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Moore e a falácia naturalista

Moore era um filósofo de Cambridge no começo do que viria a ser uma longa e distinta
carreira. O seu primeiro livro tornar-se-ia um clássico, não tanto devido às suas
afirmações positivas, mas ao estilo de argumentação, à redefinição das questões
filosóficas e à sua crítica de pontos de vista que são familiares. Uma das mais
importantes alegações de Moore era que todas as teorias naturalistas da moralidade
cometem um determinado erro, a que ele chamou "a falácia naturalista". Moore usou os
pontos de vista de [Herbert] Spencer's para ilustrar a forma como as teorias caiem neste
erro. Apenas uma dúzia de páginas eram dedicadas a Spencer, mas as acusações de
Moore pareceram irrefutáveis a muitos leitores. Os seus argumentos eram muito
persuasivos, porque a leitura que fazia de Spencer era equilibrada e justa e porque
Moore era ele próprio um admirador de Darwin ― ele não era um brutamontes anti-
científico, determinado a apoiar a moralidade tradicional. Os pontos de vista de Spencer
pareceram, após a demolição a que Moore procedeu, desesperadamente ingénuos. Mas
não eram somente as fórmulas específicas de Spencer que tinham defeitos. Se Moore
estava correcto, as ciências naturais, incluindo a biologia evolucionista, eram
claramente irrelevantes para a ética. Os leitores dos Principia Ethica ficariam convictos
de que Spencer estava correcto acerca de pelo menos uma coisa: os fundamentos da
ética precisam de ser repensados. Mas a maioria também ficaria convencida de que a
'ética evolutionista' era uma ideia fundamentalmente confusa que não deve ter nisso
qualquer papel.

Usando de alguma liberdade, o argumento central de Moore pode ser exposto de forma
breve. A 'falácia naturalista' é cometida por qualquer teoria que procure definir a ética
em termos naturalistas. A ética tem a ver com o que é bom ou correcto ― por outras
palavras, com o que deve ser o caso. As teorias naturalistas identificam bondade ou
correcção com as propriedades 'naturais' das coisas ― por outras palavras, com factos
acerca do que é o caso. Mas isto é sempre um erro. Portanto, a falácia naturalista é a
falácia de confundir o que deve ser o caso com o que é o caso. A teoria de Spencer
constitui um exemplo. Spencer sustenta que 'boa conducta' é o mesmo que 'conduta
relativamente mais evoluída'. Mas quando pensamos no assunto, vemos que 'bem' e
'relativamente mais evoluído' são noções bastante diferentes. Se algo é bom é uma
questão de avaliação; enquanto que se algo é relativamente mais evoluído é uma
questão de facto. As duas não são o mesmo, e, por isso, a teoria de Spencer falha.

A discussão por Moore da 'falácia naturalista' evoca o dictum de David Hume de que
não podemos derivar 'deve' de 'é' ― de facto, muitos comentadores emitiram a opinião
de que Moore apenas reafirmava a famosa observação de Hume. Em 1739, quase
exactamente 100 antes antes de Darwin ter descoberto a selecção natural, Hume
escreveu no seu Tratado da Natureza Humana:

Em todos os sistemas morais que conheci até agora, constatei sempre que o autor
raciocina durante algum tempo da forma normal, e estabelece a existência de 'Deus' ou
faz observações sobre os assuntos humanos; quando de súbito tenho a surpresa de
verificar, que em vez da copulação usual de proposições, é, e não é, não encontro
nenhuma proposição que não esteja ligada com um deve ou um não deve. Esta mudança
é imperceptível; mas tem, contudo, consequências definitivas. Pois como este deve ou
não deve expressa uma nova relação ou afirmação, é necessário que seja constatada e
explicada; e ao mesmo tempo que se dê uma razão, para o que parece em geral
inconcebível, como é que esta nova relação pode ser deduzida de outras, que são
completamente diferentes dela.

Parafraseando Hume, com um olho na teoria de Spencer, podemos dizer: Spencer


raciocina de forma normal, fazendo observações sobre os assuntos humanos; e
estabelece que a nossa conduta evoluiu de determinado modo, e que é o caso que nos
comportamos destes modos; mas então, imperceptivelmente, ele começa a dizer que isto
é o padrão de como nos devemos comportar. Mas esta é uma nova afirmação, que não
pode ser deduzida da primeira e é completamente diferente dela. Ou, para pôr as coisas
mais claras, a questão é que a proposição 'X é boa conduta' simplesmente não se segue
da proposição 'X é uma conduta mais evoluída', e é um erro de lógica pensar que se
segue.

