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INSTITUTO DE ENSINO SUPERIOR DE NOVA VENÉCIA

LICENCIATURA PLENA EM LÍNGUA PORTUGUESA/INGLESA E ESPANHOLA E


SUAS RESPECTIVAS LITERATURAS

ALESSANDRA CHAVES DE OLIVEIRA SILVA


MILSOLANGE DO NASCIMENTO MACHADO
VALÉRIA MARQUES PEREIRA

A MULTIPLICIDADE DE LINGUAGENS POÉTICAS NO INTERIOR DA OBRA DOS


HETERÔNIMOS DE FERNANDO PESSOA

NOVA VENÉCIA
2006
9

ALESSANDRA CHAVES DE OLIVEIRA SILVA


MILSOLANGE MACHADO DO NASCIMENTO
VALÉRIA MARQUES PEREIRA

A MULTIPLICIDADE DE LINGUAGENS POÉTICAS NO INTERIOR DA OBRA DOS


HETERÔNIMOS DE FERNANDO PESSOA

Monografia apresentada ao Instituto de Ensino


Superior de Nova Venécia, para aprovação no
curso de graduação em Letras com Licenciatura
Plena em Língua Portuguesa / Inglesa e Espanhola
e suas respectivas Literaturas. Orientadora:
Lourdes Aparecida de Souza Cesana

NOVA VENÉCIA
2006
10

FICHA CATALOGRÁFICA
11

ALESSANDRA CHAVES DE OLIVEIRA SILVA


MILSOLANGE MACHADO DO NASCIMENTO
VALÉRIA MARQUES PEREIRA

DIÁLOGO ENTRE LINGUAGENS POÉTICAS NO INTERIOR DA OBRA DOS


HETERÔNIMOS DE PESSOA

Monografia apresentada ao Instituto de Ensino Superior de Nova Venécia, para


aprovação no curso de graduação em Letras com Licenciatura Plena em Língua
Portuguesa / Inglesa e Espanhola e suas respectivas Literaturas.

Aprovada em de de 2006.

COMISSÃO EXAMINADORA

__________________________________________
Professora Lourdes Aparecida de Souza Cesana
Instituto de Ensino Superior de Nova Venécia
Orientadora

__________________________________________
Professora Viviane Dias de Carvalho Pontes
Instituto de Ensino Superior de Nova Venécia

___________________________________________
Professor Álvaro José Maria Filho
Instituto de Ensino Superior de Nova Venécia
12

Dedicamos o presente trabalho a nossos


pais, irmãos, esposos, filhos, a toda a
nossa família e aos nossos amigos com
todo amor e carinho.
13

Agradecemos primeiramente a Deus por


ter nos dado condições de estarmos
concluindo essa graduação, a nossa
família pelo apoio e compreensão aos
nossos professores e a nossa orientadora
Lourdes Aparecida de S. Cesana em
especial.
14

“Sentir é compreender. Pensar é errar.


Compreender o que outra pessoa pensa é
discordar dela. Compreender o que outra
pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa
é de grande utilidade metafísica. Deus é
toda a gente.” (Fernando Pessoa)
15

RESUMO

Considerado o poeta mais complexo da literatura portuguesa, Fernando Pessoa


realiza sua obra através de várias personalidades poéticas. Cada um de seus
heterônimos tem uma visão particular do mundo, refletindo-se em três estilos
absolutamente distintos. Alberto Caeiro é o poeta naturalista, das sensações puras e
do ceticismo. Ricardo Reis, pagão e estóico, acredita que o único caminho a se
tomar na vida é o de afrontar a morte com o silêncio. Álvaro de Campos, associado
ao poeta norte-americano Walt Whitman, cultiva a audácia e a energia, mas
contraditoriamente faz a apologia do anti-heroísmo. Essa pesquisa tem como
objetivo identificar, descrever e analisar, através de pesquisa bibliográfica, a
multiplicidade de linguagens dos heterônimos de Fernando Pessoa e ortônimo,
observando pelas peculiaridades de cada personalidade diferentes posturas
artísticas.

PALAVRAS-CHAVE: heterônimos; ortônimo; psicografia; multiplicidade; literatura.


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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................9
1.1 JUSTIFICATIVA DO TEMA...........................................................................9
1.2 DELIMITAÇÃO DO TEMA...........................................................................10
1.3 FORMULAÇÃO DO PROBLEMA...............................................................10
1.4 OBJETIVOS................................................................................................10
1.4.1 OBJETIVO GERAL...........................................................................................10
1.4.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS................................................................................10
1.5 HIPÓTESES................................................................................................11
1.6 META...........................................................................................................11
1.7 METODOLOGIA..........................................................................................11
1.8 APRESENTAÇÃO DO CONTEÚDO DAS PARTES DO TRABALHO........11

2 REFERENCIAL TEÓRICO...................................................................13
2.1 AS PERSONALIDADES PESSOANAS EM MEIO AO MODERNISMO
PORTUGUÊS.............................................................................................................13
2.2 FERNANDO PESSOA - O ORTÔNIMO.........................................................14
2.3 ALBERTO CAEIRO.........................................................................................18
2.4 RICARDO REIS...............................................................................................21
2.5 ÁLVARO DE CAMPOS...................................................................................25
2.6 DIÁLOGO ENTRE AS MÚLTIPLAS FACES DE FERNANDO
PESSOA..................................................................................................................34

3 CONCLUSÃO...............................................................................................36

4 REFERÊNCIAS............................................................................................37
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1 INTRODUÇÃO

No presente trabalho, propomo-nos comentar a estética do poeta português


Fernando Pessoa. Abordaremos acerca das diferentes linguagens poéticas que
podemos encontrar em sua obra, dando ênfase a seus heterônimos mais famosos
que são: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

Fernando Pessoa assinou sua obra com vários nomes. Não se trata, porém de
simples uso de pseudônimo, processo antigo usado para cobrir ou não o anonimato.
Os nomes, máscaras ou heterônimos com que Fernando Pessoa assina sua obra,
constituem em cada um deles, uma atitude-experiência assumida pelo próprio
Pessoa, como se fossem diversos poetas, todos eles com seu estilo próprio, com
sua visão de mundo particular.

