupiscível a alma sofre apenas
ca o tédio ou o fastio, ao passo que a a força de atração ou de repulsão do bem e do mal;
no irascível, ela tende a enfrentar a dificuldade. A
do mal diminui a tristeza. Enfim, do distinção entre a alma e o corpo torna caduca esta
bem passado resulta o pesar, que é divisão que Descartes julga arbitrária.
73
uma espécie de tristeza, e do mal pas- A enumeração de Descartes é superior, pensa
ele, pelo fato de permitir distinguir as paixões primi
sado resulta o júbilo, que é uma espé- tivas. Mas Descartes não nos informa segundo qual
cie de alegria. critério se efetua esta distinção.
AS PAIXÕES DA ALMA 255

primitivas não é muito grande. Pois, Art. 71. Que nesta paixão não ocorre
passando em revista todas as que enu- qualquer mudança no coração nem no
merei, pode-se facilmente notar que há sangue.
apenas seis que são tais, a saber: a
admiração, o amor, o ódio, o desejo, á E esta paixão tem a particularidade
alegria e a tristeza; e todas as outras de não notarmos de modo algum que
seja acompanhada de qualquer mudan-
compõem-se de algumas dessas seis,
ça no coração e no sangue, como acon-
ou então são suas espécies7 4 . Por isso, tece com outras paixões. A razão é
para que sua multidão não embarace que, não tendo nem o bem nem o mal
nossos leitores, tratarei aqui separada- por objeto, mas só o conhecimento da
mente das seis primitivas; e, em segui- coisa que se admira, ela não se rela-
da, mostrarei de que forma todas as ciona ao coração e ao sangue, dos
outras tiram daí sua origem. quais depende todo o bem do corpo,
mas apenas ao cérebro, onde ficam os
Art. 70. Da admiração; sua definição órgãos dos sentidos que servem a esse
e causa. conhecimento.

Art. 72. No que consiste a força da


A admiração é uma súbita surpresa admiração.
da alma, que a leva a considerar com
atenção os objetos que lhe parecem O que não a impede de ter muita
raros e extraordinários. Assim, é cau- força por causa da surpresa, isto é, da
sada primeiramente pela impressão súbita e inopinada ocorrência da im-
que se tem no cérebro, que representa o pressão que modifica o movimento dos
objeto como raro e, por conseguinte, espíritos, surpresa que é própria e ar-
digno de ser muito considerado; em ticular a esta paixão; de sorte que,
seguida, pelo movimento dos espíritos, quando se encontra em outras, como
que são dispostos por essa impressão a costuma encontrar-se em quase todas e
tender com grande força ao lugar do aumentá-las, é porque a admiração
cérebro onde ela se encontra 7 5 , a fim está unida a elas. E a sua força depen-
de fortalecê-la e conservá-la aí; como de de duas coisas, a saber, da novidade
também são dispostas por ela a passar e do fato de o movimento que a causa
daí aos músculos destinados a reter os possuir, desde o começo, toda a sua
órgãos dos sentidos na mesma situa- força. Pois é certo que tal movimento
ção em que se encontram, a fim de que produz mais efeito do que aqueles que,
seja ainda mantida por eles, se por eles sendo de início fracos e só crescendo
foi formada. pouco a pouco, podem ser facilmente
desviados. É certo também que os
74 objetos dos sentidos que são novos afe-
O art. 149 indicará simplesmente que essas seis
paixões "são como os géneros de que todas as ou- tam o cérebro em certas partes que não
tras constituem as espécies". Exemplo de recurso a costumam ser afetadas; e, sendo estas
uma implicação dos géneros e das espécies que Des- partes mais tenras ou menos firmes
cartes condenara no seu método. (Lívio Teixeira,
op. cit., pág. 166.) que as endurecidas por uma agitação
75
Cf. Cartas, a Elisabeth, de maio de 1646. "A frequente, isso aumenta o efeito dos
surpresa que ela contém causa os movimentos mais movimentos que esses objetos aí pro-
rápidos de todos."
256 DESCARTES

vocam. O que não se julgará incrível, fortalecer e conservar outros nos quais
se se considerar que uma razão aná- não vale a pena deter-se.
loga faz com que, estando a planta de
nossos pés habituada a um contato Art. 75. Para que serve particular-
bastante rude, devido ao peso do corpo mente a admiração.
que sustenta, sintamos muito pouco
esse contato quando andamos; ao
passo que outro muito menor e mais E pode-se dizer particularmente da
suave, como o das cócegas, nos é admiração que ela é útil porque nos
quase insuportável, por não nos ser leva a aprender e a reter em nossa
comum. memória coisas que dantes ignoráva-
mos; pois só admiramos o que nos pa-
rece raro e extraordinário; e coisa al-
Art. 73. O que é o espanto. guma pode parecer-nos assim senão
porque nós a ignorávamos, ou também
E essa surpresa tem tanto poder porque é diferente das coisas que
para levar os espíritos localizados nas conhecíamos; pois é essa diferença que
cavidades do cérebro ao lugar onde nos leva a chamá-la extraordinária.
está a impressão do objeto admirado Ora, ainda que uma coisa que nos era
que, por vezes, impele todos para lá e desconhecida se apresente de novo ao
os deixa de tal modo ocupados em nosso entendimento ou aos nossos sen-
conservar essa impressão que nenhum tidos, não a retemos por isso em nossa
deles passa ao cérebro, nem mesmo se memória, se a ideia que dela temos não
desvia de alguma forma das primeiras for fortalecida em nosso cérebro por
pegadas que seguiu no cérebro: o que alguma paixão, ou pela aplicação de
faz que o corpo inteiro permaneça nosso entendimento, que a nossa von-
imóvel como uma estátua e que só per- tade determina a uma atenção e refle-
cebamos do objeto a primeira face que xão particulares. E as outras paixões
se apresentou, e por conseguinte não podem servir-nos para notar as coisas
possamos adquirir dele um conheci- que parecem boas ou más, mas só dis-
mento mais particular. É isso o que se pomos da admiração para as que pare-
chama comumente estar espantado; e cem tão-somente raras. Por isso,
o espanto é um excesso de admiração vemos que os que não possuem qual-
que só pode ser mau. quer inclinação natural para essa pai-
xão são ordinariamente muito ignoran-
tes.
Art. 74. Para que servem todas as pai-
xões e no que elas prejudicam.
Art. 76. No que ela pode prejudicar e
Ora, é fácil saber, pelo que foi dito como se pode suprir sua falta e corrigir
acima, que a utilidade de todas as pai- seu excesso.
xões consiste apenas em fortalecer e
fazer durar na alma pensamentos, os Mas acontece muito mais admirar-
quais é bom que ela conserve, e que mos em demasia e nos espantarmos ao
poderiam facilmente, sem isso, ser perceber coisas que merecem pouca ou
obliterados. Assim como todo o mal nenhuma consideração, do que admi-
que podem causar consiste em fortale- rarmos demasiado pouco. E isso pode
cer e conservar esses pensamentos subtrair inteiramente ou perverter o
mais do que o necessário, ou então em uso da razão. Daí por que, embora seja
AS PAIXÕES DA ALMA 257

bom ter nascido com alguma inclina- encontramos coisas raras que admira-
ção para esta paixão, porque isso nos mos, mais nos acostumamos a cessar
dispõe para a aquisição das ciências, de admirá-las e a pensar que todas as
devemos todavia esforçar-nos em se- que podem apresentar-se depois são
guida para nos libertar dela o mais vulgares, todavia, quando é excessiva e
possível7 6 . Pois é fácil suprir a sua nos leva somente a deter a atenção na
falta por uma reflexão e atenção parti- primeira imagem dos objetos que se
culares, a que a nossa vontade sempre apresentarem, sem adquirir deles outro
pode obrigar nosso entendimento conhecimento, deixa atrás de si um há-
quando julgamos que a coisa que se bito que dispõe a alma a deter-se do
apresenta vale a pena; mas não há mesmo modo em todos os outros obje-
outro remédio para impedir o admirar
tos que se apresentem, desde que lhe
excessivo senão adquirir o conheci-
pareçam, por pouco que seja, novos. E
mento de muitas coisas e exercitar-nos
na consideração de todas as que pos- é isso que faz durar a moléstia dos que
sam parecer mais raras e mais estra- são cegamente curiosos 7 7 , isto é, que
nhas. procuram as raridades somente para
admirá-las e não para conhecê-las:
pois tornam-se pouco a pouco tão
Art. 77. Que não são nem os mais
admirativos, que coisas de importância
estúpidos nem os mais hábeis os mais
nula não são menos capazes de retê-los
propensos à admiração.
do que aquelas cuja pesquisa é mais
útil.
De resto, embora só os embrute-
cidos e estúpidos não sejam levados
naturalmente à admiração, isto não Art. 79. As definições do amor e do
significa dizer que os mais dotados de ódio7S.
espírito sejam os mais inclinados a ela;
mas são principalmente os que, embo- O amor é uma emoção da alma cau-
ra possuam um senso comum assaz sada pelo movimento dos espíritos que
bom, não têm, todavia, em grande a incita a unir-se voluntariamente aos
conta sua própria suficiência. objetos que lhe parecem convenientes.
E o ódio é uma emoção causada pelos
Art. 78. Que o seu excesso pode espíritos que incita a alma a querer
converter-se em hábito quando se estar separada dos objetos que se lhe
deixa de corrigi-lo. apresentam como nocivos. Eu digo que
tais emoções são causadas pelos espíri-
E, conquanto essa paixão pareça tos a fim de distinguir o amor e o ódio,
diminuir com o uso, pois, quanto mais que são paixões e dependem do corpo,
tanto dos juízos que levam também a
76
alma a se unir voluntariamente às coi-
A admiração pode estar na origem da ciência,
mas, enquanto paixão, ela nos distancia do exercí- sas que ela considera boas e a se sepa-
cio da ciência. Encontram-se na correspondência de rar daquelas que considera más como
Descartes muitos ataques contra os amantes de
maravilhas. Por exemplo, a propósito da história de
uma jovem que apresenta todos os dias sobre o
77
corpo as chagas dos mártires cujas festas são cele- O excesso de uma paixão é uma doença, desde
bradas, escreve: "O bom padre Mersenne é tão que não se tome a palavra no sentido patológico.
78
curioso e fica tão alegre em ouvir alguma maravilha O autor vai analisar as cinco outras paixões do
que escuta favoravelmente todos os que lhe contam ponto de vista psicológico (arts. 79-96) e depois
uma". (A Huyghens, 12 de março de 1640.) fisiológico (arts. 96-136).
258 DESCARTES

das emoções que só esses juízos exci- volência, isto é, unimos-lhe também
tam na alma 7 9 . voluntariamente as coisas que cremos
lhe serem convenientes: o que é um dos
Art. 80. O que significa unir-se ou principais efeitos do amor. E se julgar-
separar-se voluntariamente. mos que é um bem possuí-lo ou lhe
estar associado de outra forma que não
a voluntária, desejamo-lo: o que é tam-
De resto, pela palavra voluntaria-
bém um dos mais comuns efeitos do
mente, não pretendo falar aqui do
amor.
desejo 80 , que é uma paixão à parte e se
relaciona com o porvir; mas do con-
sentimento pelo qual nos consideramos Art. 82. Como paixões muito diferen-
presentemente unidos com o que ama- tes combinam na medida em que parti-
mos, de sorte que imaginamos um todo cipam do amor.
do qual pensamos constituir apenas
uma parte, e do qual a coisa amada é a Não é necessário também distinguir
outra. Como, ao contrário, no ódio tantas espécies de amor quantos os
nos consideramos como um todo só diversos objetos que se podem amar;
inteiramente separado da coisa pela pois, por exemplo, embora a paixão
qual se tem aversão. que um ambicioso nutre pela glória,
um avarento pelo dinheiro, um bêbado
Art. 81. Da distinção que se costuma pelo vinho, um bruto pela mulher que
fazer entre o amor de concupiscência e deseja violar, um homem de honra por
o de benevolência. seu amigo ou por sua amante e um
bom pai por seus Filhos, sejam muito
Ora, distinguem-se comumente duas diferentes entre si, todavia, por partici-
espécies de amor, uma das quais é cha- parem do amor, são semelhantes. Mas
mada amor de benevolência, isto é, que os quatro primeiros têm amor apenas
incita a querer o bem para o que se pela posse dos objetos aos quais se re-
ama; a outra é chamada amor de fere sua paixão 81 , e não o têm pelos
concupiscência, isto é, que leva a dese- objetos mesmos, pelos quais nutrem
jar a coisa que se ama. Mas me parece somente desejo misturado com outras
que essa distinção considera apenas os paixões particulares, ao passo que o
efeitos do amor, e não a sua essência; amor de um bom pai por seus filhos é
pois, tão logo nos unimos voluntaria- tão puro que nada deseja deles e não
mente a algum objeto, de qualquer quer possuí-los de outra maneira senão
natureza que seja, temos por ele bene- como o faz, nem estar unido a eles
mais estreitamente do que já o está;
79
mas, considerando-os como outros
Enquanto paixão, o amor não é apenas a anteci-
pação consciente do bem ao qual desejo estar tantos ele próprio, procura o bem deles
unido: esta antecipação torna-se inseparável de sua como o seu próprio, ou mesmo com
ressonância orgânica. Sobre os sentimentos pura- mais cuidado, porque, representando-
mente intelectuais, cf. art. 147.
80
O amor, neste sentido, deve ser diferenciado do
desejo (o amor no sentido comum será, ao contrá-
8
rio, o desejo que nasce do agrado, cf. art. 90). Ele ' A sexualidade está portanto afastada da essên-
não é a consciência da necessidade que se refere ao cia do amor. Sobre esta ideologia do amor (insepa-
alimento ou ao objeto sexual, mas reveste ao mesmo rável no século XVII do preciosismo) e seu con-
tempo o amor pela glória, pelo dinheiro, pela pá- teúdo social, poder-se-á consultar: René Bray, La
tria. . . É em outro nível, como há de indicar o arti- Préciosité et les Précieux; Octave Nada, Le Senti-
go seguinte, que o amor poderá compor-se com o ment de I 'Amour dans t'Oluvre de Corneilte; Paul
desejo. Bénichou, Morales du Grand Siècle.
AS PAIXÕES DA ALMA 259

se formar com eles um todo, do qual país ou nossa cidade, e mesmo por um
não é a melhor parte, prefere muitas homem particular, quando o estima-
vezes os interesses deles aos próprios e mos mais do que a nós próprios. Ora, a
não teme perder-se para salvá-los. A diferença que existe entre essas três
afeição que as pessoas de honra sen- espécies de amor aparece principal-
tem por seus amigos é dessa natureza, mente através de seus efeitos; pois,
embora raramente seja tão perfeita; e a posto que em todas nos consideramos
que sentem pela amada participa unidos e juntos à coisa amada, esta-
muito dela, mas também participa um mos sempre prontos a abandonar a
pouco da outra. parte menor do todo que se compõe
com ela para conservar a outra; o que
Art. 83. Da diferença entre a simples faz com que, na simples afeição, se
afeição, a amizade e a devoção*2. prefira sempre a si próprio ao que se
ama e que, ao contrário, na devoção se
Pode-se, parece-me, com melhor prefira de tal modo a coisa amada ao
razão ainda distinguir o amor pela esti- eu próprio que não se receia morrer
ma que se dedica ao que amamos em para conservá-la. Viram-se muitas
comparação com nós próprios; pois, vezes exemplos disso nos que se expu-
quando estimamos o objeto de nosso seram à morte certa em defesa de seu
amor menos que a nós mesmos, senti- príncipe ou de sua cidade, e até, algu-
mos por ele simples afeição; quando o mas vezes, de pessoas particulares às
estimamos tal como a nós próprios, quais se haviam devotado.
isso se chama amizade; e, quando o
estimamos mais, a paixão que alimen- Art. 84. Que não há tantas espécies de
tamos pode ser chamada devoção. ódio como de amor.
Assim, pode-se ter afeição por uma
flor, por um pássaro, por um cavalo; De resto, ainda que o ódio seja dire-
porém, a não ser que se tenha o espí- tamente oposto ao amor, não se distin-
rito muito desregrado, não se pode nu- guem nele todavia tantas espécies, por-
trir amizade senão pelos homens. E que não se nota tanto à diferença que
eles são de tal modo objeto dessa pai- existe entre os males de que se está
xão, que não há homem tão imperfeito separado voluntariamente como a que
que não se lhe possa dedicar amizade existe entre os bens a que se está unido.
muito perfeita, quando se pensa ser
amado por ele e se tem a alma verda- Art. 85. Do agrado e do horror.
deiramente nobre e generosa, conforme
o que será explicado mais adiante nos E não encontro senão uma única
artigos 154 e 156. No que concerne à distinção considerável que seja aná-
devoção, seu principal objeto é, sem loga num e noutro. Consiste em que os
dúvida, a soberana Divindade, em rela- objetos, tanto do amor como do ódio,
ção à qual não podemos deixar de ser podem ser representados à alma pelos
devotos quando a conhecemos como se sentidos exteriores, ou então pelos inte-
deve; mas podemos também sentir riores e por sua própria razão; pois
devoção por nosso príncipe, pelo nosso denominamos comumente bem ou mal
aquilo que nossos sentidos interiores
82
Acerca desse artigo, cf. Cartas, a Chanut, de 1."
ou nossa razão nos levam a julgar
de fevereiro de 1647. conveniente ou contrário à nossa natu-
260 DESCARTES

reza; mas denominamos belo ou feio convenientes8 4.~ Assim, não se deseja
aquilo que nos é assim representado apenas a presença do bem ausente mas
por nossos sentidos exteriores, princi- também a conservação do presente, e
palmente pelo da visão, o qual por si demais a ausência do mal, tanto
só é mais considerado que todos os daquele que já se tem como daquele
outros 8 3 ; daí nascem duas espécies de que se julga poder ainda colher no
amor, a saber, o que se tem pelas coi- futuro.
sas boas e o que se tem pelas belas, ao
qual se pode dar o nome de agrado a Art. 87. Que é uma paixão que não
fim de não o confundir com o outro, tem contrário.
nem tampouco com o desejo, a que
muitas vezes se atribui o nome de Sei muito bem que comumente na
amor; e daí nascem, da mesma forma, Escola se opõe a paixão que tende à
duas espécies de ódio, uma das quais procura do bem, a única que se deno-
se relaciona com as coisas más e a mina desejo, àquela que tende à fuga
outra com as feias; e esta última pode do mal, a qual se denomina aversão.
ser chamada horror ou aversão, para Mas, desde que não há qualquer bem
distingui-la da outra. Mas o que há cuja privação não seja um mal, nem
nisto de mais notável é que essas pai- qualquer mal considerado como coisa
xões de agrado e horror costumam ser positiva cuja privação não seja um
mais violentas que as outras espécies bem, e que, buscando, por exemplo, as
de amor ou de ódio, visto que o que riquezas, foge-se necessariamente da
chega à alma pelos sentidos toca mais pobreza e, ao fugir das doenças, procu-
fortemente do que aquilo que lhe é ra-se a saúde e assim por diante, pare-
representado pela razão, e que, no ce-me que é sempre um mesmo movi-
entanto, elas contêm comumente' mento que leva à busca do bem e
menos verdade; de sorte que, de todas conjuntamente à fuga do mal que lhe é
as paixões, são as que mais enganam e contrário 8 5 . Observo nisto apenas a
das quais é preciso mais cuidadosa- diferença de que o desejo alimentado,
mente se guardar. quando se tende a algum bem, é acom-
panhado de amor e em seguida de
esperança e alegria; ao passo que o
Art. 86. A definição do desejo. mesmo desejo, quando se tende a
distanciar-se do mal contrário a esse
A paixão do desejo é uma agitação bem, é acompanhado de ódio, de temor
da alma causada pelos espíritos que a
dispõem a querer para o futuro as coi-
84
sas que se lhe representam como No desejo, síntese do "concupiscível" e do
"irascível", a emoção só tem sentido com respeito à
volição. Para Spinoza, o desejo (definido como a
83
"O termo belo parece reportar-se mais particu- ideia do esforço que o corpo existente desenvolve
larmente ao sentido da vista." (A Mersenne, 18 de para perseverar no ser) não será mais uma paixão,
março de 1630.) O belo e o feio provocam senti- porém a condição de todas as paixões, pois estas
mentos mais vivos porque são representados sem não passam de elaborações diversas do desejo pela
julgamento à base dos dados sensoriais. Em um ar- imaginação. Daí uma diferença radical com Des
tigo dos Etudes Cartésiennes (IX Congrès Int. cartes: a alma encarnada não sofre paixão, ela é
Philo., 1937, Hermann), Victor Basch demonstrou inteiramente paixão — ao mesmo tempo, a paixão,
haver em Descartes os elementos de uma estética não dependendo mais de um substrato psicológico,
sensualista e empirista: "O que comprouver a mais terá mais liberdade aparente em suas construções.
8 5
gente poder-se-á chamar o belo". (A Mersenne, ibi- Não sendo o desejo senão inclinação para a
dem.) Cabe notar aqui a assimilação do agrado sen- ação, não pode ser modificado pela orientação
sorial ao sentimento do belo. desta.
AS PAIXÕES DA ALMA 261

e tristeza; o que é causa de o julgarem se primeiramente tanta emoção como


contrário a si mesmo. Mas, se se quer se um perigo de morte mui evidente se
considerá-lo quando ele se refere igual oferecesse aos sentidos, o que engendra
e simultaneamente a algum bem para repentinamente a agitação que leva a
procurá-lo e ao mal oposto para evitá- alma a empregar todas as suas forças
lo, pode-se ver mui evidentemente que para evitar um mal tão presente; e é
um e outro constituem apenas uma essa mesma espécie de desejo que se
única paixão. chama comumente de fuga ou aversão.

