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Ashley Montagu - Introdução A Antropologia - Ano 1952 PDF
Ashley Montagu - Introdução A Antropologia - Ano 1952 PDF
ANTROPOLOGIA
Ashley Montagu
Cultrix
T ítu lo do original:
M A N : H IS F IR S T TW O M ILLIO N Y EA RS
A BRIEF INTRODUCTION TO ANTHROPOLOGY
2? edição
M C M L X X V II
D ireitos R eservados
ED ITO R A C U LTR IX LTDA.
R u a Conselheiro F u rtad o , 648, fone 278-4811, S. P au lo
Im p resso no B rasil
P r in te d in B ra zil
ASHLEY MONTAGU
INTRODUÇÃO
À
A NTRO PO LO G IA
Tradução de
O c t a v io M endes C a ja d o
EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
4
A ASCENDÊNCIA DO HOMEM
50
lugar, mercê da sua dependência cada vez maior dos instru
mentos, nunca se teriam desenvol^do nelas os grandes cani
nos, superespecializados, desnecessárias a criaturas onívoras; e,
nessas condições, não teriam precisai o de tanto osso nas man-
díbulas superior e inferior, e a rej ião do focinho, reduzida,
teria concorrido para a humanizaçã:> do rosto. Em terceiro
lugar, em razão da necessidade de i m armazém suficientemente
amplo para guardar as informações requeridas, o cérebro teria
sido aumentado, mudando a forma do crânio, no sentido de
imprimir ao topo da cabeça um feitio mais abobadado e de am
pliar a testa. O remaneio dos ossos faciais e a verticalização
da frente da cabeça produziriam uma elevação e uma projeção
frontal dos ossos nasais — que nos macacos continuam acha
tados — culminando na estrutura única, a península feita de
osso, cartilagem e tecidos moles, que conhecemos como o na
riz do homem.
É muito provável que os antepassados imediatos do ho
mem, como grupo, já tivessem perdido parte considerável do
pelame que caracteriza todos os antropóides e, na realidade,
todos os primatas. Qual fosse a cor da pele não podemos saber
com certeza mas, visto que os ascendentes do homem foram
quase certamente animais tropicais de origem africana, é bem
possível que tivessem a pele negra.
Falariam eles? Não o sabemos. Talvez possuíssem os ru
dimentos da fala. Fabricavam instrumentos? É provável. Em
várias partes da África se encontram, em quantidades conside
ráveis, instrumentos feitos de seixos, hoje em dia atribuídos
aos australopitecíneos.
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Da estrutura dos ossos do quadril e das pernas, se depreen
de, manifestamente, que os australopitecíneos caminhavam em
posição erecta, ou quase. Dessa maneira, pela primeira vez,
temos uma prova clara da ordem da evolução funcional de al
gumas partes do corpo humano. A postura erecta foi atingida
antes que o cérebro se desenvolvesse e assumisse grandes pro
porções. Algumas autoridades costumavam pensar que ocorre
ra o inverso. Agora sabemos com certeza que os antecessores
do homem assumiram uma postura erecta antes que o seu
cérebro aumentasse de tamanho.
Há quanto tempo viveram os australopitecos? Não o sa
bemos com exatidão porque a geologia (estudo da terra) das
regiões da África, em que se encontram os restos dos austra
lopitecíneos, ainda não é bem conhecida. A maioria das auto
ridades, todavia, é de opinião que esses restos fósseis datam
dos limites entre o Plioceno e o Plistoceno, ou seja, há muito
mais de 2 milhões de anos. Eles podem ter morrido na África
há uns 250 mil anos, ou mesmo depois, mas isso não quer
dizer que não pudessem ser os ancestrais do homem ou que
não estivessem estreitamente relacionados com o grupo de an
tigos antropóides que foram os antepassados direitos do homem.
O que pode ter sido perfeitamente um australopiteco foi
descoberto em 1965 em sedimentos do Plistoceno primitivo na
bacia do Kanapoi, suleste de Turkana (noroeste de Q uênia).
O achado consistia na extremidade inferior de um úmero es
querdo notavelmente semelhante ao do homem e facilmente
distinguível do mesmo osso do chimpanzé e do gorila. Deu-se
ao fóssil o nome de Hominídeo de Kanapoi I. Os sedimentos
em que o osso foi encontrado remontavam, segundo o método
do potássio-argônio, a 2,5 milhões de anos. Não se descobriram
artefatos de espécie alguma.
