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CASO: MORFOLOGIA VS. SINTAXE EM PB

Article · June 2006

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Danniel Carvalho
Universidade Federal da Bahia
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CASO: MORFOLOGIA VS. SINTAXE EM PB

Danniel Carvalho
Universidade Federal de Alagoas

Resumo: Desenvolvimentos recentes na Teoria Gerativa sugerem um enfraquecimento do


Caso abstrato como princípio determinante na distribuição dos DPs. Baseado em
Sigurðsson (2003), defendo que a realização do DP pronominal precedido de preposição
em orações encaixadas infinitivas, no PB, não reflete diretamente a atribuição Casual
abstrata e reforço a hipótese de que a suposta herança do caso morfológico no paradigma
pronominal de línguas sem marcação casual visível não é prova da existência de um Caso
abstrato. Defino Caso, portanto, como um traço formal vazio de informação semântica, não
sendo definitivo para a derivação e cuja marcação só é possível estabelecer em PF. Dessa
forma, Caso seria um instrumento de última instância no processo de derivação sintática,
cabendo à concordância (checagem de traço N e φ) motivar qualquer procedimento na
sintaxe estreita.

Palavras-chave: Caso; distribuição do DP; concordância; oração infinitiva

Abstract: Recent developments in the Generative Theory suggest a weakening of the


abstract Case as a determining principle in the DPs distribution. Based on Sigurðsson
(2003), I defend that the pronominal DP realization before a preposition in embedded
infinitival clauses, in PB, does not reflect directly the abstract Case assignment and I
reinforce the hypothesis that the supposed inheritance of the morphological case in the
pronominal paradigm in languages with no visible marked case is not proof of the existence
of an abstract Case. I define Case, therefore, as a formal feature that lack any semantic
information, not being definitive to the derivation and whose definition is only possible to
establish in PF. That is, Case would be a last resource instrument in the syntactic derivation
process, falling to agreement (N and φ feature checking) the motivation of any procedure in
the narrow syntax.

Key-words: Case; DP distribution; agreement; infinitive clauses

1. Introdução
Morphology is a very striking imperfection […]. If you were
to design a system, you wouldn’t put it in. It’s not the only
one, though; no formal language, for example, has a
phonology or a pragmatics and things like dislocation in the
sense we all understand: expressions appear not where you
interpret them but somewhere else, where they might have
appeared but don’t in a particular sentence. All of these are
imperfections, in fact even the fact that there is more than
one language is a kind of imperfection. (Chomsky,
2002:112)

1
There is little if any point to doing formal syntax if one is not
prepared to allow the formalisms to suggest some surprising
analyses. (Andrews 1990a: 213)

A noção de Caso abstrato como fator determinante na distribuição dos DPs vem
sendo enfraquecida na medida em que a teoria sintática avança. Inicialmente, a proposta de
Rouveret & Vergnaud (1980) de que todo NP deve ter Caso para ser visível em LF e PF1, o
chamado Filtro de Caso, foi adotada por Chomsky e incluída no programa de Government
and Binding, de 1981, como um módulo da gramática, um universal. Desde então, essa
proposta vem sendo discutida e testada nas línguas naturais, e, conseqüentemente,
"aperfeiçoada" (cf. FUKUI & SPEAS, 1986; BLAKE, 1994; WURMBRAND, 2004;
BRANDNER & ZINSMEINSTER, 2004; BUTT, 2006). Nichols (1992, apud Sigurðsson,
2003), em um estudo tipológico, verifica que cerca de 45% das línguas do mundo não
possuem caso morfológico (e.g. Chinês e línguas asiáticas na sua maioria), 50% seriam
línguas casualmente marcadas (e.g. Alemão e algumas línguas germânicas e escandinavas),
e o restante, cerca de 5%, seriam línguas de marcação casual pobre (case-poor languages).
Esse último tipo englobaria línguas como o Inglês, o Francês, o Espanhol, o Português,
entre outras, que revelam uma "herança" do caso morfológico apenas no sistema
pronominal. A partir dessas informações, Sigurðsson (2003:224) discute a presença
/ausência de caso a partir de três possíveis pontos de vista:

(1) Proposta Morfológica (The Morphological Approach )2


A noção de caso é puramente morfológica, portanto DPs lexicais em Inglês e
todos os DPs em Chinês não possuem caso, enquanto os pronomes do Inglês
possuem caso.

(2) Proposta de Língua Específica (The Language-Specific Approach)


Uma língua ou tem ou não tem um sistema casual. Assim, todo DP do Inglês
recebe caso - visivelmente ou não - enquanto caso é ausente no Chinês.

(3) Proposta Universal (The Universal Approach)


DPs universalmente recebem caso, pelo menos abstratamente.

1
“All NPs must have case to be LF and PF visible” (ROUVERET e VERGNAUD 1980, CHOMSKY 1981).
2
No original (SIGURĐSSON, 2003: 224/5):

(3) THE MORPHOLOGICAL APPROACH


The notion of case is purely morphological, hence full DPs in English and all DPs in Chinese are
caseless, whereas English pronouns are 'cased'.

(4) THE LANGUAGE-SPECIFIC APPROACH


A language either has or not a case system. Thus, all English DPs are 'cased' - overtly or covertly -
whereas case is absent from Chinese.

(5) THE UNIVERSAL APPROACH


DPs are universally 'cased', at least abstractly.