Assim, nesse desdobramento de si mesmo, Pessoa cria heterônimos: Alberto


Caeiro, o camponês sábio; Ricardo Reis, o neoclássico, racionalista e semipagão;
Álvaro de Campos, o futurista, neurótico e angustiado. Pessoa também assinava
alguns textos com seu próprio nome, ortônimo. Sua poesia é marcada pelo
ceticismo, pela sensação do tédio, pela idéia de que o poeta é um desajustado,
marcado para a solidão e o desamparo.

A obra literária de Fernando Pessoa é uma das mais intrigantes da literatura desde o
final da década de 1940, quando o poeta foi descoberto pela crítica. Desde então,
tem surgido diversas discussões sobre o fenômeno da heteronímia.

1.1 JUSTIFICATIVA DO TEMA

Esta pesquisa motivou-nos, pelo fato de encontrarmos na obra Pessoana uma


multiplicidade de linguagens poéticas, considerando que para a compreensão da
poesia de Fernando Pessoa é necessária uma análise das várias linguagens que
aparecem em suas obras, ortônimo e heterônimos.

É interessante sabermos diferenciar ortônimo dos heterônimos, pois, muitos lêem


poemas de Ricardo Reis, Alberto Caeiro, ou Álvaro de Campos, pensando que se
trata de poemas de Pessoa, e podemos verificar que há diferenças na maneira de
escrever, como também na maneira como ortônimo e heterônimos vêem a vida.
18

Diante disso, constata-se que essa pesquisa é relevante, uma vez que os poemas
de Fernando Pessoa compõem um dos maiores enigmas da história da Literatura, já
que se trata de um poeta que inventa outros, dá-lhes biografia, estilo próprio e até
um mapa astral. Todos são grandes poetas e apresentam diferentes posturas
artísticas.

1.2 DELIMITAÇÃO DO TEMA:

No estudo de Fernando Pessoa e seus heterônimos são relevantes muitos aspectos,


pois na obra contém um complexo teor literário. Esta pesquisa propõe uma análise
das linguagens poéticas dos heterônimos de Pessoa dentro da realidade que cada
um foi criado e também analisando a linguagem de Fernando Pessoa ele mesmo.

1.3 FORMULAÇÃO DO PROBLEMA

Os estudiosos de hoje buscam entender os heterônimos de Fernando Pessoa, seja


por fatos marcantes da personalidade de cada um, ou pelas idéias contidas em suas
obras, onde Pessoa mostra as personalidades criadas por ele em cada
circunstância. Há em Pessoa um diferencial, pois ele conseguiu se expressar de
formas diferentes, cada poema seu tem algo peculiar. Portanto surge a questão: Há
diversidades de linguagens na obra de Fernando Pessoa ortônimo e heterônimos?

1.4 OBJETIVOS

1.4.1 Objetivo geral

• Caracterizar as diferentes linguagens dos heterônimos de Fernando Pessoa e


ortônimo, nas diferentes circunstâncias de vida de cada um.

1.4.2 Objetivos específicos

• Identificar a peculiaridade da linguagem de cada heterônimo e também de


Fernando Pessoa, ortônimo;
• Compreender a maneira de cada um escrever.
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1.5 HIPÓTESES

A busca da expressão do moderno é uma das aspirações que marcam


profundamente a geração de Pessoa. Com sua imaginação, criatividade, histeria e a
maneira de extravasar, ele criou os heterônimos, com características e linguagens
bem distintas. Mais do que meros pseudônimos, esses heterônimos são invenções
de personagens completos, que têm uma biografia própria, linguagens e estilos
literários diferenciados.

Os textos de Fernando Pessoa e seus heterônimos nos remetem à idéia clara da


multiplicidade de linguagens poéticas, porque percebe-se na obra de cada um, um
diferencial, características de acordo com a realidade de vida de cada um, pois,
apesar de serem frutos da imaginação de Pessoa, através de suas obras sentimos
que há vida.

1.6 META

Pretende-se com esse projeto de pesquisa fazer uma análise acerca das linguagens
encontradas dentro da obra Pessoana. Linguagens que se diferem, pois, são várias
personalidades dentro de uma só, ou seja, os heterônimos e ortônimo.

1.7 METODOLOGIA

Esta pesquisa é do tipo exploratória e explicativa, sendo, pois, feita uma pesquisa
bibliográfica com o intuito de coletar informações que servirão de subsídio teórico
que buscará definir na obra pessoana a vida de cada heterônimo, mostrando as
características e a linguagem poética de cada um, como também as de Fernando
Pessoa, o ortônimo.

1.8 APRESENTAÇÃO DO CONTEÚDO DAS PARTES DO TRABALHO

No primeiro capítulo apresenta-se a introdução desse trabalho. Nela destaca-se os


pontos relevantes dessa pesquisa, através da delimitação e justificação do tema,
apresentação dos objetivos, metas e hipóteses de estudo.
20

O segundo capítulo inicia o referencial teórico, que, inicialmente aborda aspectos do


modernismo português, bem como Fernando Pessoa e seus heterônimos inseridos
nesse movimento modernista.

Fernando Pessoa, ortônimo é o próximo assunto pesquisado. Nele são abordadas


as características do poeta, informações da sua biografia, comportamento em meio
à sociedade, e análises de algumas poesias.

Em seguida há um estudo acerca dos heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e


Álvaro de Campos com informações biográficas de cada um, bem como
características e análises de poesias mostrando as posturas poéticas dos
heterônimos. Logo a seguir são apresentados todos eles: ortônimo e heterônimos,
numa abordagem dialógica, onde nota-se algumas diferenças existentes entre eles.

Na conclusão, finalmente faz-se uma reflexão dos capítulos anteriores, procurando


mostrar o quão importantes e intrigantes são os heterônimos e Fernando Pessoa,
ortônimo.
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2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 AS PERSONALIDADES PESSOANAS EM MEIO AO MODERNISMO


PORTUGUÊS

O Modernismo português tem como marco inicial a publicação de Orpheu – Revista


Trimestral de Literatura. Essa contava com a participação de Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e do brasileiro Ronald de Carvalho. Com
essa publicação se dá a primeira geração modernista, é a geração contemporânea
dos principais manifestos da vanguarda européia.