Os australopitecíneos possuíam um cérebro de tamanho
médio inferior a 600 cc; o tamanho médio do cérebro dos ho
mens que vivem hoje é, mais ou menos, de 1 350 cc. Em vista
disso, poder-se-á supor que tivessem ainda um longo trajeto
a percorrer antes de alcançarem o status humano. Teriam de
acrescentar, aproximadamente, uns 400 cc ao volume do seu
cérebro para chegarem ao tamanho do cérebro do Homo erectus
erectus. Ora, um salto rápido de 400 cc é inconcebível.
Além disso, a forma do crânio de todos os australopitecí
neos semelha extremamente a dos macacos. A abóbada crania
na é baixa e, em certas formas, como o Australopithecus ( Pa-
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ranthropus) crassidens, encontrado em Kromdraai, na África
do Sul, uma crista bem desenvolvida, semelhante à do gorila
macho, percorre o topo da cabeça, de uma ponta a outra.
(Esta crista sagital, como é chamada, se destina à inserção
dos músculos maciços dos lados da cabeça, que movem a man-
díbula inferior para cima e para baixo.) Em outras, como no
Australopithecus robustus, encontrado em Swartkrans, na Áfri
ca do Sul, a mandíbula inferior tem grande espessura. Mas o
fato é que os australopitecos ostentam muitos traços parecidos
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Raymond D art, da África do Sul, a concluir ter sido isso obra
dos australopitecíneos. E embora algumas autoridades abun
dem nesse parecer, outras não concordam com ele.
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os pré-molares e molares são grandes, mas os caninos e incisivos
são pequenos. O crânio foi encontrado num complexo crista
lino vivo, associado com instrumentos de pedra de um tipo
primitivo, conhecido pelo nome de oldovânico. Feitos de quart-
zito e lava, esses instrumentos caracterizam-se por ser mal des-
bastados numa ou nas duas direções de ambas as faces; o re
sultado é um instrumento singelo de corte, afiado, porém irre
gular, de cada lado da pedra. Utensílios semelhantes, feitos
de seixos polidos pelas águas, foram encontrados, em associa
ção com três dentes, em Sterkfontein, na África do Sul. A tri
buídos, a princípio, ao Zinjanthropus, Leakey hoje acredita se
jam esses artefatos obra de outro homem primitivo, que será
Reconstrução de u m
australopiteco típico
descrito mais adiante (veja a página 5 9 ). Como não existe
pedra no nível do Olduvai I, onde os artefatos foram achados,
os materiais de que se fizeram os instrumentos devem ter sido
trazidos de outro lugar. A presença de 176 lascas de pedra
indica que os petrechos foram manufaturados ali mesmo.
De acordo com a datação pelo processo do potássio-argônio
(veja a página 105), levada a cabo pelos Drs. G. H. Curtis e
J. Evernden, da Universidade da Califórnia, o Zinjanthropus
tem 1,75 milhões de anos.
A maior parte das autoridades concorda hoje em que o
Zinjanthropus é um australopitecíneo do mesmo tipo do Pa-
ranthropus, encontrado em dois lugares da África do Sul,
Kromdraai e Swartkrans, e em Java ( Meganthropus).
“hom o h a b ilis ”
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sendo uma espécie de “lissoir”, isto é, um utensílio usado para
trabalhar e polir as peles dos animais e transformá-las em couro
utilizável. A ser correta a interpretação do significado desse
instrumento, “ela supõe” , como observa Leakey, “ um modo
de vida mais evoluído do que esperávamos dos fautores da
cultura oldovânica” . Grandes quantidades de sobras de tarta
rugas, bagres e aves aquáticas, de apresamento relativamente
fácil, foram encontradas nesse nível, dando a entender que,
57
Instrum entos oldovânicos de seixos ( la v a ) , Estrato I, G a rg a n ta
de O lduvai, T erritório de T a n g a n h ic a , África O riental
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dacinhos. Isso explicaria a ausência dos ossos de grandes ani
mais nos complexos cristalinos oldovânicos.
A capacidade craniana da criança pré-zinj de 12 anos foi
estimada, aproximadamente, em 680 cc, talvez mais, e a idade
dos ossos, calculada pelo método do potássio-argônio, em 1,85
milhões de anos.
Em outubro de 1963, toparam os Leakeys com fragmen
tos de um crânio de adolescente, do mesmo tipo físico da cri
ança pré-zinj. Os restos da criança pré-zinj foram descobertos
no Estrato I, ao passo que os do adolescente apareceram na
parte inferior do Estrato II. Depararam-se ainda aos investi
gadores, nos Estratos I e II, remanescentes, quase todos cons
tituídos por dentes, de mais cinco representantes desse tipo.
