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A “Vida de Antão”:
uma pedagogia para a vida ascética
O
3
presente artigo parte da constatação de que uma das bio-
grafias mais importantes sobre a história da vida religiosa
é desconhecida justamente por uma grande parte daqueles
que optaram pela sequela Christi. Sobre a vida do monge
Santo Antão, quase todos já ouviram falar. A obra literária
Vida de Antão, escrita por Santo Atanásio, poucos conhecem. Constata-se
o fato de que Antão é sim conhecido, mas superficialmente. Por isso, o ob-
jetivo deste artigo é oferecer algumas reflexões sobre a proposta de Atanásio ao
escrever a Vida de Antão. Não pretendemos esgotar o tema. Nos daremos por
satisfeitos se conseguirmos despertar o interesse nos leitores(as), sobre um texto
que merece e deve ser melhor conhecido, lido, refletido, principalmente por aque-
les e aquelas que, um dia, tocados pelo Espírito, se entusiasmaram por seguir a
mesma vida vivida por Antão.
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
1 As dúvidas levantadas pelos estudiosos sobre a existência histórica de Antão foram superadas. Embora seja quase impossível
separar as ideias de Atanásio da vida de Antão, alguns dados históricos provam a existência deste personagem, como o fato de
que deixou um grupo de discípulos, além das sete cartas que lhe são atribuídas, e alguns “apoftegmas” (sentenças sábias dos
Padres do deserto, transmitidas oralmente, e colocadas por escrito a partir do V século). Uma carta de Serapião, bispo de Thmuis,
aos discípulos de Antão, para consolá-los de sua morte, é anterior à Vida, o que atesta a existência histórica de Antão, bem como
testemunha a extrema autoridade de que o monge gozava.
2 O Credo que rezamos a cada domingo na missa, o “niceno-constantinopolitano”, porque elaborado em Niceia, vai ser reafirmado
e completado em 381, no Concílio de Constantinopla.
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
2. A obra3
Nos 45 anos em que esteve à frente de sua diocese, Atanásio sofreu todo o tipo de perse-
guições e acusações, incluindo ameaças físicas. Exilado por cinco vezes, nos três últimos exílios
refugiou-se junto aos monges do deserto. Teria escrito a Vida de Antão durante sua estadia com
estes monges, entre 356-362, ou por volta de 366, após seu último exílio. Discute-se ainda hoje
se Atanásio teria de fato conhecido Antão4. De qualquer modo, ao escrever a vida de Antão, o
bispo o faz sobre um estilo de vida que ele admira e conhece, pois tinha constantes contatos com
os monges5. Foram estes os seus principais aliados na defesa de Niceia, e ele mesmo, embora
não fosse monge, tinha uma vida ascética exemplar.
A Vida de Antão é a primeira obra a relatar a vida de um monge, e vai servir de modelo
para as biografias (ou hagiografias) posteriores6. Antão é conhecido como “o pai dos monges”,
embora ele não tenha sido o primeiro a viver vida monástica anacorética, e Atanásio sabia dis-
so7. Literariamente a obra é inserida na categoria de hagiografia, onde o objetivo primeiro não
é narrar objetivamente a vida de um personagem ilustre, mas, valendo-se de dados históricos,
passar uma mensagem edificante, buscando convencer os leitores a trilharem os mesmos passos
da pessoa retratada. Isso, no entanto, não significa que a obra não contenha elementos históricos.
Ao lado de fatos históricos envolvendo a vida de Antão, Atanásio também faz suas reflexões
pessoais, sejam morais, religiosas, doutrinais ou espirituais, sobre o valor e grandeza da vida 5
monástica e cristã em geral. A Vida de Antão contem a síntese de tudo o que um monge deveria
viver para ser um monge “ideal”. O próprio Atanásio afirma: “Vocês me pediram um relato so-
bre a vida de Santo Antão: querem saber como chegou à vida ascética, que foi antes dela, como
foi sua morte, e se é verdade o que dele se diz. Pensam modelar suas vidas segundo o zelo da
3 Para a elaboração deste artigo utilizamo-nos da edição da coleção Sources Chrétiennes 400, Athanase d’Alexandrie. Vie d’Antoine.
Introduccion, texte critique, traduction, notes et index par G. J. M. Bartelink, Les Éditions du Cerf, Paris, 1994.
