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ARTIGO - O Conservadorismo Difícil - Bernardo Ricupero PDF
ARTIGO - O Conservadorismo Difícil - Bernardo Ricupero PDF
ARTIGO - O Conservadorismo Difícil - Bernardo Ricupero PDF
Bernardo Ricupero
O problema
dificuldades no Brasil. Na verdade, o problema não é apenas brasileiro, mas latino-americano e está
relacionado com a percepção disseminada pela região de que o passado é um obstáculo (Zea, 1976).
Não é mero acaso que essa sensação tenha se espalhado pela América Latina, já que nosso passado
é o passado colonial. Mais precisamente, as novas nações que começam a surgir, com as
independências do início do século XIX, procuraram se constituir negando a obra anterior das
Tal propósito cria um problema para o conservadorismo, em razão de proclamar tal doutrina,
pelo menos desde Edmund Burke, que o contrato que deve existir não é “entre os vivos, mas
também entre os que estão mortos e os que irão nascer” (Burke, 1999, p. 96). Isto é, defende, em
sentido contrário ao da Revolução Francesa, que não se deve ignorar a herança legada pelas
No que se refere à Revolução Industrial, a crítica de muitos conservadores chega a ser mais
Marx e Engels, por exemplo, encaram positivamente o industrialismo, ao mesmo tempo que são
críticos em relação a certos aspectos dele, como a divisão entre capitalistas e proletários. Os
conservadores, por sua vez, ressaltam apenas a violenta dissolução que traz a nova sociedade .
Numa referência mais ampla, contra a perda dos antigos vínculos entre os homens, o
conservadorismo se volta para o passado, especialmente para o passado feudal. Por conta disso, os
conservadores costumam ser caracterizados como “profetas do passado”. Numa certa idealização do
período feudal, destacam como corpos constituídos, as corporações, a Igreja, a família, seriam
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capazes de garantir um lugar para o homem na sociedade, o que contrasta com a posterior
atomização social.
Não por acaso, conservadores também dão grande importância à história. De certa maneira,
lo como o estágio mais avançado alcançado pelo passado. Consequentemente, consideram que o
passado coexiste com o presente, o que faz que tenham, como destaca Karl Mannheim (1986), uma
noção da história mais espacial do que temporal. Nesse sentido, diferente de progressistas, a ideia
Numa referência mais específica, não é difícil perceber que muitas das principais
de uma ordem perdida. É só quando “revolução” passa a ser entendida como uma ruptura
deliberada, associada idealmente a princípios universais e racionais, que surge uma doutrina
A posição que conservadores assumem, diante das grandes transformações do século XVIII,
é, portanto, defensiva, o que estimula uma postura de pessimismo cultural. Também em razão disso,
o pensamento conservador é relativamente inarticulado, definindo-se antes pelo que rejeita do que
É, assim, difícil generalizar quais seriam posições conservadoras, que não correspondem
1
A expressão “dupla revolução do século XVIII” é de Hobsbawm (1989).
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Samuel Huntington (1957), por seu turno, prefere uma definição situacional de conservadorismo. Não
acredita, consequentemente, que a Revolução Francesa seja tão importante no surgimento do conservadorismo. Em
diferentes situações históricas, conservadores defenderiam as instituições existentes. Assim, já Cícero seria um
conservador.
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Exemplo da má vontade conservadora com o universalismo é o comentário de Joseph de Maistre: “Vi, na
minha vida, franceses, italianos, russos, etc.; graças a Montesquieu sei até que se pode ser persa. Mas o homem, declaro
que nunca encontrei; se ele existe, não o conheço” ( Maistre, 2006, p. 53).
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se, na verdade, primordialmente com as instituições que defende(m), principalmente quando são
vítimas de ataques. Por outro lado, o conservadorismo não deixa de estar relacionado com uma
conjuntura histórica específica, a que corresponde à dissolução do Antigo Regime. É por isso que o
conservadorismo não é simplesmente uma atitude psicológica, tradicionalista, mas uma postura
Antigo Regime, mais diretamente da invasão da Península Ibérica pelas tropas de Napoleão.