Spencer, que era um homem brilhante, sabia que esta espécie de objecção poderia ser
feita e tentou responder-lhe antecipadamente. Segundo ele, o problema crucial é este: a
conduta que prolonga a vida e a torna melhor será vista como boa se a pessoa pensar
que a vida merece ser vivida. Um 'optimista', que pense que a vida merece ser vivida,
aceitará o argumento de Spencer (ou assim o diz Spencer), enquanto um 'pessimista',
que duvida disso, terá poucas razões para aceitar o argumento.

Spencer tenta resolver a questão sugerindo que o pessimismo se baseia numa estimativa
errada da quantidade de sofrimento que a vida contém. Por que deve alguém pensar que
a vida não merece ser vivida? Isto só será sensato se a vida tiver mais sofrimento que
prazer. O pessimista acredita que sim; o optimista, que não. Mas, diz ele, isto significa
que o pessimista e o optimista estão de acordo em que o prazer e o sofrimento são os
padrões últimos de referência. Spencer anuncia então que ele próprio sustenta que o
prazer e o sofrimento são o padrão último:

Assim, não podemos deixar de admitir que ao chamar boa à conduta que promove a
vida, e má à conduta que a impede ou a destrói, e desse modo implicando que a vida é
uma benção e não uma maldição, estamos inevitavelmente a afirmar que a conduta é
boa ou má consoante os seus efeitos totais sejam agradáveis ou dolorosos.

Mas esta tentativa de evitar o problema de Hume falha o alvo, porque Spencer mudou
agora radicalmente de terreno. Ele sustenta agora um género muito diferente de teoria
moral, o Utilitarianismo Hedonista. O bem e o mal já não são identificados com o que é
mais ou menos evoluído; mas antes com o que produz prazer ou sofrimento. Na nova
teoria, os supostos 'factos' sobre a evolução da conduta podem ter apenas o papel
subordinado de nos dizer que espécie de comportamento produz ou não produz prazer.
Uma vez que há outras formas mais plausíveis de o determinar, as referências à
evolução dificilmente são necessárias. Além disso, Spencer está, aparentemente, a
sustentar a nova teoria de uma forma que a torna vulnerável à própria objecção que ele
procura superar. Se a identificação de 'bem' com 'mais evoluído' comete a falácia
naturalista, então a identificação de 'bem' com 'produtor de prazer' faz o mesmo.

A discussão por Moore da falácia naturalista era, contudo, mais do que uma mera
reafirmação da observação de Hume sobre 'é' e 'deve'. Moore produziu um argumento
novo e independente, que foi designado o 'argumento da questão em aberto', para
demonstrar que as definições naturalistas de bem têm de estar sempre erradas. O
argumento da questão em aberto tem o seguinte aspecto. Em primeiro lugar,
observamos que qualquer definição de 'bem' pode ser expressa da forma seguinte:

D: 'X é bom' significa 'X tem a propriedade P.'

Depois, formulamos duas questões:

A: X tem P, mas é bom?

B: X tem P, mas tem P?

Então, o argumento da questão em aberto é apenas este:

Se D está correcto, então A e B têm o mesmo significado.

Mas A e B não têm o mesmo significado.

Portanto, D não está correcto.

E a razão pela qual A e B não têm o mesmo significado é que A é uma 'questão em
aberto' enquanto B não é.

Como Moore mostrou, esta espécie de argumento pode ser desenvolvido contra a
idenficação proposta por Spencer de 'boa conducta' e 'conducta mais evoluída' com
efeito bom. Considere as questões:

A: Esta conducta é mais evoluída, mas é boa?

B: Esta conducta é mais evoluída, mas é mais evoluída?

A primeira questão é uma 'questão em aberto'; a segunda não. Mas se a teoria de


Spencer estivesse correcta, elas seriam a mesma questão. Por isso, a teoria de Spencer
não está correcta. Moore conclui, de forma mais geral, que 'bem' não pode ser
identificado com quaisquer das propriedades investigadas pelas ciências naturais, nem
com as da biologia evolucionista, nem com quaisquer outras. Qualquer identificação
desse tipo encontraria pela frente este argumento.

