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“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas,


fatos ou situações da vida terá sido mera coincidência.”

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"Escrever é a arte de relatar tudo aquilo que eu gostaria de ter lido."
O Autor

"A persistência é o caminho do êxito."


Charles Chaplin

"Nas situações perigosas, a ousadia vale muito."


Publílio Siro

“Há quem passe pelo bosque e só veja lenha para a fogueira.”


Liev Tolstói

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PITFALL

Norman Legrand dirigia seu Buick Somerset esperando encontrar a cidade mais
próxima para passar a noite, estava no seu demorado passeio em torno do estado
da Flórida e esperava dar uma arrancada em sua carreira de escritor com uma
obra que fosse difundida amplamente. Não era um escritor genial e por isto vez ou
outra visitava cidades, procurando aquecer suas ideias em lugares diferentes e
com pessoas diferentes. Gostava muito de passar em pontos turísticos.
Com seu rádio ligado, fumava um cigarro naquele começo de noite e aos poucos
podia perceber que a temperatura estava abaixando significativamente.
Ao seu lado podia enxergar imensidão de árvores que com o bater do vento
pareciam emanar singelas notas musicais despertando a atenção dos mais
distraídos. O receio aos poucos o atingia, principalmente pelo fato de há mais de
meia hora não ter visto um carro, um pedestre de beira de estrada ou uma cidade
qualquer.
Nunca passei em um lugar assim, é incrível como há tantas milhas só exista
florestas. Pensou.
Norman repetia a canção procurando seguir o ritmo com sincronia e esbanjava um
divertido chacoalhar de corpo.
"I want to know, have you ever seen the rain?
I want to know, have you ever seen the rain?
Coming down on a sunny day."
Nem a canção poderia afastar a inquietação de estar naquelas paragens, soltou
uma praga pela falta de vida naquele local, quando enfim avistou uma placa
enferrujada, escrita com letras tortas e desconexas que indicava:
Pitfall 2 milhas
A sorte está do meu lado, tenho um lugar para pernoitar e se for interessante, ficar
um bom tempo. Pensou.
Esboçou um sorriso ao supor que com certeza um analfabeto teria feito aquela
placa e ganho dez centavos talvez pelo serviço prestado, e ainda por cima, aquela
parca moedinha estaria de bom tamanho.
Certa vez vira um anúncio de uma loja que causaria incredulidade em qualquer um
a quem se relatasse, em três palavras havia dois erros de ortografia e isto, em um
país desenvolvido como os Estados Unidos parecia chacota, e pior, a loja era de
avenida, com aqueles mostruários de linha.
Norman tinha vinte e cinco anos de idade e há muito tempo deixara de morar com
os pais, que insistiam para que permanecesse com eles, mas a vontade de ser

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independente sempre acompanhara Norman. Nunca fora maltratado pelos pais e
não perdia oportunidades de visitá-los, afinal, morava na mesma cidade que eles e
sair para fazer uma visitinha não seria tão difícil como se podia julgar.
Norman sempre apreciara a literatura na escola e com a ajuda de seu bom e velho
professor Ted Spencer aprendera a gostar de escrever, e fazia disto sua renda
mensal. Escrevendo contos e às vezes matérias para jornais da região, faturava
uma boa quantia para sobreviver.
Conseguira comprar seu Buick com a ajuda do pai.
Tendo um lugar para passar a noite poderia refrescar um pouco a cabeça e no dia
seguinte começar a formular as ideias de sua nova obra literária enxuta e
completa, a primeira de todas.
Subitamente a música no rádio cessou e deu lugar a ruídos indecifráveis, naquele
meio de vastidão de árvores talvez não houvesse uma antena de cobertura.
Reclamou mudando a fisionomia do rosto de príncipe satisfeito para o filho
injustiçado:
― Mas que droga! Será possível que até isso vai acontecer?
Pegou um declive à esquerda e após acender os faróis Norman avistou a cidade
que deveria ser a Pitfall indicada na placa. Entrou na rua que parecia ser a
principal e avistou um hotel, percebeu que na verdade aquele lugar deveria se
tratar de um pequeno vilarejo.
Pitfall era composta por quatro ruas longas e envolta por imensidões de bosques
que pareciam não ter fim. Aos olhos de Norman suas casas eram de estrutura
rústica, construídas de madeiras amarronzadas escuras e com tetos estilo
irlandês, as madeiras das construções eram grossas e firmes à prova de
tempestades.
Isto se podia notar de longe, de fato nunca vira estruturas tão particulares como
aquelas e contemplar as casas que já se ofuscavam pelo negrume da noite e pela
iluminação precária da rua causava uma sensação de estar em um sonho distante
que traria uma surpresa no final, surpresa esta que o faria acordar suado e
procurando saber onde estava ou quem estava por perto.
Estacionou em frente ao hotel que possuía dois andares e oferecia duas vagas
para carros, uma já estava ocupada, a segunda vaga seria a de Norman.
Havia uma placa com a descrição "Ame ao SENHOR, ame ao próximo” pregada
atrás daquele carro, um Corvette Mako Shark II. Aquilo chamou a atenção de
Norman que deveria então encontrar algum hóspede religioso.
Retirou sua pequena mala e trancou a porta do Buick.
Por alguns segundos contemplou em volta, a rua principal tinha apenas um lado, o
outro lado era a entrada para o bosque, ficou imaginando como seria explorar

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aquela floresta numa noite fria em que a neblina impedisse quase toda a visão,
seria uma experiência única e marcante, como sempre vira em filmes.
Dirigiu-se à porta de entrada do hotel, leu uma placa que indicava o nome do
hotel:
"Bobster Inn"
Adentrou no saguão ao abrir a porta.
O ambiente estava pouco iluminado, somente com a claridade da lareira.
Dirigiu-se ao balcão de recepção. Ao lado da lareira havia um homem calvo e
provavelmente sexagenário que usava uma camisa xadrez, estava sentado em
uma cadeira de balanço lendo um jornal, talvez se tratasse do dono do hotel.
Ele parecia muito concentrado em sua leitura e não esboçou qualquer reação
quando Norman entrou, parecia até que não havia se dado conta da presença do
que chegava.
― Olá, o senhor é o dono do hotel? Eu gostaria de alugar um quarto. ― chamou
acenando.
O velho pareceu não ter ouvido a pergunta de Norman e continuou indiferente e
infiltrado na leitura, após algum tempo Norman achou que o homem não teria
escutado.
― Olá, o senhor é dono do hotel? Já disse que quero um quarto.
O velho permaneceu sem esboçar reação alguma, Norman achava aquilo muito
estranho, poderia o homem ser surdo e nem ter notado a sua presença até então?
Todavia, mesmo que ele fosse surdo, qualquer um notaria alguém entrar, pois a
cadeira estava de frente para a porta principal.
― O senhor não está me ouvindo? ― gritou Norman com indignação.
O velho desta vez virou a cabeça em direção a Norman com uma lentidão
marcante, mediu Norman de cima abaixo com a mesma lentidão de movimento da
cabeça e por fim falou:
― São quatro dólares por dia, quarto número cinco, o último do lado esquerdo do
corredor de cima, vou pegar a chave.
― Os quartos são numerados, será fácil encontrar. ― emendou.
O velho voltou para a sua leitura sem cumprir o que prometera a Norman.
Transcorreram-se quase trinta segundos naquele impasse até que Norman
explodiu:
― O senhor não vai pegar a chave? ― indagou Norman como se fosse um
professor lidando com um aluno que insistia em ser ignorante.
O velho enfim soltou o jornal e se levantou, começou a assobiar e com calma
andou em direção a uma porta nos fundos do saguão e sumiu de vista. Norman
aproveitou para contemplar a estrutura do saguão do hotel, tudo em torno, havia