2
Segundo o autor, essas abordagens não são inteiramente excludentes: a Proposta
Universal3 prediz um Caso abstrato como um mecanismo universal (ou traço universal
como o trata Chomsky (2000, 2001)) e, conseqüentemente, pré-requerido por um possível
mecanismo presente em línguas de marcação casual morfológica (SIGURÐSSON,
2003:225). Então, poderíamos supor que caso morfológico seria algo pertencente a PF,
enquanto Caso abstrato, algo inerente à sintaxe propriamente dita, ou seja, intrinsecamente
"abstrato", não havendo necessariamente uma relação um-para-um entre Caso abstrato e
caso morfológico. Ou seja, nas palavras de Sigurðsson (op.cit)

(...) this means that one and the same 'deep' case can have many surface exponents (or,
in some languages, none), and, conversely, that one and the same morphological case
can be exponent of many deep cases. Thus, case relate to meaning and structure in a
similar fashion as grammatical morphemes do.4

Podemos observar que a relação entre a realização de uma língua (PF) e seu sistema
mental subjacente (LF e/ou sintaxe) também não é tão estreita. Assim, uma língua é, ao
mesmo tempo super-eficiente (over-efficient), com seus traços e categorias presentes na
estrutura sintática, sem necessariamente serem refletidos em PF, e altamente redundante
morfologicamente. Um bom exemplo dessa super-eficiência lingüística é a marca de plural
no Português. Numa sentença como (4) abaixo, vemos claramente uma repetição da marca
de plural desde o determinante (As) até o adjetivo adjungido (cansadas):

(4) As meninas magrinhas pulavam corda já cansadas.

Entretanto, em alguns dialetos do Português Brasileiro (PB), essa redundância é reduzida,


cabendo ao determinante a única marca de plural visível, aproximando-se da "elegância"
exigida na sintaxe:

(5) As minina-Ø magrinha-Ø pulava-Ø corda-Ø já cansada-Ø

Esse paradoxo lingüístico, aparentemente, se reflete no sistema casual5. Caso pode ser
definido como sendo uma relação, semanticamente associada ou não, entre um DP e seu
contexto sintático. O Caso inerente seria semanticamente associado, enquanto o Caso
estrutural, não. Ambos os Casos podem mas não precisam ser refletidos por um caso
morfológico6. Caso que não é morfologicamente expresso é denominado Caso abstrato.
Blake (1994) sugere haver uma certa regularidade na distribuição Casual nas línguas
naturais. Destarte, poderíamos supor que, em uma dada família de línguas, uma relação
entre um DP e um Caso abstrato (Nominativo, por exemplo) que apareça morfologicamente
em uma língua seja expressa da mesma forma em outra língua desta mesma família.
Entretanto, esse continuum parece não se refletir nem mesmo dentro de uma mesma língua,

3
Faremos uma discussão mais detalhada acerca do Universal Approach na seção 2.1.
4
Grifo nosso.
5
Cf. Markman (2005) para uma discussão mais aprofundada sobre a conexão morfossintática entre Caso e
concordância.
6
O alemão e o islandês, por exemplo, possuem declinação casual, um dispositivo morfológico de
representação casual, enquanto as línguas românicas só refletem a marcação casual (ainda assim, de forma
discutível) no sistema pronominal.

3
como podemos ver no exemplo (6), onde nós, a forma pronominal que refletiria a marcação
de Caso Nominativo (e Oblíquo) no PB, vem realizado numa posição tradicionalmente
Acusativa (6b):

(6) a. O guarda parou nós(Ac).


b. O guarda nos(Ac) parou.

Tomando o acima exposto como ponto de partida, este texto se divide da seguinte
forma: na seção 2 faremos uma reflexão acerca de Caso, descrevendo as relações entre
Caso abstrato e seu suposto reflexo morfológico, comparando o Islandês, uma língua de
caso morfológico, e o PB, cujo sistema pronominal é tido como um reflexo de um possível
sistema Casual. Na seção 3 discutiremos a relevância do traço de Caso na distribuição dos
DPs pronominais em orações infinitivas em PB, propondo uma interpretação arbitrária do
Caso nas interfaces e seu enfraquecimento aparente na distribuição do DP. A seção 4
conclui essa discussão.

2. Sistema casual, sintaxe e morfologia

2.1 Caso e Universal Approach: alguns pontos da proposta de Sigurðsson (2003)7

A proposta altamente universalista que Sigurðsson denomina Universal Approach,


mostrada rapidamente em (3) no início deste texto (e repetida em (7) abaixo), é tida,
explicita ou implicitamente, como posição dominante dentro da Gramática Gerativa no que
diz respeito a Caso e concordância (cf. MARKMAN, 2005:1).

(7) Proposta Universal


DPs universalmente recebem caso, pelo menos abstratamente.

No que tange especificamente ao Caso, esta proposta aparece explicitamente na


definição de Filtro de Caso (ROUVERET &VERGNAUD, 1980; CHOMSKY, 1981): todo
NP deve ter Caso para ser visível em LF e PF8. Adotando também a proposta do Princípio
da Uniformidade (CHOMSKY, 2000) que propõe serem as línguas uniformes
sintaticamente, sendo atribuído aos Componentes Fonológicos (PF/MF) sua variação
visível, Sigurðsson sugere

poder-se conceber Caso abstrato como um traço ou fenômeno universal. Isso nos
força a conceber caso morfológico como um elemento de PF enquanto Caso abstrato

7
A proposta de Sigurðsson sobre a relação entre Caso abstrato e caso morfológico e o licenciamento do DP é
bem mais extensa e abrange categorias funcionais que não são interessantes para o desenvolvimento de nossa
proposta. Para uma compreensão completa da proposta cf. Sigurðsson (2003) e Markman (2005).
8
Cf. Nota 1. Essa proposta universal, desde os primeiros trabalhos minimalistas (início dos anos 90), se
estende à concordância através da proposta dos traços-φ. Esses traços serão mencionados em nossa proposta
apresentada na seção 3.2. Por conta de espaço e escopo, não estenderemos nossa discussão sobre tais traços de
concordância.