Algumas descobertas ocorreram no complexo cristalino vivo
do Zinjanthropus. A tíbia e o perônio talvez pertencessem à
forma mais adiantada.
Os pedaços do adolescente consistiam em quase todo o osso
ocipital, os dois parietais, partes dos ossos frontal e temporais,
partes do maxilar superior, e uma mandíbula virtualmente com
pleta, com todos os dentes no lugar. Nas características físicas,
esses restos semelham muitíssimo os da criança pré-zinj encon
trada no Estrato I.
Em virtude do tamanho e da forma dos dentes, do tama
nho do cérebro, da forma do crânio, das especializações das
extremidades superiores e inferiores, e da associação dos artefa
tos de pedra manufaturados, descreveram-se tais restos como
representativos de nítido progresso em relação aos australopi-
tecíneos, deu-se-lhes o nome de Homo habilis ( “ habilis” no
sentido de capaz, hábil, vigoroso, mentalmente habilidoso), mas
a maioria das autoridades crê que os remanescentes pertençam
a australopitecíneos.
Os fragmentos de um crânio encontrados, çm 1949, em
Swartkrans, na África do Sul, provavelmente oriundos do Plis-
toceno Médio, e chamados Telanthropus, e alguns descobertos
em 1960 no Lago Chade, em Koro Toro, no norte da África
Central, provenientes do fim do Plistoceno Inferior ou do iní
cio do Plistoceno Médio, talvez pertençam ao Homo habilis mas,
enquanto não se fizerem os estudos comparativos necessários,
o seu verdadeiro status permanecerá incerto.
Em janeiro de 1964, Leakey descobriu uma mandíbula de
Zinjanthropus quase completa, com todos os dentes no lugar,
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em novo local, perto do Lago Natron, a nordeste de Olduvai.
O depósito é da mesma idade do sítio em que se encontrou o
primeiro Zinjanthropus.
A forma mais antiga de homem, até agora descoberta, é
o australopitecíneo Homo babilis, conquanto, morfologicamente,
o mais antigo seja o australopitecíneo Zinjanthropus. O fato
de se haver descoberto uma forma mais desenvolvida de homem
num estrato mais antigo deve-se, por certo, ao vezo que tem
a Arqueologia de premiar inesperadamente os seus cultores.
Alguns instrumentos de tipo oldovânico foram encontrados em
Sterkfontein e em Swartkrans em associação com australopi
tecíneos. Acredita Raymond D art que a maioria dos instru-
mentos utilizados pelos australopitecíneos fossem adaptações de
restos esqueléticos de antílopes e animais semelhantes, e con
sistissem em ossos, dentes e chifres. Daí o nome que lhes deu
de cultura osteodontocerática.
D art descreveu diversos instrumentos notáveis, que se su
põem feitos de ossos de animais pelos australopitecíneos. Um
deles é um “ descaroçador de maçãs” , encontrado em associa
ção com o Australopithecus prometheus, em Makapansgat, na
África do Sul. O utro é um “ lissoir”, descoberto em 1958 na
brecha vermelho-castanha de Sterkfontein, na África do Sul.
Os australopitecíneos talvez tenham aprendido a utilizar pro
dutos naturais, como ossos, dentes e chifres, na produção de
instrumentos de trabalho para escavar, cortar, serrar, raspar
e alisar.
O descobrimento de um círculo grosseiro de pedras soltas
amontoadas no complexo cristalino, na parte inferior do Estra
to I (inferior e anterior ao local em .que foi encontrado o
Zinjanthropus), com centenas de instrumentos de pedra à sua
volta, numa região em que as pedras não ocorrem natural
mente, indica que o Homo habilis pode ter construído abrigos.
Dessa maneira, além de serem, possivelmente, os primeiros fa
zedores habituais de instrumentos de pedra, é muito provável
que tenham sido também os primeiros construtores de habita
ções domésticas.
Num terceiro local em Olduvai, no Estrato I, cerca de
6 metros acima dos outros dois complexos, encontrou-se notá
vel reunião de ossos fósseis de animais, muitos dos quais novos
para a Ciência. Todos os ossos de animais grandes haviam
sido quebrados e a medula, extraída. Os crânios e as mandí-
60
bulas tinham sido esmagados. A maioria eram ossos de ani
mais imaturos.