A segunda geração teve como órgão divulgador de suas propostas a revista


Presença, que circulou de 1927 a 1940. Chamada também de presencismo, essa
geração combatia o academicismo e difundia a estética modernista esforçando-se
para que a obra de Fernando Pessoa se tornasse conhecida. O presencismo
esfacelou-se em meio à segunda guerra mundial no ano de 1940, dando fim também
ao Modernismo.

O ano de 1915 nos remete a alguns fatos de fundamental importância para o


entendimento do Modernismo português: a Europa vive a Primeira Guerra Mundial;
os meios artísticos estão inundados por manifestos de vanguarda. Portugal assiste
às turbulências iniciais do período republicano, mergulhado num clima de profundo
nacionalismo.

Tendo esse quadro como pano de fundo é que se vê o início da produção literária de
um dos casos mais polêmicos de todos os tempos: Fernando Pessoa e seus
heterônimos.

Fernando Pessoa, na década de 1910 colabora em algumas revistas de caráter


nacionalista e ao mesmo tempo entra em contato com as correntes vanguardistas
européias. Apaixonado por ocultismo, filosofia, por estudos de psiquiatria e
psicanálise, autodidata de grande erudição, Pessoa não só criou seus heterônimos
como estabeleceu para cada um deles, uma biografia própria. É através dessas
biografias que podemos verificar quão diferentes eles se apresentam.
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2.2 FERNANDO PESSOA - O ORTÔNIMO

“Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém
da humanidade” (PESSOA, 2005, p.51).

“Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que
torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma
e está em todas”. (PESSOA, 2005, p.51).

Considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa, Fernando António


Nogueira Pessoa, ou simplesmente "Fernando Pessoa", como preferia assinar,
nasceu em 13 de junho 1888 em Lisboa, Portugal. Aos cinco anos tornou-se órfão
de pai. Foi levado pela mãe e pelo padrasto para a África do Sul, onde fez seus
estudos secundários com notável brilho. Aos 17 anos, regressou a Lisboa e cursou
Letras e Filosofia, mas sua profissão foi a de correspondente comercial em línguas
estrangeiras.

Faleceu em 1935, nessa mesma cidade. Quando de sua morte, quase a totalidade
de sua obra ainda permanecia inédita, apenas alguns de seus escritos tinham sido
publicados em revistas, jornais etc. O poeta, escrevia também em outros idiomas
(como inglês e francês). Extremamente inteligente e talentoso, Pessoa inovou a
poesia, extrapolando as características estéticas do período Modernista, no qual
estava inserido.

Cada vez mais leitores têm descoberto o valor do escritor e do pensador Fernando
Pessoa, homem que teve a capacidade, entre outras coisas, de "teatralizar”
poeticamente, por meio de estilos de escrita diferenciados, múltiplas facetas
interiores do ser humano, indo muito além de pseudônimos, para criar heterônimos,
como representantes contundentes dos "eus" que habitam dentro de todos nós. Daí
uma das razões da atualidade de seus textos, bastante adequados às realidades
íntimas da alma, problematizadas nos contextos do mundo de hoje.

Em 1915, liderou um grupo de jovens no lançamento da revista Orpheu, que marca


o início da literatura moderna em Portugal. Após o desaparecimento da revista,
Pessoa entregou-se a uma vida solitária dedicada à poesia e ao álcool. Seus
23

poemas são divulgados pela prestigiosa revista Presença, mas o único livro
publicado em sua vida foi Mensagem.

Uma aguda crise de cirrose hepática o mataria aos 47 anos. Apesar da relativa
obscuridade em que veio a falecer, era certamente uma das grandes vozes da
poesia ocidental do século XX.

Também escreveu Quinto Império, onde transparece seu sonho sebastianista e


monarquista. Escreveu ainda: Cancioneiro, onde se apresenta lírico e desencantado;
Poemas Dramáticos; e 35 Sonnets, onde se revela ocultista, abúlico, amante do
mistério.

Através de sua poética, revela-se dialético, quando trabalha um simbolismo lúcido e


consciente, aperfeiçoa mais o simbolismo através da subjetividade excessiva, da
síntese elevada ao máximo e através do exagero da atitude estática e da mescla de
sensações; lúcido, e angustiado por ser lúcido; e Platônico: Cultivador do vago, do
complexo e do sutil.

Mais que os heterônimos, o ortônimo tem uma atitude perspicaz de ver as coisas.
Também tende para o gosto pelo que é maneirista pelo uso do paradoxo, daí
apresentar-se tradicional e moderno ao mesmo tempo. O ortônimo nos mostra como
sentir a paisagem, pois, para ele, todo objetivo é uma sensação nossa, toda arte é
conversão da sensação em objeto, toda arte é conversão da sensação em
sensação. O próprio Pessoa apresenta cinco condições ou qualidades para entender
os símbolos do ortônimo: a simpatia, a intuição, a inteligência, a compreensão e a
graça. Depois conclui que:
Todo estado de alma é uma paisagem.
Uma tristeza é um lago morto dentro de nós.
Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior
e do nosso espírito, e sendo nosso espírito uma paisagem,
temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. (PESSOA, 1997,
p.165)

Como vemos um espírito tão rico e até paradoxal como o de Pessoa, apaixonado
por ocultismo, filosofia, estudos de psiquiatria, e psicanálise, autodidata de grande
erudição, não podia se resumir numa só personalidade. Daí o surgimento de muitos
heterônimos, principalmente o de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.
“Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de
24

Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas.”


(PESSOA, 1986, p. 97).

Segundo Seabra (1988, p.243), “O drama havia, pois que buscá-lo nos próprios
poemas, na própria linguagem poética. O que implicava que o sujeito pleno, mas
plural, na pluralidade das linguagens heteronímicas.”.