Melhor, é possível entender as independências americanas, a começar pela dos EUA, como parte de
um processo que põe fim ao Antigo Regime não só na Europa (Guerra, 1993; Novais, 1995). Nesse
sentido, o mais adequado é se falar não em Revolução Americana ou Revolução Francesa, mas em
socialismo, surge como reação à Revolução Atlântica, não é fácil encontrar espaço para ele numa
ordem política, como a americana, que busca apagar os traços do passado de uma maneira que não
se pode fazer na Europa. Em poucas palavras, é muito difícil, como já foi dito, para conservadores
na América valorizar o passado porque esse passado é o passado colonial.4 Aceitá-lo seria, no
limite, valorizar a dominação das antigas metrópoles e pôr em questão a própria independência. Tal
situação é diferente da Europa, onde frente às turbulentas transformações do final do século XVIII,
se podia olhar com nostalgia para uma certa ordem que se acreditava reinar durante o feudalismo.
4
Também Robert Nisbet nota a dificuldade do conservadorismo nos EUA, já que o país “não possui instituições
herdadas do passado medieval”, o que faria com que as ideias de tal doutrina política não tivessem com o “que ser
alimentadas” para “avançarem e serem aplicadas à realidade nacional”, (Nisbet, 1993, p. 28). Já Louis Hartz, que foi,
durante algum tempo, muito influente, identificou a tradição nacional dos EUA com a tradição liberal, que não deixaria
praticamente espaço para o conservadorismo e o socialismo. Ver: Hartz (1955; 1964).
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venezuelano Andrés Bello, caracterizam a independência não tanto como uma ruptura com o
Varnhagen chega a considerar que “segundo a ordem natural dos acontecimentos, ao Brasil
devia, como quase todas as colônias, chegar o dia da sua emancipação da metrópole” (Varnhagen,
evolução dos povos, que seguiriam um caminho sem fissuras em direção à civilização. Avaliação
que é mais fácil de se fazer quanto ao Brasil, até em razão do seu processo de emancipação, no qual
o herdeiro do trono português foi coroado imperador, mas que Bello consegue generalizar até para
vencidos e humilhados pelos caudilhos e exércitos improvisados de outra jovem Ibéria, que
negando o nome, conservavam o ímpeto indomável da antiga na defesa de seus lares” (Bello, 1981,
p.169). 5
encarar mais positivamente a estabilidade que teria existido durante o domínio espanhol e
português, não se chega a defender abertamente a ordem colonial. Mas ironicamente, a nova
organização política coexiste, mais do que na Europa, com a estrutura econômica e social anterior,
baseada na produção em grandes propriedades rurais, onde se utilizam formas de trabalho extra-
aparecem quando se lida com o passado colonial e a independência estão na raiz de muitas das
Vianna. Ao mesmo tempo em que considera que o latifúndio teria sido, durante a colônia, o
independência, como principal impedimento à obra de unificação nacional, que então se imporia.
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Em outras palavras, o curioso argumento de Bello sugere que as lutas de independência, apesar dos
protagonistas não estarem conscientes disso, teriam ocorrido sem produzir verdadeira ruptura com a metrópole, já que
oporiam dos dois lados homens caudatários da mesma cultura. Prova irrefutável disso seria que os americanos teriam se
lançado à batalha com ímpeto similar ao dos espanhóis.
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Em poucas palavras, o jurista fluminense considera que são dois objetivos diferentes presentes em
nostalgia para o passado, como os conservadores clássicos, são muito raros no Brasil e na América
Latina. Um deles é Gilberto Freyre. Tal postura se percebe no próprio tom dos seus trabalhos sobre
em Casa Grande & Senzala, para sua decadência, em Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso.
Pretende-se, portanto, partindo da análise das obras de Oliveira Vianna e Gilberto Freyre,
valorizar o passado.