À diferença dos seus ascendentes mais semelhantes aos
macacos, tanto o Zinjanthropus quanto o Homo habilis comiam
carne. Leakey sugeriu que eles, possivelmente, obtinham a carne
atraindo manadas de animais aos pântanos e sacrificando ali
mesmo os que fossem apanhados com maior facilidade.
O DESENVOLVIMENTO DA CAÇA
E AS SUAS CONSEQÜÊNCIAS
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aos herbívoros. Para estes, na floresta, por assim dizer, a mesa
está posta: só lhes resta comer. A passagem do arrebanhamento
ou da caça de pequenos animais à caça de animais maiores deve
ter constituído um processo de desenvolvimento gradual. Nas
atividades venatórias, a vantagem pertenceria aos que pudes
sem aproximar-se furtivamente da caça, fazendo-o em posição
erecta. O caminhar sem esforço foi provavelmente conseguido
após a aprendizagem da corrida e serviu, quase certamente,
para exercer pressão seletiva sobre os detentores das possibili
dades genéticas adequadas ao desenvolvimento da postura bí
pede erecta e da locomoção. A postura erecta libera os mem
bros anteriores para outras finalidades além da locomoção, não
só para a feitura de instrumentos, mas também para o seu em
prego mais eficiente em conexão com a caça.
A caça de animais pequenos põe mais em destaque a so
lução de problemas do que as reações ou instintos automáticos
biologicamente predeterminados. Num ambiente de savana se
riam mais favorecidos os indivíduos que dessem com maior
freqüência as respostas apropriadas às solicitações do meio, do
que os outros. As reações e instintos automáticos estariam em
situação desvantajosa, ao passo que a solução de problemas, que
é outro nome da inteligência, se veria em situação privilegiada.
À proporção que essas criaturas afeiçoassem os seus instrumen
tos, engenhassem as suas armadilhas e cavassem os fossos para
que nelas caísse a sua presa, a inteligência assumiria um valor
cada vez maior para a sobrevivência. Dessa maneira, no novo
meio, por seleção natural, os primeiros homens teriam continua
do a crescer e a desenvolver a inteligência.
Uma criatura que perde os instintos e se vê obrigada a
fiar-se cada vez mais da inteligência para sobreviver, precisa
fazer duas coisas: (1 ) passar por um período maior de depen
dência, a fim de aprender os elementos essenciais básicos que
lhe permitirão funcionar como ser humano, e (2 ) desenvolver
um depósito grande e suficientemente complicado de armaze
nagem e recuperação, isto é, um cérebro bastante grande para
abrigar os muitos bilhões de células e seus circuitos, necessá
rios a uma inteligência dessa natureza.
Como conseqüência da perda dos instintos que ela, um
dia, possa ter possuído, uma criatura assim precisará aprender
tudo o que tiver de fazer e saber, como ser humano, de outros
seres humanos. Daí que passe por um prolongado período de
dependência, durante o qual ocorre a parte fundamental da
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aprendizagem. O armazém necessário à aprendizagem, à ar
mazenagem e à recuperação de todas essas informações precisa
ser grande. Preparando-se, portanto, para aprender, o cérebro
do feto humano, no derradeiro mês de gestação, cresce em
ritmo acelerado, de sorte que, no momento em que ele atinge
um volume de 350 a 400 cc, a criança precisa nascer pois,
de outro modo, a sua cabeça, grande demais, não lhe permitiria
nascer de maneira alguma. E, assim, 266 dias e meio, em
média, a partir da concepção, nasce a criança em condições de
imaturidade extrema. Nesse momento, de fato, ela mal com
pletou a metade da sua gestação. A parte que passou em de
senvolvimento no ventre materno é chamada gestação uterina.
A outra metade da gestação se completa fora do ventre, na
continuada relação simbiótica da criança com a mãe. Essa se
gunda metade da gestação denomina-se gestação externa. A
gestação externa dura quase tanto quanto a uterina, ou seja,
cerca de dez meses, idade em que a criança, por via de regra,
principia a engatinhar sozinha.
A imaturidade do recém-nascido humano valorizou consi
deravelmente as mulheres mais capazes de prover às necessi
dades da criança dependente. E, assim, teriam sido natural
mente selecionadas as que possuíssem tal capacidade, ou amor
materno, ao passo que as que dela carecessem não teriam sido
tão bem sucedidas na procriação. Também seriam grandemente
valorizados os homens que patenteassem qualidades cooperati
vas na caça e na vida social, ao passo que os indivíduos ego
ístas, não cooperativos, já se teriam dado menos bem.