4
seria 'radicalmente abstrato' no sentido de ser um fenômeno da sintaxe estreita não
necessariamente expresso em PF.9

Associando, então, tal sugestão com o Princípio da Uniformidade, Sigurðsson afirma ser PF
"arbitrária num patamar mais elevado do que habitualmente assumido, não somente inter
mas mesmo intra-lingüísticamente". 10 Continuaremos essa discussão na seção 2.2.
Sigurðsson define Caso abstrato como uma relação entre um DP e seu contexto
sintático, podendo ou não vir a ser semanticamente realizado. Dessa forma o autor explica a
realização de casos morfológicos em posições estruturais diferentes das que seriam
esperadas.
Assim sendo, línguas que não possuem caso morfologicamente marcado teriam o
mesmo conjunto de Casos que uma língua que o possui. Pode-se predizer dessa afirmação
que caso morfológico (e por que não dizer morfologia distintiva em geral!) faz mais
"diferença" do que "sentido". Em outras palavras, o que faz sentido nas línguas está em LF
(ou no componente semântico), e, sendo o caso morfológico algo presente em PF, ele e toda
a gama de elementos presentes na componente fonológica, fazem apenas distinções. Nas
palavras de Sigurðsson (2003:264), "as distinções assim feitas tipicamente referenciam a ou
refletem o sentido, mas também há uma tendência geral de que tais distinções se tornem
opacas e arbitrárias ao passar do tempo".11

2.2 Caso abstrato, sintaxe e morfologia: o Dativo

Observemos a posição de Chomsky a respeito das diferentes classificações de Caso


(CHOMSKY, 2002: 113):

[...] as far as I can determine, there was never any distinction between what we now
call Structural and Inherent Case; […] apparently there is no clear recognition of the
distinction. In Jakobson's 'Kasuslehe', he crucially doesn’t make any distinction; his
intent is to show that every feature has all the 'right' properties (as in the standard
structural approach), so that each Case feature must have semantic properties. So,
Ablative has a semantic property, etc. Then he tries to show that also Nominative and
Accusative have real semantic properties. But, well, they don’t. There's a split between
the cases that have semantic properties, like say, Dative, mostly, and the ones that
don't, like Nominative and Accusative (or Ergative and Absolutive). […] So, the
inherent Cases, the ones which are semantically associated are really not an
imperfection: they are marking a semantic relation the interpreter has to know about
(like plurality on nouns). On the other hand, why do we have Nominative and
Accusative (or Ergative and Absolutive), what are they doing? They are not interpreted:
nouns are interpreted exactly the same way whether they are Nominative and
Accusative, and that is like inflectional features on adjectives or verbs: it looks as

9
Tradução nossa do original: "one may conceive of abstract case as a universal feature or phenomenon… It
forces us to conceive of morphological case as a PF exponent, whereas abstract case is ' radically abstract' in
the sense that it is a narrow syntax phenomenon that is not necessarily expressed at PF." (Sigurðsson,
2003:225)
10
Do original: “[PF] is arbitrary to a much higher degree than usually assumed, not only crosslinguistically,
but even language internally.” (Sigurðsson, 2003:225)
11
“The distinctions so made tipically relate to or reflect sense, but there is also a general tendency that such
distinctions become opaque and arbitrary over time (…).” (Sigurðsson, 2003:264)

5
though they shouldn't be there. […] they are there as perhaps an optimal method of
implementing something else that must be there, namely dislocation. 12

De acordo com a visão universalista da linguagem de Chomsky (cf. CHOMSKY,


2000, 2001), devemos tratar Caso como um universal. Isso quer dizer que todo o conjunto
universal de Casos abstratos está presente em toda e qualquer língua natural. Entretanto,
algumas línguas, como o Chinês, por exemplo, não expressam, morfológica ou
lexicalmente, nenhum traço de um sistema Casual interno. Por outro lado, em algumas
línguas, um único Caso abstrato pode ser expresso de maneiras bem diferentes
morfologicamente. Vejamos, em (6), um exemplo clássico: o Dativo Islandês13.

(8)
a. Sujeito Dativo
Ex.: Henni líkaði þessi hugmynd.
Ela(Dat) gostou dessa idéia(Nom)

b. Objeto indireto Dativo 14


Ex.: Hún gaf mér bókina.
Ela deu me(dat) livro.o(Ac)
"Ela me deu o livro"

c. Objeto direto Dativo


Ex.: Við hjálpuðum henni.
Nós ajudamos ela(Dat)
"Nós a ajudamos"

d. Benefactivos livres Dativos


Ex.: Ég lagaði mér kaffi.
Eu fiz me(Dat) café
"Eu me fiz um café"

12
Grifo nosso.
13
Exemplos extraídos de Sigurðsson (2003:231-3).
14
O caso atribuído ao objeto indireto em Islandês é o Dativo, o mesmo do chamado objeto preposicionado. A
diferença feita entre esses dois complementos é semântica e sutil: geralmente objetos indiretos em Islandês
têm função Benefactiva, enquanto objetos preposicionados desempenham o papel de Alvo. No PB, uma
diferenciação semântica desse tipo é normalmente feita para explicar a distinção entre os pronomes objeto em
(i) e (ii):

i) Ele me mandou o livro.


ii) Ele mandou o livro para mim.