Pessoa tem um genial poder de síntese que singulariza sua linguagem poética, que
ao mesmo tempo é carregada de dualismo. Esse desafio que sua poesia representa,
está na genialidade com que retira o leitor da visão estável do mundo (como é, em
geral, a visão do cotidiano rotineiro), para levá-lo a perceber, com inquietação, uma
existência - outra, ainda desconhecida, e que se pressente decisiva. Lida em
conjunto e em confronto, sua produção poética contraria a nitidez de enunciado que
lhe é peculiar, pois seus poemas se abrem, diferenciando entre si.

Sabe-se que Fernando Pessoa é um importante nome do Modernismo Luso, e que é


um dos maiores poetas portugueses. Na essência, sua principal característica é a
heteronímia, que é a criação de personalidades poéticas com posturas filosóficas
diversas. No entanto podemos notar no ortônimo outras características, como o
saudosismo, que percebe-se no poema abaixo:

Pobre velha música!


Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.


Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que anciã tão raiva


Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora. (PESSOA, 1993, p.95)

As lembranças que uma música traz. Eis o tema desse poema, que foi composto em
forma tradicional. Mas nota-se algo, além disso, Pessoa chama atenção à idéia de
que as sensações podem ser alteradas (estrofe 2) abrindo possibilidades para que a
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imagem que se tem do passado, na forma de lembranças, tenha sua existência


questionada.

A musicalidade é fundamental para a leitura e interpretação do texto; para tanto, o


poeta utiliza uma métrica tradicional e popular, de largo uso desde fins da Idade
Média: a redondilha menor (verso de cinco sílabas poéticas). A música evoca a
infância, elemento temático central do poema, sempre recordada em tons
melancólicos.

Há um paradoxo no último verso, como se a idéia de que a felicidade estava no


passado “outrora”, é na verdade, uma ficção gerada pelas emoções do presente
“agora”, o que quer dizer que é no agora que ele pensa ter sido feliz no outrora.

Esse saudosismo de Fernando Pessoa, ortônimo, é manifestado no plano pessoal,


como um retorno à infância; no entanto, no cidadão português, surge como um clima
de recuperação de uma lembrança da grandiosidade antiga do Império Português.
Exemplo disso é o poema O Infante:

Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.


Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,


Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira de repente
Surgir, redonda do azul profundo.

Quem te sagrou, criou-te português.


Do mar e nós em ti nos deu sinal
Cumpriu-se o Mar, e o império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal! (PESSOA, 1993, p.89)

Esse texto expõe a idéia que era vontade divina que o Império Português se
estabelecesse, unificando terras e mares. Pessoa coloca a vontade de Deus e o
sonho humano como forças responsáveis pela concretização da obra, no caso as
Navegações.

O final do poema “Senhor, falta cumprir-se Portugal”, reflete bem o espírito


dominante em Mensagem: a necessidade da realização de Portugal como a super-
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nação, já anunciada por Fernando Pessoa na década de 1910, conforme o


pensamento nacionalista então dominante.

“Os sentidos são divinos porque são a nossa relação com o universo, e a nossa
relação com o universo Deus” (PESSOA, 2005, p.84).

2.3 ALBERTO CAEIRO

Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa, em abril de 1889, e na mesma cidade


faleceu tuberculoso em 1915. Chamado de o poeta-pastor é o homem reconciliado
com a natureza, que rejeita todas as estéticas, todos os valores, todas as
abstrações. Seus versos livres são um convite a desaprender as idéias para
aprender as coisas.

Autodidata, de grande simplicidade, sua sabedoria consiste em ver o mundo de


forma sadia e plena. Passou quase a vida inteira numa quinta de Ribatejo. Lá
escreveu O Guardador de Rebanhos e uma parte de O Pastor Amoroso, que não foi
completado.

No mesmo local, escreveu ainda alguns poemas de Poemas Inconjuntos, vindo este
a se completar já em Lisboa, quando lá o autor voltou, já no final da vida. Aliás, da
vida de Caeiro não há o que narrar; sua vida e seus poemas se confundem.

Este heterônimo pessoano, diante da possibilidade de se infelicitar com o sol, os


prados e as flores que contempla com sua grandeza, procura minimizá-los,
comparando-os com ele próprio. Nessa redução do mundo, fica mais latente o
"nada". Daí ser ele o heterônimo que nada quer.

Mesmo assim, enquanto tenta provar que não intelectualiza nada, é o que mais
intelectualiza entre as personalidades pessoanas, parece usar o raciocínio sem
querer demonstrar isso. Daí ser o mais infeliz, por restringir o mundo, além de fugir
do progresso e a ele renunciar. Caeiro faz uma poesia da natureza, uma poesia dos
sentidos, das sensações puras e simples.
(...) Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
27

E os meus pensamentos são todos sensações.


Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca. (...) (CAEIRO, 1997, p.27)

Esse fragmento da poesia de Caeiro identifica o ato de pensar com a relação de


sensação do corpo com o mundo, destacando a felicidade proporcionada pelos
sentidos em comunhão direta com a natureza.

Caeiro é o mestre dos demais. Foge para a natureza e procura viver tão
simplesmente como as flores, as fontes, as aves. Possui uma linguagem fluente, que
se prosa. É um homem de visão ingênua, instintiva e se entrega à infinita variedade
de sensações.

Para ele, o real é a própria exterioridade. Mantém posição antimetafísica, alegando


que não se deve acrescentar às coisas nada de subjetivo. É contra interpretações
alegando que a inteligência reduz tudo a simples conceitos vazios.

Toda a sua produção poética aborda a questão da percepção do mundo e tendência


do ser humano em transformar aquilo que vê em símbolos, sendo incapaz, por este
motivo, de compreender o seu verdadeiro significado.

Caeiro tem uma filosofia que prevê objeções e explica defeitos. O poeta pagão,
porque tem a ordem e a disciplina que o paganismo tinha e que o cristianismo fez
perder: poesia é ver, é sentir.
No meu prato que mistura da natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza

E contam-as e vêm à nossa mesa


E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tenso mantas
Pedem “salada” descuidosos
Sem pensar que exigem a Terra-Mãe.
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras coisas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu.
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu...CAEIRO, 1997, p. 33 )
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Toda a produção poética acima aborda a questão da percepção do mundo, onde se


destacam vários componentes existentes no planeta terra, o ser humano transforma
aquilo que vê em símbolos. Observa-se no poema acima uma linguagem fluente,
quase em prosa. O poeta foge para a natureza, procurando a simplicidade das
plantas, fontes dos montes e aves.