Nessa orientação, as obras de Oliveira Vianna e Gilberto Freyre podem nos ser úteis em
brasileiro. Acredito, porém, que a ambiguidade do jurista fluminense diante dos dois momentos é
sociólogo pernambucano.
liberalismo, pode ser considerado uma “ideia fora do lugar”.6 Se isso for o caso, talvez se possa
perceber novas possibilidades para a tese das “ideias fora do lugar”. Isto é, não só o liberalismo mas
outras ideias produzidas na Europa estariam “fora do lugar” no Brasil. Nessa perspectiva mais
ampla, o mais interessante não são tanto as coincidências entre, por exemplo, o conservadorismo
6
Na verdade, autores conservadores foram, durante o Império, os primeiros a argumentar que haveria uma
inadequação entre as ideias liberais e a realidade brasileira. Roberto Schwarz admite inclusive que sua interpretação
parte de um “sentimento de despropósito” mais generalizado quanto à relação entre referências intelectuais estrangeiras
e o ambiente social brasileiro. Mas enquanto os conservadores e autores posteriores, como Oliveira Vianna e Wanderley
Guilherme dos Santos, veem o problema no liberalismo – pretensamente utópico ou até sofrendo de fetichismo
institucional – o crítico literário identifica o nó da questão na sociedade escravista brasileira do século XIX.
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europeu e o conservadorismo brasileiro, mas suas divergências. Até porque elas indicariam para as
Oliveira Vianna é um autor que, de maneira geral, valoriza o passado. Na verdade, até o
idealiza, sugerindo, por exemplo, que a colonização do Brasil teria sido inicialmente realizada por
fidalgos proveniente dos ramos mais ilustres da nobreza portuguesa. Mas ainda mais importante,
colonos de origem plebeia teriam posteriormente realizado a obra que então se impunha, de
seja, contra a orientação centrípeta dos primeiros colonos se chocaria a tendência centrífuga do
mundo em miniatura. Neles prevaleceria a vida doméstica. Organizado à maneira romana, o grande
domínio rural teria o pater familias como seu chefe supremo. Não haveria no seu interior grande
espaço para a solidariedade social, restringindo-se toda atividade colonial ao círculo familiar.
suficiente, sendo comum afirmar-se que precisavam comprar apenas ferro, sal, pólvora e chumbo.
Atrairiam praticamente tudo que existia na vida colonial, como que reunindo vilas, indústria,
comércio, etc. Os grandes domínios exerceriam, portanto, uma verdadeira função simplificadora
Quando se abre, o que Oliveira Vianna chama de IV século da história brasileira, os grandes
senhores rurais se encontrariam, não por acaso, quase ausentes da administração da colônia, que
seria reservada quase exclusivamente a metropolitanos. Seria apenas a transmigração da família real
portuguesa que teria posto fim a esse isolamento. A nobreza nativa se confrontaria, então, com
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Numa inspiração não muito diferente, Franco Moretti (2009) partindo, em grande parte, de Schwarz, procura
entender como, de início, é bastante comum, em literaturas em situação similar à brasileira, traduzir obras européias, ou
então, decalcar, sem maiores cuidados, seus enredos num novo cenário, feito, por exemplo, de palmeiras e papagaios.
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outros dois grupos: os mercadores portugueses, enriquecidos pela abertura dos portos, e fidalgos,
portugueses como uma burguesia que, apesar da origem reinol, já se encontrava no Brasil há algum
de Oliveira Vianna, já que ela seria a única classe com verdadeira base na sociedade brasileira.