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vários quadros com fotos de pessoas que pareciam datar de mais de cem anos
atrás, um deles deu um sobressalto em Norman, estava retratada uma mulher já
idosa usando uma espécie de xale para cobrir o cabelo, seu olho esquerdo estava
todo vermelho e era minúsculo, parecia até que havia acabado de tomar uma bela
surra de boxe, porém aquela anormalidade provavelmente fosse de nascença.
Havia uma lareira que emanava os últimos crepitares do fogo. Sem dúvida aquele
homem do hotel era muito estranho e descuidado ao permitir que o fogo da lareira
se extinguisse.
O velho apareceu de volta ao saguão com uma chave enorme na mão e se
encaminhou até Norman entregando-a. Norman estudou a chave e percebeu que
parecia uma constituinte daquelas coleções de modelos antigos usados em
castelos. A chave era gigante.
― Não precisa pagar a estadia deste fim de dia, a partir de amanhã eu abro a tua
conta, porém devo registrar o teu nome ao menos.
― Norman Legrand. Presumo ser o teu hóspede uma semana no mínimo.
Norman julgou o lugar interessante e muito misterioso.
O velho se encaminhou para o balcão e começou a anotar em uma espécie de
agenda, com milhares de folhas amareladas, tudo era muito estranho naquele
lugar, a agenda parecia aqueles velhos livros medievais em que magos anotavam
suas fórmulas mirabolantes.
A lareira se apagou e o hotel mergulhou na escuridão, ficando banhado apenas
pela luz do luar. Norman deu um sobressalto e olhou em direção à lareira.
― Vou reacender a lareira, fique calmo rapaz. Quando eu entro na leitura pode
desmoronar o mundo ao me redor que nada vejo.
― Eu percebi. Aliás, não há perigo se meu carro ficar estacionado na rua? Você
não tem algum lugar coberto para que eu possa guardar meu veículo?
O velho que estava agachado de frente para a lareira virou-se no rumo de Norman
repentinamente e com ar de seriedade e ameaçador falou:
― Não temos ladrões por aqui, garoto.
― Tudo bem, eu só pensei que...
― Pense nesse mundo e nada conseguirá fazer. ― o velho respondeu com ar
autoritário.
O dono do hotel voltou à lareira, pegou dois pedaços grossos de madeira que
estavam num suporte em cima da lareira e os jogou na brasa viva sem se
preocupar se iria lançar fagulhas ao saguão e queimar alguma coisa, sua cadeira
e jornal estavam pertos da lareira, e ele também.
Subitamente o velho se virou novamente para Norman e advertiu:
― Temos regras aqui, a partir de meia-noite a porta do hotel é trancada e se faz
estritamente proibido deixar o segundo andar, de preferência deixar o quarto.
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― Eu até entendo que a porta seja trancada em determinado horário se o senhor
é o único que toma conta daqui, mas qual é o problema se eu quiser sair do meu
quarto após esse horário?
O velho apontou o dedo para Norman e em tom de admoestação respondeu:
― Não pague para ver.
Norman ficou alguns momentos refletindo sobre aquela resposta do velho,
enquanto este abanava a brasa da lareira.
― O senhor mesmo disse que não existem ladrões aqui.
― O hotel é meu e faço o que bem entender, agora suba. ― disse o velho
secamente.
Norman se encaminhou para a escada que levava ao segundo andar e não deixou
de fitar com curiosidade e assombro o velho em seu trabalho de realimentar a
lareira e atear fogo.
Ela reacendeu.
Norman perdeu o velho de vista e novamente fitou o quadro da velha de olho
estranho, sentiu repulsa.
Caminhou pelo corredor que embora amplo, possuía apenas três portas de cada
lado, cinco quartos e outro cujo uma placa indicava ser um reservatório, sem
contar muitos quadros na parede.
Avistou o quarto número cinco, era o último do lado esquerdo que dava visão para
a rua principal, em frente a este quarto se situava o reservatório.
Colocou a chave na maçaneta de seu quarto e a girou, uma ranger alto se
propagou provando que a porta precisava de uma boa lubrificação.
Em outra ocasião reclamarei com aquele velho, mesmo que ele me reprima.
Pensou.
Aproveitou o cansaço físico e mental para entrar e fechar a porta atrás de si.
Seu primeiro ato foi jogar a mala em cima da cama de casal, teria espaço a
vontade para rolar, estudou todo o ambiente.
Tinha o mesmo aspecto do saguão e do corredor, móveis rústicos que
provavelmente tinham mais de cem anos, um closet, um armarinho com três
gavetas e um espelho, dois quadros pendurados na parede e um pequeno
banheiro contiguo, do lado esquerdo.
Encaminhou-se ao banheiro para ver os acessórios que este possuía. Um vaso
sanitário, uma pia e uma banheira. O banheiro era pequeno, mas em vista de que
cada quarto deveria ter o seu, estava tudo bem.
Um lampejo o fez voltar ao quarto, percebera só de relance, mas um daqueles
quadros chamara-lhe a atenção.