Art. 88. Quais são as suas diversas Art. 90. Qual é o que nasce do agrado.
espécies.
Ao contrário, o agrado foi particu-
Haveria mais razão de distinguir o larmente instituído pela natureza para
desejo em tantas espécies diversas representar o gozo do que agrada
quão diversos os objetos que se procu- como o maior de todos os bens perten-
ram; pois, por exemplo, a curiosidade, centes ao homem, o que faz desejar
que não é senão um desejo de conhe- ardentemente esse gozo. É verdade que
cer, difere muito do desejo de glória, e há diversas espécies de agrados e que
este do desejo de vingança, e assim por os desejos daí oriundos não são todos
diante. Mas aqui basta saber que há igualmente poderosos; pois, por exem-
tantos desejos quantas espécies de plo, a beleza das flores nos incita
amor ou de ódio e que os mais conside- somente a mirá-las, e a dos frutos, a
ráveis e os mais fortes são os que nas- comê-los8 6 . Mas o principal é o prove-
cem do agrado e do horror. niente das perfeições que imaginamos
numa pessoa que pensamos capaz de
tornar-se outro nós mesmos; pois, com
Art. 89. Qual é o desejo que nasce do a diferença do sexo, que a natureza
horror. estabeleceu nos homens bem como nos
animais destituídos de razão, ela esta-
Ora, conquanto seja apenas um beleceu também certas impressões no
mesmo desejo que tende à busca de um cérebro que fazem com que, em certa
bem e à fuga do mal que lhe é contrá- idade e em certo tempo, nos conside-
rio, assim como já foi dito, o desejo remos como defeituosos e como se não
que nasce do agrado não deixa de ser fôssemos senão a metade de um todo,
muito diferente daquele que nasce do do qual uma pessoa do outro sexo deve
horror; pois este agrado e este horror, constituir a outra metade, de sorte que
que verdadeiramente são contrários, a aquisição dessa metade é confusa-
não são o bem e o mal que servem de mente representada pela natureza
objetos a tais desejos, mas somente como o maior de todos os bens imagi-
duas emoções da alma que a predis- náveis. E, ainda que se veja muitas pes-
põem a buscar duas coisas muito dife- soas desse outro sexo, nem por isso se
rentes, a saber: o horror é instituído deseja muitas ao mesmo tempo, posto
pela natureza para representar à alma que a natureza não leva a imaginar que
uma morte súbita e inopinada, de sorte se necessite de mais de uma metade.
que, embora seja às vezes apenas o Mas, quando numa se observa algo
contato de um vermezinho, ou o rumor
de uma folha tremulante, ou a sua 8 6
Reafirmação de uma simples diferença de grau
sombra, que provoque o horror, sente- entre o agrado sensual e o prazer estético.
262 DESCARTES

que agrada mais do que aquilo que se gozo que ela frui do bem que seu
observa ao mesmo tempo nas outras, entendimento lhe representa como
isso determina a alma a sentir somente seu 88 . É verdade que, enquanto a alma
por ela todo o pendor que a natureza está unida ao corpo, essa alegria inte-
lhe dá para procurar o bem que ela lhe lectual não pode deixar de ser acompa-
representa como o maior que se possa nhada da outra, que é uma paixão;
possuir8 7 ; e esta inclinação ou este de- pois, tão logo o nosso entendimento
sejo que nasce assim do agrado leva percebe que possuímos algum bem,
mais comumente o nome de amor do embora este bem possa ser tão dife-
que a paixão de amor acima descrita. rente de tudo quanto pertence ao corpo
Por isso, produz os mais estranhos que não seja de modo algum imaginá-
efeitos e é ele que serve de principal vel, a imaginação não deixa de provo-
matéria aos fazedores de romances e car incontinenti alguma impressão no
aos poetas. cérebro, da qual se segue o movimento
dos espíritos que excita a paixão da
Art. 91. A definição da alegria. alegria.

A alegria é uma agradável emoção Art. 92. A definição da tristeza.


da alma, na qual consiste o gozo que
ela frui do bem que as impressões do A tristeza é um langor desagradável
cérebro lhe representam como seu. no qual consiste a incomodidade que a
Digo que é nessa emoção que consite o alma recebe do mal, ou do defeito que
gozo do bem; pois, com efeito, a alma as impressões do cérebro lhe repre-
não recebe nenhum outro fruto de sentam como lhe pertencendo. E há
todos os bens que possui; e, enquanto também uma tristeza intelectual que
não extrai deles nenhuma alegria, não é a paixão, mas que quase nunca
pode-se dizer que não os desfruta mais deixa de acompanhá-la.
do que se não os possuísse de modo
algum. Acrescento também que se Art. 93. Quais são as causas dessas
trata do bem que as impressões do cé- duas paixões.
rebro lhe representam como seu, a fim
de não confundir esta alegria, que é Ora, quando a alegria ou a tristeza
uma paixão, com a alegria puramente intelectual excitam assim aquela que é
intelectual, que chega à alma pela uma paixão, sua causa é assaz eviden-
exclusiva ação da alma, e que se pode te; e vê-se, por suas definições, que a
considerar uma agradável emoção ex- alegria provém da opinião que se tem
citada em si própria, na qual consiste o de possuir algum bem, e a tristeza da
opinião que se tem de encerrar algum
8 7
Há, portanto, na origem uma representação ma! ou algum defeito. Mas acontece
"confusa" do gozo que incidirá num objeto determi- amiúde que nos sentimos tristes ou ale-
nado, muitas vezes graças a um processo-de condi- gres sem que possamos tão distinta-
cionamento. "Quando eu era criança, amava uma
menina de minha idade que era um pouco vesga; mente advertir o bem ou o mal que são
motivo pelo qual a impressão que se produzia pela
vista em meu cérebro, quando eu mirava os seus
88
olhos esgazeados, juntava-se de tal modo à que se Outro exemplo de emoção exclusiva da alma
produzia nele para excitar em mim a paixão do que não merece o nome de "paixão" no sentido
amor, que muito tempo depois, vendo pessoas estrá- estrito. Mas, por meio da imaginação, esse senti-
bicas, sentia-me mais propenso a amá-las do que a mento puramente intelectual é convertido em pai-
amar outras. . . " (Carias, a Chanut, 6 de junho de xão. No plano da união, a distinção entre as duas
1647.) "alegrias" é, portanto, de direito, e não de fato.
AS PAIXÕES DA ALMA 263

suas causas, a saber, quando este bem Mas a causa de ser a alegria de ordiná-
ou este mal provocam suas impressões rio seguida pelo prazer é que tudo o
no cérebro sem o intermédio da que se chama prazer ou sentimento
alma 89 , às vezes porque pertencem agradável consiste em que os objetos
apenas ao corpo, e outras vezes tam- dos sentidos excitam nos nervos algum
bém, ainda que pertençam à alma, por- movimento que seria capaz de prejudi-
que ela não os considera como bem ou cá-los se não tivessem bastante força
mal, mas sob outra forma qualquer, para lhe resistir, ou se o corpo não esti-
cuja impressão está unida à do bem e vesse bem disposto; o que provoca
do mal no cérebro 90 . uma impressão no cérebro, a qual,
sendo instituída pela natureza a fim de
Art. 94. Como essas paixões são exci- testemunhar esta boa disposição e esta
tadas por bens e males que se referem força, a representa à alma como um
apenas ao corpo, e no que consistem o bem que lhe pertence, na medida em
prazer físico9'' eddor. que está unida ao corpo, e assim excita
nela a alegria. E quase a mesma razão
Assim, quando gozamos de plena que nos leva a obter naturalmente pra-
saúde e o tempo é mais sereno do que zer em nos sentirmos comovidos por
de costume, sentimos em nós um todas as espécies de paixões, mesmo
contentamento que não provém de com a tristeza e o ódio, quando essas
nenhuma função do entendimento, mas paixões são causadas apenas pelas
somente das impressões que o movi- estranhas aventuras a cuja represen-
mento dos espíritos provoca no cére- tação assistimos num teatro 93 , ou por
bro; e sentimo-nos igualmente tristes outros meios semelhantes, que, não
como quando o corpo está indisposto, podendo nos prejudicar de maneira
embora não saibamos que ele o esteja. alguma, parecem aprazer nossa alma,
Assim, o prazer dos sentidos é seguido tocando-a. E a causa de que a dor pro-
de tão perto pela alegria, e a dor pela duz de ordinário a tristeza é que o sen-
tristeza, que a maioria dos homens não timento chamado dor provém sempre
os distingue de modo algum 92 . To- de alguma ação tão violenta que ofen-
davia, diferem tanto que podemos de os nervos; de sorte que, sendo insti-
algumas vezes sofrer dores com alegria tuído pela natureza para significar à
e receber prazeres que desagradam. alma o dano que o corpo recebe por
essa ação, e a sua fraqueza no fato de
89
"Sem o intermédio da alma não significa que
não lhe ter podido resistir, representa-
não tenhamos consciência desses estados, porque se lhe um e outro como males que lhe são
assim fosse elas não seriam paixões, mas apenas sempre desagradáveis, exceto quando
que a causa deles não é a ideia de algum bem que
possuímos ou de um mal que nos afeta. A causa causam alguns bens que ela aprecia
deles é um estado puramente fisjológico." (Lívio mais do que a eles.
Teixeira, op. cil., pág. 174.)
90
Ou então sua causa pode ser uma associação
tornada inconsciente. "Assim, quando somos leva-
92
dos a amar alguém sem que saibamos a causa, Assim como a alegria intelectual e a "paixão"
podemos crer que isso vem do fato de haver algo na qual ela se insere, cumpre distinguir o bem-estar
nele de semelhante ao que houve em outro objeto fisiológico e a paixão de alegria que ele produz.
que amamos anteriormente, embora não saibamos o 93
O estudo fisiológico começa pela descrição dos
que é." (Cartas, a Chanut, 6 de junho de 1647.) movimentos corporais observados em cada uma das
91
Em francês chatouillemeni: prazer proveniente cinco paixões. Cf. Cartas, a Elisabeth, maio de
de cócegas. Traduzimos por "prazer físico" por 1646: "É verdade que tive dificuldade em distinguir
falta de correspondente exato para o termo. (TV. dos os que pertencem a cada paixão porque elas nunca
T.) estão sós".
264 DESCARTES

Art. 95. Como podem também ser em que servem à produção do sangue e
excitados por bens e males que a alma depois dos espíritos; pois, embora
não nota, ainda que lhe pertençam; todas as veias conduzam o sangue que
como são os prazeres que tiramos do elas contêm para o coração, acontece,
aventurar-se ou do lembrar-se do mal no entanto, às vezes, que o de algumas
passado. é impelido para ele com mais força do
que o de outras; e acontece também
Assim, o prazer que sentem muitas que as aberturas por onde entra no
vezes as pessoas jovens em empreender coração, ou, então, aquelas por onde
coisas difíceis e em expor-se a grandes sai, são às vezes mais largas ou mais
perigos, embora não esperem daí qual-
apertadas umas que as outras.
quer proveito ou qualquer glória, surge
neles porque o pensamento de que é
difícil aquilo que empreendem provoca Art. 97. As principais experiências
em seus cérebros uma impressão que, que servem para conhecer esses movi-
unida àquela que poderiam formar se mentos no amor.
pensassem que é um bem sentir-se bas-
tante corajoso, bastante feliz, bastante Ora, considerando as diversas alte-
destro ou bastante forte, para se arris- rações que a experiência mostra em
car a tal ponto, é causa de que obte- nosso corpo enquanto nossa alma é
nham prazer disso. E o contentamento agitada por diversas paixões, observo
que sentem os velhos quando se lem- no amor, quando está só, isto é, quan-
bram dos males que sofreram provém do não se acha acompanhado de qual-
de que eles se representam ser um bem quer intensa alegria, ou desejo, ou tris-
o fato de terem podido, apesar de tudo, teza, que o batimento do pulso é igual
subsistir. e muito maior e mais forte que de cos-
tume; que se sente um doce calor no
Art. 96. Quais são os movimentos do peito, e que a digestão dos alimentos se
sangue e dos espíritos que causam as faz mui prontamente no estômago, de
cinco paixões precedentes* 4 . modo que essa paixão é útil para a
saúde.
As cinco paixões que comecei a
explicar aqui se acham de tal modo Art. 98. No ódio.
unidas ou opostas umas às outras que
é mais fácil considerá-las todas em Observo, ao contrário, no ódio, que
conjunto do que tratar de cada uma o pulso é desigual e mais fraco, e amiú-
separadamente, assim como se tratou de mais rápido; que se sentem frialda-
da admiração; e diferentemente dessa, des entremescladas de certo calor áspe-
a causa dessas paixões não reside uni- ro e picante no peito; que o estômago
camente no cérebro, mas também no deixa de cumprir sua função e tende a
coração, no baço, no fígado e em todas vomitar e rejeitar os alimentos ingeri-
as outras partes do corpo, na medida dos, ou ao menos a corrompê-los e a
convertê-los em maus humores.
94
Sobre o prazer ambíguo que o espetáculo trá-
gico proporciona, cf. Cartas, a Elisabeth, 6 de outu- Art. 99. Na alegria.
bro de 1645. Descartes já escrevia no Compendium
Musicae: "As elegias mesmas e as tragédias nos
agradam tanto mais quanto mais excitam em nós Na alegria, que o pulso é igual e
compaixão e dor. . .". mais rápido que de ordinário, mas que
AS PAIXÕES DA ALMA 265

não é tão forte ou tão grande como no vos do sexto par, aos músculos situa-
amor; e que se sente um calor agradá- dos em torno dos intestinos e do estô-
vel que não fica apenas no peito, mas mago, da forma requerida a levar o
se espalha também por todas as partes suco dos alimentos, que se converteu
externas do corpo, com o sangue que em sangue novo, a passar prontamente
para lá aflui em abundância; e que no ao coração sem se deter no fígado, e,
entanto se perde às vezes o apetite, sendo aí impelido com mais força do
porque a digestão se faz pior do que de que o é em outras partes do corpo, a
costume. entrar no coração com maior abun-
dância e excitar nele um calor maior,
Art. 100. Na tristeza. por ser mais grosso do que aquele que
já foi rarefeito muitas vezes ao passar e
repassar pelo coração; o que o faz en-
Na tristeza, que o pulso é fraco e viar também espíritos ao cérebro cujas
lento, e que sentimos em torno do partes são mais grossas e mais agita-
coração como laços, que o apertam, e das que de ordinário; e esses espíritos,
pedaços de gelo que o gelam e comuni- fortalecendo a impressão que o pri-
cam sua frialdade ao resto do corpo; e meiro pensamento do objeto amável
que, apesar disso, não se deixa de ter nele ocasionou, obrigam a alma a
por vezes bom apetite e sentir que o deter-se nesse pensamento; e é nisso
estômago não deixa de cumprir o seu que consiste a paixão do amor.
dever, contanto que não haja ódio mis-
turado à tristeza.
Art. 103. No ódio.
Art. 101. No desejo.
Ao contrário, no ódio, o primeiro
Enfim, noto, de particular, no dese- pensamento do objeto que produz
jo, que este agita o coração mais aversão conduz de tal modo os espíri-
violentamente do que quaisquer das tos existentes no cérebro para os mús-
outras paixões, e fornece ao cérebro culos do estômago e dos intestinos que
mais espíritos, os quais, passando daí impedem o suco dos alimentos de se
aos músculos, tornam todos os senti- misturar com o sangue, apertando
dos mais agudos e todas as partes do todas as aberturas por onde costuma
corpo mais móveis. correr; e condu-los também de tal
modo aos pequenos nervos do baço e
Art. 102. O movimento do sangue e da parte inferior do fígado, onde fica o
dos espíritos no amor9 5 . receptáculo da bile, que as partes do
sangue que costumam ser rejeitadas
para esses lugares deles saem e correm,
Essas observações, e muitas outras com o sangue que está nos ramos da
que seria demasiado longo relacionar, veia cava, para o coração; o que causa
deram-me motivo para julgar que, muitas desigualdades em seu calor,
quando o entendimento se representa tanto mais que o sangue proveniente
qualquer objeto de amor, a impressão do baço não se aquece e não se rarefaz
que tal pensamento efetua no cérebro senão a custo, e que, ao contrário, o
conduz os espíritos animais, pelos ner- procedente da parte inferior do fígado,
95
onde há sempre fel, se abrasa e dilata
Estudo dos fenómenos circulatórios nas paixões mui rapidamente; daí se segue que os
e de suas causas (arts. 102- 111).
266 DESCARTES

espíritos que vão para o cérebro tam- Art. 106. No desejo.