4 Atanásio escreve de forma indireta, ouvindo o testemunho daqueles que conviveram diretamente com Antão. As dúvidas sobre
a autoria da obra por Atanásio foram superadas, através de uma série de testemunhos de escritores eclesiásticos autorizados,
como Gregório de Nazianzo, por volta de 380, de Jerônimo, em 392, de Agostinho, entre outros. Mas também o estilo próprio de
escrever de Atanásio é perceptível em toda a redação.
5 Utilizamos o termo “monge” aqui para nos referirmos aos ascetas que viviam solitários, diferentemente dos que viviam em co-
munidades, os “cenobitas”, organizados nos inícios do século IV por São Pacômio (292-348). Outra palavra para designar os que
vivem sozinhos é “anacoreta”, derivado do grego “anakorein”: retirar-se, isolar-se, recolher-se.
6 Não nos cabe, neste artigo, analisar os modelos literários empregados por Atanásio na elaboração de sua obra. Acenamos apenas
ao fato de que o autor conhece e emprega elementos da rica cultura literária pagã greco-romana, ao elaborar o perfil de seu per-
sonagem ou “herói” cristão.
7 A Vida não faz nenhuma menção a “monjas”, mulheres vivendo vida ascética. A única referência a uma possível vida religiosa
feminina é quando Antão confia sua irmã a uma comunidade de “virgens”, o que não era considerada vida religiosa no sentido
exato da palavra. No entanto, em várias passagens, a Vida insinua que o gênero masculino ou feminino não faz nenhuma dife-
rença na vivência da ascese. Provavelmente as Cartas e os escritos sobre a vida ascética, incluindo a Vida, eram lidos também
pelas “Virgens”, suscitando, mais tarde, algumas mulheres a viverem o mesmo estilo de vida dos monges do deserto. São João
Crisóstomo (347-407), nos informa: “Não só entre os homens triunfa esta vida, senão também entre as mulheres... Comum lhes
é com os varões a guerra contra o diabo... muitas vezes as mulheres têm lutado melhor que os homens e obtiveram mais brilhan-
tes vitórias... Vergonhemo-nos, pois, nós homens, ante a constância e firmeza destas mulheres”. Cfr. Colombás, Garcia M., El
Monacato Primitivo I: Hombres, Hechos, Costumbres, Instituciones, Biblioteca Autores Cristianos 351 (BAC), Madrid 1974, p.
88. Uma Amma famosa, cuja vida é comparável à Vida de Antão, é Synclética, morta por volta de 350. Cfr. http://www.peregrina.
com/voxbenedictina/MacrinaSyncletica.html (acessado dia 04 de abril de 2015).
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
(vida) dele. Muito me alegro em aceitar esse pedido, pois também eu tiro real proveito e ajuda da
simples lembrança de Antão, e pressinto que também vocês, depois de ouvida a história, não só
admirarão o homem, mas quererão emular sua resolução, quanto lhes seja possível. Realmente,
para monges, a vida de Antão é modelo ideal de vida ascética” (Prólogo, 2-3)8.
3. O personagem
Quando Antão morreu, em 356, estaria com 105 anos de idade. Hoje coloca-se seu nas-
cimento entre 250 e 260. Filho de uma família rica, cedo tornou-se órfão, com uma irmã mais
nova. Com cerca de 18-20 anos resolveu deixar tudo para trás e dedicar-se à vida monástica. A
partir daí, sua vida foi se desenvolvendo cada vez mais em direção à santidade, com não poucas
dificuldades e desafios. Indo um dia à Igreja, e já pensando em se dedicar totalmente ao serviço
de Deus, no templo escuta o Evangelho de Mateus: “Se queres ser perfeito, vende o que tens e
6 dá-o aos pobres, depois vem, segue-me e terás um tesouro no céu (Mt 19,21)”. Para Antão, essa
é a resposta que procurava para seus questionamentos. Doou seus bens aos pobres, retendo uma
pequena parte para a irmã, mas até essa parte será depois distribuída. A irmã é colocada para
viver junto a algumas virgens consagradas. A partir daí, Antão inicia sua fuga mundi.
8 Na literatura antiga não era nenhum problema um autor valer-se da autoridade de um personagem importante para fazer passar
suas próprias convicções, colocando, na boca do personagem, ideias que eram suas.
9 Santo Atanasio, Vita di Antonio. Apoftegmi – Lettere, Edizione Paoline, Roma 1984. Introdução aos cuidados de Lisa Cremas-
chi, p. 56. Observamos que, em italiano, o nome de Antão é traduzido como “Antonio”.