Entretanto, a marcação Casual nos exemplos acima é a mesma: tanto me em (i) quanto mim em (ii) refletem o
Caso Dativo. Como falantes nativos do PB, não conseguimos identificar funções semânticas diferentes entre
as duas realizações pronominais. A diferença entre Caso Oblíquo e Dativo, a nosso ver, é um falso problema.
Na verdade, como poderá ser visto mais adiante no quadro pronominal proposto por Galves, a diferença
estabelecida pela autora se encontra na tonicidade do DP pronominal. Não vemos, portanto, distinção
funcional entre Oblíquo e Dativo para essa discussão.

6
e. Dativos preposicionados
Ex.: Hún fór að húsinu.
Ela foi na direção de casa.a(Dat)
"Ela foi na direção da casa"

f. Objetos de adjetivos Dativos


Ex.: Hann er líkur henni.
Ele é parecido ela(Dat)
"Ele é parecido com ela"

Esses exemplos demonstram que a forma do Dativo em Islandês reflete muitos outros
Casos abstratos. Para muitas línguas, alguns dos argumentos dos exemplos acima também
refletiriam morfologicamente (pelo menos em seu sistema pronominal) exatamente o Caso
Dativo. Mas, vejamos o contraste em (8) e (9), entre o Islandês e o PB:
(8)
a. Hún hljóp í bæinn.
"Ela correu em direção a centro da cidade.o(Ac)"
b. Ela correu para o centro da cidade

(9)
a. Hún hljóp (um)15 í bænum.
"Ela ocupou-se em centro da cidade.o(Dat)"

b. Ela andou ocupada no centro da cidade

Em (8a), o complemento preposicionado em Islandês é marcado morfologicamente


com Acusativo (bæinn), enquanto essa função no PB é efetuada pelo Caso Oblíquo
atribuído pela preposição (para) em (8b). Enquanto em (9a) o objeto (bænum) é marcado
com o Dativo no Islandês, no PB, assume o papel de Locativo da Preposição (em) (9b)16.
Essa variação não se dá apenas em línguas de caso morfológico expresso, como o
Islandês, nem só inter-lingüisticamente, comparando-se línguas casualmente "ricas" e
"pobres". Ela pode ser observada em línguas sem marcação morfológica de caso, como o
PB. Em alguns dialetos do PB, o Acusativo e o Dativo não aparecem distintos quando
realizados:

15
Sigurðsson traduz hljóp (um) por ran (around), no Inglês.
16
Assumiremos que o PP Locativo é licenciado por um Caso próprio, o Caso Locativo, atribuído pela
preposição.

7
(10)

a. A menina viu ele(Ac).17


a'. A menina o(Ac) viu.
a''. A menina entregou o pacote pra/a ele(Dat).18

b. O guarda parou nós(Ac).


b'. O guarda nos(Ac) parou.

c. O vendedor demonstrou o produto para/a nós(Dat).


c'. O vendedor nos(Ac) demonstrou o produto.

Os exemplos de (10) mostram uma certa arbitrariedade quanto à realização das formas
pronominais em relação à sua marcação Casual. Em (10a-a''), ele aparece na posição de DP
Acusativo (o, em (a')), e como complemento da preposição em (a''). Em (10b,b'), temos nós
também assumindo a posição de um DP Acusativo (nos, em (b')). Já em (10c,c'), os DPs
pronominais aparecem em suas posições "tradicionais": Oblíquo antecedido de preposição
(nós) e Acusativo como complemento não preposicionado (nos). Essa discriminação dos
exemplos de (10c,c') é apenas superficial. Temos, na verdade, um mesmo Caso atribuído
em ambas estruturas (o que parece óbvio!): a leitura de (10c,c') é unicamente Dativa, como
podemos verificar comparando (10) com uma estrutura similar do Inglês, em (11), onde us
recebe Caso Dativo tanto em (11a), correspondente a forma tradicional desse Caso no PB
(antecedida de preposição), e também em (11a'), chamada de double object constructions
(construções de duplo objeto), onde há a subida do objeto indireto somada à perda da
preposição:

(11) a. The salesman showed the product to us.


a'.The salesman showed us the product.

Os exemplos de (10) sugerem haver uma tendência à uniformidade na realização dos


pronomes pessoais nos dialetos onde aparece tal fenômeno, o que também podemos
verificar no quadro pronominal do PB proposto por Galves (2001)19:

17
As formas ele/ela e nós nos exemplos são inicialmente relacionadas ao Caso Nominativo, sendo estas
formas as mesmas do Caso Oblíquo no PB.
18
No PB há uma clara tendência ao uso de para no lugar de a que não afeta nossas observações acerca do
fenômeno do Caso. Portanto, não discutiremos aqui a variação no uso das preposições para e a no PB.
19
Cf. nota 14.

8
(12)

NOMINATIVO ACUSATIVO DATIVO OBLÍQUO

SINGULAR 1.eu me me mim


2. *tu/você te/você/lhe lhe/a você ti/você
3.ele/ela ele(ela)/o(a) a ele(ela) ele/ela

PLURAL 1.nós/a gente nos/a gente nos/a gente nós/a gente


2.vocês vocês a vocês vocês
3.eles/elas eles(elas)/os(as) a eles(elas) eles/elas
*Uso dialetal20

Com base nos exemplos em (10), sugerimos uma expansão do quadro de Galves, incluindo
a forma nós como Acusativa. Dessa maneira, podemos notar que a variação superficial
refletida nos pronomes do PB não expressa verdadeiramente uma diferença na atribuição de
Caso, uma vez que podemos ter, como pode ser visto em negrito no quadro acima, várias
formas pronominais distintas para expressar um mesmo Caso (e vice-versa). Notemos,
entretanto, que, na proposta do quadro acima, o pronome de primeira pessoa do singular
mostra formas distintas para os diferentes Casos. Porém, os mesmos dialetos de onde os
exemplos de (10) foram extraídos oferecem as seguintes realizações com a primeira pessoa
do singular:

