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02/12/2016 Como ler (e compreender) um texto filosófico | Universo Racionalista

Como ler (e compreender) um texto losó co


Por Lennon da Silva Rocha - abr 21, 2015

O texto a seguir possui caráter meramente introdutório

Kant, Descartes, Sócrates, Aristóteles, Hume, Voltaire, Maquiável – esses, dentre


muitos outros, são autores renomados da filosofia e que todo o estudante da mesma,
cedo ou tarde, terá de se deparar com alguma obra. E, tão logo isso aconteça, um
problema nos salta aos olhos: como compreender o que esta escrito na referida obra?

Em primeira instância, parece uma questão trivial. Porém, basta olharmos, por
exemplo, para um simples fragmento da obra A Crítica da Razão Pura de Immanuel
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Kant, para compreendermos a essência do problema:

Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa
acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de
certas determinações em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de um
juízo. A proposição ‘Deus é onipotente’ contém dois conceitos que têm os seus
objetos: Deus e onipotência; a minúscula palavra ‘é’ não é um predicado mais, mas
tão-somente o que põe o predicado em relação com o sujeito. Se tomar pois o sujeito
(Deus) juntamente com todos os seus predicados (entre os quais se conta também a
onipotência) e disser ‘Deus é’, ou existe um Deus, não acrescento um novo predicado
ao conceito de Deus, mas apenas ponho o sujeito em si mesmo, com todos os seus
predicados e, ao mesmo tempo, o objeto que corresponde ao meu conceito

O leitor não habituado com a natureza dos textos filosóficos, tendo contato com texto
supracitado, perceberá as enormes dificuldades acerca da compreensão do mesmo.
Donde, compreender-se-á que a leitura de tais textos – principalmente os mais antigos
– requer um conhecimento prévio, requer um método – e portante, não é à toa que as
universidades, no currículo do curso de filosofia, costumam inserir logo no seu início
uma disciplina chamada Metodologia Filosófica ou Introdução aos Textos Filosóficos,
dentre outras nomenclaturas.

Por conseguinte, aquele que se propõe a estudar, analisar, criticar, concordar ou


discordar de algum texto, antes de mais nada, deve estar disposto à
compreender este mesmo- , para tal se faz necessário entender o pretexto, i. é, a
motivação do escritor que levou-o a escrever determinada coisa. E para isso, se faz
necessário compreender o contexto, i. é, a localização sócio-histórico-politico-cultural
do autor. Para compreender Aristóteles, se faz necessário saber como a sociedade
grega estava organizada na época, que ele não era um ateniense, dentre outros
fatores que o influenciaram nas suas ideias. Com isso, entender-se-á que o motivo
que levou Aristóteles, em sua Ética à Nicômaco, a defender a escravidão, não foi o
mesmo motivo que levou o empirista britânico John Locke à fazê-lo, assim como
esclarecer-se-á a diferença de argumentação entre ambos, para sustentar o que é,
aparentemente, a mesma afirmação. No entanto, mais importante do
que compreender o que ambos, Locke e Aristóteles, sustentam, é não julga-los pelos
atuais valores sociais que condicionam a nossa visão de mundo – nosso contexto,
completamente distinto dos supracitados, encerra um círculo hermenêutico que não se
pode ignorar, e olhar para estes ou para qualquer outro pensador com um olhar
pejorativo seria uma atitude cega e impensada.
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Compreendendo o contexto e posteriormente o pretexto (nesse ponto, surge a


importância de ler um resumo biográfico dos autores), entender o
texto propriamente torna-se uma tarefa bem menos árdua – ou seja, para
compreender o trecho citado no inicio deste artigo, se faz necessário saber que
Immanuel Kant viveu entre os séculos XVIII e XIX na cidade de Königsberg (antiga
Prússia); que foi altamente inspirado pelo filósofo empirista David Hume; que o trecho
pertence à uma obra sobre Epistemologia, na qual Kant tenta responder à pergunta das
condições de possibilidade do conhecimento e que na seção aonde encontra-se o texto
em questão, Kant dedica-se à refutar a ideia de uma prova ontológica da existência de
Deus concebida por pensadores como Descartes e Santo Anselmo.