bém têm partes muito desiguais e
movimentos muito extraordinários; Enfim, a paixão do desejo tem isto
donde resulta que fortalecem nele as de próprio, que a vontade de obter
ideias de ódio que já encontram aí algum bem ou de fugir de algum mal
impressas, e dispõem a alma a pensa- envia prontamente os espíritos do cére-
mentos cheios de acritude e amargura. bro a todas as partes do corpo capazes
de servir às ações requeridas para tal
Art. 104. Na alegria. efeito, e particularmente ao coração e
às partes que lhe fornecem mais san-
Na alegria não são tanto os nervos gue, a fim de que, recebendo-o em
do baço, do fígado, do estômago ou maior abundância do que de costume,
dos intestinos que atuam, mas os que envie maior quantidade de espíritos ao
existem em todo o resto do corpo, e cérebro, tanto para entreter e fortalecer
particularmente aquele que fica em nele a ideia dessa vontade, como para
torno dos orifícios do coração, o qual, passar daí a todos os órgãos dos senti-
abrindo e alargando tais orifícios, per- dos e todos os músculos que podem ser
mite ao sangue, que os outros nervos empregados para obter o que se alme-
expulsam das veias para o coração, en- ja.
trar e sair em maior quantidade que de
costume; e, como o sangue que então Art. 107. Qual é a causa desses movi-
penetra no coração já passou e repas- mentos no amor9 6 .
sou aí muitas vezes, vindo das artérias
para as veias, ele se dilata mui facil-
E do que foi dito acima deduzo as
mente e produz espíritos cujas partes,
razões de tudo isso, que há tal ligação
sendo muito iguais e sutis, são próprias
entre nossa alma e nosso corpo que,
para formar e fortalecer as impressões
uma vez unida uma ação corporal a
do cérebro que dão à alma pensa-
um pensamento, nenhum dos dois pode
mentos alegres e tranquilos.
apresentar-se-nos em seguida sem que
0 outro também não se apresente:
Art. 105. Na tristeza. como se vê nos que, tomando com
grande aversão qualquer beberagem
Ao contrário, na tristeza, as abertu- quando doentes, não podem comer ou
ras do coração são fortemente con- beber depois nada que se aproxime do
traídas pelo pequeno nervo que as mesmo gosto sem sentir de novo a
envolve, e o sangue das veias não é de mesma aversão; e, analogamente, não
modo algum agitado, o que determina podem pensar na aversão que nutrem
que vá muito pouco para o coração; e, pelos remédios sem que o mesmo gosto
no entanto, as passagens por onde o lhes volte ao pensamento. Pois me pa-
suco dos alimentos corre do estômago rece que as primeiras paixões que a
e dos intestinos ao fígado permanecem nossa alma teve, quando começou a
abertas, o que faz com que o apetite estar unida a nosso corpo, se devem a
não diminua, exceto quando o ódio, o
qual muitas vezes está junto à tristeza, 96
Acerca dos arts. 107-111, cf. Cartas, a Chanut,
os fecha. 1 ° de fevereiro de 1647.
AS PAIXÕES DA ALMA 267

que algumas vezes o sangue, ou outro ódio. E se pode ver a olho nu que há no
suco que entrava no coração, era um fígado inúmeras veias ou condutos
alimento mais conveniente que o bastante largos, por onde o suco dos
comum para nele manter o calor, que é alimentos pode passar da veia porta
o princípio da vida; o que levava a para a veia cava, e daí para o coração,
alma ajuntar voluntariamente a si esse sem se deter de modo algum no fígado;
alimento, isto é, a amá-lo, e ao mesmo mas há também uma infinidade de ou-
tempo os espíritos corriam do cérebro tras menores, onde ele pode deter-se, e
para os músculos, que podiam pressio- que contêm sempre sangue de reserva,
nar ou agitar as partes de onde viera como faz também o baço; sangue esse
ao coração, para fazer que estas lhe que, sendo mais grosseiro do que aque-
enviassem mais; e tais partes eram o le que se acha em outras partes do
estômago e os intestinos, cuja agitação corpo, pode melhor servir de alimento
aumenta o apetite, ou também o fígado ao fogo que há no coração, quando o
e o pulmão, que os músculos do dia- estômago e os intestinos deixam de lho
fragma podem pressionar: eis por que fornecer.
desde então esse mesmo movimento
dos espíritos sempre acompanhou a Art. 109. Na alegria.
paixão do amor9 7 .
Aconteceu também algumas vezes,
Art. 108. No ódio. no começo de nossa vida, que o sangue
contido nas veias era um alimento bas-
Algumas vezes, ao contrário, chega- tante conveniente para manter o calor
va ao coração algum suco estranho, do corpo, e que elas o continham em
que não era próprio para manter o tal quantidade que não havia a necessi-
calor, ou que podia mesmo extingui-lo; dade de buscar qualquer alimento
o que levava os espíritos que subiam alhures; o que excitou na alma a pai-
do coração para o cérebro a provocar xão da alegria e fez, ao mesmo tempo,
na alma a paixão do ódio; e ao mesmo com que os orifícios do coração se
tempo também esses espíritos iam do abrissem mais do que de costume e que
cérebro aos nervos que podiam impelir os espíritos corressem, abundante-
o sangue do baço e das pequenas veias mente, do cérebro, não só para os ner-
do fígado para o coração, a fim de obs- vos que servem para abrir esses orifí-
tar que aí entrasse esse suco nocivo; e, cios, mas também, em geral, para
demais, àqueles que podiam repelir todos os outros que impelem o sangue
esse mesmo suco para os intestinos e das veias para o coração, e impedem
para o estômago, ou também às vezes que a ele venha de novo o do fígado,
obrigar o estômago a vomitá-lo: daí do baço, dos intestinos e do estômago;
resulta que esses mesmos movimentos eis por que esses mesmos movimentos
costumam acompanhar a paixão do acompanham a alegria.
9
' Existe uma ligação primitiva entre o movimento Art. 110. Na tristeza.
dos espíritos e os estados sinestésicos que resultam
do estado de calor do coração. Durante cada uma
dessas ligações, a alma experimenta pela primeira Às vezes, ao contrário, acontece que
vez o sentimento que desencadeará em seguida o
processo de auto-reforçamento do qual não era o corpo teve falta de alimento, e é o
originariamente senão o simples concomitante. que deve ter feito sentir à alma a sua
268 DESCARTES

primeira tristeza, ao menos a que não suficientemente a causa das diferenças


foi unida ao ódio. Isso mesmo fez tam- do pulso e de todas as outras proprie-
bém com que os orifícios do coração dades que atribuí mais acima a essas
se estreitassem, porque só recebem paixões, sem que seja necessário que
pouco sangue, e porque uma parte bem eu me detenha para explicá-las mais.
grande desse sangue veio do baço, pois Porém, como só notei em cada uma o
este é como que o último reservatório que se pode observar quando ela está
que serve para fornecê-lo ao coração só, e que serve para conhecer os movi-
quando a ele não vem o suficiente de mentos do sangue e dos espíritos que
outras partes; eis por que os movimen- as produzem, resta-me ainda tratar de
tos dos espíritos e dos nervos que ser- muitos sinais exteriores que costumam
vem para estreitar assim os orifícios do acompanhá-las, e que se percebem bem
coração e para levar-lhe sangue do melhor quando muitas se acham mis-
baço acompanham sempre a tristeza. turadas em conjunto, como costumam
estar, do que quando se acham separa-
Art. 111. No desejo. das. Os principais destes signos são as
ações dos olhos e do rosto, as mudan-
Enfim, todos os primeiros desejos ças de cor, os tremores, a languidez, o
que a alma pode ter nutrido, quando desmaio, os risos, as lágrimas, os
recém-juntada ao corpo, consistiram gemidos e os suspiros.
em receber as coisas que lhe eram
convenientes e repelir as que lhe eram Art. 113. Das ações dos olhos e do
nocivas; e foi para estes mesmos efei- rosto.
tos que os espíritos começaram desde
então a mover todos os músculos e
todos os órgãos dos sentidos em todas Não há nenhuma paixão que algu-
as formas que eles podem movê-los; ma ação particular dos olhos não
esta é a causa de que agora, quando a declare: e isso é tão manifesto em
alma deseja alguma coisa, todo o alguns, que mesmo os criados mais
corpo se torna mais ágil e mais dis- estúpidos podem notar nos olhos do
posto a mover-se do que costuma ser amo se este está zangado com eles ou
sem isso. E quando acontece, além do não está. Mas ainda que percebamos
mais, estar o corpo assim disposto, facilmente tais ações dos olhos e saiba-
isso torna os desejos da alma mais for- mos o que significam, nem por isso é
tes e mais ardentes 98 . fácil descrevê-las, porque cada uma se
compõe de muitas mudanças que ocor-
rem no movimento e na figura do olho,
Art. 112. Quais são os sinais exteriores
as quais são tão particulares e tão
dessas paixões".
pequenas que cada uma delas é imper-
ceptível separadamente, embora o que
O que estabeleci aqui faz entender
resulta de sua conjunção seja bastante
fácil de reparar. Pode-se dizer quase o
38
Esta embriogenia das paixões é indispensável à mesmo das ações do rosto que também
explicação do mecanismo delas. Do mesmo modo, acompanham as paixões; pois, embora
no plano da Física do corpo (e não mais da Psicofi- sejam maiores que as dos olhos, é
siologia), a Embriologia é necessária para a
compreensão da Fisiologia da nutrição. (Cf. Des- todavia incómodo distingui-las, e são
cription du Corps Humain.) tão pouco diferentes que há homens
99
Estudo dos sinais externos que acompanham as
paixões: arts. 112-136. que fazem quase a mesma expressão
AS PAIXÕES DA ALMA 269

quando choram que outros quando lhe dá um ar mais ridente e mais


riem. É verdade que existem algumas alegre.
que são assaz notáveis, como as rugas
da fronte, na cólera, e certos movimen- Art. 116. Como a tristeza faz empali-
tos do nariz e dos lábios na indignação decer.
e na zombaria, mas não parecem ser
tão naturais quanto voluntárias. E em
geral todas as ações, tanto do rosto A tristeza, ao contrário, estreitando
como dos olhos, podem ser modifi- os orifícios do coração, faz com que o
cadas pela alma, quando, querendo sangue corra mais lentamente nas
esconder sua paixão, ela imagina forte- veias e com que, tornando-se mais frio
mente outra contrária; de sorte que e mais espesso, tenha necessidade de
podemos utilizá-las tanto para dissi- ocupar nelas menos lugar; de sorte
mular nossas paixões como para decla- que, retirando-se das mais largas, que
rá-las. são as mais próximas do coração,
abandona as mais afastadas, e, sendo
as do rosto as mais visíveis, isto o faz
Art. 114. Das mudanças de cor. parecer pálido e descarnado, principal-
mente quando a tristeza é grande ou
Não podemos tão facilmente impe- sobrevêm prontamente, como vemos
dir-nos de ruborizar ou empalidecer no pavor, no qual a surpresa aumenta
quando alguma paixão nos dispõe a a ação que aperta o coração.
tanto, porque tais mudanças não de-
pendem dos nervos e dos músculos, Art. 117. Como se ruboriza muitas
como as precedentes, e provêm mais vezes estando-jse triste.
imediatamente do coração, o qual se
pode chamar a fonte das paixões, na
Mas acontece muitas vezes que não
medida em que prepara o sangue e os
empalidecemos estando tristes, e que,
espíritos para produzi-las. Ora, é certo
ao contrário, ruborizamos; o que se
que a cor do rosto não vem senão do
deve atribuir às paixões que se juntam
sangue, o qual, correndo continua-
à tristeza, a saber, o amor ou o desejo,
mente do coração, através das artérias,
e às vezes também o ódio. Pois tais
para todas as veias, e de todas as veias
paixões aquecem ou agitam o sangue
para o coração, colore mais ou menos
que vem do fígado, dos intestinos e de
o rosto, conforme preencha mais ou
outras partes interiores, impelem-no
menos as pequenas veias que se diri-
para o coração, e daí, pela grande arté-
gem à sua superfície.
ria, para as veias do rosto, sem que a
tristeza que aperta de um e de outro
Art. 115. Como a alegria faz rubori- lado os orifícios do coração possa
zar. impedir isso, exceto quando é excessi-
va. Mas, ainda que seja apenas mode-
Assim, a alegria torna a cor mais rada, impede facilmente que o sangue
viva e mais vermelha porque, abrindo assim vindo às veias do rosto desça
as comportas do coração, faz com que para o coração, enquanto o amor, o
o sangue corra mais depressa em todas desejo ou o ódio para ele impelem
as veias e com que, tornando-se mais outro sangue das partes interiores; eis
quente e mais sutil, infle moderada- por que este sangue, estando detido em
mente todas as partes do rosto, o que torno da face, a torna rubra, e mesmo
270 DESCARTES

mais rubra do que durante a alegria, espíritos ao cérebro que não podem ser
porque a cor do sangue parece tanto daí regularmente conduzidos para os
mais viva quanto corre menos rapida- músculos.
mente, e também porque assim se pode
reunir mais nas veias da face do que Art. 119. Da languidez.
quando os orifícios do coração estão
mais abertos. Isto transparece princi- A languidez é uma disposição para
palmente na vergonha, que é composta relaxar e ficar sem movimento, que é
de amor a si próprio e de um desejo pre- sentida em todos os membros; provém,
mente de evitar a infâmia presente, o tal como o tremor, do fato de não irem
que faz vir o sangue das partes interio- suficientes espíritos para os nervos,
res para o coração, depois daí, através mas de uma forma diferente; pois a
das artérias, para a face, e com isso causa do tremor é que não os há bas-
uma moderada tristeza que impede tantes no cérebro para obedecerem às
esse sangue de voltar ao coração. O determinações da glândula quando ela
mesmo transparece tão comumente os impele para algum músculo, ao
quando se chora; pois, como direi logo passo que o langor procede do fato de
mais, é o amor unido à tristeza que a glândula não os determinar a ir para
causa a maioria dás lágrimas; e o alguns músculos de preferência a ou-
mesmo surge na cólera, onde amiúde tros.
um rápido desejo de vingança se mistu-
ra ao amor, ao ódio e à tristeza. Art. 120. Como ela é causada pelo
amor epelo desejo.
Art. 118. Dos tremores.
E a paixão que causa mais comu-
Os tremores têm duas causas diver- mente este efeito é o amor, unido ao
sas: uma consiste no fato de chegarem desejo de uma coisa cuja aquisição não
às vezes muito poucos espíritos do cé- se imagina possível no momento pre-
rebro para os nervos, e a outra de às sente; pois o amor ocupa de tal forma
vezes chegarem aí em demasia para a alma em considerar o objeto amado,
poderem fechar bem as pequenas pas- que emprega todos os espíritos que se
sagens dos músculos que, segundo foi encontram no cérebro em representar-
dito no artigo 11, devem ser fechados lhe a imagem e detém todos os movi-
para determinar os movimentos dos mentos da glândula que não sirvam
membros. A primeira causa aparece na para tal efeito. E cumpre notar, no
tristeza e no medo, assim como quan- tocante ao desejo, que a propriedade
do trememos de frio, pois estas paixões que lhe atribuí de tornar o corpo mais
podem, da mesma maneira que a frial- móvel só lhe convém quando se imagi-
dade do ar, espessar o sangue de tal na que o objeto desejado é tal que se
forma que não forneça ao cérebro bas- pode desde esse momento fazer algo
tantes espíritos para enviá-los aos ner- que sirva para adquiri-lo; pois se, ao
vos. A outra causa aparece amiúde nos contrário, se imagina que é impossível
que desejam ardentemente algo, e nos naquele momento fazer algo de útil
que estão fortemente comovidos pela para isso, toda a agitação do desejo
cólera, como também nos que estão permanece no cérebro, sem passar de
ébrios: pois estas duas paixões, assim modo algum aos nervos, e sendo aí
como o vinho, fazem ir às vezes tantos inteiramente empregada em fortalecer
AS PAIXÕES DA ALMA 271

a ideia do objeto desejado, deixa o meio que ele abafa o fogo, o qual cos-
resto do corpo languescente. tuma manter quando entra no coração
apenas com medida.
Art. 121. Que também pode ser causa-
da por outras paixões. Art. 123. Por que não se desmaia de
tristeza.
É verdade que o ódio, a tristeza e
mesmo a alegria também podem cau- Parece que uma grande tristeza
sar certo langor quando são muito vio- sobrevinda inopinadamente deve aper-
lentos, porque ocupam inteiramente a tar de tal modo os orifícios do coração
alma em considerar seu objeto, princi- que pode também extinguir-lhe o fogo;
palmente quando se lhe junta o desejo mas, não obstante, não se observa que
de uma coisa para cuja aquisição em isso aconteça, ou, se acontece, é muito
nada podemos contribuir no momento raramente; a razão disso, creio, é que
presente. Mas, como nos detemos não pode haver no coração tão pouco
muito mais a considerar os objetos que sangue que não baste para manter o
unimos a nós voluntariamente do que calor, quando esses orifícios estão
aqueles de que nos separamos ou quase fechados.
quaisquer outros, e como a languidez
não depende de uma surpresa, mas Art. 124. Do riso.
necessita de algum tempo para se for-
mar, ela se encontra muito mais no
O riso consiste em que o sangue que
amor do que em todas as outras
procede da cavidade direita do coração
paixões.
pela veia arteriosa, inflando de súbito e
repetidas vezes os pulmões, faz com
Art. 122. Do desmaio. que o ar neles contido seja obrigado a
sair daí com impetuosidade pelo gas-
O desmaio não está muito afastado nete, onde forma uma voz inarticulada
da morte, pois se morre quando o fogo e estrepitosa; e tanto os pulmões, ao se
que há no coração se extingue por inflarem, quanto este ar, ao sair, impe-
completo, e só se cai em desmaio lem todos os músculos do diafragma,
quando ele é de tal modo abafado que do peito e da garganta, mediante o que
ainda permanecem alguns restos de movem os do rosto que têm com eles
calor que podem em seguida reacen- qualquer conexão; e não é mais que
dê-lo. Ora, há muitas indisposições do essa ação do rosto, com essa voz inar-
corpo que nos podem levar assim a ticulada e estrepitosa, que chamamos
tombar em desfalecimento; mas entre riso.
as paixões apenas a extrema alegria,
nota-se, dispõe desse poder; e creio que Art. 125. Por que ele não acompanha
a forma para causar tal efeito é que, as maiores alegrias.
abrindo extraordinariamente os orifí-
cios do coração, o sangue das veias Ora, ainda que pareça ser o riso um
entra nele tão de repente e em tão gran- dos principais sinais da alegria, essa
de quantidade, que o calor não pode não pode todavia provocá-lo, exceto
rarefazê-lo assaz prontamente para quando é apenas moderada e há algu-
levantar as pequenas peles que fecham ma admiração ou algum ódio mistu-
as entradas dessas veias: é por esse rado com ela: pois verificamos por
272 DESCARTES

experiência que, quando estamos ex- mão, há sempre algum pequeno motivo
traordinariamente alegres, nunca o de ódio, ou ao menos de admiração. E
motivo dessa alegria nos leva a estou- aqueles cujo baço não é muito sadio
rar de riso, e não podemos mesmo ser estão sujeitos a ser não só mais tristes,
a ele levados por qualquer outra causa, mas também, por intervalos, mais ale-
exceto quando estamos tristes; e a gres e mais dispostos a rir que os
razão disso é que, nas grandes alegrias, outros: posto que o baço envia duas
o pulmão está sempre tão cheio de san- espécies de sangue para o coração,
gue que não pode encher-se mais uma muita espessa e grosseira, que
repetidamente. causa a tristeza; a outra muito fluida e
sutil, que causa a alegria. E amiúde,
Art. 126. Quais são as suas principais depois de rir muito, sentimo-nos natu-
causas. ralmente inclinados à tristeza, porque,
estando esgotada a parte mais fluida
E só posso notar duas causas que do sangue do baço, a outra, mais gros-
façam assim subitamente inflar o pul- seira, segue-a para o coração.
mão. A primeira é a surpresa da admi-
ração, a qual, estando unida à alegria, Art. 127. Qual é sua causa na indigna-
pode abrir tão prontamente os orifícios ção.
do coração que grande abundância de
sangue, entrando de repente em seu Quanto ao riso que acompanha
lado direito pela veia cava, aí se rare- algumas vezes a indignação, é comu-
faz e, passando daí à veia arteriosa, mente artificial e fingido; mas, quando
infla os pulmões. A outra é a mistura natural, parece vir da alegria que senti-
de algum líquido que aumenta a rarefa- mos ao verificar que o mal que nos
ção do sangue; e não encontro nada indignou não pode ofender-nos e, com
mais próprio para isso do que a parte isso, que estamos surpresos com a
mais fluida daquele que procede do novidade ou com o encontro inopinado
baço, parte que, sendo impelida para o deste mal; de modo que a alegria, o
coração por alguma ligeira emoção de ódio e a admiração para ele contri-
ódio, ajudada pela surpresa da admira- buem. Todavia, quero crer que é possí-
ção e misturando-se com o sangue que vel também produzi-lo sem qualquer
vem dos outros lugares do corpo, o alegria, pelo simples movimento da
qual a alegria faz entrar nele com aversão, que envia sangue do baço ao
abundância, pode levar este sangue a coração, onde é rarefeito e impelido
dilatar-se aí muito mais que de ordiná- para o pulmão ao qual infla facilmente
rio; da mesma maneira que vemos uma se o encontra quase vazio; e em geral
porção de outros líquidos se inflarem tudo o que pode inflar subitamente o
de repente, estando sobre o fogo, quan- pulmão desta maneira causa a ação
do se lança um pouco de vinagre no exterior do riso, exceto quando a tris-
vasilhame em que se acham; pois a teza a transmuda na dos gemidos e dos
mais fluida parte do sangue prove- gritos que acompanham as lágrimas. A
niente do baço é de natureza seme- esse propósito, Vives escreveu de si
lhante à do vinagre. A experiência próprio que, estando uma vez muito
também nos mostra que, em todas as tempo sem comer, os primeiros boca-
circunstâncias que podem produzir dos que metia na boca o obrigavam a
este riso estrepitoso que vem do pul- rir; o que podia provir do fato de seu
AS PAIXÕES DA ALMA 273