Parece provável, portanto, que as pressões da mudança
ambiental primeiro conduziram ao desenvolvimento dos atri
butos adaptativos, que transformaram em homem uma criatura
semelhante ao macaco. Os mais importantes desses atributos
não são os físicos, senão os funcionais, os de comportamento, e
as características incorpóreas que conhecemos como cultura —
a parte do meio feita pelo homem, os principais recursos hu
manos de adaptação ao meio.
Os atributos funcionais que evolveram interdependentes na
espécie humana, além da adoção da postura erecta e do de
senvolvimento de um cérebro volumoso, foram a perda de
quanto possa ter sobrado dos instintos, a substituição da forma
reativa de comportamento pelo comportamento de respostas, de
solução de problemas, elevado ao máximo, isto é, inteligente, o
desenvolvimento de um cérebro grande e complexo, o nasci
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mento em estado imaturo e de total dependência, uma longa
infância de sujeição, durante a qual a criança cava os alicer
ces dos conhecimentos que lhe são necessários para vir a ser
um membro atuante da sociedade, e o desenvolvimento do com
portamento altruísta ou cooperativo.
Em outras palavras, a perda dos instintos, a dependência
e a interdependência, o altruísmo e a cooperação, a educabi-
lidade e a inteligência evoluíram inter-relacionadas para produ
zir a espécie humana. E é singular e altamente dotada dessas
possibilidades que nasce a criança humana.
Tornando-se onívoro, o homem aumentou sobremodo a
sua capacidade de sobrevivência em todos os meios. Inclui-se
entre os poucos animais onívoros. Como tal, é capaz de comer
e digerir, virtualmente, tudo o que é comestível ou que se
pode tornar comestível. Essa é uma das razões por que veio
a ser a mais amplamente distribuída de todas as criaturas sobre
a Terra.
Com o advento dos australopitecíneos e de suas ativida
des de fabricantes de instrumentos, o grupo dos primatas, do
qual, finalmente, promanou o homem moderno, transferiu-se
para uma zona completamente nova de adaptação, a dimensão
da cultura. Com essa transição surge, pela primeira vez, o
atributo essencial e caracteristicamente humano: a mente hu
mana, que se caracteriza por uma capacidade cada vez maior de
utilização de símbolos complexos, de aplicação desses símbolos
na criação de coisas novas, e de solução de problemas com
plexos. Acrescente-se a isto o aumento da facilidade e da ha
bilidade com que se utilizam os símbolos e tudo o que eles
pretendem representar, e se verá como, pela primeira vez, de
maneira substantiva, um animal transcende as próprias limita
ções físicas e o inarticulado da natureza, para tornar-se crítico,
analítico, e controlar cada vez mais a crítica e a análise.
A RECONSTRUÇÃO DO CURSO
DA EVOLUÇÃO HUMANA
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dor. Em resultado disso, a parte coberta de densas florestas
que, na África, se situava abaixo do equador, desflorestou-se
gradativamente e transformou-se em planícies abertas ou sava
nas. Os membros do tronco de que proveio o homem, antigos
habitantes das florestas, viram-se, dessa maneira, pouco a pouco,
solicitados a adaptar-se ao meio, que se alterava, e aos novos
problemas que ele apresentava.
Na floresta, o alimento vegetal, abundante, exigia parcos
esforços para a sua obtenção. Nos descampados, todavia, esse
mesmo alimento escasseava cada vez mais. No novo ambiente
a vegetação não bastava ao sustento da vida. Por isso mesmo,
os precursores imediatos do homem teriam sido forçados a
completar a sua dieta arrebanhando animais pequenos, ainda
novos, e vagarosos. Simples comedores de plantas, viram-se
obrigados a incluir animais em sua alimentação e, assim, adotar
um regime onívoro.