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Um dos quadros estava bem acima de sua cama e retratava uma fazenda como
paisagem que apresentava um cavalo branco e um homem montado, o homem
fazia um gesto de saudação com seu chapéu na mão e sorria para a câmera.
Norman imaginou que o fotógrafo daquele episódio deveria ser aqueles homens
calvos e de barba grande, semelhantes aos maníacos loucos de Londres, das
histórias de detetive que se passavam no século anterior. Pensamento que o fez
sorrir.
O outro quadro estava entre a porta do banheiro e o closet, foi o mesmo que lhe
chamara a atenção e ao estudar melhor o objeto seu coração foi a mil.
Era a foto de um bebê, mas aquele bebê parecia estar morto, seus olhos estavam
cerrados e pouco arroxeados, qualquer um poderia notar que não existia qualquer
resquício de energia vital naquele ser. Aquele lugar era tão estranho quanto
bizarro, cheirava a mofo.
Preciso conversar melhor com aquele velho, não consigo imaginar como um pai
de família decente poderia hospedar sua família aqui, este lugar dá arrepios,
pensou.
Norman chegara a Pitfall há cerca de cinco minutos e pudera perceber que se
aquele vilarejo fosse como aquele hotel e os habitantes como o velho dono, se
trataria de um lugar muito antiquado e incômodo de se morar, também pudera,
nem sequer sabia se a cidade estava em algum mapa, desde nascença morou na
Flórida e nunca ouvira falar de Pitfall, aquele lugar era muito estranho mesmo.
E a falta de carros circulando nos arredores da cidade?
Seria Pitfall conhecida por seus terrores e teria fama de ser uma cidade
inconveniente para se visitar ou habitar?
Por isto evitavam passar por perto?
Norman calculou se naquele hotel haveria mais algum hóspede e se lembrou do
carro estacionado ao lado do seu.
Vou procurar saber se existem outros hóspedes aqui, pensou.
Até então não deixara de fitar o quadro com aquela imagem bizarra, pegou um
cigarro e decidiu que deveria tomar um banho.
Depois procuraria saber se havia algum lugar para comer.
Deu as costas para o quadro e foi em direção à janela, acendeu um cigarro e
sentindo calafrios ao lembrar-se do quadro pendurado na parede atrás de si
contemplou a rua principal procurando por alguma alma viva.

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O LENHADOR

Pitfall era composta por quatro ruas, a principal e três paralelas. Na rua principal
estavam localizados os principais estabelecimentos da vila, como o hotel de Jim
Bobster, a taverna de Brad Fillman, o xerifado e um armazém que funcionava
como um pequeno mercado.
Pitfall tinha a fama de ser um vilarejo pacato entre os moradores e raramente
recebia turistas, visto que era muito pouco conhecida e a cidade mais próxima
ficava a algumas milhas, poucos carros circulavam nas estradas em torno de
Pitfall, vez ou outra aparecia algum forasteiro querendo abrigo por causa de
tempestade que se aproximava ou o carro que quebrava.
O lenhador Horace Singer morava na outra rua da extremidade da cidade que
como a rua principal, possuía apenas um lado e dava para a imensidão de árvores
da floresta.
Horace era o responsável pela lenha de toda a cidade e ganhava muito bem por
isto. Não era à toa que seu aspecto físico era de um brutamonte, com seu um
metro e noventa de altura e suas vastas massas musculares, era o homem mais
forte de Pitfall, fisicamente falando, não era casado nem namorava, morava
sozinho e gostava de ter sossego na vida, porém não deixava de frequentar a
taverna de Brad Fillman e tomar uma boa vodca por nada no mundo.
Certa vez cogitou que iria se inscrever para a pré-seleção de um concurso que
desafiava os participantes a elevar alguns pesos de outro mundo ou serem
submetidos a provas de resistência, mas para Horace ficara apenas na cogitação,
cada um que afirmava que ele iria se inscrever era desmentido por ele, porém o
prêmio não era de se jogar fora e nem todo dia estava em jogo.
Não dá para concorrer com adversários que tomam mundos e fundos de bombas
e anabolizantes, tal atitude é ladroagem. Isto ele afirmava a quem lhe perguntasse
sobre a participação em questão.
Em sua casa, preparava um café que por costume sempre deixava ao lado de sua
cama, assim, a qualquer hora que quisesse tomar não precisaria ir até a cozinha.
As noites em Pitfall eram muito frias pelo fato de se localizar no meio de
imensidões de bosques e o inverno viria com tudo naquele ano.
Sempre pregava um papel na geladeira com a lista do que deveria comprar no dia
seguinte, não por ser esquecido das coisas, mas por simples questão de hábito
herdado de sua pobre mãe.
Horace acordava nos dias de trabalho às seis da manhã e até pouco depois do
almoço cortava lenha sem parar, o trabalho era duro, mas além de estar

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acostumado a pegar no batente, sentia-se realizado e feliz com o que fazia. Sem
contar que teria o resto do dia livre e recebia bem pelas entregas de lenha.
Usava aqueles gorros pretos, característicos de lenhadores. Tal apetrecho
protegia a cabeça do carrasco das árvores, assim, não recebendo fragmentos dos
troncos e evitando coceiras no couro cabeludo.
Pelo menos uma vez por semana ia caçar com Ronald Malone e levava seu cão.
Terminou o café e o derramou em uma garrafa térmica, a fumaça do café quente
chegava às suas narinas e a sensação era gostosa, o frio da noite já começava a
entrar em ação.
Vou acender a lareira da sala e ficar bem aconchegado hoje, pensou.
Horace perdera os pais há muito tempo atrás. Quando era criança sonhava
sempre que estava em um playground no jardim de sua casa e era caçoado pelos
colegas de classe quando relatava seu sonho infantil. Algumas crianças levavam
muito a sério a infância e pareciam ter consciência que a idade adulta chegaria e
de como seria as responsabilidades e anseios da vida. Acompanhando seu pai,
aprendera a gostar de críquete e gastar longas horas de treino na adolescência,
mas abandonara tal hábito quando seu pai bateu as botas.
Quando tinha dezenove anos perdeu os pais em um acidente de carro, ficou
morando quatro anos com a tia e decidiu então se aventurar nas independências
da fase adulta trabalhando como carteiro e pagando aluguel, namorara uma garota
de dezessete anos e todos os dias discutiam por causa de pouca besteira, no seu
psicológico mais íntimo nascia um novo lema de vida a partir do dia em que deixou
a garota, que mulher foi feita apenas para dormir de companhia e logo não teria
utilidade, nem mesmo para esfregar o chão, fazer comida ou lavar roupa.
Ora, poderia muito bem fazer tudo isto sozinho e desfrutar da tranquilidade de seu
lar em companhia de seu fiel cão, Winepowder ou "pó de vinho", um jovem pastor
alemão que comprara novo há três anos.
O nome do seu cão se devia a determinado episódio em que Singer derrubara um
copo de vinho na terra, o cão ficou se esfregando na terra pastosa, umidificada
pelo vinho.
Era o banho da purificação.
Horace nunca achara tanta graça, a visão do pequeno cão se esfregando
freneticamente no barro provocava uma sensação de cócegas na boca do
estômago, não aguentara e rira sem parar por alguns minutos.
Muitos perguntavam a que se devia o nome dado ao cão e Horace
descontraidamente respondia e fazia questão de contar segundo por segundo da
situação.