pulmão, vazio de sangue devido à falta mais abundantes, desde que não sejam
de alimento, se encher prontamente com isso mais agitados, se convertem
com o primeiro suco que passava do também em água, o que é causa do
estômago para o coração, e que só a suor que surge quando se faz algum
imaginação de comer podia levá-lo, exercício. Mas então os olhos não
antes mesmo que o dos alimentos inge- suam, porque, durante os exercícios do
ridos aí chegasse. corpo, como a maioria dos espíritos
vai para os músculos que servem para
Art. 128. Da origem das lágrimas. movê-lo, vão menos para os olhos,
através do nervo óptico. E é apenas
Assim como o riso jamais é causado uma e mesma matéria que compõe o
pelas maiores alegrias, também as lá- sangue, enquanto está nas veias ou nas
grimas nunca provêm de extrema tris- artérias, e os espíritos quando ele está
teza, mas somente da que é moderada no cérebro, nos nervos ou nos múscu-
e acompanhada, ou seguida, de algum los, e os vapores quando sai em forma
sentimento de amor, ou também de ale- de ar, e enfim o suor ou as lágrimas
gria. E, para compreender bem a sua quando se espessa em água sobre a
origem, cumpre observar que, embora
superfície do corpo ou dos olhos.
saia continuamente uma porção de
vapores de todas as partes de nosso
corpo, não há todavia nenhuma de Art. 130. Como o que causa dor ao
onde saiam tantos como dos olhos, por olho excita-o a chorar.
causa da grandeza dos nervos ópticos
e da multidão de pequenas artérias por
onde eles lhes vêm; e que, assim como E não consigo notar senão duas cau-
o suor se compõe apenas de vapores sas que façam os vapores que saem dos
que, saindo das outras partes, se con- olhos se transmudarem em lágrimas. A
vertem em água em suas superfícies, primeira é quando a figura dos poros
do mesmo modo as lágrimas se tornam por onde passam é mudada por qual-
vapores que saem dos olhos. quer acidente que seja: pois isso, retar-
dando o movimento desses vapores e
modificando sua ordem, pode levá-los
Art. 129. Da maneira como os vapores
a se converterem em água. Assim,
se transmudam em água.
basta que um argueiro caia no olho
para arrancar-lhe algumas lágrimas
Ora, como já escrevi nos Meteoros,
porque, excitando neles a dor, altera a
ao explicar de que forma os vapores do
disposição de seus poros; de sorte que,
ar se convertem em chuva, que isso
provém do fato de serem mais abun- tornando-se alguns mais estreitos, as
dantes ou menos agitados que de ordi- pequenas partes dos vapores passam
nário, assim creio que, quando os que neles menos depressa, e que, em vez de
saem do corpo são muito menos agita- saírem como antes igualmente distan-
dos que de costume, ainda que não tes umas das outras, e permanecerem
sejam tão abundantes, não deixam de assim separadas, acabam por encon-
se converter em água, o que provoca os trar-se, porque a ordem destes poros
suores frios que procedem algumas está perturbada, mediante o que elas se
vezes da fraqueza, quando se está juntam e assim se convertem em
doente; e creio que, quando são muito lágrimas.
274 DESCARTES

Art. 131. Como se chora de tristeza. Art. 133. Por que choram facilmente
os velhos e as crianças.
A outra causa é a tristeza seguida de
amor ou de alegria, ou em geral de As crianças e os velhos são mais
qualquer causa que leva o coração a inclinados a chorar do que os de meia-
impelir mais sangue pelas artérias. A idade, mas é por razoes diversas. Os
tristeza é aí requerida porque, res- velhos choram amiúde de afeição e de
friando todo o sangue, estreita os alegria; pois essas duas paixões unidas
poros dos olhos; mas, como à medida em conjunto enviam muito sangue ao
que os estreita diminui também a coração e daí muitos vapores aos
quantidade de vapores a que devem olhos; e a agitação desses vapores é de
dar passagem, isto basta para produzir tal forma retardada pela frialdade de
suas índoles que se convertem facil-
lágrimas se a quantidade desses vapo-
mente em lágrimas, conquanto nenhu-
res não for ao mesmo tempo aumen-
ma tristeza as precedesse. Porque se al-
tada por alguma outra causa; e nada a
guns velhos choram também mui
aumenta mais do que o sangue enviado
facilmente por irritação, não é tanto o
ao coração, na paixão do amor. Por
temperamento de seus corpos mas o de'
isso vemos que os que estão tristes não
seus espíritos que os dispõe a tanto; e
derramam continuamente lágrimas,
isso só acontece aos que são tão fracos
mas apenas por intervalos, quando
que se deixam sobrepujar inteiramente
fazem alguma nova reflexão sobre os
por pequenos motivos de dor, medo ou
objetos pelos quais têm afeição.
piedade. O mesmo ocorre com as
crianças, que não choram quase de ale-
Art. 132. Dos gemidos que acompa- gria, mas muito mais de tristeza,
nham as lágrimas. mesmo quando ela não é acompa-
nhada de amor; pois têm sempre bas-
E então os pulmões também se en- tante sangue para produzir muitos
chem às vezes de repente pela abun- vapores, os quais, tendo seu movi-
dância do sangue que entra aí dentro e mento retardado pela tristeza, se con-
que expulsa o ar que costumam conter, vertem em lágrimas.
o qual, saindo pelo gasnete, engendra
os gemidos e os gritos que costumam
acompanhar as lágrimas; e esses gritos Art. 134. Por que algumas crianças
são comumente mais agudos do que os empalidecem em vez de chorar.
que acompanham o riso, embora sejam
produzidos quase da mesma maneira; Todavia, há algumas que empali-
a razão disso é que os nervos que ser- decem em vez de chorar quando estão
vem para alargar ou estreitar os órgãos zangadas; o que pode testemunhar
da voz, para torná-la mais grossa, ou haver nelas um juízo e uma coragem
mais aguda, estando unidos aos que extraordinários, a saber, quando isso
abrem os orifícios do coração durante provém do fato de considerarem a
a alegria e os contraem durante a tris- grandeza do mal e se prepararem para
teza, fazem com que esses órgãos se forte resistência, tal como fazem os
alarguem ou se estreitem ao mesmo que são mais idosos; mas trata-se mais
tempo. comumente de marca de má índole, a
AS PAIXÕES DA ALMA 275

saber, quando isto provém do fato de presente, e que não são sempre as mes-
serem propensas ao ódio ou ao medo; mas ações que unimos aos mesmos
pois estas são paixões que diminuem a pensamentos; pois isso basta para dar
matéria das lágrimas, e vê-se, ao a razão de tudo quanto cada um de nós
contrário, que as que choram mui pode advertir de particular em si ou em
facilmente são propensas ao amor e à outrem, no tocante a esta matéria, e
piedade. que não foi ainda explicado 100 . E, por
exemplo, é fácil pensar que as estra-
Art. 135. Dos suspiros. nhas aversões de alguns, que os impe-
dem de suportar o odor das rosas ou a
A causa dos suspiros é muito dife- presença de um gato, ou coisas seme-
rente da causa das lágrimas, embora lhantes, provêm apenas do fato de
pressuponham, como essas, a tristeza; terem sido no começo de suas vidas
pois, ao passo que somos incitados a fortemente ofendidos por quaisquer
chorar quando os pulmões estão cheios objetos parecidos, ou então de terem
de sangue, somos incitados a suspirar compartilhado do sentimento de suas
quando se acham quase vazios, e quan- mães, que se viram por eles ofendidas
do alguma imaginação de esperança quando grávidas; pois é certo que há
ou de alegria abre o orifício da artéria relação entre todos os movimentos da
venosa, que a tristeza estreitara, por- mãe e os da criança que está em seu
que então, caindo o pouco sangue que ventre, de modo que o que é contrário
resta nos pulmões de repente no lado a uma prejudica a outra. E o odor das
esquerdo do coração por essa artéria losas pode ter causado grande dor de
venosa, e sendo para aí impelido pelo cabeça a uma criança quando ainda se
desejo de alcançar esta alegria, o qual achava no berço, ou então um gato
agita ao mesmo tempo todos os mús- pode tê-la amedrontado fortemente,
culos do diafragma e do peito, o ar é sem que ninguém tivesse reparado
impelido prontamente pela boca para nisso ou que em seguida restasse qual-
os pulmões, a fim de preencher neles o quer lembrança, embora a ideia da
lugar deixado por esse sangue; e é isso aversão que tivera então por estas
que se chama suspiro. rosas ou por este gato permaneça
impressa em seu cérebro até o fim da
Art. 136. De onde provêm os efeitos vida.
das paixões que são particulares a cer-
tos homens. Art. 137. Do uso das cinco paixões
aqui explicadas, na medida em que se
De resto, para suprir aqui em pou- relacionam ao corpo1 ° ' .
cas palavras tudo quanto se poderia
acrescentar no tocante aos diversos
efeitos ou às diversas causas das pai- Depois de ter dado as definições do
xões, contentar-me-ei em repetir o 100
"Todos os cérebros não se acham dispostos da
princípio em que se apoia tudo o que mesma maneira", dizia o art. 39. A explicação do
escrevi, a saber, que há tal ligação mecanismo geral das paixões pode ser, pois, com-
entre a nossa alma e o nosso corpo pletada por uma psicologia individual e histórica.
Lívio Teixeira (págs. 179-80) mostra no que as li-
que, quando se uniu uma vez qualquer nhas que seguem antecipam certos temas da psica-
ação corporal com algum pensamento, nálise. Cumpre notar, no entanto, que, em Descar-
tes, a relação de associação se reduz à contiguidade
nenhum ds dois torna a apresentar-se de dois "traços" e que não é expressiva, como em
a nós sem que o outro também esteja Freud.
276 DESCARTES

amor, do ódio, do desejo, da alegria, centam alguma perfeição sem a qual se


da tristeza, e tratado de todos os movi- pode subsistir.
mentos corporais que as causam ou as
acompanham, só nos resta considerar Art. 138. De seus defeitos e dos meios
aqui o seu uso. No tocante a isso, cum- de corrigi-los.
pre observar que, segundo o que a
natureza instituiu, elas se relacionam Mas embora este uso das paixões
todas ao corpo e são dadas à alma ape- seja o mais natural que elas possam ter
nas na medida em que a ele está unida; e embora todos os animais sem razão
de sorte que o seu uso natural é incitar conduzam a sua vida apenas por movi-
a alma a consentir e a contribuir nas mentos corporais semelhantes aos que
costumam em nós acompanhá-las, e
ações que podem servir para conservar
nas quais elas incitam nossa alma a
o corpo ou para torná-lo de alguma
consentir, no entanto nem sempre tal
forma mais perfeito; e nesse sentido a uso é bom, posto que há muitas coisas
tristeza e a alegria são as duas primei- nocivas ao corpo que não causam, no
ras a serem empregadas. Pois a alma começo, nenhuma tristeza ou que
não é imediatamente advertida das coi- proporcionam mesmo alegria, e outras
sas que prejudicam o corpo senão pelo que lhe são úteis, ainda que de início
sentimento que tem da dor, o qual pro- sejam incómodas 102 . E, além disso,
duz nela primeiramente a paixão da fazem parecer, quase sempre, tanto os
tristeza, em seguida o ódio pelo que bens como os males que representam,
provoca esta dor, e em terceiro lugar o bem maiores e mais importantes do
desejo de se livrar dela; do mesmo que são, de modo que nos incitam a
modo, a alma não é imediatamente procurar uns e a fugir de outros com
advertida das coisas úteis ao corpo mais ardor e mais cuidado do que é
senão por uma espécie de prazer físico conveniente 103 , como vemos também
que, excitando nela a alegria, engendra que os animais são muitas vezes enga-
em seguida o amor por aquilo que se nados por meio de engodos, e que para
crê ser a sua causa, e enfim o desejo de evitar pequenos males precipitam-se
adquirir aquilo que pode fazer com que em outros maiores; eis por que deve-
se continue nesta alegria ou então que mos servir-nos da experiência e da
se goze ainda, depois, de outra seme- razão para distinguir o bem do mal e
lhante. O que mostra que todas as conhecer seu justo valor, a fim de não
cinco são muito úteis com respeito ao tomarmos um pelo outro e não nos
corpo, e mesmo que a tristeza antecede entregarmos a nada com excesso.
de alguma forma e é mais necessária
que a alegria, e o ódio mais que o Art. 139. Do uso das mesmas pai-
amor, porque importa mais repelir as xões, na medida em que pertencem à
coisas que prejudicam e podem des- alma, e primeiramente do amor.
truir do que adquirir as que acres-
O que bastaria se tivéssemos em nós
10 102
' Última parte: conclusões práticas. Como Primeira reserva: limitação da validade das
devem as paixões contribuir para a harmonia da mensagens
103
vitais como guias da ação.
substância composta? A ordem do estudo será a Segunda reserva: a paixão pode desencadear
seguinte: o das paixões do ponto de vista do corpo uma reação desproporcionada. Sobre este ponto, é
(art. 137); do ponto de vista da alma (art. 139); na possível a comparação com os animais-máquinas,
medida em que nos levam à ação (art. 143). por definição desprovidos de paixões.
AS PAIXÕES DA ALMA 277

apenas o corpo, ou se este fosse a semos sê-lo ainda mais pelo amor ao
nossa melhor parte; mas, desde que é bem, ao qual é contrário, ao menos
somente a menor, devemos principal- quando este bem e este mal são bas-
mente considerar as paixões na medida tante conhecidos; pois confesso que o
em que pertencem à alma, em relação ódio ao mal, que só se manifesta pela
à qual o amor e o ódio provêm do dor, é necessário com respeito ao
conhecimento1 ° 4 e precedem a alegria corpo; mas não falo aqui senão daque-
e a tristeza, exceto quando essas duas le que resulta de um conhecimento
últimas tomam o lugar do conheci- mais claro, e relaciono-o apenas com a
mento, de que são espécies. E, quando alma. Digo também que nunca existe
este conhecimento é verdadeiro, isto é, sem tristeza, porque, sendo o mal ape-
quando as coisas que ela nos leva a nas uma privação, não pode ser conce-
amar são verdadeiramente boas, e as bido sem algum sujeito real em que
que nos leva a odiar são verdadeira- exista; e nada há de real que não tenha
mente más, o amor é incompara- em si alguma bondade, de modo que o
velmente melhor do que o ódio; ele não ódio que nos afasta de algum mal afas-
poderia ser demasiado grande e nunca ta-nos, pelo mesmo meio, do bem a
deixa de produzir a alegria. Digo que que está unido 10 5 , e a privação desse
este amor é extremamente bom porque, bem, sendo representada à nossa alma
unindo a nós verdadeiros bens, nos como um defeito que é seu, excita nela
aperfeiçoa outro tanto. Digo também a tristeza: por exemplo, o ódio que nos
que não poderia ser demasiado grande, distancia dos maus costumes de al-
pois tudo o que o mais excessivo pode guém distancia-nos pelo mesmo meio
fazer é nos unir tão perfeitamente a de sua convivência, na qual pode-
esses bens que o amor que temos parti- ríamos sem isso auferir algum bem
cularmente por nós mesmos não intro- cuja privação nos irrita. E assim em
duza aí qualquer distinção, o que creio todos os outros ódios pode-se notar
nunca poderá ser mau; e é necessaria- algum motivo de tristeza.
mente seguido de alegria, porque nos
representa o que amamos como um
Art. 141. Do desejo, da alegria e da
bem que nos pertence.
tristeza.

Art. 140. Do ódio. Quanto ao desejo, é evidente que,


quando procede de um verdadeiro
O ódio, ao contrário, não pode ser conhecimento, não pode ser mau,
tão pequeno que não prejudique; e desde que não seja excessivo e esse
nunca existe sem tristeza. Digo que conhecimento o regule. É evidente
não pode ser demasiado pequeno por- também que a alegria não pode deixar
que não somos incitados a qualquer de ser boa, nem a tristeza de ser má,
ação pelo ódio ao mal, que não pudés- em relação à alma, porque é na tristeza
que consiste toda incomodidade que a
104
E não mais da sensação física, como no esque-
alma recebe do mal, e é na alegria que
ma precedente (sentimento de dor — paixões de consiste todo gozo do bem que lhe per-
tristeza, ódio, desejo; sentimento de prazer — pai- tence; de maneira que, se não tivés-
xões de alegria, amor, desejo). Entre as paixões semos corpo, eu ousaria dizer que não
engendradas pela sensação e as paixões engen-
dradas pelo conhecimento, Descartes assinala duas 05
diferenças: 1." inversão da ordem no esquema gené- Retomada da equação ontológica entre não-ser
tico; 2." privilégio do amor sobre o ódio. e mal, ser e bem.
278 DESCARTES

poderíamos nos abandonar demais ao mal, ainda que seja apenas para evitá-
amor e à alegria, nem evitar demais o lo; e, muitas vezes, mesmo uma falsa
ódio e a tristeza; mas os movimentos alegria vale mais que uma tristeza cuja
corporais que o acompanham podem causa é verdadeira. Mas não ouso
ser todos nocivos à saúde, quando são dizer o mesmo do amor em relação ao
muito violentos, e, ao contrário, ser-lhe ódio; pois, quando o ódio é justo, afas-
úteis quando são apenas modera- ta-nos apenas do objeto que contém o
dos106. mal de que é bom estar separado, ao
passo que o amor que é injusto nos une
Art. 142. Da alegria e do amor, com- a coisas que podem prejudicar, ou, ao
parados com a tristeza e o ódio. menos, que não merecem ser tão consi-
deradas por nós como o são, o que nos
De resto, posto que o ódio e a tris- avilta e nos rebaixa.
teza devem ser rejeitados pela alma,
mesmo quando procedem de verda- Art. 143. Das mesmas paixões, na
deiro conhecimento, com maior razão medida em que se referem ao dese-
devem sê-lo quando provêm de alguma jo'09.
falsa opinião. Mas é de duvidar que o
amor e a alegria sejam bons ou não
quando se acham tãó mal fundados; e E é mister notar exatamente que o
parece-me que, se os considerarmos que acabo de dizer dessas quatro pai-
precisamente naquilo que são em si xões só se verifica quando são conside-
próprios com respeito à alma, podere- radas precisamente em si próprias e
mos'dizer que, embora a alegria seja não nos levam a nenhuma ação; pois,
menos sólida e o amor menos vanta- na medida em que excitam em nós o
joso do que quando possuem um me- desejo, por cujo intermédio regulam os
lhor fundamento, não deixam de ser nossos costumes, é certo que todas
preferíveis à tristeza e ao ódio tão mal aquelas cuja causa é falsa podem
1 7
fundados ° : de modo que, nos recon- prejudicar, e que, ao contrário, todas
tros da vida em que não podemos evi- aquelas cuja causa é justa podem ser-
tar o azar de sermos enganados , 108 vir, e mesmo que, quando são igual-
agimos sempre melhor pendendo para mente mal fundadas, a alegria é comu-
as paixões que tendem para o bem do mente mais nociva que a tristeza,
que para aquelas que dizem respeito ao porque esta, infundindo retenção e
receio, predispõe de alguma maneira à
prudência, ao passo que a outra torna
i o 6 p o r estar a alma unida a um corpo, o amor e a
alegria, intrinsecamente bons, podem ser excessivos inconsiderados e temerários os que se
e o ódio e a tristeza, intrinsecamente maus, não lhe abandonam.
devem no entanto ser banidos em absoluto. Vê-se
aqui no que a Moral, enquanto baseada na Psicofi-
siologia, difere de uma Moral de "espíritos puros". Art. 144. Dos desejos cuja realização
Vê-se também no que é perigoso falar de uma Moral
de Descartes: os preceitos podem diferir segundo as só depende de nós.
condições
1 7
em que o problema é colocado.
° E a concessão extrema que Descartes pode Mas, dado que essas paixões não
fazer na linha de uma Moral psicofisiológica. Des-
cartes expressará opinião diferente na carta a Elisa-
beth, de 6 de outubro de 1645, na qual a mesma 109
Com essa última rubrica, aparece a Moral
questão é examinada, não mais psicologicamente, propriamente dita. A questão da verdade ou da fal-
porém
108
na perspectiva do bem absoluto. sidade da paixão, que permanecia bastante secun-
É preciso ainda adquirir a certeza de que o daria nos parágrafos precedentes, passa agora ao
"verdadeiro conhecimento" é impossível no imedia- primeiro plano. Daí a oposição entre os arts. 142 e
to. 143.
AS PAIXÕES DA ALMA 279