No entanto, deixada a si mesmo, a aristocracia da terra, seria incapaz de dar início à obra de
unificação nacional. Dela não poderia provir solidariedade social, os caudilhos que a comporiam
formando clãs, que lutavam entre si. Como resolver o problema? Se a aristocracia é incapaz, por
conta própria, de estabelecer a unidade nacional, ela teria que vir de fora, da Coroa. Isto é, para criar
a nação, a Coroa, como que filtraria os elementos provenientes da nobreza da terra mais capazes de
com o momento histórico que analisa. Se antes, na colônia, o identifica como principal instrumento
sua maior característica, a autossuficiência, passa a vê-lo como impedimento mais sério para a
ao imperador teria evitado a secessão do Brasil. Por exemplo, nas Cortes portuguesas, convocadas
depois da revolução liberal de 1820, os deputados brasileiros, como admitiu o futuro regente Diogo
Feijó, comportavam-se mais como representantes de suas províncias do que do país. A própria
Independência só encontrou apoio mais decidido no centro-sul, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Ou seja, num sentido mais amplo, na luta “entre o localismo e o centro, os caudilhos e a
nação” (Vianna, 1987, p. 254), o rei apareceria como elemento regulador de conflitos. Isto é, no
7
Brasil, o poder central, ao invés de ser o grande inimigo das liberdades locais, como o é na Europa,
descentralização, à maneira dos anglo-saxões, como faziam os liberais, seria injustificável, já que
Oliveira Vianna. O argumento de que seria necessário para a Coroa controlar o patriarcado rural
instrumental”. Segundo ela, a eficácia das instituições seria “função da ordem social e política
envolvente”. Portanto, incumbiria “ao poder político existente manter, eventualmente criar
Em outras palavras, autores como Oliveira Vianna e antes dele, o visconde do Uruguai, perceberiam
que seria necessário adaptar as instituições à realidade social, com o intuito de conservar ou
institucional” dos liberais. Estes acreditariam que bastaria adotar as instituições existentes na
Europa e nos EUA para que o Brasil se transformasse, quase automaticamente, numa sociedade
burguesa análoga à europeia e à norte-americana. Para impô-la, seria necessário vencer o poder dos
senhores locais, necessidade da qual, acredita o autor, os conservadores teriam consciência, mas não
os liberais.
Numa orientação diferente, José Murilo de Carvalho (1993) e Luiz Werneck Vianna (1993)
argumentam que a postura de Oliveira Vianna seria iberista. Inspirados principalmente por Richard
Morse (1988), entendem o iberismo como uma das possíveis respostas à modernidade. Enquanto a
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Anglo-América teria como que sido fundada pelas revoluções religiosa e científica do século XVI,
Na parte norte do continente, a sociedade seria baseada na ideia de contrato, livre associação
dos indivíduos que a compõem, o que contrastaria com a postura organicista dominante na parte sul,
de acordo com a qual, cada grupo social desempenharia uma função. John Locke seria um autor
paradigmático para a Anglo-América, São Tomás de Aquino para a Ibero-América. Portanto, mais
Carvalho (1993) e Werneck Vianna (1993) argumentam, assim, que a própria ação do
comportar-se de maneira paternalista. Mas também surgem diferenças entre os autores que
identificam uma postura iberista em Oliveira Vianna. Werneck Vianna (1993) fala num “iberismo
instrumental”, que procuraria fazer com que o Brasil acabasse por encontrar a “cultura política
Populações meridionais do Brasil “não era o do capitalismo industrial”. Isto é, os valores desse
relativamente fácil pôr-se de acordo em relação aos instrumentos de ação política preconizados por
essa tradição política o mesmo não ocorre com os valores que a orientam.
mesmo tempo, “fortaleza, capela, escola, oficina, santa casa, harém, convento de moça, hospedaria,
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O argumento de Morse (1988) deve muito a Hartz (1964), com o qual colaborou na pesquisa sobre as
“sociedades fragmento” da Europa.
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(...) banco” (Freyre, 1963, p. 15). Seu predomínio permitiria até vincular a colônia brasileira ao
feudalismo. Ou melhor, o sistema de grande plantação seria misto, convivendo nele elementos
Mas, junto com a Casa Grande apareceria a Senzala, caracterizando o que Freyre chama de
equilíbrio de antagonismos. Isto é, este par antagônico, como tantos outros – a cultura europeia e a
africana, o jesuíta e o fazendeiro, o senhor e o escravo, etc. – não chegaria a se chocar. Tal
característica já estaria presente entre os portugueses, povo indeciso entre a Europa e a África. O
mais diferentes ambientes, o que equiparia o português, melhor que qualquer outro povo, à obra de
antes, a potencialidade da cultura brasileira”(Freyre, 1963, p. 378), que não descartaria as mais
diferentes possibilidades.