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
‘Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá-o aos pobres, depois vem, segue-me e terás um
tesouro no céu’ (Mt 19,21)” (II,3)11. Segundo Atanásio, Antão sentiu que a palavra havia sido
dirigida diretamente a ele. E não perdeu tempo: “Antão saiu imediatamente da Igreja e deu a
propriedade que tinha de seus antepassados” (II,4). Deixou um pouco para a irmã, mas mesmo
esta pequena parte acabou dando aos pobres, ao ouvir, de novo na Igreja, o Evangelho que diz
“Não vos preocupeis com o dia de amanhã (Mt 6,34)” (III,1). A irmã foi entregue aos cuidados
de uma comunidade de virgens.
10 Seguindo o estilo típico da hagiografia, Atanásio apresenta o menino Antão quase como um mini-asceta.
11 As indicações que se seguem às citações correspondem à edição da Sources Chrètiennes, já citada. Na web encontra-se uma
tradução em português da Vida, feita pelas monjas Beneditinas do Mosteiro da Virgem, de Petrópolis: https://sumateologica.
files.wordpress.com/2010/02/atanasio_vida_de_santo_antao.pdf.
12 Este trecho do Evangelho vai inspirar muitos futuros fundadores de Ordens e Congregações religiosas ao longo da história.
Três modelos tornaram-se tradicionais a serem seguidos, quando alguém queria compor uma hagiografia: a Vida de Antão, de
Atanásio, a Vida de Paulo de Tebas, de Jerônimo, e a Vida de São Martinho, de Sulpício Severo.
13 Um elemento a sublinhar no texto são as “mediações”: o chamado é Evangélico, através das Escrituras, intermediado pela
Igreja, na liturgia dominical, e pelos mestres mais experimentados, que o introduzem na vida ascética. Em toda a obra Atanásio
utiliza-se abundantemente dos textos das Escrituras para destacar o perfeito seguimento de Antão da doutrina cristã, ao mesmo
tempo em que o identifica com personagens bíblicos.
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
4.2 A iniciação
Atanásio mostra o processo de iniciação de Antão à vida ascética como uma gradual afas-
tar-se do convívio com os homens. A princípio, pratica a vida ascética, “vivendo de renúncia a si
mesmo, perto de sua própria casa” (III,1). Porém, sabendo que numa aldeia próxima vivia um
ancião que desde a juventude levava vida ascética, muda-se e vai viver próximo a ele. Mas não
se limita a isso: “quando ouvia que em alguma parte havia uma alma esforçada, ia, como sábia
abelha, buscá-la e não voltava sem havê-la visto; só depois de haver recebido, por assim dizer,
provisões para sua jornada de virtude, regressava” (III,4). O jovem vivia de trabalhos manuais,
para o próprio sustento e para dar esmolas aos pobres, orava incessantemente e se ocupava das
Escrituras. Antão é a “sábia abelha” que busca o rico pólen para elaborar o doce mel da virtu-
de. Nesse processo inicial, buscava com sede todas as informações que o pudessem ajudá-lo
no caminho que havia encetado: “Observava a bondade de um, a seriedade de outro na oração;
estudava a aprazível quietude de um e a afabilidade de outro; fixava sua atenção nas vigílias
observadas por um e no estudo de outro; admirava um por sua paciência, a outro por jejuar e
dormir no chão, considerava atentamente a humildade de um e a paciente abstinência de outro;
e em uns e outros notava especialmente a devoção a Cristo e o amor que mutuamente se tinham.
Havendo-se assim saciado, voltava a seu lugar de vida ascética” (IV,1-2). Na sua busca, Antão
recorre a “experts”, que o ajudam a percorrer os vários graus de amadurecimento no espírito. O
8 autor acentua a importância da prática na vida ascética, e não apenas as teorias: “...submetia-se
com toda sinceridade aos homens piedosos que visitava, e se esforçava por aprender aquilo em
que cada um o avantajava em zelo e prática ascética” (IV,1). Os exercícios visavam submeter
totalmente o corpo e os sentidos, para fortalecer o vigor espiritual da alma.