podem levar a nenhuma ação, exceto rar com atenção a bondade do que é de
por intermédio do desejo que excitam, desejar.
é particularmente esse desejo que deve-
mos ter o cuidado de regular; e é nisso Art. 145. Dos que não dependem
que consiste a principal utilidade da senão de outras causas, e o que é a
Moral 1 1 0 : ora, como disse há fortuna.
pouco 1 1 1 , esse desejo é sempre bom,
quando segue um verdadeiro conheci- Quanto às coisas que não dependem
mento, assim não pode deixar de ser de modo algum de nós, por boas que
mau, quando se funda em algum erro. possam ser, jamais devemos desejá-las
E me parece que o erro mais comu- com paixão 11 5 , não só porque podem
mente cometido no tocante aos desejos não acontecer, e por isso nos afligir
é o de não distinguirmos suficiente- tanto mais quanto mais tivermos dese-
mente as coisas que dependem inteira- jado, mas principalmente porque, ocu-
mente de nós das que não dependem de pando nosso pensamento, elas nos des-
modo algum 1 1 2 : pois, quanto às que viam de dedicar nossa afeição a outras
dependem tão-somente de nós, isto é, coisas cuja aquisição depende de nós.
de nosso livre arbítrio, basta saber que E há dois remédios geraiscontra esses
são boas para não poder desejá-las desejos vãos: o primeiro é a generosi-
com demasiado ardor 113 , porque é se- dade, de que falarei abaixo; o segundo
guir a virtude fazer as coisas boas que é que devemos amiúde refletir sobre a
dependem de nós, e é certo que nunca providência divina, e nos representar
se poderia ter um desejo ardente de- que é impossível que alguma coisa
mais pela virtude, além de que, não aconteça de maneira diferente da deter-
podendo deixar de lograr o que deseja- minada desde toda a eternidade por
mos dessa forma, porquanto só de nós esta providência; de sorte que ela é
é que depende, recebemos sempre a como uma fatalidade ou uma necessi-
satisfação que daí esperávamos11 4 . dade imutável que cumpre opor à for-
Mas a falta que se costuma cometer tuna para destruí-la como uma quime-
nesse particular nunca é desejar dema- ra que provém apenas do erro de nosso
116
siado, mas somente desejar demasiado entendimento . Pois não podemos
pouco; e o soberano remédio contra desejar senão o que consideramos de
isso é libertar o espírito, tanto quanto uma maneira como possível, e não
possível, de toda espécie de outros podemos considerar possíveis as coisas
desejos menos úteis, e depois procurar que só dependem de nós na medida em
conhecer muito claramente e conside- que pensamos que dependem da fortu-
na, isto é, que julgamos que possam
110 acontecer, e que outrora aconteceram
A Moral não é, portanto, entendida como téc-
nica de regulamentação deduzida da explicação do outras semelhantes. Ora, essa opinião
fenómeno psicofisiológico, mas como resposta à baseia-se apenas no fato de não conhe-
pergunta: como devemos regrar a paixão do desejo?
Ela aparece como técnica concernente a uma pai-
xão particular. 1 5
111 ' Segunda parte da resposta. Cf. Cartas, a Elisa-
No art. 141.
1 2
' Quanto à retomada por Descartes dessa distin- beth, maio de 1646.
ção estóica — que permitira responder à questão 11 e O desconhecimento da concatenação universal
ética —, cf. Cartas, a Elisabeth, 4 de agosto de dos fenómenos provoca não a ilusão do livre arbí-
1645. trio, como em Spinoza, mas a crença na fortuna,
ii3. É a primeira parte da resposta. isto é, numa providência caprichosa cujas decisões
11 4
Nota epicurista: a virtude é concebida como são imprevisíveis em si (e que nada tem a ver com o
um meio a serviço da felicidade. Deus cartesiano).
280 DESCARTES

cermos todas as causas que contri- sar que, com respeito a nós, nada
buem para cada efeito; pois, quando acontece que não seja necessário e
uma coisa que estimamos depender da como que fatal, de sorte que não pode-
fortuna não ocorre, isso testemunha mos sem erro desejar que aconteça de
que alguma das causas necessárias outra forma 119 . Mas, como a maioria
para produzi-la falhou, e, por conse- de nossos desejos se estende a coisas
guinte, que era absolutamente impossí- que não dependem de nós nem todas
vel, e que jamais aconteceu outra de outrem, devemos exatamente distin-
semelhante, isto é, produção da qual guir nelas o que depende apenas de
houvesse faltado também uma causa nós, a fim de estender nosso desejo
semelhante: de modo que, se não tivés- tão-somente a isso; e quanto ao mais,
semos ignorado isso de antemão, embora devamos considerar sua ocor-
nunca a teríamos considerado como rência inteiramente fatal e imutável, a
possível, nem, por conseguinte, a tería- fim de que nosso desejo não se ocupe
mos desejado1 1 7 . de modo algum com isso, não devemos
deixar de considerar as razões que
Art. 146. Dos que dependem de nós e levam mais ou menos a esperá-la, a fim
de outrem. de que essas razões sirvam para regu-
120
É mister, portanto, rejeitar inteira- lar nossas ações : pois, por exem-
mente a opinião vulgar de que há fora plo, se tivéssemos de tratar de algo em
de nós uma fortuna que faz com que as um lugar onde pudéssemos ir por dois
coisas sobrevenham ou não sobreve- caminhos diversos, um dos quais cos-
nham, a seu bel-prazer, e saber que tuma ser muito mais seguro do que o
tudo é conduzido pela providência outro, embora talvez o decreto da
divina, cujo decreto eterno é de tal providência seja tal que, se formos
modo infalível e imutável que, exce- pelo caminho considerado mais segu-
tuando as coisas que este mesmo ro, seremos certamente roubados, e
decreto quis pôr na dependência de que, ao contrário, poderemos passar
nosso livre arbítrio 118 , devemos pen- pelo outro sem qualquer perigo, não
devemos por isso ser indiferentes à
1 7
' Não é, pois, a ignorância que é condenável, escolha de um ou de outro, nem repou-
mas o fato de julgar possível ou impossível um sarmos sobre a fatalidade imutável
acontecimento cuja modalidade (possível ou impos- desse decreto; mas a razão quer que
sível) só poderemos conhecer quando ele for atual.
Primado do atual sobre o virtual, definição da escolhamos o caminho que costuma
providência como uma causalidade motriz sem fis- ser o mais seguro; e nosso desejo deve
suras: vemos que a aproximação com os estóicos
não é apenas literal. Sobre o antiplatonismo e o ser realizado nesse particular quando
antiaristotelismo dos estóicos, cf. V. Goldschmidt, nós o seguimos, qualquer que seja o
Système StoTcien, págs. 84-85: "Eles haviam cons- mal que daí nos sobrevenha, porque,
truído um pressuposto metafísico. . . capaz de ali-
cerçar e orientar uma explicação científica do sendo este mal em relação a nós inevi-
mundo, levada até os ínfimos pormenores: pois tável, não temos nenhum motivo de
nada absolutamente, nem ser nem acontecimento, aspirar a sermos dele isentos, mas
prescinde de causa ou de fim". De outro lado, a
referência ao encadeamento universal, no espírito somente executar da melhor forma o
do Pórtico, torna inacolhível uma interpretação
dessa passagem como afirmação do determinismo
científico. 19
'120 Doutrina estóica da cooperação com o destino.
118
Segundo Crisipo e Epicteto, a própria autono- A afirmação da fatalidade deve apenas nos
mia e a liberdade que temos de usar as coisas impedir de desejar com paixão as coisas que não
conformemente à nossa natureza entram na ordem dependem de nós, mas não excluir os juízos prová-
providencial. veis e nos conduzir ao fatalismo e à indiferença.
AS PAIXÕES DA ALMA 281

que nosso entendimento pode conhe- alegria no mais íntimo da alma, emo-
cer, assim como suponho que o execu- ção que possui tanto poder que a triste-
tamos. E é certo que, quando nos exer- za, e as lágrimas que a acompanham
citamos em distinguir assim a em nada podem diminuir sua força. E
fatalidade da fortuna, habituamo-nos quando lemos aventuras estranhas
facilmente a regrar de tal modo nossos num livro, ou quando as vemos repre-
desejos, na medida em que sua realiza- sentadas num teatro, isso excita às
ção não depende senão de nós, que eles vezes em nós a tristeza, outras vezes a
podem sempre nos proporcionar intei- alegria, ou o amor, ou o ódio, e geral-
ra satisfação. mente todas as paixões, segundo a
diversidade dos objetos que se ofere-
Art. 147. Das emoções interiores da cem à nossa imaginação; mas com isso
alma. temos prazer de senti-las erguerem-se
em nós, e esse prazer é uma alegria
Acrescentarei somente mais uma intelectual que pode tanto nascer da
consideração que me parece servir tristeza como de todas as outras
muito para nos impedir de receber paixões.
qualquer incomodidade das paixões;
nosso bem e nosso mal dependem Art. 148. Que o exercício da virtude é
principalmente das emoções interiores um soberano remédio contra as pai-
que são excitadas na alma apenas pela xões.
própria alma, no que diferem dessas
paixões, que dependem sempre de Ora, posto que essas emoções inte-
algum movimento dos espíritos; e, em- riores nos tocam mais de perto e têm,
bora essas emoções da alma estejam por conseguinte, muito mais poder
muitas vezes unidas às paixões que se sobre nós do que as paixões que se
lhes assemelham, podem amiúde tam- encontram com elas, e das quais dife-
bém encontrar-se com outras, e mesmo rem, é certo que, contanto que a alma
nascer das que lhe são contrárias 121 . tenha sempre do que se contentar em
Por exemplo, quando um marido chora seu íntimo, todas as perturbações que
sua mulher morta, que (como acontece vêm de outras partes não dispõem de
às vezes) ele ficaria irritado de vê-la poder algum para prejudicá-la; mas
ressuscitada, pode suceder que seu antes servem para aumentar a sua ale-
coração seja oprimido pela tristeza que gria, pelo fato de, vendo que não pode
nele provocam o aparato dos funerais e ser por eles ofendida, conhecer com
a ausência de uma pessoa a cujo conví- isso sua própria perfeição. E, para que
vio estava acostumado; e pode suceder a nossa alma tenha assim do que estar
que alguns restos de amor ou de pieda- contente, precisa apenas seguir estrita-
de que se apresentam à sua imaginação mente a virtude 122 . Pois, quem quer
arranquem verdadeiras lágrimas de
122
seus olhos, não obstante sentir secreta A ação moral não resulta, portanto, do conhe-
cimento do verdadeiro, mas da tendência para o
melhor. Ela se define menos pela espera objetiva do
121 bem do que pelo intento de esperá-lo. Essa dissocia-
A tranquilidade da alma pode ficar assim
resguardada pelas emoções da própria alma que ção da sabedoria e da ciência permite, portanto,
podem estar em contradição com as paixões. uma aproximação com a "vontade boa" kantiana.
282 DESCARTES

que haja vivido de tal maneira que sua nunca têm poder suficiente para per-
consciência não possa censurá-lo de turbar a tranquilidade de sua alma.
nunca ter deixado de fazer todas as 123 Guéroult (op. cit., II, 264), assinalando que
esse texto desmente o art. 50, acrescenta: "Pode-se
coisas que julgou serem as melho- tentar conciliar esses textos concebendo que, no
res 1 2 3 (que é o que chamo aqui seguir homem que tem consciência de haver agido para o
que ele cria ser o melhor, isto é, virtuosamente, este
a virtude), recebe daí uma satisfação pesar não poderia perturbar a tranquilidade da
tão poderosa para torná-lo feliz que os alma. Na realidade, Descartes oscila entre duas
posições diferentes sem poder optar definitivamente
mais violentos esforços da paixão por nenhuma delas".
TERCEIRA PARTE

DAS PAIXÕES PARTICULARES


Art. 149. Da estima e do desprezo. Art. 150. Que essas duas paixões são
apenas espécies de admiração.
Após haver explicado as seis pai-
xões primitivas, que são como os géne- Assim, essas duas paixões são ape-
125
ros de que todas as outras constituem nas espécies de admiração , pois,
espécies, observarei aqui sucintamente quando não admiramos a grandeza
o que há de particular em cada uma nem a pequenez de um objeto, não lhe
dessas outras, e manterei a mesma damos nem mais nem menos impor-
ordem segundo a qual as enumerei tância do que a razão nos dita que
mais acima 12 4 . As duas primeiras são devemos dar, de forma que o estima-
a estima e o desprezo; pois, embora mos ou o desprezamos então sem pai-
esses nomes signifiquem ordinaria- xão; e, conquanto muitas vezes a esti-
mente apenas as opiniões desapaixo- ma seja excitada em nós pelo amor, e o
nadas que se têm do valor de cada desprezo pelo ódio, isso não é univer-
sal e provém apenas do fato de estar-
coisa, todavia, dado que dessas opi-
mos mais ou menos inclinados a consi-
niões nascem às vezes paixões às quais
derar a grandeza ou a pequenez de um
não foram atribuídos nomes particula- objeto em virtude de termos mais ou
res, parece-me que esses possam ser- menos afeição por ele.
lhes atribuídos. E a estima, na medida
em que é uma paixão, é uma inclina- Art. 151. Que podemos estimar-nos ou
ção da alma para representar a si o desprezar-nos a nós próprios.
valor da coisa estimada, inclinação
causada por movimento particular dos Ora, essas duas paixões podem em
espíritos de tal modo conduzidos ao geral referir-se a todas as espécies de
cérebro que fortalecem as impressões objetos; mas são principalmente notá-
que servem para este efeito; cpmo, ao veis quando as referimos a nós mes-
contrário, a paixão do desprezo é uma mos, isto é, quando é nosso próprio
inclinação da alma para considerar a 1 2 6
baixeza ou a pequenez daquilo que O começo da Terceira Parte leva a com-
preender melhor o papel e a importância da admira-
despreza, causada pelo movimento dos ção, que havia sido isolada das cinco outras paixões
espíritos que fortalecem a ideia desta primitivas na Segunda Parte. A admiração institui a
estima e o desprezo, isto é, as paixões valorizantes
pequenez. que se apresentam sempre misturadas a outras pai-
xões (amor, ódio), sem se confundirem, no entanto,
,24 com elas.
Nos arts. 53 a 67.
286 DESCARTES

mérito que estimamos ou despreza- Art. 153. No que consiste a generosi-


mos; e o movimento dos espíritos que dade.
as causa é, então, de tal modo mani-
festo que muda mesmo a expressão, os Assim creio que a verdadeira gene-
gestos, o andar e em geral todas as rosidade, que leva um homem a esti-
ações dos que concebem uma melhor mar-se ao mais alto ponto em que pode
ou pior opinião de si próprios que de legitimamente estimar-se, consiste ape-
ordinário 12 6 . nas, em parte, no fato de conhecer que
nada há que verdadeiramente lhe per-
tença, exceto essa livre disposição de
Art. 152. Por que motivo podemos suas vontades, nem por que deva ser
estimar-nos. louvado ou censurado senão pelo seu
bom ou mau uso 1 3 0 , e, em parte, no
E, como uma das principais partes fato de ele sentir em si próprio uma
da sabedoria é saber de que forma e firme e constante resolução de bem
por que motivo cada qual deve esti- usá-la, isto é, de nunca carecer de von-
mar-se ou desprezar-se12 7 , procurarei tade para empreender e executar todas
aqui dizer minha opinião 128 . Noto em as coisas que julgue serem as melho-
nós apenas uma coisa que nos possa res 1 3 1 ; o que é seguir perfeitamente a
virtude.
dar a justa razão de nos estimarmos, a
saber, o uso de nosso livre arbítrio e o
império que temos sobre as nossas Art. 154. Que ela impede que se des-
vontades; pois só pelas ações que preze os outros.
dependem desse livre arbítrio é que
podemos com razão ser louvados ou Os que têm esse conhecimento e sen-
censurados e ele nos faz de alguma timento de si próprios persuadem-se
maneira semelhantes a Deus, tornan- facilmente de que cada um dos outros
do-nos senhores de nós próprios, con- homens também os pode ter de si, por-
tanto que não percamos, por covardia, que nisso nada há que dependa de
outrem 132 . Daí por que nunca despre-
os direitos que ele nos concede 12 9 .
zam ninguém; e, embora vejam muitas
' 2 6 Enquanto passionais, os julgamentos de estima
vezes que os outros cometem faltas que
e desprezo exprimem um desvio em relação à nor- fazem aparecer suas fraquezas, sen-
mal,
12 7
isto é, ao juízo "que a razão nos dita". tem-se todavia mais inclinados a des-
No prefácio dos Princípios, a sabedoria é defi- culpá-los do que a censurá-los e a crer
nida como o perfeito conhecimento de tudo o que
um homem pode saber tanto para a conduta de sua que é mais por falta de conhecimento
vida como para a preservação da saúde e a inven-
ção de todas as artes. A ideia que o homem deve
130
formular de seu valor é, portanto, uma "das princi- "Sob esse aspecto, a generosidade é o conheci-
pais partes" desse saber. mento da resposta a uma das mais altas questões
12 8
Deve ser comparado com "creio q u e . . . " do que a mente humana pode propor-se,a saber: j>or
art. 153: a especulação ética não nos oferece a segu- que devemos estimar-nos ou desprezar-nos? E o
rança da ciência. Efetivamente, ver-se-á o quanto a problema dos fins morais." (Lívio Teixeira, op. cit.,
Moral de Descartes está impregnada de elementos pág. 193.)
131
ideológicos. Segundo aspecto da generosidade: ela é não só
12 9 «o livre arbrítrio é por si a coisa mais nobre conhecimento, porém esforço da vontade.
132
que possa existir em nós, na medida em que nos A generosidade permite o reconhecimento do
torna de algum modo parecidos a Deus e parece nos outro enquanto livre: nessa medida, ela permite a
eximir de lhe ser sujeitos." (Carts, a Cristina da realização dos atos de generosidade (na acepção
Suécia, 20 de novembro de 1647.) corrente do termo).
AS PAIXÕES DA ALMA 287