Portanto, estudar filosofia necessariamente pressupõe conhecer história – pelo menos


no que tange ao(s) autor(es) abordado(s). Para tal, em outro momento, será
dedicada uma abordagem aos grandes contextos pela qual a filosofia passou – desde
os tempos pré-socráticos, até a era contemporânea.

Em relação à leitura do texto filosófico propriamente dita, seguiremos uma obra


entitulada Metodologia Filosófica, escrita por Dominique Folscheid e Jean-Jacques
Wunenburger. Sintetizando, a obra sugere uma decomposição do texto, procurando
definir os seguintes itens:

Tema: i. é, sobre o que o autor esta falando no texto, do início ao fim;


Tese: a afirmação central do autor, ou seja, qual seu posicionamento a respeito
do tema;
Problema: o conjunto do tema, da tese e da movimentação argumentativa do
autor, suscita uma série de problemas que o autor tentará responder – o foco aqui
é detectar qual(is) são este(s) problema(s);
Movimentação argumentativa: é o conjunto ordenado de argumentos da qual o
autor se utiliza para sustentar sua tese. É uma movimentação essencialmente
lógica, i. é, apresenta uma série de premissas, da qual se infere uma ou
mais conclusões, e usando dessas conclusões como novas premissas, infere-se em
outra conclusão, até atingir sua tese (importante ressaltar que cada autor tem sua
forma de elaborar um determinado texto: alguns preferem anunciar sua tese logo
no início e em seguida, apresentar seus argumentos; outros, em contrapartida,
preferem deixar para apresentar sua tese central no fim do texto, assim como
existem outros que apresentam sua tese no meio do texto);
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existem outros que apresentam
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sua tese no meio do texto);
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Conceitos-chave: neste ponto, apresenta-se a importância de se ter um dicionário


filosófico em mãos – pois existem certas palavras-chave na qual cada autor atribuí
seu significado específico, mas nem sempre ele faz questão de explicar esse
significado. Por conseguinte, anotar os termos centrais do texto para posterior
consulta a um dicionário, é de vital importância para a compreensão do mesmo: por
vezes, pensamos que um texto critica X e discordamos dele por tal, enquanto na
verdade ele crítica Y, posto que ele pode ter usado um termo que é normalmente
associado à uma tal ideia para referir-se à uma outra ideia diferente da primeira.

A forma mais didática de se realizar este exercício é executá-lo na ordem contrária na


qual os itens foram apresentados: primeiro, deve se anotar os conceitos-chave do
texto; segundo, determinar quais são os argumentos do texto e em qual ordem
aparece, tomando o cuidado para não confundir um argumento qualquer com a tese
do autor; terceiro, analísa-se os argumentos para suscitar os problemas os quais o
autor tenta responder; por último, levantando as respostas sugeridas pelo
autor a esses problemas, procura-se estabelecer qual a sua afirmação central, i. é,
afirmação na qual gira em sua volta todos os argumentos do autor –
sua tese. Partindo desta, determina-se qual o tema do texto.

Utilizando-se desta metologia, vamos analisar o trecho da obra de Kant citada no início
do texto:

Sua tese é apresentada logo na primeira linha do texto:

SER NÃO É, EVIDENTEMENTE, UM PREDICADO REAL, ISTO


É, UM CONCEITO DE ALGO QUE POSSA ACRESCENTAR-SE AO
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É, UM CONCEITO DE ALGO QUE POSSA ACRESCENTAR-SE AO
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CONCEITO DE UMA COISA

O que esta em negrito é sua afirmação, sendo que a expressão em destaque –


predicado real – é considerada um conceito-chave de vital importância. A seguir, na
parte sublinhada, Kant fornece uma lacônica e contundente explicação desse conceito,
que será explicada posteriormente no próprio texto. Deste ponto, já é possível
determinar o tema central do texto (ainda que este ficará mais clara nos argumentos
posteriores): “O significado do juizo de existência, do ‘ser’, do ‘algo existe’“ – assim
como já é possível imaginar a problemática que o texto tenta responder: Qual o
significado do verbo ‘ser? ou Existe um significado particular para o verbo ‘ser’?

Continuando na mesma sentença, encontramos seus dois argumentos principais,


que não deixam de ser uma parte crucial de sua tese:

É APENAS A POSIÇÃO DE UMA COISA OU DE CERTAS


DETERMINAÇÕES EM SI MESMAS. NO USO LÓGICO É
SIMPLESMENTE A CÓPULA DE UM JUÍZO.