(13)
a. Ela falou mal de mim.(Dat)
b. Ela falou mal deu.(Dat)
c. Ela me falou mal.(Dat)
(14)
a. Meu pai bateu em mim.(Dat)
b. Meu pai bateu neu.(Dat)
c. Meu pai me bateu. (Dat)

(15)
a. Ela falou para mim.(Dat)
b. Ela falou pra eu.(Dat)
c. Ela me falou. (Dat)

Nos três exemplos, temos três frases correspondentes semântica e Casualmente, mas com
diferentes formas pronominais realizadas: em (a) aparece a forma pronominal que
tradicionalmente representa o Caso Dativo (Oblíquo), em (b), vemos a forma que
tradicionalmente representa o Nominativo, e (c), a forma que tradicionalmente representa o

20
Entretanto, o uso dialetal do pronome tu, que Galves refere, a nosso ver, se estende a ti, sendo este também
um pronome restrito a certas estruturas de alguns dialetos do Português do Brasil.

9
Acusativo21. Da mesma forma que em (10), a aparente variação é apenas superficial, Eu,
mim e me são uma representação de um mesmo Caso profundo (deep case): o Dativo. Os
exemplos em (13), (14) e (15) mostram uma mesma representação sintática, ou melhor
dizendo, uma mesma distribuição argumental, diferindo apenas na realização do DP
pronominal complemento: em (a), o pronome mim ocupa essa posição, em (b) é eu que é
realizado nessa posição, já em (c), me cumpre essa função. Essas diferenças na primeira
pessoa pronominal do singular, entretanto, não são reflexo de alguma diferença estrutural
(na sintaxe estreita) ou de traços-φ.
Para tentar entender por que essa variação morfológica não parece "importar"
sintaticamente, vamos discutir a composição interna desses pronomes no que diz respeito
ao que é "visível" para a sintaxe: seus traços. Chomsky (2000) propõe a existência de dois
tipos de traços formais: intrínsecos e opcionais. Os intrínsecos são listados nas entradas
lexicais, não predizíveis; os traços opcionais são adicionados arbitrariamente de acordo
com ocorrências particulares de itens lexicais e como sendo uma função da categoria de
tais itens. Podemos dispor os traços intrínsecos e opcionais dos pronomes ele e eu , por
exemplo, da seguinte forma:

(16)

Traços-φ ELE EU
[N]22 [3pes] [sing]
Intrinseco [N] [1pes] [sing]
[masc]
Opcional [Nom] [Dat] [Nom]

Como podemos concluir da observação de (16)23 em comparação com os exemplos de (10)


e (13-15), outros traços Casuais poderiam ser incluídos no rol dos opcionais, já que estes
são um requerimento da categoria em que se encontra o DP e são predizíveis na estrutura.
Os demais traços Casuais ([Ac], para ELE e [Ac] e [Dat] para EU) seriam inseridos no
feixe de traços de ele e eu. Desta forma, (16) poderia ser atualizado em (17) abaixo:

21
(13a), (14a) e (15a) são exemplos do dialeto padrão do PB. (13b), (14b), (15b) e (13c), (14c), (15c), como
os exemplos em (8), são exemplos de alguns dialetos não-padrão do PB, como os falados em algumas regiões
de Alagoas.
22
Optaremos por denominar o traço EPP de traço [N] por questões práticas, visto que é um traço
intrinsecamente nominal. Não discutíramos neste trabalho a possibilidade de um pronome possuir um traço D
intrínseco.
23
Assumo para essa análise que [singular] é um traço intrínseco ao pronome pessoal, visto que, dentro do
quadro pronominal do PB, as distinções entre singular e plural não se dão apenas morfologicamente, dentro
do conceito de morfologia adotado aqui (cf. seção 2.1).

10
(17)

Traços-φ ELE EU
[N] [3pes] [sing]
Intrinseco [N] [1pes] [sing]
[masc]
Opcional [Nom] [Ac] [Dat] [Nom] [Ac] [Dat]