do que por falta de boa vontade que as são naturalmente levados a fazer gran-
cometem; e, como não pensam ser des coisas, e todavia a nada empreen-
muito inferiores aos que possuem mais der de que não se sintam capazes; e,
bens ou honras, ou mesmo mais espíri- como nada estimam mais do que fazer
to, mais saber, mais beleza, ou em bem aos outros homens e desprezar o
geral que os superam em algumas ou- seu próprio interesse, por esse motivo
tras perfeições, também não se julgam são sempre perfeitamente corteses, afá-
muito acima dos que superam, porque veis e prestativos para com todos. E
todas essas coisas lhes parecem muito com isso são inteiramente senhores de
pouco consideráveis em comparação suas paixões 135 , particularmente dos
com a boa vontade, pela qual tão-so- desejos, do ciúme e da inveja, porque
mente eles se apreciam, e que supõem não há coisa cuja aquisição dependa
também existir, ou ao menos poder deles que julguem valer bastante para
existir, em cada um dos outros ho- ser muito desejada; e do ódio para com
mens 1 3 3 . os homens, porque os estimam a todos;
e do medo, porque a confiança que
Art. 155. Em que consiste a humildade depositam na sua própria virtude os
virtuosa. tranquiliza; e enfim da cólera, porque,
apreciando muito pouco todas as coi-
Assim, os mais generosos costumam sas dependentes de outrem, nunca con-
ser os mais humildes; e a humildade cedem tanta vantagem a seus inimigos
virtuosa consiste apenas em que a a ponto de reconhecer que são por eles
reflexão que fazemos sobre a debili- ofendidos.
dade de nossa natureza e sobre as fal-
tas que podemos ter cometido outrora, Art. 157. Do orgulho.
ou somos capazes de cometer agora,
que não são menores do que as que Todos os que concebem boa opinião
podem ser cometidas por outros, é de si próprios por alguma outra causa,
causa de não nos preferirmos a nin- qualquer que seja, não têm verdadeira
guém e de pensarmos que os outros, generosidade, mas somente orgulho,
tendo seu livre arbítrio tanto quanto que é sempre muito vicioso, embra o
nós, também podem usá-lo bem. seja tanto mais quanto a causa pela
qual nós nos estimamos for mais injus-
Art. 156. Quais são as propriedades da ta; e a mais injusta de todas é quando
generosidade e como ela serve de remé- se é orgulhoso sem nenhum motivo;
dio contra todos os desregramentos^3 4 isto é, sem que se pense por isso haver
das paixões. em si qualquer mérito pelo qual se
deva ser estimado, mas só porque não
Os que são generosos dessa forma se faz caso do mérito, e porque, imagi-
133
Ela possibilita também a fundação de uma nando-se que a glória não passa de
Moral universal, isenta de preconceitos de casta ou uma usurpação, crê-se que os que se
de "classe". Embora a "boa vontade" cartesiana
nada tenha a ver com a "vontade boa" kantiana, atribuem mais glória são os que a têm
vemos surgir, aqui, uma exigência bastante compa- 135
rável de universalidade ética. A generosidade não extirpa as paixões: é a
13 4
Cumpre distinguir desregramento e excesso reguladora destas. Daí sua importância em Moral,
das paixões, pois o excesso constitui apenas um dos pois a principal utilidade daquela é justamente a
casos do desregramento. "regulação do desejo" (art. 144).
288 DESCARTES

mais. Esse vício é tão desarrazoado e resolutos, e, como se não dispusés-


absurdo, que eu teria dificuldade em semos do uso inteiro de nosso livre
acreditar que existem homens que se arbítrio, de não podermos impedir-
deixam levar por ele, se jamais alguém nos de fazer coisas das quais sabemos
tivesse sido louvado injustamente; mas que nos arrependeremos depois 13 7 ; e
a lisonja é tão comum em toda parte também no fato de crermos que não
que não há homem, por defeituoso que podemos subsistir por nós próprios,
seja, que não se veja muitas vezes esti- nem passar sem muitas coisas cuja
mado por coisas que não merecem ne- aquisição depende de outrem. Assim é
nhum louvor, ou mesmo que merecem diretamente oposta à generosidade; e
censura; o que dá ocasião aos mais acontece muitas vezes que os que pos-
ignorantes e aos mais estúpidos de suem o espírito mais baixo são os mais
incidirem nesta espécie de orgulho 13 6 . arrogantes e soberbos, da mesma ma-
neira como os mais generosos são os
Art. 158. Que os seus efeitos são mais modestos e os mais humildes.
contrários aos da generosidade. Mas, enquanto os que têm o espírito
forte e generoso não mudam de
humor nas prosperidades ou adversi-
Mas, qualquer que seja a causa pela
dades que lhes ocorrem, os que o têm
qual alguém se estima, se for diferente
da vontade que se sente em si mesmo débil e abjeto são conduzidos apenas
de usar sempre bem o próprio livre pela fortuna, e a prosperidade não os
arbítrio, da qual eu disse que vem a infla menos que a adversidade os torna
generosidade, ela produz sempre um humildes. Mesmo se vê amiúde que se
orgulho mui censurável, e que é tão rebaixam vergonhosamente perante
diversa dessa verdadeira generosidade aqueles de quem esperam algum pro-
que produz efeitos inteiramente contrá- veito ou temem algum mal, e que ao
rios; pois todos os outros bens, como o mesmo tempo se elevam insolente-
espírito, a beleza, as riquezas, as hon- mente acima daqueles de quem não
ras, etc., costumando ser tanto mais esperam nem temem coisa alguma.
apreciados quanto em menos pessoas
se encontrem, e sendo mesmo para a Art. 160. Qual é o movimento dos
maioria de tal natureza que não podem espíritos nessas paixões.
ser comunicados a muitos, isso leva os
orgulhosos a esforçarem-se por rebai- De resto, é fácil reconhecer que o
xar todos os outros homens, e, sendo orgulho e a baixeza não são somente
escravos de seus desejos, têm a alma vícios, mas também paixões, porque a
incessantemente agitada pelo ódio, in- sua emoção aparece fortemente no
veja, ciúme ou cólera. exterior dos que são subitamente infla-
dos ou abatidos por alguma nova
circunstância; mas é de duvidar que a
Art. 159. Da humildade viciosa.
generosidade e a humildade, que são
virtudes, possam também ser paixões,
Quanto à baixeza ou humildade
porque seus movimentos aparecem
viciosa, consiste principalmente no
fato de nos sentirmos fracos ou pouco 137
A humildade viciosa engendra o oportunismo e
a frouxidão (o retrato que segue é o do "arrivista");
136
A generosidade, virtude ética, opõe-se ao orgu- mas, fundamentalmente, ela consiste em assumir
lho, produto da adulação social. Esta distinção com complacência a nossa fraqueza e, em caso de
entre o valor moral e os falsos valores sociais é um necessidade, nos desculpar dela. No que já está pró-
dos aspectos mais importantes desta Terceira Parte. xima da "má-fé" no sentido sartriano.
AS PAIXÕES DA ALMA 289

menos, e porque se afigura que a virtu- que os que menos se conhecem são os
de não concorda tanto com a paixão mais sujeitos a se ensoberbecerem e a
como o faz o vício. Todavia, não vejo se humilharem mais do que devem,
razão que impeça que o mesmo movi- porque tudo quanto lhes acontece de
mento dos espíritos que serve para for- novo os surpreende e faz com que, atri-
talecer um pensamento, quando tem buindo-o a si próprios, se admirem e
um fundamento que é mau, não o que se estimem ou se desprezem, con-
iossa fortalecer também, quando o seu forme julguem que o que lhes sucede é
Íiindamento é justo; e como o orgulho ou não em seu proveito. Mas, como
e a generosidade consistem apenas na muitas vezes após uma coisa que os
boa opinião que temos de nós próprios, ensoberbeceu sobrevêm outra que os
e só diferem em que esta opinião é humilha, o movimento de suas paixões
injusta num e justa na outra, parece- é variável;^ ao contrário, nada há na
me que podemos relacioná-los a uma generosidade que não seja compatível
mesma paixão, que é excitada por um com a humildade virtuosa, nem aliás
movimento composto pelos da admira- que as possa mudar, o que torna seus
ção, da alegria e do amor, tanto do que movimentos firmes, constantes e sem-
temos por nós próprios como do que pre muito semelhantes a si próprios.
temos pela coisa que leva alguém a se Mas não surgem tão de surpresa, por-
estimar: como, ao contrário, o movi-
quanto os que se estimam dessa manei-
mento que excita a humildade, quer
virtuosa, quer viciosa, é composto dos ra conhecem suficientemente quais são
da admiração, da tristeza e do amor as causas que os fazem estimarem-se;
que se sente por si próprio, misturado todavia, pode-se dizer que essas causas
com o ódio que se nutre pelos próprios são tão maravilhosas (a saber, o poder
defeitos, que fazem com que a gente se de usar nosso livre arbítrio, que nos
despreze; e toda a diferença que obser- leva a nos apreciarmos a nós mesmos,
vo nesses movimentos é que o da admi- e as imperfeições do sujeito em quem
ração goza de duas propriedades: a está esse poder, que nos levam a não
primeira, que a surpresa a torna forte nos estimarmos demais) que todas as
desde o começo, e a outra, que é igual vezes que no-las representamos de
em sua continuação, isto é, que os espí- novo proporcionam sempre nova ad-
ritos continuam movendo-se na mesma miração.
proporção no cérebro. Dessas proprie-
dades a primeira encontra-se bem mais
no orgulho e na baixeza do que na Art. 161. Como pode ser adquirida a
generosidade e na humildade virtuosa; generosidade.
e, ao contrário, a última se nota mais
naquelas do que nessas duas outrasj a É mister notar que o que chamamos
razão disso é que o vício provem comumente virtudes são hábitos da
ordinariamente da ignorância 138 , e alma que a dispõem a certos pensa-
mentos, de modo que são diferentes
138
Como observa Lívio Teixeira, é assaz difícil destes pensamentos, mas podem pro-
encontrar um critério objetivo que possa separar
orgulho e generosidade ( vício e virtude), dado duzi-los e reciprocamente serem por
que nascem do mesmo mecanismo psicofisiológico. eles produzidas. É preciso notar tam-
Aparentemente, o critério é puramente fisiológico:
variação ou regularidade no movimento dos espíri- bém que tais pensamentos podem ser
tos. Na realidade, é de ordem intelectual (conheci- gerados somente pela alma, mas ocor-
mento ou ignorância que engendra a surpresa). Cf. o
adágio canis peccans est ignorans que Descartes re muitas vezes que algum movimento
relembra a Mersenne (27 de abril de 1637). dos espíritos os fortaleça e, nesse caso,
290 DESCARTES

são ações de virtude e ao mesmo ção bem merece ser observada1 43


.
tempo paixões da alma 1 3 9 ; assim, em-
bora não haja virtude à qual o bom Art. 162. Da veneração.
nascimento pareça contribuir tanto
como a que nos leva a nos apreciarmos A veneração ou o respeito é uma
apenas segundo o nosso justo valor, e inclinação da alma não só para esti-
mar o objeto que reverencia mas tam-
ainda que seja fácil crer que todas as
bém para se lhe submeter com algum
almas postas por Deus em nossos cor- temor, a fim de procurar torná-lo favo-
pos não são igualmente nobres e for- rável; de maneira que só alimentamos
tes1 4 0 (o que me levou a chamar esta veneração pelas causas livres que jul-
virtude de generosidade1 4 1 , segundo o gamos capazes de nos fazerem bem ou
uso de nossa língua, de preferência a mal, sem que saibamos qual dos dois
magnanimidade, segundo o uso da hão de fazer; pois temos amor e devo-
Escola, onde não é muito conhecida), é ção mais do que simples veneração por
certo, no entanto, que a boa formação aquelas de quem não esperamos senão
muito serve para corrigir os defeitos do 0 bem e temos ódio por aquelas de
nascimento, e que, se nos ocuparmos quem não esperamos senão o mal; e, se
muitas vezes em considerar o que é o não julgarmos que a causa deste bem
livre arbítrio e quão grandes são as ou deste mal seja livre, não nos subme-
vantagens advindas do fato de se ter teremos a ela para procurar torná-la
uma firme resolução de usá-lo bem, favorável. Assim, quando os pagãos
assim como, de outro lado, quão inú- mostravam veneração pelos bosques,
teis e vãos são todos os cuidados que fontes ou montanhas, não eram pro-
afligem os ambiciosos, podemos exci- priamente essas coisas mortas que
tar em nós a paixão e em seguida reverenciavam, mas as divindades que
adquirir a virtude da generosidade1 4 2 , julgavam presidi-las. E o movimento
dos espíritos que provoca esta paixão
sendo esta como que a chave de todas
compõe-se daquele que excita a admi-
as outras virtudes e um remédio geral ração e daquele que excita o medo, de
contra todos os desregramentos das que falarei adiante.
paixões; parece-me que tal considera-
13 9
Art. 163. Do desdém.
Além de seus aspectos intelectual e volitivo, a
generosidade é também uma paixão: a regularidade
do curso dos espíritos que a opõe às paixões-vícios Do mesmo modo, o que chamo des-
não a subtrai às leis do fenómeno passional. dém é a inclinação da alma para des-
140
"O entendimento de alguns não é tão bom prezar uma causa livre, julgando a seu
quanto o de outros", observa Descartes na dedica-
tória dos Princípios e "os que, com vontade cons5 respeito que, embora por sua natureza
tante de bem fazer e cuidado muito particular de se seja capaz de fazer bem ou mal, está,
instruir, têm também excelente espírito, alcançam
sem dúvida um grau mais elevado de sabedoria do 1 43 "Não é claro", pergunta Henri Lefebvre a pro-
que os outros." (Ibid.) Pode haver ainda diferenças pósito desse texto, "que Descartes se dirige às duas
na "força da alma" evocada nos arts. 36 e 48. classes dominantes do século XVII, a burguesia e o
141
A fim de sublinhar o seu caráter em parte feudalismo? Que lhes propõe um ideal comum que
inato. lhes permitiria a reconciliação?. . . Ideologica-
142 mente, essa coexistência momentânea exigiu a
A paixão de generosidade predispõe à virtude
de generosidade, entendida como habitus implan- determinação de uma figura do homem, aceitável ao
tado na alma. Esta não coincide de pronto com mesmo tempo pela burguesia e pela classe feudal."
aquela. (Descartes, Ed. Minuit, págs. 249 a 255.)
AS PAIXÕES DA ALMA 291

no entanto, tão abaixo de nós que não disposição da alma que a persuade de
nos pode causar nem um nem outro. E que a coisa desejada não advirá; e é de
o movimento dos espíritos que o excita notar que, embora essas duas paixões
é composto dos que provocam a admi- sejam contrárias, é possível tê-las as
ração, a segurança ou a ousadia. duas juntas, a saber, quando se repre-
sentam ao mesmo tempo diversas
Art. 164. Do uso dessas duas paixões. razões, das quais umas fazem julgar
que a realização do desejo é fácil e ou-
São a generosidade, a fraqueza do tras a fazem parecer difícil.
espírito ou a baixeza que determinam o
bom e o mau uso dessas duas paixões: Art. 166. Da segurança e do desespero.
pois, quanto mais a alma é nobre e
E nunca uma dessas paixões acom-
generosa, tanto maior é a inclinação
panha o desejo sem que não deixe
para tributar a cada qual o que lhe
algum lugar à outra: pois, quando a
pertence 1 4 4 ; e assim não se tem
esperança é tão forte que expulsa intei-
somente uma mui profunda humildade
ramente o temor, ela muda de natureza
perante Deus, mas também se rende
e se chama segurança ou confiança; e,
sem repugnância toda a honra e o res-
quando estamos certos de que aquilo
peito que é devido aos homens, a cada
que desejamos advirá embora conti-
um segundo o grau e a autoridade que
nuemos a querer que advenha, deixa-
tem no mundo, e desprezam-se apenas
mos, no entanto, de ser agitados pela
os vícios. Ao contrário, os que pos-
paixão do desejo, que levava a buscar
suem o espírito baixo e fraco estão
com inquietação sua ocorrência; do
sujeitos a pecar por excesso, às vezes
mesmo modo, quando o receio é tão
por reverenciarem e temerem coisas
extremo que tira todo lugar à esperan-
que são dignas unicamente de despre-
ça, converte-se em desespero; e esse
zo, e outras vezes por desdenharem
desespero, representando a coisa como
insolentemente as que mais merecem
impossível, extingue inteiramente o
respeito; e passam amiúde mui pronta-
desejo, o qual só se dirige às coisas
mente da extrema impiedade à supers-
possíveis.
tição, depois da superstição à impieda-
de, de sorte que não há vício nem Art. 167. Do ciúme.
desregramento de espírito de que não
sejam capazes. O ciúme é uma espécie de temor que
se relaciona ao desejo de conservar a
Art. 165. Da esperança e do temor. posse de algum bem; e não provém
tanto da força das razões que fazem
A esperança é uma disposição da julgar que se pode perdê-lo como da
alma para se persuadir de que advirá o grande estima que se lhe concede, a
que deseja, a qual é causada por um qual leva a examinar até os menores
movimento particular dos espíritos, a motivos de suspeita e a tomá-los por
saber, pelo da alegria e do desejo mis- razões fortemente consideráveis.
turados em conjunto; e o temor é outra
Art. 168. Em que essa paixão pode ser
144
A generosidade, envolvendo uma justa aprecia-
honesta.
ção da liberdade, impede, assim, o desregramento
das paixões que concernem às "causas livres". E, porque se deve ter mais cuidado
292 DESCARTES

em conservar os bens que são muito Art. 170. Da irresolução.


