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3.

A literatura de João Gilberto Noll

Nascido no Rio Grande do Sul, João Gilberto Noll é um dos maiores prosadores que
surgiram no contexto da literatura produzida no Brasil a partir dos anos 1980. O autor teve sua
estreia na cena literária nacional no início da década, com a coletânea de contos O cego e a
dançarina que lhe rendeu o Prêmio Jabuti de Autor Revelação em 1981. Essa nova ficção, como
afirma Schollhammer (2009), é marcada por uma “interação entre a literatura e outros meios de
comunicação” (p. 31), e que Noll é “o melhor exemplo dessa nova expressão” (Ibid.), pois
através do universo criado pelo autor, o leitor é levado a um mosaico diversificado de sensações
que fogem da maneira usual de leitura, é um universo regrado por uma linguagem sofisticada e
intimista, que rememora algumas marcas usadas por escritores como Clarice Lispector e Lúcio
Cardoso.
O contexto em que Noll emerge também pode ser considerado como a segunda fase
de uma nova literatura produzida no Brasil. A primeira, surgiu concomitantemente ao Golpe
Militar de 1964, e se debruçava sobre a realidade social e política, com atenção sobretudo para
a retratação quase documental da realidade e da exploração da violência. Quanto à literatura da
década de 1980, patenteada por Schollhammer como pós-moderna (2009, p. 28), é possível
perceber que esta nasce de um deslocamento da vertente anterior para aspectos
experimentalistas e metaficcionais, além de dar espaço para discussões sobre etnia e gênero. A
partir desse lugar-comum observa-se um conjunto de autores como Caio Fernando Abreu, João
Silvério Trevisan, e com efeito, João Gilberto Noll que se preocuparam em abordar o
homoerotismo em suas respectivas obras.
Mesmo que o seguinte trabalho se debruce sobre o homoerotismo em Noll, a
característica que talvez melhor defina a literatura produzida por ele seria um descentramento,
aqui em oposição à noção de “centro”, a qual influencia a forma de pensar das pessoas a partir
de uma visão binária. Como aponta Hall (2005), o sujeito no contexto pós-moderno é
fragmentado, desde que “as velhas identidades, que por tanto tempo, estabilizaram o mundo
social, estão em declínio” (p. 7), ao tomar essa perspectiva em consideração, é possível observar
a vulnerabilidade que está o homem pós-moderno, pois todas as bases que o mantinham, de
repente sumiram dando espaço à crise. É exatamente nessa crise que nasce o questionamento
de si próprio, numa tentativa de restabelecer a personalidade que este tivera anteriormente, só
que agora através de uma perspectiva despedaçada.
Como argumenta Schollhammer, na obra de João Gilberto Noll, está presente um
“sentimento de perda de sentido e de referência” (2009, p. 31), que decorre exatamente dos
descentramentos citados anteriormente e que marcaram a literatura desse período. Em sua
ficção, estão presentes narradores em uma constante condição de crise, que vagam pelos
espaços urbanos tentando se livrar de uma sensação de não-pertencimento à sociedade e
buscando, muitas vezes o contato com o outro, algum prazer, seja ou não de natureza sexual,
que alivie sua sensação de absoluta falta de sentido da existência. Essas características acabam
por conduzir o leitor a um labirinto complexo que tem como função expressar a incapacidade
do homem em entender seu papel no mundo contemporâneo.
Em adição a essas particularidades, Costa (2013) afirma que a literatura de Noll é
dotada de uma desconfiança com a linguagem, como se ela não fosse capaz de “dar conta de
reunir em discurso a experiência vivida” (p. 19), por isso, o trato com a linguagem nas obras
acaba se tornando um jogo labiríntico permeado de mudanças de foco, contrastes, saltos
temporais e fluxo de consciência. Além disso, a estrutura das obras também corrobora dessa
descrença. Ao tomarmos por exemplo, Berkeley em Bellagio e Acenos e afagos em que todos
os eventos estão descritos em um grande bloco, que se inicia na primeira sentença e só se
encerra na última, sem quebras de parágrafo ou divisões por capítulos.
Essa desconfiança se expande ao âmbito da identidade e retorna à problemática do
descentramento, pois, se pensarmos nos narradores nollianos chega-se à conclusão de que
praticamente todos são anônimos, podendo representar ninguém, ou ao mesmo tempo todas as
pessoas do mundo atual, estes são caracterizados por sua propensão à errância, ao anonimato e
a constante procura por um local que não existe, a sua utopia particular. Exatamente nesse
ponto, pode-se perceber a degradação em que as personagens de Noll estão inseridas, quase
como se não possuíssem “uma existência maciça para além da sua subjetividade, que é
totalmente estilhaçada” (COSTA, 2013, p. 20), o que confere um tom de esvaziamento desses
sujeitos.
Por fim, o que pode se observar na ficção do escritor gaúcho são “trajetórias
contingentes, em tempos e em espaços que se sobrepõem e se interpenetram com frequência,
inviabilizam qualquer forma de redenção ou de aprendizado” (SILVA, 2010, p. 1). Ou seja, é
uma incursão dentro de um simulacro que desafia os modos usuais de narrativa, que adentra em
uma geografia que tem como limites apenas a incerteza. Nessa vertente errante, tal qual o
mundo em que se encontra, Noll constrói uma radiografia das relações pós-modernas ao
contemplar temas como a incomunicabilidade humana, a solidão do homem moderno, o
existencialismo, as agruras do desejo e todo um discurso centrado no corpo e na linguagem dos
mesmos.
O autor faleceu em março de 2017, deixando como legado dezenove livros publicados,
entre romances, contos e crônicas. Recebeu o Prêmio Jabuti em cinco ocasiões (1981, 1994,
1997, 2004 e 2005), além de diversas honrarias, tais quais o Prêmio ABL de Ficção romance
teatro e conto e o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, entre outros.