Mas este argumento refuta realmente Spencer? Olhando para trás, podemos ver agora
que tinha menos força do que Moore pensava. Moore interpretou o ponto de vista de
Spencer como uma definitição de 'boa conduta' ― isto é, ele interpretou a tese de
Spencer como uma tese acerca do significado destas palavras. Isto era razóavel, uma
vez que, como vimos, Spencer expressou a sua tese como uma tese sobre palavras: ele
disse, 'A conduta a que aplicamos o nome boa, é a conduta relativamente mais evoluída;
e má é o nome que damos à conduta que é relativamente menos evoluída.' Contudo, é
possível interpretar o ponto de vista de Spencer de forma diferente, como uma
afirmação acerca de o que é de facto boa conduta. Nesta leitura alternativa, Spencer
estaria a fornecer um critério, não uma definição, de boa conduta. Se fosse esse o caso,
o argumento da questão em aberto já não funcionaria contra ela.
Para tornar isto claro, compare a tese de Spencer com o seguinte exemplo. Suponha que
alguém diz: um bom automóvel é o que é seguro, fiável, confortável e tem um baixo
consumo. Se isto pretende ser uma definição do significado das palavras 'bom
automóvel', é um erro; não podemos definir palavras como 'bom', que estabelecem
valores, em termos puramente factuais, pelo menos não podemos fazê-lo desta forma.
No entanto, o que dissemos é razoável, e provavelmente verdadeiro, se o tomarmos
como uma afirmação acerca das proporiedades dos automóveis que os tornam bons.
Interpretada desta forma, a afirmação não envolve nenhuma confusão do tipo é-deve,
nem é vulnerável ao argumento da questão em aberto. Analogamente, se a tese de
Spencer for interpretada como estabelecendo um critério de 'boa conduta', também
escapa a estas acusações. Esse critério pode ser criticado com outros fundamentos, mas
pelo menos não será vulnerável aos argumentos de Moore. O próprio Spencer permitiu
a crítica de Moore porque não distingue definições de critérios ― é uma distinção em
que ele aparentemente não reparou. O próprio Moore também não é muito claro sobre o
assunto. Naqueles tempos a filosofia da linguagem não estava muito avançada.

No entanto, Moore estava correcto ao rejeitar o ponto de vista de Spencer. A teoria de


Spencer não poderia ser aceite pelos darwinistas. Moore fez notar (o que também já
fizemos) que o entendimento que Spencer fazia da evolução era inconsistente com as
noções darwinistas. Darwin tentou evitar termos como 'mais elevado' e 'mais baixo'
quando se referia a estádios de desenvolvimento ― uma característica única da sua
teoria era a sua negação de que a mudança evolucionista esteja associada com qualquer
propósito ou 'direcção'. Não há qualquer avanço e qualquer recuo; há apenas mudança.
A teoria ética de Spencer, por outro lado, dependia de uma posição lamarkiana, ao ver
algumas formas de conduta como 'mais evoluídas' do que outras. Deste modo, ele
introduziu esquivamente um elemento de avaliação que é estranho às concepções
darwinistas. Como Darwin reconheceu claramente, não temos o direito ― não com base
evolucionistas, em qualquer caso ― de considerar o nosso próprio comportamento
adaptativo como 'melhor' ou 'mais elevado' do que o da barata, que, afinal de contas,
está igualmente bem adaptada ao seu próprio nicho ambiental. A selecção natural
favorece as criaturas cuja conduta as capacita para vencer a competição para se
reproduzirem. Não apenas o comportamento humano, mas o comportamento de um sem
número de outras espécies, tem este resultado. Se Spencer tivesse aceitado este aspecto
fundamental, a sua teoria nunca teria sido concebida.

O livro de Moore teve uma enorme influência. Aparecendo logo a seguir à viragem do
século, definiu os problemas que os filósofos morais iriam discutir nas seis décadas
seguintes. A ética evolucionista estava agora fora da agenda filosófica; e cedo a
independência da ética de todas as ciências tornar-se-ia um artigo de fé. Em 1903, o ano
em que os Principia Ethica foram publicados, os livros de Spencer venderam umas
fenomenais 368755 cópias apenas na America. Mas a moda tinha acabado. Parece de
algum modo apropriado que, nesse mesmo ano, Spencer tenha morrido.

Tradução de Álvaro Nunes

James Rachels, Created From Animals, Oxford University Press, Oxford, 1991, pp. 66-
70

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