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Arrematara Wine num leilão de animais de estimação em Miami, ao bater os olhos
no animal, se encantou com ele. Sem contar que a raça do animal muito lhe
agradava.
Sem família, tendo seu cão como fiel escudeiro, cortando madeira, bebendo e
ouvindo lobos uivarem na calada da noite levava sua vida na pacata Pitfall.
Mas, afinal, viver com seu cão era um tremendo prazer, não fazia sujeira dentro de
casa e era muito obediente, acompanhando-o inclusive no seu trabalho.
Winepowder às vezes dormia com Horace em sua cama, não havia problema
algum, suas patas sempre eram lavadas quando fosse hora de se abrigar dentro
de casa.
Não podia deixá-lo posar fora de casa, além das noites serem muito frias, um
bando de lobos traiçoeiros poderiam se atarracar com Wine e consequentemente
abatê-lo.
O bravo que perde devido à quantidade de oponentes, esta é a desculpa daqueles
que não reconhecem a superioridade alheia.
Winepowder tinha tempo suficiente para fazer suas necessidades fora de casa
durante o dia e até nesta parte era bem educado.
Ronald Malone, o caçador, gostava da presença de Horace e Wine em suas
caças, o cão era de grande valia com seu precioso dom de farejar.
Em determinado episódio estavam os três caçando e Wine saiu em disparada
sempre olhando em sua retaguarda para se certificar de que os dois homens o
estavam seguindo, obrigou-os a percorrer meia milha, os deixando sem gás e a
presa, alvo de Wine, era uma simples cobra. Primeiro Horace praguejou, depois
olhou para Ronald e desataram a rir. O faro de Wine era tão bom que poderia ser
uma perdição se caso dormisse fora de casa, farejaria um rastro de lobo e se
embrenharia na floresta escura entregue a todas as sortes de ataques, afinal
muitos lobos andavam em bandos.
Horace foi para o quarto e aproveitou para depositar a garrafa de café ao lado da
cama, cantarolando trocou de roupa para ir à taverna.
Wine o seguia dentro de casa onde quer que fosse.
A névoa começava a cobrir as ruas da cidade e era quase impossível enxergar a
floresta. Horace colocou a vasilha de ração de Wine na sala, eram algumas vezes
apenas que Wine o acompanhava à taverna, pois poderia sair em disparada para
o meio da floresta. A porta da taverna era de vai e vem e Brad só trancava o
estabelecimento com a porta principal após o expediente, uma solução para
Horace seria amarrar Wine na mesa, mas qualquer ímpeto do cão de perseguir
um alvo teria como resultado vodca, cartas, cadeiras e homens ao chão.
Poderia arcar com o prejuízo da taverna, mas o problema seria buscar seu cão no
meio da floresta na noite.

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E se tivesse que andar milhas para alcançá-lo?
Horace passou a mão na cabeça do cão enquanto ele atacava a ração e disse.
― Fique em casa, amigão, precisa vigiá-la enquanto eu estiver na taverna. Dentro
de uma hora estou de volta.
O que poderia ser verdade ou mentira se falando de Horace, às vezes o jogo de
cartas estava tão acirrado em sua disputa que só para calar a boca de um velho
rabugento valia à pena ver o sol raiar na taverna. Mas de qualquer forma o cão
entendia as vontades do dono e após assassinar o conteúdo da vasilha foi se
deitar no tapete.
Horace teve um súbito pressentimento de que deveria acender a lareira para seu
amigo, a cada minuto que passava o frio da noite apertava mais. A lareira estava
com as devidas lenhas prontas para servir de combustível de aconchego. Horace
jogou uma quantidade significativa de gasolina, acendeu um fósforo que ficava no
suporte em cima da lareira e ateou o fogo. Esperou dois minutos até se certificar
de que a lenha começara a queimar e colocou a grade de proteção para impedir
acidentes com Wine.
Noites frias significavam três cobertores e Wine dormindo na cama de casal de
Horace.
Horace resolveu deixar para a volta a última checagem em Wine, se as patas
estivessem sujas receberiam uma boa golfada de água.
Encaminhou-se para a porta, deu a última olhadela em Wine que deitado o fitava e
abriu a porta. Ao sair trancou a porta e se encaminhou para a taverna de Brad
Fillman. Ao longe se podia ouvir o uivo de um lobo.
Por costume sempre deixava a luz da sala acesa.
Logo percebeu que de fato a noite seria muito fria e esquecera-se de seu casaco
de pele, voltou e destrancou a porta para apanhar seu casaco, não poderia facilitar
por já ser um quarentão. Um resfriado poderia abatê-lo, não tinha mais idade para
esnobar de cuidados necessários com a saúde.
Quando entrou, o cão levantou a cabeça e latiu duas vezes estranhando o
inusitado regresso. Horace se dirigiu ao seu quarto e o animal como sempre, o
seguiu.
Abriu o closet e apanhou o casaco, o vestiu e percebeu que já estava pequeno
para seu monte de músculos que não paravam de crescer.
Quando eu voltar, colocarei mais este item na minha lista de compras, refletiu.
Voltou para a sala e ficou olhando a ação de Wine quando se encaminhou para a
porta, obedientemente o cão deitou novamente no tapete e começou a fitar Horace
até que este saísse.
Amanhã juro que irei caçar e levarei você amigão, pensou ao sair novamente e
trancar a porta, tomou o rumo definitivo da taverna.

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A CONTADORA DE HISTÓRIAS

Os Bombay moravam na casa atrás da taverna de Brad Fillman. A família perdera


seu chefe em um desastre automobilístico. Na ocasião, Stace estava embriagado
e bateu num hidrante, sua morte foi instantânea. Mas, a batida fora provocada por
um carro que o cercara bruscamente, era o que gostariam de acreditar.
Havia censuras e opiniões acerca de sua embriaguez. O episódio ficou
esclarecido pela polícia, mas dúvidas perduraram no ar.
A polícia fez questão de deixar bem claro que não passou de mais uma história de
alguém estressado ou depressivo com a vida que decidira tomar um gole a mais e
acabara no necrotério.
Esta história não ficou bem digerida para quem conhecia Stace que sempre fora
um homem íntegro e seguro de si, incapaz de cometer tamanha
irresponsabilidade.
Restou apenas sua mulher Tania, seu filho Howard e Dixie, a avó de Tania.
Tania ainda não se recuperou da tragédia até então.
Tempos depois foi comprovado através de perícia que o “infrator” estivera
embriagado, mas jamais cercara o carro de Stace ou estivera a menos de trinta
metros de proximidade da vítima fatal, ou seja, o infrator havia sido o saudoso
Bombay.
Tania defendia com unhas e dentes a sanidade do marido e se alguém
mencionasse que ele esteve embriagado na colisão, ela seria capaz de partir para
a agressão.
Ninguém sabia dizer ao certo ou tinha provas do acontecido, para a polícia,
Bombay se embriagara e se chocara com um hidrante e para uma perícia
posterior, a opinião da polícia ficara reforçada.
A versão verdadeira era esta, do Bombay embriagado colidido com o hidrante,
mas Tania questionaria até a morte.
Determinada vez, o xerife Frank Silver cometeu o grave erro de mencionar a
embriaguez perante Tania, o resultado foi Tania esmurrando com os dois braços
os peitos do xerife que a pegou pelos braços e acalmou pedindo desculpas, mas
ela, a partir daquele dia evitou conversas com o xerife, era como se enxergasse
um inimigo nele.
Tania cantarolava e batia a massa para fazer uma deliciosa torta de maçã para a
sobremesa que Howard Bombay, seu filho de seis anos adorava.
Lembrou-se da última vez que a batedeira enguiçara e fora consertada por Stace,
o falecido, lembrar isto enchia de lágrimas os verdes olhos da bela mulher.