Cada um dos argumentos foi destacada de uma forma – o primeiro em sublinhado, o


segundo em negrito, e então se percebe que Kant esta oferecendo uma resposta à
questão Qual o significado do verbo ‘ser’? – e temos ai o problema central do texto.

Posteriormente, Kant apela para o seguinte exemplo:

A PROPOSIÇÃO ‘DEUS É ONIPOTENTE’ CONTÉM DOIS


CONCEITOS QUE TÊM OS SEUS OBJETOS: DEUS E
ONIPOTÊNCIA; A MINÚSCULA PALAVRA ‘É’ NÃO É UM
PREDICADO MAIS, MAS TÃO-SOMENTE O QUE PÕE O
PREDICADO EM RELAÇÃO COM O SUJEITO.

Este trecho serve de sustentação para o segundo argumento (ser enquanto cópula de
um juízo). Aqui, ele explicita a função semântica do verbo ser na frase ‘Deus é
onipotente’ que aparece conjugado na 3ª pessoa do singular (é): este executa a mera
função de conectar o sujeito Deus com o predicado onipotente; ao passo
que onipotente é considerado um predicado real, ou seja, ele é acrescentado ao
conceito Deus, e acaba por expandir seu significado. Aqui, Kant quer demonstrar
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que o verbo ser não possui a mesma função do adjetivo onipotente, i. é, o ser não
expande o conceito de Deus e, portanto, não é um predicado real (tese).

E para sustentar seu primeiro argumento – o ‘ser’ sendo usado para evidenciar a
posição do sujeito ou de suas determinações -, Kant diz:

SE TOMAR POIS O SUJEITO (DEUS) JUNTAMENTE COM TODOS


OS SEUS PREDICADOS (ENTRE OS QUAIS SE CONTA TAMBÉM A
ONIPOTÊNCIA) E DISSER ‘DEUS É’, OU EXISTE UM DEUS, NÃO
ACRESCENTO UM NOVO PREDICADO AO CONCEITO DE DEUS,
MAS APENAS PONHO O SUJEITO EM SI MESMO, COM TODOS
OS SEUS PREDICADOS E, AO MESMO TEMPO, O OBJETO QUE
CORRESPONDE AO MEU CONCEITO.

Neste trecho, Kant se dirige diretamente para os juízos de existência, por exemplo:
“Deus existe”; “Deus é”, ou podemos alterar o exemplo para facilitar o entendimento:
“O livro é azul, pequeno e existe.” Neste último exemplo, a frase atribuí dois
predicados reais ao sujeito livro: azul e pequeno. O adjetivo existe (“é”) não pode ser
considerado um predicado real (tese), pois este – em contrapartida aos conceitos
azul e pequeno – não aumenta meu conceito de livro, mas sim, coloca o sujeito em
questão (juntamente com todos os seus predicados reais) em evidência, relacionando
esse sujeito com o objeto empírico que corresponde meu conceito de livro (claro, no
texto, o exemplo utilizado é Deus e não livro).

Deste ponto, o trecho que era inicialmente de difícil compreensão torna-se


legível até para os mais leigos no assunto, e a filosofia deve ser assim: clara, sucinta
e metódica. Claro, Kant escrevia de tal maneira devido ao contexto sócio-histórico-
político-cultural em que vivera, por isso seus textos – assim como o de muitos
outros – tende a ser de dificílima compreensão. Contudo, com o método
adequado, não existe texto impossível de ser compreendido (com exceção daqueles
que escrevem na pura intenção de confundir os leitores – mas estes nem deveriam se
encaixar na concepção de filosofia).

Bibliografias:

– FOLSCHEID, Dominique; WUNENBURGER, Jean-Jacques; Metodologia


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– FOLSCHEID, Dominique; WUNENBURGER, Jean-Jacques; Metodologia
Filosófica, Martins Fontes, São Paulo, 2002.

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Lennon da Silva Rocha


Estudante filosofia na PUC-RS. Sustenta que aulas de lógica deveriam ser lecionadas desde o
Ensino Fundamental, pois já esta cansado de ter escutar as mais básicas falácias nos debates
do cotidiano.

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