Atanásio nos revela um jovem Antão num frenético processo de busca, de conhecimento,
sedento por aprender com aqueles que tinham mais experiência. Não à toa Atanásio utiliza a
expressão “Havendo-se assim saciado”. Antão tem sede de conhecer o caminho da virtude e da
salvação. E, segundo Atanásio, este se dá através dos modelos de vida ascética que Antão busca
conhecer, cada um com alguma virtude particular. Atanásio apresenta, neste trecho, um compên-
dio das virtudes que deve ter o monge ideal, que Antão buscava incorporar em sua vida: “Então
se apropriava do que havia obtido de cada um e dedicava todas as suas energias a realizar em si
as virtudes de todos” (IV,2). Atanásio vai apresentar Antão na sua maturidade como uma síntese
de todas essas virtudes.
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
4.3 As tentações
Os primeiros anos de vida ascética de Antão, além
da sedenta busca de conhecimento da virtude, são marca-
dos também pelas tentações e pela presença do demônio14.
Tais tentações vão aumentando gradativamente, à medida
em Antão avança na vida ascética. As primeiras tentações
estão relacionadas à vida que até há pouco tempo levava:
a preocupação com a irmã, com os parentes, os bens, e a
lembrança dos prazeres vividos e deixados para trás. É a
tentação de, uma vez tendo “colocado as mãos no arado”,
voltar a “olhar para trás”. Relacionam-se também com os
temores relacionados à austeridade da vida assumida, às
dificuldades futuras. Vencida esta etapa, o demônio então concentra seus ataques nas armas que
estão “nos músculos de seu ventre (Jo 40,16)” (V,3). Empregando suas mais baixas artimanhas, o
demônio ataca justamente o ponto mais delicado no jovem asceta: sua sexualidade. Estas tenta-
ções são terríveis, fazendo Antão travar verdadeiras batalhas contra o mal: “cingia seu corpo com
sua fé, orações e jejuns” (V,4). O demônio chega a disfarçar-se de mulher para tentá-lo à noite.
O jovem resiste: “Mas ele encheu seus pensamentos de Cristo, refletiu sobre a nobreza da alma
criada por Ele, e sua espiritualidade, e assim apagou o carvão ardente da tentação” (V,5). O demô- 9
nio continua suas investidas, e não desiste. Interessante notar que Atanásio emprega expressões
muito humanas para se referir ao ânimo do jovem Antão: “enfadado com razão, e entristecido...
envergonhado” (V,6). No final do relato, por causa da resistência de Antão, é o demônio que sai
derrotado e envergonhado. A vitória, momentânea diga-se de passagem, é atribuída não a Antão,
mas à graça de Deus que age nele: “Verdadeiramente o Senhor trabalhava com este homem” (V,7).
A luta e vitória de Antão contra o mal, através do rigor nas mortificações, particularmente a luta
contra a concupiscência e os sentidos, é apresentada como modelo para todos os que querem viver
uma vida ascética: “Assim, todos os que combatem seriamente podem dizer: ‘Não eu, mas a graça
de Deus comigo’ (1 Cor 15,10)” (V,7)15.
14 O exagerado acento no “demônio” é uma das mais fortes críticas à obra de Atanásio. No entanto, sabe-se que os demônios e as
tentações eram um tema comum na religiosidade popular da época e da cultura onde a obra foi escrita. Não nos cabe aqui tratar
exaustivamente das “tentações de Santo Antão”. Sobre isso existem livros inteiros. O tema também foi extremamente explorado
por importantes artistas, em pinturas, mosaicos, afrescos, iluminuras de livros, etc. De todas as Vidas escritas, a de Antão é a
que contem mais aparições diabólicas. Carpenter, Dwayne E., The devil bedevil: diabolical intervention and the desert fathers,
The American Benedictine Review, 31:2, june 1980, 182-200.
15 Antão aprendeu a discernir a verdadeira ascese, por isso alertava constantemente os monges contra o falso desejo de ascese e
perfeição. Jejuns, vigílias, mortificações não podem ser absolutizados, e servem apenas como meios para o exercício da carida-
de, do amor de Deus e do próximo: “Alguns destroem o próprio corpo com a ascese, mas, privados de discernimento, distan-
ciam-se de Deus” (Apoftegma 8). A esse propósito, São Francisco de Assis afirmava: “Muitos há que, insistindo em orações e
serviços, fazem muitas abstinências e macerações em seus corpos, mas, por causa de uma única palavra que lhes parece uma
injúria a seu próprio eu ou por causa de alguma coisa que se lhes tirem, sempre se escandalizam (cf. Mt 13, 21) e se perturbam.