O Gigantopithecus blacki
Tem sido na China costume tradicional desenterrar os
chamados “ ossos do dragão” , que são, na realidade, ossos fós
seis de muitas espécies diferentes de animais, e vendê-los, in
teiros ou moídos, aos boticários, que, por sua vez, os vendem
aos compradores ávidos, como poderosos elixires, capazes de
curar praticamente quaisquer mazelas ou moléstias. Talvez
pareça estranho que um geólogo se julgue na obrigação de in
vestigar o conteúdo das farmácias chinesas em busca de ma
terial fóssil mas, quando ficamos sabendo que foi assim que
o geólogo holandês G. H . R. von Koenigswald descobriu o
dente de uma das mais primitivas formas homínidas que os
cientistas conhecem, o nosso espanto perderá a sua razão de
ser. Na realidade, o Dr. Koenigswald descobriu três dentes
molares semelhantes aos do homem. Tratava-se de molares
inferiores, direito e esquerdo, pertencentes a indivíduos dife
rentes, e um molar superior que, provavelmente, provinha de
um terceiro indivíduo. O que há de mais notável nesses den
tes é o seu tamanho. São enormes. O volume da coroa do ter
ceiro molar inferior é cerca de seis vezes maior que a do mesmo
dente do homem moderno, e quase duas vezes maior que o
dente correspondente do gorila.
65
Autoridades como o falecido Professor Weidenreich con
sideravam o Gigantopithecus um homem agigantado. Mas tan
to o gigantismo quanto a atribuição dos dentes a um homem
foram contestados. Com o descobrimento, em 1957, de uma
mandíbula de Gigantopithecus, com a maioria dos dentes in situ,
num depósito do Plistoceno Médio numa alta caverna aberta
num rochedo, na Província de Kwangsi, sul da China, ficou
esclarecido que o Gigantopithecus era um macaco antropóide,
um antropóide adiantado, sem dúvida, mas não era um homem-
-macaco nem se incluía na genealogia do homem.
Na verdade, as criaturas a que pertenceram esses restos
eram antropóides robustíssimos, mas não há razão para se
acreditar que fossem gigantes ou, como sugeriram algumas au
toridades, que estivessem relacionados aos australopitecíneos da
África. Von Koenigswald, contudo, acredita que eles tenham
maiores afinidades com o homem do que qualquer outro ma
caco antropóide conhecido, vivo ou extinto.
Meganthropus palaeojavanicus
Uma das mais antigas formas semelhantes ao homem,
que se conhecem ( Meganthropus palaeojavanicus), foi desco
berta em 1941 pelo Dr. von Koenigswald, representada por
fragmentos de dois maxilares inferiores, em estratos do Plis
toceno Inferior do distrito de Sangiran, na região central de
66
Java. Em 1952, o Dr. Pieter Marks descobriu um maxilar de
Meganthropus mais completo, porém terrivelmente esmagado,
em Sangiran. Os maxilares do Meganthropus eram extraordi
nariamente maciços, atingindo as proporções do maxilar de um
gorila macho adulto. Não obstante, a sua forma é distinta
mente humana. O Dr. von Koenigswald considera esse gênero
antepassado do Homo erectus.
67
nação de calota craniana simiesca e osso da coxa parecido com
o do homem inspirou o nome “ o homem-macaco que cami
nhava erecto” ; por conseguinte, em sua forma latina, Pithe-
canthropus erectus, hoje mais conhecido como Homo erectus
erectus.
Calculou-se que o cérebro do H omo erectus erectus pos
suía um volume que oscilava entre 775 e 940 cc. Isso já
está, realmente, dentro dos limites do homem moderno. Co
nhecem-se casos de homens europeus modernos, inteligentes,
cujo volume cerebral não excedia 850 cc. O cérebro do grande
escritor francês Anatole France possuía um volume pouco su
perior a 1 000 cc.
Só muitos anos depois, em 1937, o Dr. von Koenigswald
descobriu vários outros espécimes de H om o erectus erectus no
distrito de Sangiran, na região central de Java. Todos os
restos do Homo erectus erectus remontam ao Plistoceno Médio.
68
se ampliam os limites dos pitecantropíneos e, segundo, em que
a presença do pitecantropo em Olduvai dá a entender que esse
tipo de homem talvez represente uma forma mais evoluída do
Hotno habilis. A uns 100 metros do local do descobrimento,
no mesmo nível, se encontraram numerosos machados de fa
bricação cheleana, bem como ossos de grandes animais, que
parecem ter sido quebrados para a extração do tutano. Os
testes de potássio-argônio dão a esses restos 490 000 anos de
idade. No complexo cristalino cheleano de Olduvai se encontra-
70
pertencia ao Union Medicai Collcge de Pequim, baseado no
descobrimento de um único dente em Chouk’outien, uns ses
senta quilômetros a sudoeste de Pequim. Isso foi em 1927.
Por volta de 1939, os restos de mais de quarenta indivíduos
haviam sido recuperados, e novas escavações, iniciadas em 1943,
no local original do Plistoceno Médio, conseguiram desvelar
os remanescentes de outras partes esqueléticas. Descobriu-se
que os remanescentes representavam uma forma chinesa do
Homo erectus, hoje conhecida como Homo erectus pekinensis.