O polo dominante no Brasil, do pater familias, como seu similar da Antiguidade Clássica,
seria todo poderoso; mas não buscaria a vida ativa, procurando, do mesmo modo que o indivíduo do
capitalismo moderno, a proteção de sua propriedade. Ou seja, a posição de nosso senhor diante da
propriedade e da política seria, de certa forma, híbrida em relação a Aristóteles e a John Locke.
Como o grego, teria poder absoluto sobre sua propriedade, inclusive escravos, mas não a entenderia
como condição para a participação na política, ao libertá-lo de suas necessidades imediatas e dar-lhe
condições para tratar dos negócios comuns da cidade. Na verdade, mais como o inglês, veria a
política como subordinada à propriedade, a sociedade civil existindo para garantir a conservação da
Ninguém poderia opor resistência à família patriarcal a não ser os padres da Companhia de
Jesus. Eles desejariam impor, como no Paraguai, o poder temporal da Igreja Católica. Essa não
seria, porém, a religião predominante na colônia, uma vez que, nos engenhos, os capelães se
deixariam submeter aos mandos e desmandos dos senhores. Desenvolver-se-ia, dessa maneira, uma
1
forma de cristianismo doméstico, onde seria notável a intimidade com santos, a Virgem e o próprio
menino Jesus. Esse tipo de religião chegaria a lembrar o culto da família dos antigos gregos e
romanos.
indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma Companhia de Comércio” (Freyre, 1963, p. 83).
pelo inglês na parte norte do continente, onde o indivíduo teve papel preponderante; diversa
também da colonização feita pelo espanhol, na qual o Estado foi fundamental; e da holandesa, cujo
Pode-se, entretanto, objetar que a caracterização da família patriarcal realizada por Freyre
Casa Grande & Senzala. O autor não aceita, todavia, o argumento, lembrando que esse tipo de
O patriarcalismo não seria, portanto, fenômeno geográfico, mas social, criado pelo latifúndio
monocultor e a escravidão. A força desse sistema seria tal que, para além do Brasil, ele surgiria em
outros ambientes, como as Antilhas e o sul dos EUA, em que prevaleceu a monocultura
No nosso caso específico, Freyre sugere que o patriarcalismo, existindo de norte a sul, é o
que daria unidade ao país. Essa não deixa de ser, porém, uma unidade frágil, já que, como indicara
Oliveira Vianna, a solidariedade dos latifúndios volta-se para dentro de cada um deles, que como
grande mobilidade, presente entre paulistas e jesuítas. Apesar dessa tendência trazer um perigo de
dispersão, Freyre julga que seu efeito foi positivo e, de certa forma, complementar ao latifúndio,
O patriarcalismo tornaria possível falar na existência de uma cultura brasileira, não simples
prolongamento da europeia, mas algo próprio e distinto, relacionado com o tipo de ambiente que o
1
colonizador encontrou na América. A própria Casa Grande seria expressão da adaptação ao
ambiente americano. Por intermédio dela e de outras iniciativas similares o português se tornaria até
processo com a vinda da família real portuguesa e, principalmente, a urbanização. Nesse contexto, o
par antagônico Casa Grande e Senzala teria sido substituído por outro: os Sobrados e os
Mucambos.
portuguesa, ganharia uma nova feição: “os extremos – senhor e escravos – que formavam uma só
seus interesses tornavam-se metades antagônicas ou, pelo menos, indiferentes uma ao destino da
outra” (Freyre, 1951, p. 698). Em outras palavras, o antagonismo ganharia força diante do
equilíbrio. Dessa maneira, a cidade ganharia importância em relação ao campo, a rua diante da casa,
Mesmo que o patriarcalismo fosse um fenômeno nacional, seu declínio não deixaria de
assumir diferentes feições regionais. A região onde a família patriarcal teria se formado, o Norte
açucareiro, perderia espaço para o mais burguês Sul cafeicultor. Nele, o trabalho de escravos
africanos seria mais facilmente substituído pelo trabalho livre de colonos europeus.
O individualismo, que golpearia o patriarcalsimo, teria como veículo principal “duas forças
novas e triunfantes, às vezes reunidas numa só: o bacharel e o mulato” (Freyre, 1951, p. 951). O
primeiro voltaria de estudos superiores na Europa ou no próprio Brasil com novas ideias que usaria
contra o patriarcado rural. Sua ação equivaleria a uma revolta de filhos contra pais, um verdadeiro
parricídio.