grandes do que os que são menores,
essa paixão pode ser justa e honesta A irresolução também é uma espécie
em certas ocasiões. Assim, por exem- de receio que, retendo a alma como
plo, um capitão que guarda uma praça suspensa entre várias ações possíveis, é
de grande importância tem o direito de causa de que não execute nenhuma, e
ser cioso, isto é, de desconfiar de todos assim que disponha de tempo para
os meios pelos quais seria possível escolher antes de se decidir, no que
surpreendê-la; e uma mulher honesta verdadeiramente apresenta certa utili-
não é censurada de ser ciosa de sua dade que é boa; mas, quando dura
honra, isto é, de preservar-se não só de mais do que o necessário, e quando
proceder mal mas também de evitar leva a empregar no deliberar o tempo
até os menores motivos de maledi- requerido para o agir, é muito má. Ora,
cência. afirmo que é uma espécie de receio,
conquanto possa acontecer, quando se
Art. 169. Em que é censurável.
deve escolher entre muitas coisas cuja
Mas rimos de um avarento quando é bondade parece muito igual, que se
ciumento de seu tesouro, isto é, quando permaneça incerto e irresoluto sem que
0 come com os olhos e não se afasta se sinta por isso nenhum receio; pois
dele com medo de que lho roubem; esta espécie de irresolução provém
pois não vale a pena guardar o somente daquilo que se apresenta, e
dinheiro com tanto zelo. E despreza-se não de qualquer emoção dos espíritos;
um homem que sente ciúme de sua eis por que não é uma paixão, a não
mulher, porque isso testemunha que ser que o temor de falhar na escolha
não a ama seriamente e que alimenta aumente a incerteza. Mas este receio é
má opinião de si ou dela: digo que não tão comum e tão forte em alguns que
a ama seriamente; pois, se nutrisse um muitas vezes, embora nada tenham a
verdadeiro amor por ela, não teria a escolher e vejam apenas uma só coisa
menor inclinação para dela desconfiar; a tomar ou a deixar, ele os retém e faz
mas não é a ela que propriamente ama, com que se detenham inutilmente a
mas somente o bem que imagina con- procurar outras; e então é um excesso
sistir em sua posse exclusiva; e não de irresolução que vem de um desejo
temeria perder este bem, caso não jul- demasiado grande de bem proceder1 4 6
gasse que é indigno dele ou então que e de uma fraqueza do entendimento, o
sua mulher é infiel 145 . Além disso, qual, não tendo noções claras e distin-
esta paixão relaciona-se apenas a sus- tas, as tem somente muito confusas: eis
peitas e desconfianças, pois não é por que o remédio contra este excesso
propriamente ser ciumento esforçar-se é o de acostumar-se a formar juízos
por evitar qualquer mal, quando se tem certos e determinados no tocante a
justo motivo de receá-lo. todas as coisas que se apresentem e a
crer que se desempenha sempre o dever
14 s
Esta condenação do ciúme é, sem dúvida, o
melhor exemplo do recuo da moral aristocrática 146
(sentimento exacerbado da honra, vaidade social li- Cf. o comentário de Lívio Teixeira: "Correr o
gada à posse sexual). Para o generoso, a mulher é risco de errar é não só um mal menor que a irresolu-
uma "causa livre" que só merece que a gente se lhe ção ou a inação mas é condição de todo o bem pos-
apegue na medida em que se lhe reconhece liber- sível, uma vez que se tenha o homem esforçado para
dade e que se lhe concede confiança. A aproxima- alcançar os melhores juízos possíveis". (Op. cit.,
ção com certas análises de Simone de Beauvoir é págs. 205-206.) Cf. Cartas, a Elisabeth, de 1.° de
fácil. setembro de 1645 e de 15 de setembro de 1645.
AS PAIXÕES DA ALMA 293

quando se faz o que se julga ser o jeto da ousadia seja a dificuldade, da


melhor, ainda que talvez se julgue qual resulta comumente o temor ou
muito mal. mesmo o desespero, de modo que é nos
assuntos mais perigosos e mais deses-
Art. 171. Da coragem e da ousadia. perados que mais se emprega ousadia e
coragem, é preciso, não obstante, que
se espere ou até que se tenha certeza
A coragem, quando é uma paixão e
que o fim proposto será logrado, para
não um hábito ou inclinação natu-
opor-se com vigor às dificuldades com
ral 1 4 7 , é certo calor ou agitação que
que nos deparamos. Mas este fim é
dispõe a alma a se entregar poderosa-
diferente desse objeto; pois não se
mente à execução das coisas que ela
poderia estar certo e desesperado de
quer fazer, de qualquer natureza que
uma mesma coisa ao mesmo tempo.
sejam; e a ousadia é uma espécie de
Assim, quando os Décios se atiravam
coragem que dispõe a alma à execução
ao meio dos inimigos e corriam de
das coisas que são as mais perigosas.
encontro a uma morte certa, o objeto
de sua ousadia era a dificuldade de
Art. 172. Da emulação. conservar-lhes a vida durante essa
ação, dificuldade para a qual dispu-
E a emulação também é uma de nham apenas do desespero, pois esta-
suas espécies, mas em outro sentido; vam certos de morrer; mas seu fim era
pois pode-se considerar a coragem animar os soldados com seu exemplo e
como um género que se divide em tan- fazê-los conquistar a vitória, em que
tas espécies quantos os objetos diferen- depositavam esperança; ou então esse
tes, e tantas outras quantas as suas fim era também conquistar a glória
causas: na primeira forma a ousadia é após a morte, de que estavam segu-
uma de suas espécies, na outra, a emu- ros 1 4 8 .
lação; e esta última não é mais do que
um calor que dispõe a alma a empreen- Art. 174. Da covardia e do medo.
der coisas que espera lograr com êxito,
porque as vê já logradas por outros; e A covardia é diretamente oposta à
assim trata-se de uma espécie de cora- coragem, e é um langor ou uma frieza
gem, cuja causa externa é o exemplo. que impede que a alma se entregue à
Digo causa externa porque deve haver, execução das coisas que efetuaria, se
além desta, outra interna, que consiste fosse isenta dessa paixão; e o medo ou
em se ter o corpo de tal modo disposto o pavor, que é contrário à ousadia, não
que o desejo e a esperança possuam é apenas uma frieza mas também uma
mais força para enviar grande quanti- perturbação e um espanto da alma que
dade de sangue ao coração do que o re- lhe subtrai o poder de resistir aos
ceio ou o desespero para impedi-lo. males que ela pensa estarem próximos.
Art. 173. Como a ousadia depende da Art. 175. Do uso da covardia.
esperança.
Ora, ainda que não possa persua-
Porque é de notar que, embora o ob-
148
Cf. o art. 83, sobre a devoção. Alusão aos Dé-
147
Nova distinção entre a paixão e o hábito cios, heróis da história romana, que se devotaram
homónimo. Cf. Cartas, a Elisabeth, de 6 de outubro aos deuses infernais para obter a vitória numa
de 1645. batalha.
294 DESCARTES

dir-me de que a natureza haja dado aos mau,. abster-nos-íamos de fazê-lo,


homens qualquer paixão que seja sem- tanto mais que a vontade só se dirige
pre viciosa e não tenha nenhum uso às coisas que possuem alguma aparên-
bom e louvável, todavia é difícil para cia de bondade; e, se tivéssemos certe-
mim adivinhar em que essas duas za de que aquilo que já se fez é mau,
podem servir. Parece-me apenas que a deveríamos sentir arrependimento e
covardia tem certo emprego quando não apenas remorso. Ora, o uso dessa
nos isenta de labores que poderíamos paixão está em se examinar se a coisa
ser incitados a tomar por razões veros- de que se duvida é boa ou não, ou de se
símeis, se outras razões mais certas, impedir que a façamos outra vez,
que os fizeram julgar inúteis, não hou- enquanto não estivermos certos de que
vessem provocado esta paixão; pois, seja boa. Mas, porque pressupõe o
além de isentar a alma desses labores, mal, o melhor seria que jamais hou-
também serve então para o corpo, pelo vesse motivo de senti-la; e pode-se pre-
fato de que, retardando o movimento veni-la através dos mesmos meios
dos espíritos, impede a dissipação de pelos quais é possível livrar-se da
suas forças. Mas vulgarmente é muito irresolução.
nociva, porque desvia a vontade das
ações úteis; e, como provém apenas do Art. 178. Da zombaria.
fato de não se ter suficiente esperança
ou desejo, basta aumentar em si pró- A derrisão ou zombaria é uma espé-
prio essas duas paixões para corrigi-la. cie de alegria mesclada de ódio que
resulta do fato de se perceber algum
Art. 176. Do uso do medo. pequeno mal numa pessoa que julga-
Pelo que concerne ao medo ou ao mos digna dele: temos ódio por esse
pavor, não vejo como possa jamais ser mal e alegria por vê-lo em quem é
louvável e útil; por isso não constitui digno dele; e, quando isto sobrevêm
uma paixão particular, mas somente inopinadamente, a surpresa da admira-
um excesso de covardia, de espanto e ção é causa de cairmos na gargalhada,
de receio, que é sempre vicioso, assim conforme o que já foi dito mais acima
como a ousadia é um excesso de cora- sobre a natureza do riso. Mas esse mal
gem que é sempre bom, contanto que deve ser pequeno; pois, se for grande,
seja bom o fim que se propõe; e, por- não se pode crer que quem o tem o
que a principal causa do medo é a sur- mereça, a não ser que sejamos de índo-
presa, nada há de melhor para se livrar le muito má ou lhe dediquemos muito
dele do que usar de premeditação e ódio.
preparar-se para todos os aconteci-
mentos cujo temor possa causá-lo. Art. 179. Por que os mais imperfeitos
costumam ser os mais zombeteiros.
Art. 177. Do remorso.
E vemos que os que possuem defei-
O remorso de consciência é uma tos muito patentes, por exemplo, os
espécie de tristeza que vem da dúvida que são coxos, caolhos, corcundas, ou
sobre se uma coisa que se faz ou se fez que receberam alguma afronta em pú-
é boa e pressupõe necessariamente a blico, são particularmente inclinados à
dúvida: pois, se estivéssemos inteira- zombaria; pois, desejando ver todos os
mente seguros de que o que se faz é outros tão desgraçados como eles, esti-
AS PAIXÕES DA ALMA 295

mam muito os males que lhes aconte- sar com razão apenas dos bens de for-
cem e consideram-nos dignos deles. tuna; pois, quanto aos da alma ou
mesmo do corpo, na medida em que os
Art. 180. Do uso da troça. temos de nascença, é suficiente para
sermos dignos deles tê-los recebido de
Pelo que respeita à troça modesta, Deus, antes de estarmos capacitados a
que repreende utilmente os vícios, cometer qualquer mal.
fazendo-os parecer ridículos, sem que
entretanto a gente mesma se ria disso Art. 183. Como pode ser justa ou
nem testemunhe nenhum ódio contra injusta.
as pessoas, não é uma paixão, mas
uma qualidade de homem de bem, que
patenteia a alegria de seu humor e a Mas quando a fortuna envia bens a
tranquilidade de sua alma, as quais alguém que verdadeiramente não os
constituem marcas de virtude e muitas merece, e quando a inveja não é provo-
vezes também a finura de seu espírito, cada em nós senão porque, amando
por saber dar uma aparência agradável naturalmente a justiça, ficamos des-
às coisas de que zomba. gostosos pelo fato de ela não ser obser-
vada na distribuição desses bens, é um
Art. 181. Da utilidade do riso na troça. zelo que pode ser desculpável, mor-
mente quando o bem que invejamos a
E não é desonesto rir quando se outros é de tal natureza que pode
ouvem as troças de um outro; elas converter-se em mal nas mãos deles;
podem mesmo ser tais que significaria como1 4 9 é o caso de algum cargo ou
estar pesaroso não se rir delas; mas, serviço em cujo exercício eles possam
quando troçamos nós próprios, é mais comportar-se mal, e desejamos para
conveniente abstermo-nos disso, a fim nós o mesmo bem e somos impedidos
de não parecermos surpresos com as de tê-lo, porque outros menos dignos o
coisas que dizemos, nem admirados possuem, isso torna essa paixão mais
com a finura que temos em inventá- violenta, e ela não deixa de ser descul-
los; e isto faz com que surpreendam pável, desde que o ódio nela contido se
tanto mais aos que as ouvem. relacione apenas com a má distribui-
ção do bem que se inveja e não com as
Art. 182. Da inveja. pessoas que o possuem ou o distri-
buem. Mas há poucas que sejam tão
O que se chama comumente inveja é justas e tão generosas a ponto de não
um vício que consiste numa perversi- alimentar ódio por aqueles que os
dade de natureza que leva certa gente a impedem de adquirir um bem que não
se desgostar com o bem que vê aconte- é comunicável a muitos, e que haviam
cer aos outros homens; mas sirvo-me desejado para eles próprios, embora os
aqui dessa palavra para significar uma que o adquiriram sejam tanto ou mais
paixão que nem sempre é viciosa. A in- dignos. E o que é ordinariamente mais
veja portanto, enquanto é uma paixão, invejado é a glória; pois, embora a dos
é uma espécie de tristeza mesclada de outros não impeça que a ela possamos
ódio que nasce do fato de se ver acon-
tecer o bem àqueles que julgamos 149
No que Descartes afasta-se de Aristóteles, para
indignos dele: o que só podemos pen- quem a inveja é sempre viciosa. Cf. art. 195.
296 DESCARTES

aspirar, ela torna, todavia, o seu acesso Art. 186. Quais são os mais compas-
mais difícil e encarece o seu preço. sivos.

Art. 184. De onde vem que os invejo- Os que se sentem muito fracos e
sos estejam sujeitos a ter a tez plúm- muito expostos às adversidades da for-
bea. tuna parecem ser mais inclinados do
que os outros a esta paixão, porque se
De resto, não há nenhum vício que representam o mal de outrem como
prejudique tanto a felicidade dos ho- podendo acontecer-lhes; e assim são
mens como o da inveja: pois, os que comovidos à piedade mais pelo amor
trazem esta mácula, além de se afligi- que dedicam a si próprios do que pelo
rem a si próprios, perturbam também que dedicam aos outros.
ao máximo de seu poder o prazer dos
outros e têm ordinariamente a tez Art. 187. Como os mais generosos são
plúmbea, isto é, mesclada de amarelo e tocados por essa paixão.
preto como que de sangue pisado: daí
vem que a inveja seja chamada livor Entretanto, os que são mais genero-
em latim; o que concorda muito bem sos e têm o espírito mais forte, de
com o que foi dito mais acima dos modo que não temem nenhum mal em
movimentos do sangue na tristeza e no relação a si próprios e se mantêm para
ódio; pois este faz com que a bile ama- além do poder da fortuna, não estão
rela, proveniente da parte inferior do isentos de compaixão quando vêem a
fígado, e a negra, proveniente do baço, imperfeição dos outros homens e
espalhem-se do coração pelas artérias ouvem suas queixas; pois é uma parte
em todas as veias; e aquela faz com da generosidade ter boa vontade para
que o sangue das veias tenha menos com todos. Mas a tristeza desta comi-
calor e corra mais lentamente do que seração não é mais amarga1 5 0 ; e,
de ordinário, o que basta para tornar como a que é causada pelas ações
lívida a cor. Mas como a bile, tanto a funestas que se vê representarem num
amarela quanto a negra, pode também teatro, ela está mais no exterior e no
ser enviada às veias por muitas outras sentido do que no interior da alma, a
causas, e como a inveja não as impele qual tem, entretanto, a satisfação de
para aí em quantidade bastante grande pensar que cumpre o seu dever, pelo
para mudar a cor da tez, a não ser que fato de compadecer-se dos aflitos. E há
seja muito grande e de longa duração, nisto a diferença de que, ao passo que
não se deve pensar que todos os que
apresentam essa cor sejam propensos a 0 vulgo tem compaixão dos que se las-
ela. timam, porque pensa que os males que
sofrem são muito deploráveis, o princi-
pal objeto da compaixão dos maiores
Art. 185. Da compaixão. homens é a fraqueza dos que vêem
lastimar-se, porque não julgam que ne-
A compaixão é uma espécie de tris- nhum acidente que possa acontecer
teza misturada de amor ou de boa von- seja um mal tão grande quanto a
tade para com aqueles a quem vemos covardia dos que não podem sofrer
sofrer algum mal de que os julgamos com constância; e, embora odeiem os
indignos. Assim, é contrária à inveja vícios, nem por isso odeiam os que a
em virtude de seu objeto, e à zombaria
por considerá-los de outra maneira. 1 50
Cf. Cartas, a Elisabeth, de 18 de maio de 1645.
AS PAIXÕES DA ALMA 297

eles estão sujeitos, e sentem por eles serve senão para produzir um orgulho
apenas compaixão1 S 1 . e uma arrogância impertinente: é o que
se pode observar particularmente nos
Art. 188. Quais são os que não são que, crendo-se devotos, são apenas
por ela tocados. carolas e supersticiosos; isto é, que, à
sombra de irem amiudadamente à igre-
Mas só os espíritos malignos e inve- ja, de recitarem muitas preces, de usa-
josos odeiam naturalmente todos os rem cabelos curtos, de jejuarem, de
homens, ou então os que são tão bru- darem esmola, pensam ser inteira-
tais, e de tal forma estão cegados pela mente perfeitos, e imaginam-se tão
boa fortuna, ou desesperados pela má, grandes amigos de Deus, que nada
poderiam fazer que lhe desagradasse, e
que pensam que nenhum mal possa
que tudo quanto lhes dita sua paixão é
acontecer-lhes, são insensíveis à com-
bom zelo, embora ela lhes dite às vezes
paixão.
os maiores crimes que os homens pos-
sam cometer, como trair cidades,
Art. 189. Por que esta paixão excita a matar príncipes, exterminar povos in-
chorar. teiros, só porque não seguem as suas
opiniões1 5 2 .
Além disso, chora-se mui facilmente
nessa paixão, porque o amor, enviando
muito sangue ao coração, faz com que Art. 191. Do arrependimento.
saiam muitos vapores pelos olhos, e
porque a frialdade da tristeza, retar- O arrependimento é diretamente
dando a agitação desses vapores, os contrário à satisfação de si próprio, e é
faz transformarem-se em lágrimas, se- uma espécie de tristeza proveniente de
gundo o que foi dito acima. se julgar que se praticou qualquer má
ação; e é muito amarga, porque sua
causa procede apenas de nós; o que
Art. 190. Da satisfação de si próprio.
não impede, no entanto, que seja muito
útil quando é verdade que a ação de
A satisfação que sempre têm os que
que nos arrependemos é má e quando
seguem constantemente a virtude é um
temos disso um conhecimento certo,
hábito de sua alma que se chama
visto que ela nos incita a proceder me-
tranquilidade e descanso de consciên-
lhor outra vez. Mas acontece muitas
cia; mas a que se adquire de novo
vezes que os espíritos fracos se arre-
quando se praticou recentemente algu-
pendem de coisas que praticaram sem
ma ação que se julga boa é uma pai-
saber seguramente que eram más;
xão, a saber, uma espécie de alegria, a
persuadem-se disso unicamente porque
qual creio ser a mais doce de todas,
o temem; e se houvessem feito o
porquanto sua causa depende apenas
contrário, arrepender-se-iam da mesma
de nós próprios. Todavia, quando essa
maneira: o que constitui neles uma
causa não é justa, isto é, quando as
imperfeição digna de compaixão; e os
ações de que se tira muita satisfação
não são de grande importância, ou são ' 52 "Os que são verdadeiramente pessoas de bem
mesmo viciosas, ela é ridícula e não não adquirem a reputação de ser devotos tanto
quanto os supersticiosos e hipócritas." (Dedicatória
1 61
Esta piedade do generoso, no fim de contas dos Princípios.) Essa passagem dá testemunho da
desdenhosa, permite-nos medir quão distante está a separação instituída entre moral e religião: a fé não
generosidade da caridade cristã. poderia dispensar a moralidade definida laicamente.
298 DESCARTES

remédios contra esse defeito são os Art. 194. Da ingratidão.