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Com a ajuda de sua avó, recuperava-se lentamente do choque que todos estão
propícios a passar na vida, a morte cedo ou tarde chegaria, mas Tania achava que
não precisava ser daquele jeito, não tão brusca e violentamente.
Mas a morte buscara aquele respeitável homem que um dia prometeu envelhecer
ao lado de Tania e amá-la para sempre.
Aproveitou o trabalho automático da batedeira para desligar o forno que terminava
de assar um frango. Sentiu que o frio aos poucos apertava e antes do jantar seria
necessário acender a lareira.
Pegou um pano de prato e envolvendo a mão para evitar queimaduras retirou o
frango do forno, colocaria a torta para ir assando enquanto jantavam.
Sempre que fazia comida, Tania se lembrava dos momentos que Stace chegava
por trás e a abraçava pelas cinturas dando-lhe um beijo apaixonado.
Jogando o pano em cima da mesa, desligou a batedeira e derramou a massa
pronta numa vasilha, permanecia com os ouvidos atentos na sala, onde sua avó,
Dixie Bombay, divertia seu filho com histórias.
"Então o fazendeiro pegou o balde com o leite da vaca e foi para casa quando o
lobo de sopetão o surpreendeu..."
Vovó era uma ótima contadora e inventora de histórias. Tania em sua infância fora
presenteada com muitas histórias da vovó, quentinhas e saídas do forno.
Com certeza seu filho adorava estar com vovó, o que deixava Tania mais tranqüila
e menos preocupada, assim enquanto fizesse as tarefas de casa, a velha senhora
tomaria o tempo de Howard, o distraindo com contos infantis e nobres
experiências de vida.
Tania, com vinte e oito anos, não pensava em ter outro companheiro, não iria
conseguir estar com alguém e em pensar que aquele era o posto de Stace, a dor
da saudade somente pioraria.
A renda que mantinha a família era a pensão deixada por Stace que fora um ótimo
corretor de imóveis, assim, o serviço doméstico ficava por conta de Tania que com
calma deixava tudo em ordem, já que Dixie era debilitada pela idade e contava
com quase um século nas costas. A habitante mais velha de Pitfall e também a
que mais conhecia as histórias da cidade.
O mais estranho era que praticamente todos os habitantes da vila vieram de fora e
decidiram morar em Pitfall. Dixie era uma das poucas que sabia que um
antepassado muito distante do dono do hotel, Jim Bobster, era o fundador do
vilarejo.
Aos poucos Dixie ensinava à Tania que não faltavam razões para viver e ser feliz e
Howard era a principal delas.
Tania colocou a torta para assar e se dirigiu à sala. Queria assistir vovó divertir
Howard com suas histórias fantásticas.

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"A mulher do fazendeiro então pegou a carabina e deu um belo tiro no lobo, e
assim termina a história."
Howard após ouvir a história olhou para a mãe e sorriu contente.
― A torta já está assando, queridinho.
― Obrigado mamãe, eu te amo!
Gritou com alegria, correu e pulou no colo de Tania. Dixie que vivia com um lenço
amarrado à cabeça assistia os dois com uma expressão de alegria tanto nos olhos
como ao esboçar um sorriso polido.
Tania sentou-se na cadeira de balanço com Howard no colo, de frente para Dixie e
deu um sorriso para ela também. A família Bombay se dava muito bem. Stace
nunca bebera e Tania ouvir falar a respeito deixava sua cabeça o dia todo
martelando e martelando os tormentos das injustiças. Afinal, ele se fora e não
poderia defender-se.
― Vai esfriar mais, é bom colocá-lo cedo na cama. ― Dixie com seus cuidados
admoestou Tania.
Tania esboçou novo sorriso e olhou para Howard.
― Vovó está certa, vamos jantar e comer a torta, depois te levarei para dormir.
Howard concordou com a cabeça. Era um menino muito obediente e gostava de
respeitar os mais velhos, seu pai fora bom educador nesta parte. Determinado dia,
Howard passeava com Stace no centro de Nova Iorque, em uma ocasião de
viagem familiar, e após cair a bolsa de uma senhora, ele de prontidão se agachou
e pegou a bolsa, entregou para a senhora que lhe deu um beijo no rosto. Seus
pais se orgulhavam muito do filho que tinham, porém, Stace não poderia mais se
orgulhar e lembrar isto enchia os olhos de Tania de lágrimas.
― Dix, deixe-me ver os tricôs que fez hoje? ― Tania chamava sua avó de Dix, um
modo carinhoso, apenas um apelidinho a mais.
Dix pegou uma sacola que estava numa mesinha ao seu lado e tirou duas peças
tricotadas, uma rosa e outra branca, eram dois pequenos tapetes, definitivamente,
Dix era profissional em tricotagem.
Dix mostrava à Tania todos os detalhes de seu trabalho e de como os seus tapetes
eram perfeitos.
A noite era nevoenta e muito tranqüila, não se ouvia sequer um murmúrio ou som
vindo da rua. Pitfall era uma vila muito silenciosa e quem não era acostumado
ficaria calculando se estava numa cidade fantasma, onde à noite os habitantes se
reclusam dentro de casa, com receio de algo.
Tania devolveu os tapetes para Dix, se levantou e colocando Howard na cadeira,
saiu apressada para a cozinha. Pegou uma mesinha de madeira, leve e pequena
e levou para a sala, arrumou um lugar que fosse de fácil acesso para Dix.

16
Logo depois estendeu uma toalha de mesa e buscou a panela de arroz e a
assadeira com o frango. Ia se sentar, mas havia se esquecido dos talheres e dos
pratos, subitamente se levantou e foi buscá-los.
Colocou três pratos dispostos na direção de cada membro da família, um garfo e
faca para Dix, uma colher para Howard e um garfo para si.
Fizeram a oração e Tania começou a cortar o frango em pedaços, colocou uma
coxa para Howard, outra para Dix e hesitando se serviu apenas de arroz
esperando a advertência da anciã:
― Desde quando não come frango? ― indagou Dix estranhando.
― Não estou com estômago hoje, Dix. ― ela respondeu de cabeça baixa como se
estivesse com vergonha.
― Você sempre adorou o frango ao molho que te ensinei fazer. ― protestou a
velha.
― Quero apenas o arroz e me dou por satisfeita assim. ― retrucou procurando
não parecer inconveniente.
― Vai sobrar, querida! ― balbuciou Dix com uma voz rechonchuda e paciente.
― Vou guardar na geladeira e amanhã podemos decidir o que fazer com ele,
posso esquentá-lo para o almoço.
Dix decidiu não contestar as vontades da neta e serviu-se de arroz antes de
começar a comer. Howard aos poucos devorava o pedaço de frango.
Tania olhou para o filho e disse:
― Quando você terminar de comer o frango, colocarei arroz no teu prato.
Howard fez careta, não discutia com sua mãe, mas se tinha algo que não
suportava comer era arroz. Stace tentara ensinar o filho a gostar de arroz por duas
vezes e por duas vezes não conseguira levá-lo a tempo ao banheiro, a cachoeira
de vômito ocorrera no tapete da sala.
Abundante e sólida.
As refeições eram feitas na sala pelo fato de Dix ter sérias dificuldades para se
locomover. Dix gostava de dormir no sofá perto da lareira, sempre precisava da
ajuda de Tania quando ia ao banheiro.
Com tanta implicação de Dix, Tania se esqueceu de acender a lareira.
― Filho, você precisa comer arroz para ficar forte. ― redargüiu, passando a mão
na cabeleira do menino.
Frequentemente era administrada uma colher de fortificante vitaminado para
Howard devido este enjoo particular.
Um lampejo fez Tania se lembrar da lareira e deixar o jantar no meio do caminho.
― O que vai fazer menina? ― perguntou Dix.