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Infelizmente, os restos esqueléticos originais do homem
de Pequim se perderam ao serem transportados para um lugar
seguro, ao qual não chegaram, durante a invasão japonesa da
China. Existem, porém, moldes da maior parte do material
original, assim como boas fotografias e desenhos.
O volume médio do cérebro do homem de Pequim é de
1 075 cc, sendo o tamanho do cérebro cerca de 20% maior
que o do homem de Java. A região da testa é pouco mais
desenvolvida no homem de Pequim do que no homem de
Java. Os dentes têm forma humana, e não existe espaço en
tre o canino e o incisivo lateral no maxilar superior mas, como
os pitecantropíneos, o homem de Pequim não possui queixo
desenvolvido.
Muitos instrumentos de talho e corte se acharam associa
dos ao homem de Pequim.
Afirmou-se que o homem de Pequim era canibal porque
se encontraram quebradas as bases de todos os crânios, e muitos
ossos compridos partidos longitudinalmente por meios huma
nos. E daí se inferiu que o Sinanthropus tirava o cérebro
e comia-o, como também chupava os ossos longos, para extrair-
-lhes o tutano. Isto é possível, mas não está provado e, como
quer que fosse, não implicaria necessariamente que o Homo
erectus pekinensis praticasse habitualmente a antropofagia. Em
condições de fome extrema, a maior parte dos seres humanos
é capaz de canibalismo. Mas, exceto em casos aberrantes, é
muito pouco provável que o homem, alguma vez, tenha re
corrido à prática de devorar os seus semelhantes, senão in
extremis ou com finalidades rituais.
As analogias entre o homem de Java e o de Pequim são
notáveis e, de um modo geral, parece justificar-se a conclusão
de que o último representa uma variedade geográfica um pou
co mais adiantada do primeiro, e deve ser incluído entre os
pitecantropíneos.
72
bourg atribui a idade aproximada de meio milhão de anos.
Robustissimamente construídos, os maxilares carecem de quei
xos desenvolvidos e se parecem muito com os dos pitecantropí-
neos, mas diferem deles o suficiente talvez para justificar a sua
identificação com uma variedade mauritana do mesmo tipo, o
Homo erectus mauritanicus, melhor do que Atlanthropus mau
ritanicus, nome dado pelo Professor Arambourg.
Os dentes do mauritanicus são inequivocamente humanos
e muitíssimo semelhantes aos dos pitecantropíneos. Associa
das a esses maxilares se acharam sobras de muitos animais ex
tintos e inúmeros instrumentos de pedra toscamente trabalha
dos feitos de quartzito, pedra calcária e sílex, representantes
do tipo mais antigo de artefatos ( abeviliano-acheuliano).
Uma porção de maxilar inferior humano, também encon
trado em 1954, num depósito do Plistoceno Médio em Sidi
Abderrahman, perto de Casablanca, no Marrocos, associada a
instrumentos de indústria acheuliana média, parece pertencer
ao mesmo tipo mauritanicus. Assim, pela primeira vez, te
mos provas concretas da presença de tipos pitecantropíneos na
África. Antes disso, em 1943, os fragmentos de três crânios
descobertos num depósito Paleolítico Superior, a noroeste do
Lago Eyassi, na África Oriental, haviam sido considerados por
algumas autoridades pertencentes ao tipo pitecantropíneo. Con
feriu-se ao tipo representado por esses fragmentos de crânio o
nome de Africanthropus. Os novos descobrimentos na África
do Norte reforçam algum tanto a pretensão do Africanthropus
ao status de pitecantropo.
O H O M E M DE SOLO
73
C râ n io do hom em de Solo, do Plistoceno Superior, de N gandong
( Ja v a central)
O H O M E M DE WADJAK
O H O M E M DE HEIDELBERG
75
O m axilar de Heidelberg
O H O M EM DA RODÉSIA
76
Crânio do homem da Rodésia
77
Instrum entos encontrados em associação com o hom em d a Rodésia
(Cortesia do Museu Britânico [História N atural])
O HO M EM DE NEANDERTAL
78
moderno. O cérebro de Neandertal tinha um volume médio
de 1 550 cc, ao passo que o do homem contemporâneo é de
cerca de 350 cc. Visto que o homem de Neandertal flores
ceu há cerca de 150 000 anos e cessou de florescer, como tipo,
há uns 40 000, mais ou menos, somos levados a presumir que
o tamanho menor do cérebro humano moderno resulta de uma
tendência evolutiva ou que o cérebro avantajado do homem
de Neandertal era um atributo peculiar a esse tipo. Em face
dos indícios fornecidos por outros tipos primitivos de homem
79
aumentar em complexidade sem aumentar em tamanho. Pode
ampliar a sua área superficial sem acréscimo de volume, pelo
simples aumento e aprofundamento das circunvoluções.