4. O Homoerotismo em Berkeley em Bellagio

Após explicitar alguns dos processos formais da obra de João Gilberto Noll
anteriormente comentados, sigamos à análise de Berkeley em Bellagio (2002). A leitura do
romance feita neste trabalho se pautará em determinados episódios do romance em que foram
encontradas evidências de homoerotismo, ou seja, a relação pautada no amor ou desejo entre
pessoas do mesmo sexo, aqui especificamente, o masculino.
Ao analisar o enredo do romance, encontra-se uma narrativa relativamente comum. O
narrador-protagonista, um escritor brasileiro em seus sessenta anos é convidado para uma
residência de escritores na vila de Bellagio na Itália, enquanto é professor convidado da
Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Os eventos anteriores de sua vida, remontam à
cidade de Porto Alegre, quando sofrera uma queda inexplicável à porta de seu banheiro. Como
pode-se depreender este evento é tão decisivo na vida do escritor, que ele resolvera se abandonar
sua vida no Brasil. A história contará as vivências desse sujeito nesses ambientes, através de
suas experiências sejam sexuais ou não, a fim de alcançar seu desejo de viver, de amar e de se
redescobrir.
Quanto às relações da personagem, que denotam o homoerotismo, pode-se
primeiramente acentuar a sua relação com Léo, “o homem que costumava chamar de
namorado” (NOLL, 2003, p. 9). Pode-se perceber que os dois homens possuíam uma relação
conjugal, com respeito mútuo, e acima de tudo amor, pois ao descrever Léo, o narrador sempre
o descreve como um porto seguro para o personagem principal, pois mais do que um namorado
ele era “um parceiro cuja ardência ainda lhe vinham certos laivos” (Id., Ibid.). Os dois viviam
juntos em Porto Alegre, antes da misteriosa queda que levou o personagem principal a
abandonar a cidade. Inclusive foi Léo quem o ajudou a se levantar da queda, que a partir daí
levou o relacionamento de ambos ao fim, como pode ser comprovado na seguinte passagem:

De fato, aquela assistência de Léo ao seu corpo combalido era uma desdobrada
despedida. Depois, aqueles dois não se tocariam mais. De uma noite para outra, um
não decifraria mais os sinais pela pele do outro, seriam corpos distantes, memórias
mútuas cada vez mais nebulosas (Id., p. 13).
A partir daqui o personagem aceitaria o convite para ir para Berkeley como professor
convidado e deixaria este homem para trás a fim de se desvencilhar do passado que o atordoava.
Pode-se ver nesta primeira relação entre os dois, uma diferença acentuada em relação às demais
experiências homoeróticas pelas quais o personagem principal passa no romance.
Outro encontro homoerótico relevante é o que acontece com um mordomo, a quem o
narrador chama ragazzo, em um restaurante em Bellagio durante a estadia do escritor na Itália.
Como dito anteriormente, a relação que se constrói entre estes é diferente daquela com Léo,
sendo simplesmente lascívia. Contudo, se observarmos em um plano de evolução da
personagem dentro da narrativa, pode-se afirmar que esse episódio desencadeia algum sentido
na vida do personagem, até então perdido em suas viagens ao redor do mundo.

“[...] de joelhos olhou o ragazzo como se rezasse pelos mortos de seus amigos, por aqueles que
que não mais podiam aproveitar a vida desse jeito, sentindo sim o gosto áspero que ele não
experimentava havia tanto, gosto desse nobre líquido que corre em seus microfilamentos [...].
Era desse líquido com o inóspito gosto de rudimento da espécie que ele bebia ajoelhado, um
líquido que talvez esperasse aflito seu dia de criar um santo ou um monstro nas entranhas de
sua vítima, e que agora se desperdiçava pela garganta sedenta de outro macho” (p. 30-31)

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