Caeiro é mais do que pagão: é o próprio paganismo. É assim que nunca se


desdobra, e mantém uno. Além de mestre foi também chamado de cirurgião pelos
seus discípulos porque os quer operar a todos do apêndice da alma para serem,
como os deuses, apenas corpo, tendo a divindade na própria carne divina. Por isso
a receita é tão simples: não pensar, pois, pensar é estar doente dos olhos; ver,
apenas ver.
(...) Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou. (...) (CAEIRO, 2003, p.150)

Para o espírito pagão, o mundo sensível é muito importante, pois é nele que se
manifestam as formas divinas (os deuses) que os homens podem vivenciar em sua
vida efêmera. Esse paganismo de Caeiro encontra-se na busca de uma integração
sensorial com a natureza, sentindo-se parte dela.
(...) O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque o pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
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Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,


E a única inocência não pensar... (...) (CAEIRO, 1993, p.35)

O olhar é o principal meio de o poeta captar a realidade que o rodeia. Esse mesmo
olhar também capta a eterna novidade das coisas. Para Caeiro, a cada instante que
passa a Natureza e o mundo se renovam, de forma que nunca olhamos duas vezes
para o mesmo ser ou objeto.

Com as colocações que Caeiro faz como “... pensar é não compreender... / o mundo
não se fez para pensarmos nele/ (pensar é estar doente dos olhos)” ele nega ter
qualquer interpretação racional do mundo, o poeta sintetiza sua proposta de vida:
“eu não tenho filosofia: tenho sentidos...”

As considerações de Alberto Caeiro acerca da realidade da Natureza e da vida,


fizeram com que o poeta ganhasse alguns discípulos. São eles: Ricardo Reis, Álvaro
de Campos e o próprio Fernando Pessoa.

2.4 RICARDO REIS

Ricardo Reis nasceu em Lisboa, no dia 28 de janeiro de 1914. O segundo


heterônimo a surgir discípulo de Alberto Caeiro, de quem adquiriu a lição de
paganismo espontâneo. Esse poeta representa o lado humanístico de Pessoa e
recupera aspectos clássicos. Em Ricardo Reis:
Há a renúncia de quem atingiu
os píncaros da humana lucidez
e abstrai seus conceitos de impermanência e símbolos
da contemplação voluntária de uma natureza
quem o homem iguala
a essencialidade ideal que lhe basta. (REIS, 1997, p.67)

A lucidez é uma das suas características, ele é racional, comedido e correto.


Segundo o próprio Pessoa, Reis nasceu da seguinte maneira:
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“O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 28 de janeiro de 1914,
pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa
sobre os excessos especialmente de realização, da arte moderna”. (...)

Para Reis, a emoção não é a base da poesia, é o meio. A palavra é um instrumento


emotivo-intelectual e na literatura não existe nada que contenha em si a
emotividade.

Reis é defensor da monarquia, latinista e semi-helenista; é um homem culto, possui


uma linguagem densa, e sintaxe latinizante. Seus temas são lugares-comuns
clássicos: brevidade da vida, necessidade de gozar o presente, fatalidade da morte,
tem atitudes hedonistas, ou seja, voltada para o prazer, e atitude epicurista que é a
tendência para a felicidade pela harmonização de todas as faculdades humanas.

Esse heterônimo pessoano, numa arte poética particularmente sua, procurou


sempre o mais alto, o impossível até, para encrustar uma poesia refinada, concisa,
elíptica, cunhada em linguagem esmerada e com vocabulário algo alatinado. A
temática de Ricardo Reis, o poeta neoclássico, é a passagem do tempo, a
necessidade de fruir o momento presente. Sua obra caracteriza-se por versos
curtos, que lembram a lírica grega, com vocabulário muitas vezes erudito, sintaxe
clássica, referências mitológicas.

Clássico por excelência, idealista e platônico no amor, constata o efêmero da vida e


anseia, no íntimo, por uma fenomenológica eternidade terrena. Sua atitude diante da
vida é serena, intelectualizada, contida, contemplativa.
(...) Breve o dia, breve o ano, breve tudo,
não tarda nada sermos.
Isto, pensado, a mente absorve
Todos mais pensamentos.
O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,
Que, inda que mágoa, é vida. (REIS, 1997, p.70)

Ricardo Reis representa o homem clássico, preso aos valores da Antigüidade. Este,
através do paganismo, anterior à idéia cristã do pecado, oferece o único sentido
para a vida. Por isso, Ricardo Reis se manifesta poeticamente através de odes,
forma originária da velha Grécia que corresponde a uma espécie de canto,
31

geralmente um poema de estrofes simétricas, com intuito de exaltação ou discussão


da vida desenvolvida especialmente pelo poeta latino Horácio.

O exemplo desta relação entre a aceitação da morte e a celebração dos prazeres da


existência encontra-se na mais célebre ode de Ricardo Reis (sem título):
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.).
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, (...)
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço. (REIS, 1997, p.55)

Nesse poema, observa-se a leveza das imagens afetivas que o poeta elaborou,
construindo uma proposta suavemente melancólica de relação amorosa. É claro
também o conceito Epicurista: devem-se evitar os “amores, os ódios, as paixões que
levantam a voz”, em busca de uma tranqüilidade amorosa. De qualquer modo: “Quer
gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio” e “Mais vale saber passar
silenciosamente/ E sem desassossegos grandes”. O fluir de um rio é uma imagem
freqüente na poesia clássica, indicando normalmente o correr do tempo.