mesmos que servem para sanar a
irresolução1 S 3 . Quanto à ingratidão, não é uma pai-
xão, pois a natureza não pôs em nós
Art. 192. Do favor. nenhum movimento dos espíritos que a
excite; mas é apenas um vício direta-
O favor é propriamente um desejo mente oposto ao reconhecimento, na
de que aconteça o bem a alguém para medida em que esse é sempre virtuoso
com o qual temos boa vontade; mas e um dos principais laços da sociedade
sirvo-me aqui dessa palavra para signi- humana; eis por que tal vício só per-
tence aos homens brutais e tolamente
ficar tal vontade na medida em que é
arrogantes que pensam que todas as
provocada em nós por alguma boa
coisas lhes são devidas, ou aos estúpi-
ação daquele para com o qual temos
dos que não fazem nenhuma reflexão
boa vontade; pois somos naturalmente sobre os benefícios que recebem, ou
levados a amar os que fazem coisas aos fracos e abjetos que, sentindo a sua
que estimamos boas, ainda que daí não imperfeição e as suas necessidades,
nos advenha nenhum bem. O favor, procuram baixamente o socorro dos
nesse sentido, é uma espécie de amor, e outros, e, depois de havê-lo recebido,
não de desejo, embora o desejo de que odeiam-nos, porque, não tendo vonta-
suceda o bem a quem favorecemos o de de lhes prestar outro semelhante, ou
acompanhe sempre; e está comumente não tendo esperança de podê-lo, e ima-
unido à piedade, porque as desgraças ginando que todo mundo é tão merce-
que vemos ocorrer aos infelizes são nário como eles e que não se pratica
causa de que efetuemos maior reflexão nenhum bem exceto com esperança de
sobre seus méritos. ser por ele recompensado, pensam que
os enganaram.
Art. 193. Do reconhecimento.
Art. 195. Da indignação.
O reconhecimento também é uma
espécie de amor excitado em nós por A indignação é uma espécie de ódio
alguma ação daquele por quem o senti- ou de aversão que se nutre natural-
mos, e pela qual cremos que ele nos fez mente contra os que praticam algum
algum bem, ou ao menos que teve a mal, de qualquer natureza que seja; e
intenção de fazê-lo. Assim, o reconhe- muitas vezes está misturado com a in-
cimento contém tudo o que há no favor veja ou com a compaixão; mas seu ob-
e mais o fato de se fundar numa ação jeto é totalmente diferente, pois só fica-
que nos toca e que sentimos desejo de mos indignados contra os que fazem o
retribuir: eis por que possui muito bem ou o mal às pessoas que não o
mais força, principalmente nas almas, merecem, mas temos inveja dos que
por pouco nobres e generosas que recebem esse bem, e sentimos compai-
sejam. xão pelos que recebem esse mal. É ver-
dade que de alguma maneira repre-
i 53 "Não há motivo de se arrepender, quando se senta praticar o mal possuir um bem
fez o que se julgou o melhor", escreve Descartes a de que não se é digno; o que foi talvez
Elisabeth (6 de outubro de 1645) mas, nessa mesma
carta, ele matiza a afirmação. a causa pela qual Aristóteles e seus
AS PAIXÕES DA ALMA 299

seguidores, supondo que a inveja é do que nos que o são verdadeiramente;


sempre um vício1 s 4 , deram o nome de pois, embora os que amam a virtude
indignação à que não é viciosa. não possam ver sem alguma aversão
os vícios dos outros, não se apaixonam
Art. 196. Por que ela está às vezes senão contra os maiores e extraordi-
unida à compaixão e outras vezes à nários. É ser difícil e tristonho o sentir
zombaria. muita indignação por coisas de pouca
importância; é ser injusto senti-las
É também, de certo modo, receber o pelas que não são em nada censurá-
mal o fazê-lo: daí resulta que alguns veis; e é ser impertinente e absurdo não
juntam à sua indignação a compaixão, restringir essa paixão às ações dos
e outros a zombaria, conforme estejam homens, e estendê-la às obras de Deus
dotados de boa ou má vontade com ou da natureza, como o fazem os que,
relação aos que vêem cometer faltas, e não estando jamais contentes com a
é assim que o riso de Demócrito e os sua condição nem com a sua fortuna,
prantos de Heraclito podem ter proce- ousam achar o que dizer da conduta
dido da mesma causa1 5 s . do mundo e dos segredos da providên-
cia.
Art. 197. Que ela é muitas vezes
acompanhada da admiração e não é Art. 199. Da cólera.
incompatível com a alegria.
A indignação é também amiúde A cólera também é uma espécie de
acompanhada de admiração: pois cos- ódio ou de aversão que alimentamos
tumamos supor que todas as coisas contra os que praticaram algum mal,
serão feitas da maneira que julgamos ou procuraram prejudicar, não indife-
boa. Eis por que, quando acontecem de rentemente a quem quer que seja, mas
outro modo, isso nos surpreende e nos particularmente a nós. Assim, contém
admira. Ela tampouco é incompatível tudo o que a indignação contém e
com a alegria, embora esteja mais ainda mais o fato de fundar-se numa
ordinariamente unida à tristeza: pois, ação que nos toca e de que desejamos
quando o mal que nos indigna não nos vingar; pois esse desejo a acompa-
pode prejudicar-nos e consideramos nha quase sempre; e ela é diretamente
que não queríamos fazer algo seme- oposta ao reconhecimento, como a
lhante, isto nos proporciona certo pra- indignação ao favor; mas é incompara-
zer; e é talvez uma das causas do riso velmente mais violenta que essas três
que acompanha às vezes tal paixão1 5 6 . outras paixões, porque o desejo de
repelir coisas nocivas e de se vingar é o
mais imperativo de todos. O desejo
Art. 198. De seu uso.
unido ao amor que se tem por si pró-
prio é que fornece à cólera toda a agi-
De resto, a indignação se nota muito
tação do sangue que a coragem e a
mais nos que querem parecer virtuosos
ousadia podem causar; e o ódio faz
154
Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, cap. 7, que seja principalmente o sangue bilio-
§§ 15-16.
1 55
so, vindo do baço e das pequenas veias
Exemplo tradicional: Demócrito rindo das toli- do fígado, que receba esta agitação e
ces dos homens e Heraclito deplorando-as.
1 56
Cf. art. 127. entre no coração, onde, devido à sua
300 DESCARTES

abundância e à natureza da bile a que Art. 201. Que há duas espécies de cóle-
está misturado, excita um calor mais ra e os que têm mais bondade são os
áspero e mais ardente do que o que mais sujeitos à primeira.
podem aí excitar o amor ou a alegria.
Isso nos adverte de que se podem
Art. 200. Por que os que ela faz enru- distinguir duas espécies de cólera: uma
bescer são menos de recear do que os que é muito rápida e se manifesta
que ela faz empalidecer. muito por fora, mas que no entanto
tem pouco efeito e pode facilmente
aplacar-se; outra que não aparece
E os sinais exteriores dessa paixão tanto no início, mas que rói mais o
são diferentes, conforme os diversos coração e tem efeitos mais perigosos.
temperamentos das pessoas e a diversi- Os que possuem muita bondade e
dade das outras paixões que a com- muito amor são os mais sujeitos à pri-
põem ou se lhe juntam. Assim, há os meira; pois ela não nasce de um pro-
que empalidecem ou tremem quando fundo ódio, mas de uma pronta aver-
se encolerizam e há os que enrubescem são que os surpreende, porque, sendo
ou mesmo choram; e julga-se comu- propensos a imaginar que todas as coi-
mente que a cólera dos que empali- sas devem seguir segundo a maneira
decem é mais de temer do que a cólera que julgam ser a melhor, tão logo
dos que enrubescem: a razão disso é acontecem de outra forma admiram-se
que, quando não se quer, ou não se e ofendem-se, amiúde, mesmo sem que
pode tirar vingança de outra forma, ex- a coisa os haja tocado em particular,
ceto pela expressão ou por palavras, visto que, tendo muita afeição, interes-
emprega-se todo o calor e toda a força sam-se por aqueles a quem amam tal
desde o início da comoção, o que é como por si próprios1 5 7 . Assim, o que
causa de enrubescer; além do que, às seria, para outro, motivo apenas de
vezes, o pesar e a piedade que se tem indignação, é para eles motivo de cóle-
ra; e porque a inclinação que têm para
por si próprio, porque a gente não
amar os leva a ter muito calor e muito
pode vingar-se de outra maneira, são sangue no coração, a aversão que os
causas de chorar. E, ao contrário, os surpreende não pode enviar para ele
que se reservam e se decidem a uma tão pouca bile que não cause de início
maior vingança tornam-se tristes por- grande emoção neste sangue; mas esta
que se julgam a isso obrigados pela emoção quase não dura, porque a
ação que os põe em cólera; e sentem força da surpresa não continua e por-
algumas vezes receio dos males que que, tão logo se apercebem de que o
podem seguir-se da resolução por eles motivo que os irritou não devia emo-
tomada, o que os torna primeiro páli- cioná-los tanto, arrependem-se1 S 8 .
dos, frios e trémulos; mas, quando che-
gam em seguida a executar a sua vin- 157
Cf. Cartas, a Chanut, 1.° de fevereiro de 1647.
1 58
gança, esquentam-se tanto mais "São comumente os melhores homens que,
quanto mais frio sentiram no começo, vendo de um lado a morte de um filho e de outro o
perigo de um irmão, são por isso mais violenta-
tal como vemos que as febres que se mente comovidos. Eis por que as faltas assim come-
iniciam pelo frio costumam ser as mais tidas, sem nenhuma malícia premeditada, são, pare-
ce-me, as mais desculpáveis." (Cartas, a Huyghens,
fortes. 1648.)
AS PAIXÕES DA ALMA 301

Art. 202. Que são as almas fracas e remédio que se possa encontrar contra
baixas que se deixam dominar pela seus excessos, porque, levando-nos a
outra. apreciar muito pouco todos os bens
que podem ser arrebatados, e ao
A outra espécie de cólera, em que contrário, a estimar muito a liberdade
predomina o ódio e a tristeza, não é de e o império absoluto de nós próprios,
começo tão aparente, a não ser talvez e, ainda, a deixar de tê-lo quando qual-
quer pessoa nos pode ofender, ela faz
porque faz empalidecer o rosto; mas
com que tenhamos apenas desprezo ou
sua força é aumentada pouco a pouco
quando muito indignação em face das
pela agitação de ardente desejo de se
injúrias com que os outros costumam
vingar excitado no sangue, o qual, ofender-se1 5 9 .
estando misturado com a bile que é
impelida para o coração da parte infe-
rior do fígado e do baço, provoca nele Art. 204. Da glória.
um calor fortemente áspero e picante.
E como são as almas mais generosas O que recebe aqui o nome de glória
que sentem mais reconhecimento, é uma espécie de alegria fundada no
assim são as mais orgulhosas, mais amor que se tem por si próprio e que
baixas e mais débeis que se deixam provém da opinião ou da esperança de
mais dominar por essa espécie de cóle- sermos louvados por alguns outros.
ra; pois as injúrias parecem tanto Assim, é diferente da satisfação inte-
maiores quanto mais o orgulho nos rior que nasce da opinião de se ter feito
leva a nos estimarmos a nós próprios, alguma boa ação; pois às vezes somos
e também tanto maiores quanto mais louvados por coisas que não cremos
apreciamos os bens que elas tiram, os ser boas e censurados por outras que
quais se estimam tanto mais quanto cremos ser melhores: mas uma e outra
mais fraca e mais baixa é a alma, por- são espécies de estima que temos por
que são bens que dependem de outrem. nós próprios, bem como espécies de
alegria; pois é motivo de nos apre-
ciarmos o ver que somos apreciados
Art. 203. Que a generosidade serve de pelos outros 1 6 0 .
remédio contra seus excessos.
Art. 205. Da vergonha.
Demais, ainda que essa paixão seja
útil para nos dar vigor a fim de repelir A vergonha, ao contrário, é uma
as injúrias, não há, todavia, nenhuma espécie de tristeza também fundada no
de que se devam evitar os excessos amor a si próprio e que provém da opi-
com mais cuidado, porque, pertur- nião ou do temor de sermos censura-
bando o juízo, levam muitas vezes a 159
Cf. Cartas, a Chanut, 1.° de novembro de
cometer faltas de que depois se tem 1646. A generosidade, por implicar o conhecimento
do verdadeiro valor do homem, o livre arbítrio, é o
arrependimento, e mesmo porque algu- meio de nos curar da cólera, sem que possamos ser
mas vezes impedem que essas injúrias acusados de covardia. A gente só se livra da cólera
sejam tão bem repelidas como pode- livrando-se da excessiva auto-estima e da suscetibi-
lidade è injúria daí decorrente. Nisso Descartes se
ríamos fazer se sentíssemos menos aparta uma vez mais do ideal aristocrático.
emoção. Mas, como nada há que a 160
Análise que pode ser aplicada à glória corne-
torne mais excessiva do que o orgulho, liana — ao mesmo tempo estima por si próprio e
creio que a generosidade é o melhor amor-próprio social.
302 DESCARTES

dos; é, além do mais, uma espécie de em que uma e outra são boas, assim
modéstia ou de humildade e descon- como a ingratidão se opõe ao reconhe-
fiança de si próprio: pois, quando a cimento e a crueldade à compaixão. E
gente se estima tanto que não pode a principal causa do descaramento
imaginar-se desprezada por ninguém, decorre de termos recebido muitas
não se pode facilmente ter vergonha. vezes grandes afrontas; pois não há
pessoa que, quando jovem, não imagi-
Art. 206. Do uso dessas duas paixões. ne que o louvor é um bem e a infâmia
um mal muito mais importantes à vida
Ora, a glória e a vergonha têm o do que se verifica por experiência mais
mesmo uso pelo fato de nos incitarem tarde, quando, tendo-se recebido algu-
à virtude, umapela esperança e a outra mas afrontas assinaladas, a gente se vê
pelo temor; é somente necessário ins- inteiramente privada de honra e des-
truir o juízo no tocante ao que é verda- prezada por todos. Eis por que se tor-
deiramente digno de censura ou lou- nam descarados os que, não medindo o
vor, a fim de não ficarmos bem e o mal senão pelas comodidades
envergonhados de proceder bem e não do corpo, vêem que continuam gozan-
auferirmos vaidade de nossos vícios, do destas, após tais afrontas, tanto
como acontece a muitos. Mas não é quanto antes, ou mesmo às vezes bem
bom despojar-se inteiramente dessas mais, porque ficam desobrigados de
paixões, tal como faziam outrora os cí- muitas coerções que a honra lhes
nicos; pois, ainda que o povo julgue impunha e porque, se a perda de bens
muito mal, dado que não podemos estiver unida à sua desgraça, encon-
viver sem ele, e que nos importa ser- tram-se pessoas caridosas que lhos
mos estimados por ele, devemos mui- dão.
tas vezes seguir suas opiniões mais do
que as nossas, no tocante ao exterior Art. 208. Do fastio.
de nossas ações1 6 1 .
O fastio é uma espécie de tristeza
Art. 207. Da impudência. proveniente da mesma causa de que
proveio antes a alegria; pois somos de
A impudência ou o descaramento, tal forma compostos, que a maioria
que é um desprezo pela vergonha, e das coisas de que desfrutamos são
amiúde também pela glória, não é uma boas em relação a nós apenas por certo
paixão, porque não há em nós nenhum tempo, e tornam-se em seguida incó-
movimento particular dos espíritos que modas: o. que transparece principal-
a excite; mas é um vício oposto à ver- mente no beber e no comer, que são
gonha, e também à glória, na medida úteis apenas enquanto temos apetite e
161
são nocivos quando não mais o temos;
O Discurso falava das "opiniões mais modera- e, porque cessam de ser então agradá-
das e mais afastadas do excesso que fossem comu-
mente recebidas ná prática pelos mais sensatos veis ao gosto, chamou-se essa paixão
daqueles com os quais eu devia viver". Confissão de fastio.
oportunismo e conformismo? Esse conformismo,
responde Lívio Teixeira, "vem da clareza com que
se percebem as limitações da Moral social, bem Art. 209. Do pesar.
como as dificuldades que deparam aqueles que se
propõem transformá-la. Este conformismo social de O pesar é também uma espécie de
Descartes é, antes de tudo, uma atitude de inteli-
gência e boa vontade, em uma palavra, de generosi- tristeza, que é uma particular amargu-
dade". (Op. cit., pág. 209.) ra, pelo fato de estar sempre unida a
AS PAIXÕES DA ALMA 303

algum desespero e à memória do pra- estar unidos, confesso que há poucas


zer que o gozo nos deu; pois nunca pessoas que se tenham suficientemente
lamentamos senão os bens de que preparado dessa maneira contra todas
gozamos e que se acham de tal modo as espécies de recontros, e que esses
perdidos que não alimentamos nenhu- movimentos excitados no sangue pelos
ma esperança de recuperá-los ao objetos das paixões seguem primeiro
tempo e à maneira em que os lamenta- tão prontamente das simples impres-
mos. sões que se fazem no cfebro e da
disposição dos órgãos, ainda que a
Art. 210. Do júbilo. alma não contribua para tanto, de
qualquer maneira, que não há nenhu-
Enfim, o que chamo júbilo é uma ma sabedoria humana capaz de resis-
espécie de alegria que apresenta de tir-lhes quando não estamos para isso
particular o fato de sua doçura ser bem preparados. Assim, muitos não
aumentada com a lembrança dos poderiam abster-se de rir, quando lhes
males que sofremos e dos quais nos fazem cócegas, embora não colham
sentimos aliviados, da mesma maneira daí nenhum prazer; pois a impressão
como nos sentimos livres de algum pe- da alegria e da surpresa que outrora os
sado fardo que tivéssemos carregado fez rir pelo mesmo motivo, estando
por longo tempo sobre nossos ombros. desperta em sua fantasia, faz com que
E nada vejo de muito notável nessas seus pulmões sejam subitamente infla-
três paixões; por isso as coloquei aqui dos, contra a vontade, pelo sangue que
apenas para seguir a ordem da enume- o coração lhes envia. Assim, os que
ração que fiz mais acima; mas parece- têm, por natureza, forte pendor para as
me que essa enumeração foi útil para emoções da alegria e da compaixão, ou
mostrar que não omitimos nenhuma do medo, ou da cólera, não podem
que fosse digna de alguma considera- impedir-se de desmaiar, ou de chorar,
ção particular. ou de tremer, ou de ter o sangue todo
agitado como se tivessem febre, quan-
. do a sua fantasia é fortemente tocada
Art. 211. Um remédio geral contra as pelo objeto de alguma dessas paixões.
paixões. Mas o que se pode sempre fazer em tal
ocasião, e que eu julgo poder apresen-
E agora que as conhecemos todas, tar aqui como o remédio mais geral e o
temos muito menos motivo de as temer mais fácil de praticar contra todos os
do que tínhamos antes; pois verifi- excessos das paixões, é, sempre que se
camos que são todas boas por natureza sinta o sangue assim agitado, ficar
e que só devemos evitar o seu mau uso advertido e lembrar-se de que tudo
ou os seus excessos, contra os quais os quanto se apresenta à imaginação
remédios que expliquei poderiam bas- tende a enganar a alma e a fazer com
tar, se cada um tivesse cuidado bas- que as razões empregadas em persua-
tante para praticá-los. Mas, como dir o objeto de sua paixão lhe pareçam
incluí entre esses remédios a premedi- muito mais fortes do que são, e as que
tação e a indústria pela qual se podem servem para dissuadir muito mais fra-
corrigir os defeitos naturais, exercitan- cas. E quando a paixão persuade ape-
do-nos em separar em nós os movi- nas de coisas cuja execução sofre algu-
mentos do sangue e dos espíritos dos ma delonga, cumpre abster-se de
pensamentos aos quais costumam
304 DESCARTES

pronunciar na hora qualquer julga- der-se, quando é possível sem desonra


mento e distrair-se com outros pensa- salvar-se, e que, se a partida é muito
mentos até que o tempo e o repouso te- desigual, vale mais efetuar uma hones-
nham apaziguado inteiramente a ta retirada ou tomar quartel do que
emoção que se acha no sangue. E, expor-se brutalmente a uma morte
enfim, quando ela incita a ações no certa.
tocante às quais é necessário tomar
uma resolução imediata, é mister que a Art. 212. Que é somente delas que
vontade se aplique principalmente a depende todo o bem e todo o mal desta
considerar e a seguir as razões contrá- vida.
rias àquelas que a paixão representa,
ainda que pareçam menos fortes: como
quando se é inopinadamente atacado De resto, a alma pode ter os seus
por algum inimigo e a ocasião não per- prazeres à parte; mas, quanto aos que
mite que se empregue algum tempo em lhe são comuns com o corpo, depen-
deliberar. Mas o que me parece que os dem inteiramente das paixões: de
que estão acostumados a refletir sobre modo que os homens que elas podem
as suas ações podem sempre fazer é, mais emocionar são capazes de apre-
quando se sentirem tomados de medo, ciar mais doçura nesta vida. É verdade
esforçarem-se por desviar o pensa- que também podem encontrar nela
mento da consideração do perigo, mais amargura, quando não sabem
representando-se as razões pelas quais bem empregá-las e quando a fortuna
há muito mais segurança e mais honra lhes é contrária; mas a sabedoria é
na resistência do que na fuga; e, ao principalmente útil neste ponto, porque
contrário, quando sentirem que o dese- ensina a gente a tornar-se de tal forma
jo de vingança e a cólera os incitam a seu senhor e a manejá-las com tal des-
correr inconsideradamente para aque- treza que os males que causam são
les que os atacam, lembrar-se-ão de muito suportáveis, tirando-se mesmo
pensar que é uma imprudência o per- certa alegria de todos.

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