Questionamos, portanto, se os traços que aparecem como opcionais no sistema


pronominal pessoal do PB são de fato necessários para a convergência da sentença nas
interfaces. Em outras palavras, os traços [Nom], [Ac] e [Dat] que, como vimos, não são
refletidos de forma unívoca no sistema pronominal do PB, são determinantes na derivação?
Até aqui, nossa resposta tende para o NÃO. O traço Casual teria como única forma
"visível" o sistema pronominal em línguas de marcação casual "pobre". Entretanto, segundo
vimos anteriormente, nem mesmo em línguas de marcação casual morfológica "forte" esse
fenômeno acontece uniformemente.
Parece-nos, a essa altura, que, na derivação, o que é determinante em termos de
checagem são os traços de concordância, devido ao fato de que tais traços invariavelmente
motivam movimento na derivação. As relações entre itens lexicais e funcionais se dão por
um processo de concordância (checagem de traços fortes, nos termos de Chomsky (2000)).
Isso significa que tal mecanismo (a concordância) seria suficiente para desencadear
movimento independentemente de outros traços (Caso, por exemplo). Como podemos ver
em (17), os traços responsáveis pela concordância (N e φ) são intrínsecos, ou seja, são
definidos independentemente de operações sintáticas e não dependem de uma ou outra
posição estrutural para tal definição24 25. Entretanto, essa proposta baseada na concordância
não explicaria por si só a variação pronominal vista nos exemplos acima. Para resolver esse
pequeno entrave, retomemos a proposta de Sigurðsson exposta na seção 2.1. O autor atribui
marcação morfológica (de qualquer sorte) à componente fonológica, "livrando" Caso
abstrato de qualquer responsabilidade nessa interface. Isso seria no mínimo lógico uma vez
que Caso abstrato seria um mecanismo intrínseco à sintaxe e não legível nas interfaces.
Assim, haveria variação apenas em PF devido a questões de posição estrutural quando a
derivação alcança a interface com o sistema articulatório-perceptual. Isso não significa que
essa leitura seja uniforme: lembremos que PF, segundo Sigurðsson, é altamente arbitrária e,
devido a isso, podemos ter, por exemplo, diferentes formas pronominais realizadas em uma
mesma posição "Casual". Isso pode explicar as diferenças nas formas pronominais, antes
devidas à atribuição de Caso: as relações entre o DP e seu alvo, no processo de checagem
de traços, seriam motivadas por traços de concordância e não por um traço de Caso não
interpretável.
Portanto, não seria exagero afirmar que, pelo menos para a morfologia, Caso não
tem alcance suficiente, ou seja, o que conhecemos por caso morfológico também é posto
em xeque. E na derivação propriamente dita? Qual seria a função do Caso, uma vez que sua
presença como traço formal é "opcional" nos termos de Chomsky? Daremos atenção a
essas questões na seção seguinte, levando em conta estruturas mais complexas para a

24
Essa proposta se estende a C (ou Wh) já este é um traço intrínseco nos termos de Chomsky (2000).
25
Não seria esse um mecanismo do lingüista e não da língua?

11
atribuição (ou checagem, nos termos das propostas adotadas aqui) Casual: orações
infinitivas preposicionadas encaixadas no PB.

3. Caso e a distribuição do DP: as orações infinitivas encaixadas no PB

3.1 Orações infinitivas e posição sujeito: algumas considerações sobre concordância

Um fenômeno que intriga os investigadores lingüísticos é o caso do sujeito de


orações encaixadas infinitivas em PB. Sabemos que na maioria das línguas, orações
encaixadas não admitem um sujeito realizado. Outras aceitam, mas com certas restrições
(Exceptional Case Marking - ECM, por exemplo). Já o Português Brasileiro traz duas
possibilidades bem peculiares. Podemos ter orações infinitivas flexionadas ou não
flexionadas, com sujeito realizado ou não, como pode ser visto em (19).

(19)
a. Danniel e Dorothyi acreditavam i ter vencido o jogo.

b. Danniel e Dorothy acreditavam i terem vencido o jogo.

c. *Danniel e Dorothyi acreditavam elesi ter vencido o jogo.

d. Danniel e Dorothyi acreditavam elesi terem vencido o jogo.

e. Danniel e Dorothyi compraram o livro para i estudar para a prova.

f. Danniel e Dorothy compraram o livro para i estudarem para a prova.

g. ?Danniel e Dorothyi compraram o livro para elesi estudar para a prova.

h. Danniel e Dorothyi compraram o livro para elesi estudarem para a prova.

i. ?Danniel e Dorothyi compraram o livro para elesj estudar para a prova.

j. Danniel e Dorothyi compraram o livro para elesj estudarem para a prova.

Em (19a-d), a oração infinitiva encaixada é controlada pelo sujeito da oração matriz


(Danniel e Dorothy), podendo vir ou não flexionada26 27. Esse tipo de construção não

26
Não discutiremos a noção de controle neste trabalho. Para uma visão mais aprofundada da Teoria do
Controle em GB e em PM, cf. Chomsky (1981) e Hornstein (1999).
27
Há verbos que não admitem a flexão do infinitivo em estruturas de controle (ou pelo menos há
estranhamento quando isso ocorre), como em (i) abaixo:

(i) Danniel e Dorothy esperavam saber/*saberem a resposta.

Entretanto, ao inserirmos um elemento (um advérbio, por exemplo) entre a oração matriz e a oração sob
controle, é possível uma leitura com o infinitivo flexionado, como em (ii):