Viver de forma sábia o presente (“colhamos flores... /...e que o seu perfume suavize
o momento”) e evitar a paixão excessiva é uma forma que o poeta encontra de fugir
da dor provocada por uma saudade violenta: “E se antes do que eu levares o óbolo
ao barqueiro sombrio, / Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti/ Ser-me-as
suave à memória lembrando-te assim – à beira do rio”.
32

Outro elemento importante do poema é a presença feminina a quem o poeta dirige


suas palavras. Essa mesma tendência a endereçar o poema a uma mulher que se
confunde com a própria motivação poética do artista também pode ser observada na
poesia do século XVIII.
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto –
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é à hora, este é o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
O dia, porque és ele. (REIS, 1993, p.58)

Nesse poema Reis critica tanto aqueles que se prendem ao passado, vivendo o que
já passou “Vêem o que não vêem...”, quanto àqueles que fixam seus olhos no futuro,
“vendo o que não se pode ver”. O poeta diz que somos o presente, e o tempo flui
constante e nos mostra nossa própria insignificância. A vida e a morte fazem parte
de um mesmo sopro.

Essa consciência da brevidade da vida e da inevitável morte, leva Reis a valorizar o


presente “esta é a hora, este o momento, isto é quem somos, e é tudo”. Segundo
Reis, os deuses são superiores porque não tentam descortinar o que existe para
além da aparência das coisas, não tentam ver em cada coisa sinal dum além, isto é,
um símbolo.“Para os deuses as coisas são mais coisas”, diz Ricardo Reis. E
acrescenta:
Não mais longe eles vêem, mas mais claro
Na certa Natureza
E a contornada vida
(...)
Aprende, pois, tu das cristãs angústias,
Ó traidor da multíplice presença
Dos deuses, a não teres
Véus nos olhos nem na alma. (REIS, 2003, p.19)

Ricardo Reis aparece como coadjuvante do mestre Caeiro, o que exprime com
simplicidade infantil, numa linguagem oral, esses preceitos a que Reis dará a forma
disciplinada, tensa, duma ode clássica.
33

2.5 ÁLVARO DE CAMPOS

“O que o mestre Caeiro me ensinou foi a ter clareza; equilíbrio, organismo no delírio
e no desvairamento, e também me ensinou a não procurar ter filosofia nenhuma,
mas com alma.” (CAMPOS, 1993, p.64).

Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1889. Ele é a terceira face de


Pessoa, e está inserido no que é moderno, às máquinas, e as conquistas
tecnológicas. Em sua personalidade são predominantes as emoções impulsivas, a
rapidez e o nervosismo, e também sentimentos pessoais profundos, cheio de ironias
e questionamentos que remetem a profundas crises existenciais, principalmente
diante do ser e o não ser.

Engenheiro, inquieto, representa a parte mais audaciosa a que Pessoa se permitiu,


através das experiências mais barulhentas do futurismo português, inclusive com
algumas investidas no campo da ação político-social.

Um poeta que se propõe a abrir seus sentido todos ao mundo e à vida, buscando
uma linguagem poética capaz de exprimir sua alucinante vontade sensacionista.
Este poeta sensacionista, turbulento, impulsivo, acreditava que a arte era, como toda
a atividade, um indício de força, ou energia, da própria força que se manifesta na
vida.

Daí seus poemas fortes, vigorosos, energeticamente construídos em versos livres,


soltos como a flutuação emocional do autor. O artista subordina tudo à sua
sensibilidade, fazendo converter tudo em substância de sensibilidade, que force os
outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu; que os domina pela força do
inexplicável.

A trajetória poética de Álvaro de Campos está compreendida em três fases. A


primeira, da morbidez, é a fase do "Opiário", oferecido a Mário de Sá-Carneiro e
escrito enquanto navegava pelo Canal do Suez, em março de 1914. A segunda fase,
mais mecanicista é onde o Futurismo italiano mais transparece num aclimatamento
em terras de Portugal. Nessa fase, Campos seria:
34

Um Whitman com um poeta grego dentro.


Pois Pessoa o coloca numa dupla seqüência:
a de uma arte orientada pelo ideal grego
e a dos cantores de hinos a civilização moderna
e sensações por ela provocadas. (CAMPOS, 1997, p.112)

É nessa fase onde a sensação é mais intelectualizada. A terceira fase, do sono e do


cansaço, aquela que, apesar de trazer alguma coloração surrealista e dionisíaca, é
mais moderna e equilibrada. O que se constata, é que Álvaro de Campos, a despeito
de intelectualizar as sensações é a personalidade pessoana que mais se aproximou
de uma poesia realista, e, também, quem mais foi marcado pelos caracteres da
modernidade.

Na produção poética de Álvaro de Campos, os versos livres, de ritmos explosivos e


linguagem coloquial, testemunham à crise de todos os valores da vida urbana e
industrial, variando entre a excitação e o cansaço, a euforia e a depressão, o êxtase
e a desilusão. Uma outra dimensão de Álvaro de Campos (o lado contrário da
modernidade) é a de um poeta desesperado, questionador de todas as convicções.

A angústia o consome: “Esta angústia que trago há séculos dentro de mim” e na


dimensão terrível da noite, o poeta se dilacera “Na noite de insônia, substância
natural de todas as minhas noites”. Desse universo destroçado, “Não sou nada,
Nunca serei nada; Não posso querer ser nada.” resta apenas o orgulho da
sinceridade com que expõe sua moral, conforme podemos verificar no famoso
Poema em linha reta:

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.


Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,


Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedindo emprestado sem pagar,
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
35

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,


Eu verifico que não tenho par nisto tudo, neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo


Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos.

Arre, estou farto de semideuses!


Onde é que há gente no mundo? (CAMPOS, 1997, p.134)

Esse poema possui uma linguagem carregada de agressividade e mágoa. Já no


primeiro verso é estabelecida a oposição básica que sustenta o texto. De um lado a
figura do poeta, sempre rodeada de um caráter negativo, de outro, os “perfeitos”, os
“príncipes”.

A partir do primeiro verso, o poeta enumera uma seqüência de fatos que comprovam
a própria “vileza”. Esses fatos cotidianos desprezíveis remetem a uma profunda
sensação de isolamento, de dificuldade de adaptar-se ao mundo.