17
Dix não era magra nem gorda, era uma idosa corpulenta que não parecia ter a
verdadeira idade, mas, alguns anos mais jovem, talvez trinta.
Tania se voltou para Dix e respondeu:
― Acenderei a lareira, o frio já está apertando. Aproveitarei para ver a torta que
está assando.
Olhou para Howard que pareceu gostar da ideia.
Tania pegou alguns pedaços de lenha e depositou na lareira que já possuía muito
carvão a ser retirado, um serviço que ficaria para o dia seguinte. Acendeu a
lareira. Seria preciso pedir madeira a Horace no dia seguinte, pois acabava o
pequeno estoque.
Após se certificar de que a lenha ia queimar, foi à cozinha, lavou as mãos e se
dirigiu ao forno.
A torta estava pronta, retirou-a, desligou e fechou o forno e levou a torta para a
sala.
Howard olhando para a cara da torta tentou convencer Tania para que comesse
dois pedaços de torta no lugar do arroz, Tania refletiu e fez mais uma exceção,
afinal, não poderia forçar o menino a comer algo que talvez tivesse alergia ou
coisa parecida.
Coma mesmo querido, dois bons pedaços de torta, vai te dar sono. Pensou Tania.
Após a refeição, Tania levou seu filho para escovar os dentes, depois Howard foi
se despedir de vovó que o abraçou e o beijou desejando boa noite, após este
ritual, Tania o seguiu escada acima.
No andar de cima havia os quartos de Tania e Howard, um desocupado e um
banheiro.
Após a morte de Stace, Tania dormia junto com o menino.
Tania aconchegou Howard e o cobriu, deu-lhe um beijo e desejou boa noite,
porém ficou surpresa ao ouvir a pergunta de Howard que surgiu tão
repentinamente quebrando a tranquilidade de seu coração:
― Mãe, é verdade que o papai não vai mais voltar?
Contrariada, Tania franziu a sobrancelha e triste por se lembrar de Stace
respondeu:
― Não querido, teu pai não vai mais voltar. Eu prometo que sempre cuidarei de
você, você sempre terá a vovó para contar histórias.
O que era uma mentira, pois Dix já passara da idade.
― Tenho medo de você também ir e não voltar mais.
Começou a esboçar um começo de choro.
Tania o abraçou e tentou confortá-lo:
― Não vou, prometo que sempre estarei aqui para cuidar de você.

18
Após a morte do pai, Howard pareceu se tornar uma criança muito carente e
certamente se a sua mãe não lhe dispensasse atenção o dia todo, com certeza se
transformaria em uma criança muito triste e um futuro adulto frustrado e com
complexo de pessoa injustiçada pelo mundo.
Tania achava uma verdadeira bênção não precisar trabalhar fora, queria ficar o
máximo que pudesse com a sua família e dar atenção especial para o menino.
Tania afagou o filho com um cafuné que só ela sabia fazer até que ele dormisse. O
cafuné particular ministrado por ela era fazer círculos na testa do filho com a mão,
o que dava uma sensação imensa de relaxamento. Apagou a luz do abajur e
deixou a porta entreaberta, era hora de descer e passar algumas horas de prosa
com Dix. Era costume antigo das duas mulheres.
A primeira coisa que fez ao chegar à sala foi preparar a almofada na cadeira para
se sentar quando Dix perguntou:
― O nosso anjinho dormiu?
Tania com certa angústia respondeu e depois desabafou com Dix:
― Como uma pedra, ele me perguntou se eu faria como o pai, se referindo a
abandoná-lo.
Dix com sua sabedoria de vida precisou acalmá-la:
― Crianças que passam por determinados tipos de situações são assim mesmo,
fazem esse tipo de pergunta. Para eles não existe outro modo de sentir conforto
sem ouvirem da boca dos pais a promessa de que não os deixarão.
― Faça o seguinte, sempre que ele perguntar procure passar confiança, sempre
esteja do lado dele. ― emendou a sabia senhora dando uma piscada para a neta.
Tania mais aliviada preparou-se para sentar, repentinamente um grito estridente
cortou o silêncio da noite gelando o coração da pobre mulher que mudou a
expressão do rosto. Porém, esta situação não era novidade para os Bombay.
Tania deveria se recolher mais cedo para fazer companhia a Howard, novamente
por causa do menino da rua de trás.

19
4

O HÓSPEDE DO QUARTO AO LADO

Norman estava se barbeando após tomar um banho naquela banheira imunda.


Tivera a nítida impressão de ter ouvido um grito, mas procurou ignorar e não ir à
janela estudar a rua. Deveria ser algum doido na floresta sendo atormentado pelo
tempo frio.
Uma sensação de alívio o tomava, a mesma sensação de quando se vai ao
banheiro fazer necessidades fisiológicas ou se corta o cabelo que estava com um
vasto volume, definitivamente havia passado a hora de aparar a barba.
Após se barbear teve a sensação de pesar dez quilos a menos, enxaguou o
queixo e destampou a pasta de dente, passou um pouco de pasta na escova e
começou a polir seus dentes.
Quando se preparou para tampar o tubo da pasta, a tampinha escapou de sua
mão e foi parar no ralo de pequeno diâmetro da pia, seria impossível pegá-la sem
o uso de uma pinça.
― Mas que droga! ― sussurrou praguejando e tentando recuperar a tampinha
com os dedos em forma de pinça.
Nem que fosse um japonês excelente em manusear hashi para se alimentar
conseguiria recuperar aquela tampinha.
Por algum tempo se esforçou até desistir, seria melhor deixar a pasta descoberta,
mas deveria a manter ao ar livre, longe de outros objetos, assim não correria o
risco de esmagar o tubo no meio de outros utensílios e dispersar o creme dental
provocando um verdadeiro pandemônio da meleca amiga dos dentes.
Olhou para a banheira e tinha dúvidas de onde lhe surgira coragem para tomar
banho em um utensílio como aquele. A banheira era branca, mas apresentava
manchas negras esverdeadas que estavam muito fixas no gesso. Tentara
inutilmente remover as manchas enquanto tomava banho, no entanto, não
conseguira e surgiu mais uma reclamação a fazer com o velho dono do hotel,
outra na lista, além dos quadros hediondos.
Bobster Inn?
Isto aqui é um hotel da idade das cavernas, mas para um lugar como este deve
ser normal! Praguejou nos pensamentos.
Vou procurar saber se existe outro lugar para ficar nesta cidade. Continuou
refletindo enquanto juntava sua lâmina de barbear, seu sabonete e sua escova,
deixou o tubo de pasta na pia.
Lembrou-se do quadro do bebê pendurado na parede de seu quarto e sentiu um
súbito calafrio, o que o fez olhar à porta em direção ao quarto.