12
admite um DP realizado na posição sujeito quando o verbo infinitivo não se flexiona (19c).
Mas, com o infinitivo flexionado, a inserção de um pronome co-indexado28 ao sujeito da
oração matriz é gramatical (19d). Em (19e-h), a oração infinitiva encaixada é precedida
pela preposição para e a interpretação da posição sujeito não é arbitrária. O verbo infinitivo
encaixado nesse tipo de construção pode vir flexionado ou não, independentemente de
haver um DP pronominal realizado na posição sujeito. Entretanto, em (19g) pode haver um
ligeiro estranhamento para alguns falantes do PB, pelo mesmo motivo que (19c) se torna
agramatical. Mesmo que o pronome realizado na posição sujeito do infinitivo não receba a
mesma leitura que o sujeito da oração matriz (19i,j), sua presença parece também exigir
flexão do infinitivo.
Assumiremos com Raposo (1987) haver uma relação de concordância entre o DP
realizado na posição de sujeito e a flexão do infinitivo. De acordo com o autor, orações
infinitivas que apresentam marcas morfológicas de concordância possuem um [+Agr] que
desencadeia a flexão e, conseqüentemente, a concordância. Essa proposta, inicialmente
feita para dar conta das orações encaixadas infinitivas do Português Europeu (que
aparentemente não apresenta realizações como as de (19g,i)), não leva em conta orações
com um outro possível atribuidor Casual (nos termos de GB, no qual a proposta foi
formulada). De acordo com essa proposta, as sentenças em (19i) e em (20c, abaixo - Eu
comprei um livro pra mim ler), seriam impossíveis, pois o Caso atribuído seria o Oblíquo
da preposição: (19i) seria agramatical pois o infinitivo não teria um [Agr] marcado
positivamente (não havendo flexão), incompatível com um pronome de terceira pessoa do
plural; e em (20c), o pronome apresenta a forma oblíqua, também incompatível com um
[+Agr]. Mas não o são, pelo menos em PB. Assim, não seria um traço do verbo (ou Infl,
como propõe o autor), mas algo no DP, que desencadearia a marca de flexão do infinitivo.
Não estamos afirmando que o DP é responsável pela concordância em si, mas,
morfofonologicamente (e até semanticamente, pois é possível termos eles vai mas não ele
vão), é viável pensar que os traços presentes no DP são mais fortes do que traços ausentes
no verbo! Portanto, em sentenças com encaixamento de uma oração infinitiva em que sua
posição sujeito não se encontra preenchida, a flexão do infinitivo pode ou não ocorrer, visto
que seriam os traços do DP que engatilhariam a marca visível de flexão do infinitivo.29
Porém, diferentemente de Raposo, sugerimos que a motivação para a realização de uma
flexão infinitiva se dê através da presença dos traços-φ do DP, e não o contrário, isto é, há
uma relação de concordância entre o verbo infinitivo e seu sujeito, mas não é Infl infinitivo
que engatilharia essa relação, mas traços presentes no DP, independentemente de realização
fonológica.

(ii) Danniel e Dorothy esperavam cegamente saber/saberem a resposta.

Aparentemente, essa possibilidade não se aplica quando a posição sujeito do infinitivo é preenchida:

(iii) *Danniel e Dorothyi esperavam cegamente elesi saber/saberem a resposta.


28
Usaremos indexação apenas para visualizarmos a referência do pronome. Não trataremos aqui de seu custo
teórico.
29
Algumas propostas de análise do infinitivo encaixado levam em conta a força de T nesse tipo de verbo
(MADEIRA, 1995). Para uma discussão sobre T(empo) infinitivo, cf. Wurmbrand (2006) e referências ali
citadas.

13
3.2 Distribuição dos DPs e Caso em orações encaixadas infinitivas

Estamos assumindo que a presença do DP pronominal (pelo menos em orações


encaixadas) desencadeia marca de flexão do verbo infinitivo em orações encaixadas. Mas,
como se dá esse processo? E quais as conseqüências de se assumir essa perspectiva para a
Teoria do Caso? Para tentarmos responder essas perguntas, analisaremos um fenômeno
bem freqüente no Português Brasileiro: a variação entre eu e mim na posição sujeito de
orações encaixadas infinitivas. Observemos os exemplos em (20):

(20)
a. Eu comprei um livro pra ler.
b. Eu comprei um livro pra eu ler.
c. Eu comprei um livro pra mim ler.

As orações em (20) têm a mesma leitura, independente da presença/ausência do


sujeito do infinitivo. Dessa forma, apesar de não haver consenso quanto a isso na literatura
lingüística (cf. BOTELHO-PEREIRA & RONCARATTI, 1993; SALLES, 2000; PIRES,
2001), poderíamos supor tratar-se de uma mesma oração apenas com formas distintas de
realização do DP pronominal mais encaixado.
Carvalho (2005) sugere haver, nesse tipo de sentença, uma reanálise da estrutura
encaixada. A proposta de reanálise para esse fenômeno não é nova (cf. LIGHTFOOT,
1991), mas, inicialmente aplicada de forma um tanto arbitrária ao PB30. A proposta de
reanálise de Carvalho (op.cit) se baseia no fato de haver, semanticamente, uma estrutura
duplicada onde, foneticamente, haveria apenas uma única estrutura: um PP seria um
potencial complemento preposicionado do verbo matriz fundido a um adjunto também
encabeçado pelo mesmo tipo de preposição. Através de um processo fonológico apenas um
dos dois PPs seria realizado. Para isso, assume-se que, durante a derivação, todos os
elementos são reconhecidos apenas por traços formais, legíveis em LF, cabendo à PF sua
composição fonética (ou gestual, no caso de línguas de sinais).
Assumindo que a proposta de Carvalho esteja certa, podemos supor que na sintaxe,
os dois PPs seriam derivados da mesma forma, uma vez que possuiriam os mesmos traços
formais (daí ser possível tratarmos de duplicação em termos mais minimalistas). 31
Dessa forma, se assumirmos que se trata de um mesmo PP em termos de traços
durante toda a derivação, deveríamos ter, quando realizados, uma mesma forma para os
DPs mais encaixados, que, nos casos de (20), seria a forma oblíqua do pronome. Não é o
que acontece! Deveríamos ter pelo menos dois elementos licenciadores de Caso nessa
estrutura, um para o Caso Oblíquo (P) e outro para o Caso Nominativo (T). Entretanto,
Carvalho assume não haver T ativo (leia-se finito) num verbo infinitivo (o que parece
óbvio!), cabendo apenas à preposição ter uma relação Causal com o DP.
Porém, voltemos à proposta de Sigurðsson discutida acima, onde o autor sugere
uma PF responsável pela realização de caso, cabendo à sintaxe apenas a leitura de um Caso

30
Sobre uma proposta de reanálise para orações encaixadas encabeçadas pela preposição para, em PB, cf.
Salles (2000).
31
Alguns detalhes serão postos de lado nessa discussão por conta de tempo e espaço no trabalho. Alguns
desses detalhes são essenciais para a elucidação de questões mais teóricas. Trataremos desses problemas em
trabalhos futuros.