Álvaro de Campos expressa, de maneira radical, sua solidão, sua diferença em


relação ao homem comum. O poeta sente-se um marginal, na medida em que todos
os seus conhecidos “têm sido campeões em tudo”. Ele promove uma total demolição
de si, apontando seus mais graves defeitos.

Mas essa avaliação negativa do próprio eu tem um sentido irônico, pois, enquanto
se diminui, na verdade está se engrandecendo diante dos outros. Essa carga de
ironia sugere certa injustiça que o poeta deixa subentendido. Percebe-se isso nos
dois últimos versos: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no
mundo”.

Campos é ansioso pelo progresso de sua terra, dentre os heterônimos é o único que
apresenta evolução. Esse se propõe a abrir seus sentidos todos ao mundo e à vida,
buscando uma linguagem poética capaz de exprimir sua alucinante vontade
sensacionalista.
36

Sentir tudo de todas as maneiras,


Viver tudo de todos os lados,
ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo.
Realizar em si toda a humanidade
de todos os momentos
num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. (CAMPOS, 1993,
p.63)

Com essas características turbulentas, impulsivas, acreditava que a arte era como
toda a atividade, um indício de força ou energia da própria força que se manifesta na
vida. As conseqüências disso estão nas suas poesias sensacionalistas, onde ele
expressa depressão, e dependência do ópio. Pode-se retirar como exemplo o
poema Tabacaria:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.


Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.


Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei - de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?


Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
37

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,


Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma
parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;


Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei


A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,


Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
38

Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,


E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem
cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,


E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,


Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.


Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas
como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da
superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
39

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),


E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los


E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal
disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira


E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira


Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria
sorriu. (CAMPOS, 1997, p.121-125)

A emotividade de Campos é explicitamente expressa em seus versos. No poema


acima, nota-se que ele se derrama nas linhas da sua poesia, fazendo com que ela
assuma características de prosa. Esse eu - lírico possui dentro de si todos os
sonhos do mundo. E a complexidade desses sonhos é tamanha que faz o leitor se
emocionar diante dessa depressão.

Essa linguagem depressiva, complexa desse heterônimo, nos remete à idéia de que
ele seja o que mais se aproxima de Fernando Pessoa ortônimo, pois, sua linguagem
é também carregada desse sentimentalismo egoísta e depressivo.

Esse, talvez, seja o poema mais conhecido de Álvaro de Campos. Oscilando entre o
mundo interior e a realidade universal, o poeta trata, ao mesmo tempo, da angústia
com o cotidiano e dos sonhos de libertação. Isso pode ser observado a partir dos
primeiros versos, cujo sentido vai se constituir na base de todo seu poema.

O poeta é absolutamente depressivo em relação a si próprio (“Não sou nada. /


Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada”), mas, em compensação, ele sabe
que tem “todos os sonhos do mundo”. Fechado em seu quarto, solitário, o eu -
40

poético contempla uma rua, onde percebe um mistério, que é a morte e o destino
que ninguém vê.

Essa percepção extraordinária das coisas se dá devido à sua grande capacidade


imaginativa, que o faz ver o que os outros não podem ver. Vivendo seus sonhos, ele
procura esquecer toda aprendizagem (isto é, aquilo tudo que aprendeu com os
homens) e parte em busca da natureza, contudo essa solução não o satisfaz, na
medida em que se sente desconfortável em qualquer lugar que esteja.

Na seqüência, o poeta volta a opor a fantástica capacidade de sonhar à limitação do


mundo exterior. Mas a sensação de euforia com o sonho não dura muito; mais
adiante do poema, ele toma consciência de que os sonhos nada valem, pois as
“aspirações altas e nobres e lúcidas” talvez nem vejam “a luz do sol” nem atinjam
“ouvidos de gente”. Na verdade, “O mundo é para quem nasce para o conquistar / E
não para quem sonha que pode conquistá-lo”, ainda que tenha razão.

O poeta se vê como um “escravo cardíaco de estrelas”, ou seja, uma pessoa que


sonha com as estrelas e sofre de uma doença cardíaca, que o impede de ter
emoções fortes, ou como quem só conquista tudo em sonhos. O resultado é um
distanciamento cada vez maior da realidade, do mundo visível.

A consciência disso causa-lhe um cansaço, um sofrimento de maneira que, passa a


invejar uma menina que come chocolates inocentemente. Nesse momento, Álvaro
de Campos toca num aspecto que é uma constante na obra de Fernando Pessoa: o
de que o pensar é doloroso, por impedir o homem de ser feliz.

Na estrofe oito, ao sentir o vazio dentro se si, o poeta procura alguma coisa que o
inspire. Por isso recorre a musas inspiradoras do passado, mas a sensação de vazio
continua a mesma, já que seu “coração é um balde despejado”.

Na realidade, Álvaro de Campos expressa aqui a angústia do homem moderno, que


não encontra mais ponto de apoio para as suas inquietações e, por isso mesmo, se
entrega ao desespero.

Essa consciência da inutilidade de tudo leva Campos a sentir-se um exilado, um ser


à parte em relação à humanidade. Ele imagina o mundo como se fosse um teatro,
41

onde todos representam e o “eu” é o único que não sabe nem pode representar.
Devido a isso, seu lugar no teatro é no vestiário e jamais no palco.

Os versos finais do poema colocam frente a frente o eu - poético e o dono da


tabacaria que representa o homem comum. Ao vê-lo, o poeta experimenta uma
sensação de desconforto e passa a ter a sensação da absoluta inutilidade de tudo,
até da própria poesia.

O poema fecha com a absoluta solidão do poeta, que tem consciência de que nada
vale a pena, enquanto o dono da tabacaria, sem consciência alguma do que o cerca,
apenas sorri.

Álvaro de Campos é o poeta do integrar-se e do entregar-se. Sofreu grande


influência de Walt Whitman, que nasceu nos Estados Unidos, foi poeta e jornalista.
Whitman passou parte da sua vida em Brooklyn Ferry (Nova Iorque), vivendo todo
período de transformação industrial de seu país, produziu uma obra poética bastante
original escrita em versos de métrica livre, linguagem vibrante e musicalidade
própria.