Estes não são pobres de espírito, porque quem é verdadeiramente pobre de espírito se odeia a si mesmo e ama a quem lhe bate
na face (cf. Mt 5, 39)”. Escritos de São Francisco, Admoestações XIV, Vozes 20044, p. 40.
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
As tentações
de Santo Antão,
por Michelangelo
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A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
Após este embate com o demônio e o acentuar-se de mortificações, Atanásio afirma que
Antão dominou-se a si mesmo. Mas, apesar de todo o progresso, o monge não está satisfeito. 11
Sua alma deseja mais. Por isso retira-se para viver em uma tumba abandonada, num cemitério,
no deserto próximo à aldeia onde vivia. Ali trava os mais duros combates contra o demônio.
Nesta parte do relato Antão já é um homem experimentado no sofrimento e nas tentações, e
enfrenta o demônio quase “cara a cara”: “Aqui estou eu, Antão, que não me acovardei com teus
golpes, e ainda que mais me dês, nada me separará do amor de Cristo (Rm 8,35)” (IX,2). Para
Atanásio, a luta contra o mal não tem trégua. Antão está sempre em confronto com o demônio,
que lhe aparece de todas as formas possíveis, causando-lhe dores e ferimentos. E tais tentações
são permitidas por Deus. Quando Antão interroga à “visão” que o vem salvar, “por que não apa-
recestes no começo para deter minhas dores?”, ouve a explicação de que estava sempre ali, mas
“esperava ver-te enquanto agias”. E, embora Antão conte com apenas 35 anos, e tenha ainda um
longo caminho a percorrer, a “voz” afirma: “porque aguentaste sem te renderes, serei sempre teu
auxílio e te tornarei famoso em toda parte” (X,3).
16 Antão, como os demais ascetas, era vegetariano. Na espiritualidade monástica a pratica ascética de dormir por terra assume
uma importância tal, a ponto de se criar uma palavra para designá-la: kameonia. Cfr. Bormolini, Guildalberto, l’arte spirituale
di affontare la notte e il dormire, Rivista di Ascetica e Mistica, Anno XXX, n. 2, aprile-giugno 2005, Firenze, p. 207-236. Para
vencer o pecado, Antão sugere aos monges a prática diária do exame de consciência, mas também indica um meio simples, mas
eficaz: anotar num papel os pecados cometidos, como se tivessem que ser mostrados aos outros monges: “podem estar seguros
de que de pura vergonha de que isto seja conhecido, deixaremos de pecar e de prosseguir com pensamentos pecaminosos. Quem
gosta que o vejam pecando? Quem, depois de pecar, não preferiria mentir, esperando escapar assim de que o descubram?”
(LV,9-11).
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
No caminho de busca pela perfeição, nada detêm Antão. Tendo vencido o demônio nas
tumbas, decidiu aprofundar-se ainda mais no deserto, indo viver numa pequena fortaleza aban-
donada. Convidou um ancião para ir com ele. Como este recusou, partiu sozinho. Já no caminho
o demônio o tenta, mas o asceta segue em frente. Neste refúgio, em solidão absoluta, retirado de
tudo e de todos, acompanhado apenas de Deus, do demônio e de suas artimanhas, durante vinte
anos praticando a vida ascética, “não saindo nunca e sendo raramente visto por outros” (XII,7),
vai empreender sua luta espiritual radical, ao final da qual sairá transformado definitivamente no
grande mestre espiritual, no abade Antão, o “pai dos monges”17.
17 O “deserto”, mais do que um lugar geográfico, designa o local onde habitam os demônios. Mas é também no deserto que o Se-
nhor firma sua aliança com o povo, e onde Jesus se mostra transfigurado aos seus. “O deserto, antes de tudo, é um lugar inóspito,
tórrido, onde ninguém poderia levar uma existência normal. Lá o homem está nu, apanhado entre a terra e o céu, entre os dias
extenuantes e as noites gélidas... No deserto nenhum homem pode viver se não for ajudado por Deus ou por seus anjos, ninguém
pode morar ali sem enfrentar, mais cedo ou mais tarde os assaltos do diabo: tem de viver ali com os milagres e as tentações”.
Lacarrière, Jacques, Padres do Deserto, homens embriagados de Deus, Loyola 1996, p. 50. Os monges conservaram uma
série de apoftegmas de Antão. Neles, mais do que um herói vitorioso que vence os demônios, aparece um pecador arrependido
e tentado, para quem o deserto é um refúgio, mais do que um lugar de combater e enfrentar demônios, e que insiste sobre a
discrição, a prudência e a humildade.