20
Precisava ter uma conversa com o dono do hotel, aquele quadro deveria ser
removido do aposento até que ele fosse embora, afinal, todo freguês tem razão e
deve ser agradado.
Tenho absoluta certeza que aquela criança está morta, mas que droga de lugar eu
vim parar. Pensou consigo.
Vestiu a mesma roupa que esteve usando antes do banho e acendeu um cigarro,
esperaria um pouco e iria procurar algum lugar para comer algo, seu estômago já
roncava.
Aquele fim de mundo deveria ter um barzinho da vida ao menos, era o mínimo que
se podia esperar.
A taverna ficava uma casa depois do hotel. Quando Norman chegara, percebera
de relance se tratar de algum estabelecimento comercial, mas não sabia dizer
exatamente de qual tipo.
Seu quarto apresentava um closet de mais de dois metros e meio, confeccionado
com madeiras, aliás, se as paredes das casas na cidade eram de madeiras, por
qual razão o closet deveria ser de pedra?
A ideia o fez sorrir.
Com seu pequeno pente ajeitou a gosto o cabelo e guardou seus utensílios na
mala, pegou o cigarro que apagara pela metade e deixara no cinzeiro em cima do
armarinho.
Um pensamento soou em sua cabeça após acender o cigarro. Aquele bebê,
aquela velha caolha, aquele cavaleiro na fazenda e as outras pessoas retratadas
naqueles quadros seriam parentes do dono do hotel?
Muito provavelmente que sim, mas ninguém em são juízo compraria ou venderia
quadros assim e muito menos os guardaria mesmo que fosse de parentes,
principalmente em um hotel. Aquilo chegava a ser gritantemente sinistro.
Não fazia lógica aquela loucura exposta.
Uma verdadeira exposição dos infernos.
Colocou o cigarro no cinzeiro e começou a se trocar, olhou para o quadro sinistro
e sabia que providenciaria um jeito para se livrar daquilo.
O que um velho poderia fazer contra ele?
Desferir golpes de karatê ou Jiu-jitsu?
Nem que fosse um lutador ancião e experiente. O pensamento irônico o fez abrir
um sorriso, podia imaginar a cena, ele depois de reclamar, tomar umas boas
raquetadas do velho.
Ao terminar de se trocar sentiu o estômago roncar, porém, teria dúvidas se
conseguiria se alimentar lembrando-se do hotel, o cheiro de mofo agora parecia
mais forte do que quando chegara.

21
Não havia tempo a perder, precisava comer alguma coisa e procurar saber se
existia outro lugar para ficar, para pernoitar.
Bem, se lá no estacionamento havia um carro e apenas o dono do hotel habitava
aquele estabelecimento, existia a possibilidade de o carro ser de algum outro
hóspede e não do velho. No caso de ser dalgum hóspede, em qual aposento ele
estaria alojado?
Como saber sem precisar encarar novamente aquele velho?
Calculou em seus pensamentos enquanto arrumava novamente o cabelo com as
mãos.
Este vilarejo talvez possa dar asas a um belo livro de mistério, mais precisamente
na transição de suspense com terror. Pensou.
― Que se dane o velho, eu vou é passar de largo lá embaixo e ir onde bem
desejar. ― praguejou como um trabalhador injustiçado, oprimido pelas imposições
de seu patrão.
Já estava perto da porta e voltou para contemplar de perto o quadro do bebê, ficou
mais intrigado, teve um impulso de tirar o quadro e o ver mais próximo.
Com as mãos tremendo, pegou o quadro que estava amarelado e empoeirado
pelo tempo, dava a sensação de que a criança tinha vida própria e iria gritar
quando ele aproximasse o rosto da moldura, era como se fosse despertar de seu
sono e ficar de mau humor reclamando por ter seu eterno sono perturbado por um
simples hóspede de quinta.
Definitivamente teve certeza, a criança estava morta e seu corpo parecia estar
numa espécie de cadeira com almofadas brancas. Virou o quadro. Havia algo
anotado em lápis negro.
― 1926, minha nossa, este quadro é de 58 anos atrás! ― exclamou.
Começou a refletir e imaginar que aquela criança hoje deveria ser uma
sexagenária, caso estivesse viva.
Estaria velha e talvez fosse a dona do hotel, caso houvesse parentesco com o
velho.
Qual era o motivo de alguém guardar ou tirar foto de uma criança morta?
Recolocou o quadro em seu lugar e foi em direção do outro, do homem de cavalo,
virou para ver se havia algo escrito, a data talvez.
1944.
Deu um sobressalto ao ouvir um ruído atrás de si, era o outro quadro que havia
caído, provavelmente não o pregara direito.
Teve uma ideia, uma solução, e se enquanto estivesse no quarto pegasse aquele
quadro do bebê e escondesse no closet? Assim quando fosse embora poderia
recolocar no lugar como se nada houvesse acontecido e pronto.