Seus poemas apresentam longas enumerações de imagens, pregando a valorização


dos sentidos e exaltando a vida moderna e a democracia. Campos confessa sua
admiração por este poeta em Saudação a Walt Whitman:
... Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus
sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...


Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica.
Nos teus ver sos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,


Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No teto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do teto da tua intensidade inacessível.
42

Abram-me todas as portas!


Por força que hei de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações... (...) (CAMPOS, 1997, p.111-112)

Encontra-se em Campos uma linguagem poética que se difere da linguagem do


heterônimo Ricardo Reis, pois, esse, é equilibrado e ordenado, enquanto aquele é
desequilibrado, da anarquia, da desordem, do frenesi. Reis preza a contenção, o
refreamento; Campos, a liberdade, o rompimento de todos os limites. Já Alberto Caeiro,
é o poeta do campo, do paganismo.

2.6 DIÁLOGO ENTRE AS MÚLTIPLAS FACES DE FERNANDO PESSOA

Pessoa nunca está sozinho, ele sempre tem alguém para dialogar, mesmo que
dentro dele mesmo, suas vozes ecoam e dialogam entre si. Personalidades
distintas, de opiniões formadas, essas vozes de Fernando Pessoa são diferentes
nas respostas vislumbradas, mais iguais no empenho de obter conhecimento.
Alberto Caeiro diz:
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas como menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me fala a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior. (...)(CAEIRO, 1993, p.33)

Ricardo Reis:
Severo Narro. Quando sinto, penso,
Palavras são idéias.
Múrmuro, o rio passa, e o que não passa,
Que é nosso, não do rio.
Assim quisesse o verso: meu e alheio
E por mim mesmo lido. (...) (REIS, 1997, p.71)

Álvaro de Campos:
(...) não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfilerem conquistas
Das ciências, das artes, da civilização moderna!(...)
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. (...) (CAMPOS, 1993,
p.74)

Fernando Pessoa:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
43

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração. (PESSOA, 1993, p. 97)

Nesses diálogos notam-se as divergências que há na maneira como cada um vê a


arte de escrever, e também a posição do poeta no ato da escrita. Caeiro escreve
com simplicidade e transparência, ele mostra como é que faz seus versos, sem rima,
sem padrão fixo, com um fluir espontâneo e natural do vento que se levanta. O
poeta diz que seu modo de exprimir não é tão perfeito quanto o das flores, e isso lhe
causa insatisfação.

Reis diz que palavras são idéias, que ele pensa e sente. E seus versos são seus da
mesma forma são dos outros que os lêem.

Já Álvaro de Campos é desiludido com a vida moderna e com o convívio social. Ele
versa agressivamente e com virilidade. Ele não quer estéticas e nem moral, diz ser
técnico, mas tem a técnica só dentro da técnica. Considera-se doido, e com todo
direito a sê-lo.

O ortônimo questiona a respeito de toda a criação artística, principalmente à criação


literária, a possibilidade de o artista recriar a realidade trabalhando a partir de suas
emoções. Para ele o artista se transforma num criador de mundos, de sonhos, de
ilusões, de verdades. Pessoa afirma que o poeta é um fingidor. Assim ele remete a
uma relação fundamental: a do artista e sua obra, o poeta e o poema. Os diálogos
acima exemplificam muito bem as faces de Fernando Pessoa e as diferenças nas
linguagens poéticas de cada uma delas.
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3 CONCLUSÃO

Do desdobrar de personalidades nascem os heterônimos de Fernando Pessoa.


Diante desse processo, Fernando Pessoa se divide em múltiplas personalidades,
escrevendo de forma diferente, de acordo com cada uma delas. Os heterônimos
são, por isso, meios de conhecer a complexidade do mundo, impossível para uma
única pessoa, assim, o poeta multiplica-se em heterônimos.

Compreende-se que esse fenômeno da heteronímia criado por Pessoa é fascinante,


e além dele há outros aspectos relevantes na obra, dos quais podemos destacar: os
heterônimos representam diferentes visões de mundo e diferentes personalidades
poéticas; tanto na poesia ortônima como na heterônima, constata-se a relatividade
das coisas; ao mesmo tempo, há uma busca daquilo que é absoluto, universal; o
valor estético de toda a obra é indiscutível.

Pode-se dizer também que tanto Fernando Pessoa ortônimo, como Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos poderiam ser considerados peças de Portugal,
pois, as descrições físicas lembram os vários tipos humanos portugueses, enquanto
a formação cultural e a postura ideológica de cada um remetem aos vários tipos
sociais.

Conclui-se que a obra literária de Fernando Pessoa é uma das mais intrigantes da
literatura portuguesa desde o final da década de 1940, quando o poeta foi
descoberto pela crítica. E a diversidade heteronímica de Pessoa vem do fato de,
serem eles o ego do poeta. Esse processo é uma genial mistura de personalidades,
e os heterônimos acabam sendo as máscaras, de que se valem o poeta para
esconder-se atrás delas, a fim de melhor revelar-se.
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4 REFERÊNCIAS

1 CLARET, Martim. Fernando Pessoa – Pensamento vivo. São Paulo: Martin


Claret, 2005.

2 MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 32. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.

3 MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa temas


portugueses. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.

4 NICOLA, José de. INFANTE, Ulisses. Como ler Fernando Pessoa. 4.ed. São
Paulo: Scipione, 1993

5 NICOLA, José de. Literatura Portuguesa: das origens aos nossos dias. 7.
ed. São Paulo: Scipione, 1999.

6 PASSONI, Célia. As múltiplas faces de Fernando Pessoa. 2. ed. São Paulo:


Núcleo, 1995.

7 PESSOA, Fernando. Coleção melhores poemas. 11. ed. São Paulo: Global,
2003.

8 ______. O guardador de rebanhos. São Paulo: Princípio, 1997.

9 ______. Poemas Escolhidos. São Paulo: O Globo, 1997.

10 ______. Poesias de Álvaro de Campos. São Paulo: FTD, 1992.

11 SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Rio de Janeiro:


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.

12 TERRA, Ernani.; NICOLA, José de. Português: de olho no mundo do


trabalho. São Paulo: Scipone, 2006.

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