18 “Suas celas solitárias nas colinas eram assim como tendas cheias de coros divinos, cantando salmos, estudando, jejuando,
orando, gozando com a esperança da vida futura, trabalhando para dar esmolas e preservando o amor e a harmonia entre si. E
em realidade, era como ver um país diferente, uma terra de piedade e justiça. Não havia nem malfeitores nem vítimas do mal,
nem acusações do cobrador de impostos, mas uma multidão de ascetas, todos com um só propósito: a virtude” (XLIV,2-4). Num
diálogo de Antão com Satanás, este, em tom de lamúria, vai reconhecer sua derrota: “Agora não tenho nem lugar, nem armas,
nem cidade. Em toda parte há cristãos e até o deserto está cheio de monges” (XLI,4).
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
tual, é ocupada pelos “ditos” do mestre. Mas mesmo neste momento posterior à sua “formação”
definitiva, Atanásio apresenta um Antão sempre num atento processo de busca da perfeição.
seus dias, na verdade representa o auge de sua jornada espiritual. Aqui ele realiza o ideal da busca
de perfeição. No deserto interior ele encontra-se “em casa”: “Daí em diante olhou esse lugar como
se houvera encontrado seu próprio lar” (L,2). Mas os demônios e as tentações continuam presentes.
Na montanha cultiva a terra para o sustento, continua a receber seus monges, e também sai para dar
conselhos. Ali realiza a maior parte de seus prodígios. Mas não os atribui a si: “...no entanto suplicava
que ninguém o admirasse por essa razão, mas admirasse antes ao Senhor porque Ele nos ouve a nós,
que somos apenas homens, a fim de que possamos conhecê-lo melhor” (LXII,2)23.
De seu refúgio, Antão sai muito raramente. Sai para combater as heresias (arianismo) e para
visitar e fortalecer os monges na fé. Mas volta sempre à sua “montanha interior”, da qual não po-
dia ficar muito tempo ausente, como recomendava aos discípulos: “Assim como um peixe morre
quando fica algum tempo em terra seca, assim também os monges se perdem quando se tornam
folgazões e passam muito tempo [fora]. Por isso, temos que voltar à montanha, como o peixe à
água. De outro modo, se nos entretemos, podemos perder de vista a vida interior” (LXXXV, 3)24.
No combate à heresia ariana, Atanásio apresenta o monge defendendo as teses que ele
mesmo, Atanásio, defendia: “Desceu a montanha e entrando em Alexandria denunciou os aria-
nos. Dizia que sua heresia era a pior de todas e precursora do anticristo. Ensinava ao povo que
o Filho de Deus não é uma criatura nem veio ‘da não existência’ ao ser, mas ‘é Ele a eterna
14 Palavra e Sabedoria da substância do Pai’... Por isso, não se metam em nada com estes arianos
sumamente ímpios” (LXIX, 1-4).
Antão também recebe a visita de filósofos, que querem discutir com ele e o tentam enganar,
mas ele vence a todos, com a “verdadeira sabedoria”: “Foram-se admirados de ver tal sabedoria
num homem iletrado, que não tinha as maneiras grosseiras de quem viveu e envelheceu na mon-
tanha, mas era um homem simpático e cortês. Seu falar era sazonado com a sabedoria divina”
(LXXIII, 3-4). Neste particular, Atanásio praticamente transforma Antão num filósofo, ao colocá-
-lo discutindo de maneira lógica com sábios pagãos, acerca da natureza dos deuses. Defendendo a
“loucura da Cruz”, a encarnação e redenção, realizados por amor à humanidade, Antão utiliza-se
de argumentos sofisticados para um homem que havia dedicado toda a vida à ascese: “Os assim
chamados filósofos estavam assombrados e realmente atônitos pela sagacidade do homem e pelo
milagre realizado. Disse-lhes, porém, Antão: ‘Por que se maravilham com isto? Não somos nós,
mas Cristo quem age através dos que Nele creem. Creiam vocês também e verão que não é pala-
vreado e sim fé que pela caridade opera para Cristo’ (cf. Gl 5,6)” (LXXX, 5-6)25.