14
abstrato. Logo, sendo PF arbitrária quanto à realização dos casos dos DPs, a pré-definição
de Caso na sintaxe seria desnecessária.
Portanto, assumimos não haver uma pré-determinação de Caso durante a derivação,
cabendo apenas à interface em PF sua definição morfológica. Durante a derivação, o que
parece definir a posição dos DP são seus traços intrínsecos (N e φ), como dito
anteriormente, e Caso, sem especificação, seria um "reforço" estrutural para situações em
que apenas as relações de concordância não forem suficientes. A definição da forma
morfológica do DP, antes determinada por Caso na sintaxe, agora é algo definido apenas
em PF e determinada pela posição dos elementos da sentença no fim da derivação. Ou seja,
se no fim da derivação o feixe de traços {N, 1ª pess, sing} estiver estabelecendo
concordância com T finito, por exemplo, este é pronunciado em sua forma "Nominativa" e
assim por diante. Assim, o traço de Caso seria determinante apenas nos casos em que a
concordância por si só não fosse suficiente (ou ausente!) para motivar a checagem de traços
e, conseqüentemente, convergir. 32
Voltemos então às sentenças de (20), repetidas aqui em (21):

(21)
a. Eu comprei um livro pra ler.
b. Eu comprei um livro pra eu ler.
c. Eu comprei um livro pra mim ler.

Para cada uma das estruturas de (21), teríamos uma mesma numeração (N) em
termos de traços, como podemos ver em (22)33:

(22)
N
N= { 1ª pess , comprei1, um1, livro1, para2, ler1 }
sing
3

Cada elemento da numeração deve esgotar seu índice (número de vezes que o elemento é
utilizado na derivação), ou seja, se o elemento possui um índice subscrito "2" ele deve
aparecer duas vezes na derivação. Isso não significa que deva ser realizado foneticamente
duas vezes também. Por esse motivo o processo de reanálise da duplicação do PP é possível
(CARVALHO, 2005). Entretanto o feixe de traços que define o pronome em (21) pode vir
ou não realizado nas duas orações, como pode ser visto em (23) abaixo:

(23) Comprei um livro pra ler.

onde (23) é interpretado como (24):

32
Não é possível estabelecer precedência na checagem de traços, mas podemos deduzir que o traço de Caso,
nesses termos, só seria checado após a checagem de traços mais relevantes.
33
A inserção apenas de traços na sintaxe é um mecanismo viável e pode ser aplicado a qualquer item lexical.
Aplicaremos este mecanismo apenas no DP pronominal por questões práticas, o que não impede que esse
exercício seja feito pelo leitor.

15
N N N
(24) 1ª pess comprei um livro para 1ª pess para 1ª pess ler.
sing sing sing

e, desta forma, temos uma redução da estrutura no momento em que esta chega em PF,
sendo pronunciado o resultado de (23). Isso só é possível devido à autonomia de PF
defendida por Sigurðsson (2003).
Mas, ainda temos as possibilidades em (20a-c), onde o DP pronominal é
realizado pelo menos em uma posição. Primeiramente, temos de levar em conta o fato de
que durante a derivação não há diferença quanto aos traços formais do pronome, já que a
única distinção feita entre os diferentes pronomes em (20) era estabelecida pelo traço
Casual. Esta distinção, como vimos anteriormente, se dá apenas em PF, já que não há uma
relação um-para-um entre Caso abstrato e sua realização morfofonológica. Assim, a
variação visível em (20) não é derivada da sintaxe, mas de fatores relevantes apenas à PF e
que não fazem interface com o módulo sintático. Podemos estipular uma relação entre PF e
algum outro modulo exterior à sintaxe que motive tal alternância, tanto da
presença/ausência, quanto das diferentes realizações do pronome. Porém, essa é uma
questão que não cabe à sintaxe responder.

4. Conclusão
Neste trabalho procuramos desvincular Caso abstrato e sua pretensa realização
morfológica. Vimos que, mesmo em línguas de marca morfológica de caso, como o
Islandês, essa relação entre morfologia e sintaxe é apenas aparente, tomando como
argumento o fato de, nessa língua, um único Caso (Dativo) poder ser realizado
morfologicamente de diversas formas (SIGURÐSSON, 2003). Vimos que essa proposta
pode ser aplicada em línguas de marcação casual "pobre" , como o Português Brasileiro,
onde verificamos o mesmo fenômeno em seu quadro pronominal, tradicionalmente tido
como um resquício da marcação casual morfológica. Definimos Caso, portanto, como um
traço formal vazio de informação semântica, não vindo definido para a derivação e sendo
apenas possível estabelecer sua marcação em PF. Dessa forma, Caso seria um instrumento
de última instância no processo de derivação sintática, cabendo à concordância (checagem
de traço N e φ) estabelecer/motivar movimento (ou outro mecanismo qualquer) na sintaxe
estreita. Não é possível, portanto, determinarmos motivos para a variação eu/mim/ø em
termos puramente sintáticos. Estipulamos motivos externos às interfaces com a sintaxe
como motivadores desse fenômeno.
Conscientemente deixamos de lado importantes questões em aberto. Isso se deu
devido à complexidade do tema. Essas questões não foram descartadas mas
"procrastinadas" e serão retomadas em trabalhos posteriores.

16
Referências

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BRADNER, E. and ZINSMEINSTER, H. (org) New Perspective on Case Theory. Chicago:
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CHOMSKY, Noam.. Derivation by phase. In: Ken Hale: A life in language.
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