Gilberto Freyre não deixa de chamar a atenção para os aspectos positivos da decadência da
família patriarcal. Numa estrutura social mais aberta, as oportunidades aumentariam. Dessa
1
maneira, mulheres, filhos e escravos poderiam, finalmente, se tornar mais independentes, deixando
fenômeno. O fim do patriarcalismo acabaria com o amparo que a Casa Grande supostamente
entregue à própria sorte. Mais importante, os próprios traços distintivos da cultura brasileira,
Brasil não mais teria uma contribuição original a fornecer ao mundo. Viveríamos um processo de
passando a predominar.
e seus limites no Brasil. Assim, ao tratar dos dois autores, é interessante perceber certos traços
São inúmeros os pontos de contato entre Vianna e Freyre. Ambos são autores que destacam
brasileira. Em boa medida, identificam o grande domínio rural como o principal instrumento de
adaptação do colono europeu ao ambiente americano. Ou seja, por vias diferentes, a influência de
Pierre Guillaume-Fréderic Le Play e sua escola sobre o jurista fluminense, e a influência do neo-
seu meio (Carvalho, 2002; Lima, 1989). Os dois autores também enfatizam que o século XIX foi
Para além das suas obras, Oliveira Vianna e Gilberto Freyre não deixaram de servir, de
1
governo num dos momentos fundamentais desse processo, o pós-1930. Como consultor jurídico do
trabalhista. Já o sociólogo pernambucano, apesar da oposição a Getúlio Vargas, teve boa parte de
suas formulações incorporadas à imagem do Brasil que o novo governo promoveu (Bastos, 2006).
Na verdade, ainda mais importantes do que as convergências entre os dois autores são as
Como vimos, Oliveira Vianna considera que a transmigração da família real portuguesa
senhores brasileiros na disputa pela supremacia com comerciantes e fidalgos lusitanos. No entanto,
a principal característica dos latifúndios, sua autossuficiência, tornaria esse grupo incapaz de
realizar a obra de unificação nacional que então se impunha. Precisar-se-ia, portanto, recorrer a um
impondo uma nova tarefa de unificação nacional. Mais importante, o novo Estado, que surge com
ela, se chocaria com o domínio doméstico, a partir do qual se formaria o patriarcalismo. Em outras
palavras, diferente de Oliveira Vianna, não enxerga dois objetivos distintos na colônia e no pós-
o que realmente conta já foi realizado antes de 1822: o Brasil passou a ter uma identidade própria
Devido a essa posição, o autor de Casa Grande & Senzala pode, como o conservadorismo
clássico, ter uma avaliação inequivocamente positiva do passado. Também boa parte das estruturas
históricas com as quais mais se identifica – como a família patriarcal, a comunidade local, a região
– são as mesmas valorizadas por outros conservadores (Nisbet, 1987). Elas são, por sua vez,
1
Na verdade, essa não é a posição apenas do jurista fluminense, mas de toda uma linhagem
do pensamento político brasileiro, que Gildo Marçal Brandão, seguindo o autor de O idealismo da
Constituição, chama de idealismo orgânico. Esses autores defendem, pelo menos desde o visconde
do Uruguai, que “aqui o Estado não deveria ser tomado como a principal ameaça à liberdade civil,
mas como sua única garantia” (Brandão, 2005, p. 246). Ou seja, consideram que a força do domínio
privado seria tamanha no Brasil que tornaria necessária a ação do Estado para bloquear tendências
desagregadoras.
Segundo Reinado e o pós-1930. Assim como as instituições que o Império criou favoreceriam a
permitiriam dar uma certa orientação para as transformações, como a industrialização, que o Brasil
vivia então. Se o Poder Moderador tinha sido particularmente importante no Segundo Reinado, no
governo Getúlio Vargas teria papel fundamental, segundo Oliveira Vianna, o Conselho de
Economia Nacional, já que nele “se faz ouvir a voz das classes e profissões organizadas” (Vianna,
1939, p. 168).