23 Em vários momentos Atanásio frisa que quem realiza os milagres é sempre Deus, através de Antão: “Antão, pois, curava, não
dando ordens, mas orando e invocando o nome de Cristo, de modo que para todos era claro que não era ele quem atuava, mas
o Senhor que mostrava seu amor pelos homens, curando aos que sofriam, por intermédio de Antão. Este ocupava-se apenas da
oração e da prática da ascese” (LXXXIV,1-2).
24 A mesma frase se encontra nos apoftegmas de Antão.
25 Em polêmica com os filósofos pagãos, os apologetas cristãos defendiam que a verdadeira filosofia é a vida cristã. Atanásio,
através de Antão, vai dar um passo à frente, ao afirmar que a verdadeira filosofia é a vida monástica.
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
A ortodoxia de Antão também é sublinhada pelo respeito que ele tem pela hierarquia.
Atanásio parece querer acentuar que a experiência de Antão, e a experiência monástica em ge-
ral, não são desvinculadas da tradição da Igreja. Antão mostrava “... o mais profundo respeito
aos ministros da Igreja, e exigia que a todo clérigo se desse maior honra do que a ele. Não se
envergonhava de inclinar a cabeça diante de bispos e de sacerdotes. Se algum diácono chegava
a ele pedindo-lhe ajuda, conversava com ele o que lhe fosse proveitoso, mas, chegando a oração,
pedia-lhe que presidisse, não se envergonhando de aprender” (LXVII,1-2)26.
Antão, que um dia aprendera com os mestres, agora é o mestre espiritual, o maior deles,
que consola, cura, reconforta, converte, liberta dos demônios, edifica na fé: “Numa palavra, era
como se Deus houvesse dado um médico ao Egito” (LXXXVII,3).
Antes de morrer, Antão recomendou aos dois monges que o acompanhavam que o enter-
rassem e não revelassem a ninguém o local: “... façam-me vocês mesmos os funerais e sepultem
meu corpo na terra, e respeitem de tal modo o que lhes disse, que ninguém senão vocês saiba
o lugar. Na ressurreição dos mortos, o Salvador me devolverá incorruptível. Distribuam minha
roupa. Ao bispo Atanásio deem uma túnica e o manto onde estou deitado e que ele mesmo me
deu, mas que se gastou em meu poder; ao bispo Serapião deem a outra túnica, e vocês podem
ficar com a camisa de pelo. E agora, meus filhos, Deus os abençoe. Antão parte e não está mais
com vocês” (XCI,7-9). 15
Conclusão
A Vida de Antão obteve um enorme sucesso. Inspirou homens e mulheres de todas as
épocas, sedentos de se entregar totalmente a Deus na vida ascética. Embora já houvesse mon-
ges no tempo de Antão, Atanásio, com a Vida, apresenta um modelo concreto, palpável, numa
linguagem que atende ao gosto da cultura do seu tempo. O relato das tentações, que tanta crí-
tica causou à obra de Atanásio, são a prova das dificuldades que aguardam quem opta por este
caminho. Mas a certeza da presença e do apoio incondicional de Deus nesta trajetória também
são acentuados. A Vida é, sobretudo, um caminho, indicando-nos meios para se atingir o obje-
tivo. Fala-nos de seriedade de vida, de foco, de empenho, de disciplina. Num mundo em que as
atenções são tão facilmente desviadas por tantas distrações, mesmo em ambientes onde vivem
pessoas que optaram por dedicar-se totalmente “às coisas do espírito”, a leitura da Vida é de
excepcional atualidade, a nos recordar que o caminho do Espírito exige uma atenção constante,
um recomeçar sempre, em meio às “tentações modernas”, não menos assustadoras do que foram
para Antão.
26 Antão não era sacerdote, bem como a maioria dos monges do deserto.
A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética
Bibliografia:
1. Livros
Escritos de São Francisco, Organização e tradução de Frei Celso Márcio Teixeira, Vo-
zes 20044.
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2. Artigos
Carpenter, Dwayne E., The devil bedeviled: diabolical intervention and the desert
fathers, The American Benedictine Review, 31:2, june 1980, Aurora IL, p. 182-200.
Francis, J. Alcuin, OSB, Pagan and Christian Philosophy in Athanasius ‘Vita Antonii’,
The American Benedictine Review, 32:2 – june 1981, Aurora IL, p. 100-113.
3. Arquivos eletrônicos:
https://sumateologica.files.wordpress.com/2010/02/atanasio_vida_de_santo_antao.pdf
http://www.peregrina.com/voxbenedictina/MacrinaSyncletica.html