O homem de Neandertal propendia a ter uma testa um
tanto fugidia, com protuberâncias frontais bem desenvolvidas,
pesada mandíbula sem queixo e a parte posterior da cabeça
(occipício) proeminente. Por carecerem dos mais rudimenta
res conhecimentos de Anatomia, algumas “ autoridades” , que
se meteram a “ reconstruir” o homem de Neandertal, figuraram-
-no com o pescoço taurino, traços grotescos, andar curvado,
durante o qual, diziam, os joelhos se chocavam! Asseverou-se
também, amiudadas vezes, que o homem de Neandertal devia
ser pouco inteligente porque tinha a testa curta. Todas essas
alegações são totalmente indefensáveis. O homem de Neander
tal caminhava tão erecto quanto qualquer homem moderno, não
tinha pescoço taurino, nem joelhos chocalhantes. E faz muito
tempo que inúmeros investigadores científicos independentes
provaram que nem a forma da testa nem a da cabeça tem qual
quer relação com a inteligência. Na realidade, a testa do ho
mem de Neandertal era muito bem desenvolvida. Fazia-a pa
recer curta a presença de maciças protuberâncias frontais (bos
sas supra-orbitais). Sobejam, na verdade, razões para se acre
ditar que o homem de Neandertal fosse tão inteligente quanto
o homem contemporâneo. Foi ele quem fez os belos instru
mentos que se atribuem à cultura musteriana (em homenagem
a Le Moustier, no sul da França, onde foram encontrados pela
primeira vez). Fazia bolas de sílex, perfuradores, discos, ras
padeiras, facas de pedra, e desenvolveu o uso de pigmentos
minerais, como o ocre vermelho, em cerimônias e, provavel
mente, para outras finalidades. O homem de Neandertal tam
bém introduziu o sepultamento cerimonial dos mortos, dando
assim a entender que possuía um sistema religioso altamente
desenvolvido.
Durante muito tempo se acreditou que o homem de Ne
andertal tivesse sido exterminado por homens do nosso tipo.
Não havia fundamento algum para essa crença, senão o tipo
de teorização que caracterizou os pensadores do século X IX
da escola da “ sobrevivência do mais apto” , que acreditavam
fosse a guerra tão velha quanto o homem e o processo pelo
qual uma raça sujeitava e exterminava outra. Visto que os
remanescentes do homem de Neandertal são conhecidos em
quase todas as partes da terra onde se encontraram fósseis hu-
80
Instrumentos da indústria musteriana
81
onde se vêem ainda muitas pessoas que exibem traços da sua
remota ascendência neandertalense. Esses traços podem ser
observados nas pesadas protuberâncias frontais, nas órbitas
oculares fundas, nas testas fugidias e nas regiões mentonianas
pouco desenvolvidas.
82
T a b u n I. C râ n io do tipo neandertalense de M onte Carmelo,
em Israel. As áreas sombreadas diagonalm ente são reconstituídas
83
Skhul V (lado direito in v ertid o ). C râ n io de um tipo misto,
de N e a n d e rta l e do tipo m oderno de hom em
0 H O M EM DE CRO-MAGNON
84
Crânio de um espécime masculino de Cro-Magnon
Seção do crânio
do chimpanzé
Maxilar inferior
do Homem de Heidelberg
Molde do cérebro
do Pitecantropo
Seção do crânio
do Homem de Neandertal
La Chapelle-Aux-Salnts
Maxilar inferior
do Homem de Neandertal
La Chapelle-Aux-Saints
Molde do cérebro
d j Homem de N e a n d c t;!
La Chapelle-Aux-Saint.
Maxilar inferior
do Homem de Cro-Magnon
Seção do crânio
do Homem de Cro-Magnon
Maxilar inferior
Molde do cérebro do homem branco moderno
do homem moderno
■Homem moderno
Homo sapietts
fossilis
Sinanthropus
Homo erectus
erectus
Chimpanzé
88
INTRODUÇÃO A ANTROPOLOGIA
Ashley Montagu
EDITORA CULTRIX