Mesmo assim, se pode argumentar que a motivação por trás da argumentação do visconde
conservar aspectos da antiga ordem, pré-capitalista. Procurariam, dessa maneira, evitar uma
desagregação traumática, o Estado podendo, por exemplo, até assumir características paternalistas.
No entanto, para além dos valores com os quais o idealismo orgânico constitucional se
identificaria não é difícil perceber que os instrumentos que preconizam entram em conflito com o
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Bolívar Lamounier (1990) chega a argumentar que tal posição se identificaria com uma verdadeira ideologia
de Estado. Em contraste com o liberalismo, essa ideologia defenderia o predomínio do Estado sobre o mercado como
princípio organizador da sociedade. Ou melhor, a sociedade, inicialmente amorfa, deveria ser transformada pelo Estado,
passando então a ter forma.
1
rurais pouco têm em comum com posições normalmente associadas a autores conservadores, que
costumam se voltar nostalgicamente para um passado feudal onde o poder se encontrava disperso.
O mesmo não ocorre com Gilberto Freyre. Não é mero acaso que não haja polêmica
significativa a respeito da forma como lida com o grande domínio rural.10 A própria imagem anti-
que realiza da família patriarcal. No entanto, tal postura não deixa de defender uma certa política,
que valoriza o passado colonial e o domínio do grupo senhorial. Tal perspectiva também contrasta
positivamente a proximidade das relações sociais presentes no Brasil com a impessoalidade que
Mas talvez seja possível aproximar Freyre de outros autores, como o bispo Azeredo
Coutinho e José de Alencar que, no Império, foram bastante longe na defesa dos senhores rurais. No
que concerne especificamente à escravidão, como alguns escravocratas do sul dos EUA, chegaram a
sugerir que ela poderia criar uma sociedade alternativa e superior à burguesa (Genovese, 1988). Da
mesma maneira que Freyre, argumentam que, numa ordem patriarcal, a condição do escravo seria
melhor do que a do operário europeu, nominalmente livre, em razão dele e os membros da sua
família contarem com o amparo do senhor, enquanto que os trabalhadores das fábricas teriam que
Por outro lado, é possível que na obra desses autores se encontrem os próprios limites do
pensamento conservador no Brasil. Em particular, não vão até às últimas consequências na defesa
benéfica ao desenvolvimento social, mas fadada a desaparecer. Sugerem, portanto, que a escravidão
não é um fim em si mesmo, possivelmente a base de uma civilização nova, mas algo superável. Tal
10
A controvérsia sobre Freyre versa sobre outros temas como, por exemplo, o significado de “equilíbrio de
antagonismos”. Categoria que, por exemplo, Carlos Guilherme Mota (1977) considera que esvazia a contradição,
encobrindo os conflitos. Por outro lado, Ricardo Benzaquen de Araújo (1994) vê aí boa parte da riqueza e da abertura
do sociólogo pernambucano, que apontaria para uma totalidade sem síntese, a existência de contradições sem mediação.
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Alencar, de forma semelhante a Freyre, sugere que no Brasil haveria um abrandamento do trabalho servil,
relacionado com o patriarcalismo: “quem de nós, senhores, não teve ocasião de ver, uma e muitas vezes, no seio da
família, a mãe querida e respeitada, reclinando-se sobre o leito de dor onde jazia o escravo, não levada por interesse
mesquinho e sórdido, mas pelo impulso desse sentimento da caridade que é o resplendor da senhora brasileira?”,
(Alencar, 1977. p. 240).
1
posição possivelmente esteja relacionada com o próprio lugar subordinado da economia escravista
Freyre foi, de certa maneira, manifestação isolada. Apesar de mais próximo ao conservadorismo
clássico, ele não se revelou capaz de estabelecer continuidade no pensamento político brasileiro,
Vianna, teve sucesso em criar um certo sistema, composto por escritores, público e uma
linguagem.12 Paradoxalmente, essa linhagem política se afasta em muitas das suas características do
conservadorismo clássico, mas, talvez até por isso, foi capaz de fincar raízes no Brasil.
12
Aqui me inspiro em Candido, 1993.
1
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