22
Era uma possibilidade que provavelmente se tornaria um fato concreto. Pelo
menos assim, ele se sentiria mais a vontade naquele lugar.
Rapidamente ajeitou o quadro do homem de cavalo e foi em direção ao outro
quadro que estava no chão, pegou e abriu a porta do closet, jogou o quadro numa
repartição de cima, a última, fora de vista.
Que alívio, porém mesmo assim ainda posso sentir um incômodo. Pensou.
Fechou a porta do closet e se encaminhou para a porta que dava acesso ao
corredor. Abriu-a e não apagou a luz do quarto. Quando saiu deu uma olhadela no
corredor e fechou a porta, girou a chave na maçaneta, cerrando seu aposento
temporário.
Deu outra fitada no corredor, havia quadros que não dera importância quando
chegara.
Em um deles estava retratado um menino e uma menina de mãos dadas, num
outro havia um ancião sentado na porta de uma casa que parecia ser de fazenda,
e por fim um com uma lauta mesa recheada de frutas, mas o que mais chamava a
atenção na mesa era uma galinha que acabara de ser degolada, estudando
melhor o quadro, alguém espreitava numa porta dos fundos, mas estava muito
ofuscado pelas sombras da noite e não se podia distinguir quem era. Podia se
notar apenas um par de olhos brilhantes e a silhueta de um ser bípede.
Tomou a decisão de saber se havia algum outro hóspede, se existisse, em qual
quarto seria?
Olhou para o quarto ao lado do seu, o número quatro, deveria começar por ali?
Encaminhou-se e parou de frente para a porta do número quatro, precisava criar
coragem. Quem poderia garantir que naquele hotel estranho, o quarto vizinho não
fosse a morada de um esqueleto cativo ou de um vampiro em seu eterno sono?
Quando era criança e queria ir onde não deveria, era advertido por seu pai que lhe
ensinara a não prosseguir, pois não saberia com o quê ou quem iria se deparar.
Houve momentos que seu pai dizia: "não abra aquela porta, pois não sabes o que
existe atrás dela".
Hoje sabia que seu pai usava tal artimanha para precavê-lo de meter o olho onde
não fora chamado ou para não meter o bedelho na toca do coelho.
Poderia ter uma surpresa desagradável. Na sua idade tomava tal conselho para
explicar o que poderia acontecer se cantasse a namorada de um mau elemento
armado que não aceitaria ouvir uma explicação e com as próprias mãos saciaria
sua sede de ciúme com violência brutal e covarde.
Mas, não havia problemas em bater na porta do vizinho e saudá-lo com aquela
velha história de vizinho desconhecido que está à disposição, o pau para toda
obra ou o típico macaco gordo, capaz de quebrar as mais diversas espécies de
galhos.

23
Este tipo de falsidade das pessoas o fez sorrir.
Afastou o pensamento, era ridículo estar pensando tudo aquilo sobre monstros.
Só faltava ter um vampiro de cabeça para baixo pendurado no teto daquele
aposento ou algo semelhante como a múmia no sarcófago.
Um arrepio percorreu sua espinha, não duvidava que aquele hotel fosse um
verdadeiro covil de loucos.
Sentiu que alguém estava do outro lado da porta esperando sua ação, precisava
criar coragem e cerrou os punhos, prontos para bater à porta.
Calma, e se o hóspede do quarto for o dono daquele carro com a frase de Deus
gravada? Seria então alguém de bem, e muito normal, diga-se de passagem.
Refletiu consigo.
Criou coragem e direcionou o punho cerrado para bater à porta.
Esperou, esperou.
Sentiu o coração gelar e enfim desferiu as primeiras batidas.
Contanto não precisou esperar muito, em um segundo a porta se abriu...

24
5

O CAÇADOR

Ronald Malone acabou de apreciar o delicioso jantar de sua mulher Brenda e após
dar um beijo nela se acomodou na sala segurando seu rifle na mão esquerda e um
pano na direita.
O seu intuito era o de limpar o rifle, o instrumento de caça que era o sustento da
família.
Quando se lembrava de sua profissão, definitivamente não queria o mesmo futuro
para seu filho. Sonhava com que ele se tornasse um grande médico, talvez um
excelente cirurgião e faria qualquer esforço para ver seu filho formado, porém,
tentaria apenas convencer o filho na escolha da profissão, mas não poderia
obrigá-lo.
Assim, cada animal que abatia era contado como se fosse mais um degrau na
formação de seu filho, um pensamento vão, pois caçar naquele vilarejo escondido
do mundo não enriquecia e sem lucros, não havia garantia de fundos para pagar
uma universidade. O famoso pezinho de meia se tornava algo praticamente
impossível.
Seu pai fora um bom conselheiro.
Mas por ignorar os conselhos do velho o tempo foi passando e Ronald sempre
preocupado em como se apresentaria às mulheres acabou se tornando um
caçador, por sua culpa havia tomado tal carraspana da vida, porém serviu para
amadurecer seu caráter.
A ironia de sua situação era que ao invés de salvar vidas como desejava para seu
filho na posição de médico, restou-lhe o posto de tirá-las.
Fora parar em Pitfall após ter notícia de que havia casas que seriam doadas a
quem se interessasse e na ocasião não perdera tempo e se mudara. No começo
morou sozinho até que um tempo depois conheceu Brenda que viera na mesma
ocasião com seus pais morar em Pitfall. Podia lembrar-se perfeitamente da notícia
de jornal que circulou em algumas cidades da Flórida:
"Doam-se oito casas em vilarejo na Flórida.
Um lugar pacato no meio da floresta chamado Pitfall possui oito casas
abandonadas que serão doadas às primeiras famílias que procurarem o xerife
local, Frank Silver. O vilarejo localiza-se nas proximidades da fronteira com a
Georgia."
Na ocasião, um amigo seu de infância trabalhava no pequeno jornal da cidade e
antes que a edição do outro dia que traria a manchete fosse publicada, seu amigo
o deixara a par da situação, Ronald, sem perda de tempo conversou com seus

25
pais e pegou estrada rumo a Pitfall. Como fora o primeiro a chegar, procurou o
xerife que ficou espantado com a rapidez de chegada do interessado uma vez que
a notícia não fora publicada. Ronald bateu um papo amistoso com o xerife que
acabou concedendo uma exceção. Ele pôde escolher a casa que quisesse das
oito disponíveis. Selecionou a mais distante do mundo e próxima da floresta que
houvesse. Só não conseguiu pegar a última, pois já era habitada por um tal de
lenhador que seria seu amigo no futuro. Coube-lhe a casa ao lado.
Fora parar num lugar onde não havia sinal de rádio e televisão, com o tempo se
acostumou à vida tranquila que os ares daquela vila oferecia e acabara por se
fixar de vez por lá, ainda mais quando conhecera Brenda...
Ronald era do tipo não muito alto, mas era um moreno atraente e de boa índole, o
que o ajudou muito a conquistar o coração de Brenda, uma morena com a pele
queimada do sol, atraente.
Não eram muitas as mulheres interessantes em Pitfall e em tal seleção natural
Ronald não podia se queixar. Antes de começar namoro com Brenda tivera outra
pretendente, uma mestiça bem de vida que viera de passagem e o encontrara na
taverna, ele por sua vez não se interessou por ela. De longe se percebia que
Ronald não era um homem interesseiro, mas sim alguém que levava a vida de
maneira simples e natural. Com seus trinta e poucos anos já possuia um caráter
maduro como se fosse trinta anos mais velho de ideias e atitudes.
Não tinha motivos para se queixar da vida que levava, não pagava aluguel, vivia
numa vila pacata e tinha uma família que amava. Não seria de se estranhar ver
uma bola de feno emaranhado rolando pelas ruas de Pitfall devido o silêncio,
como nos filmes de cidades fantasmas do velho oeste.
Após uma umedecida de álcool no pano, começou a lustrar o rifle com
movimentos repetidos.
Sentiu uma picada dolorosa no dedo, olhou o ferimento e colocou o dedo na boca
para sugar a gota de sangue. Brenda novamente usara o pano dele para secar
palhas de aço. Mas Ronald era uma pessoa muito branda, nem sequer praguejou,
apenas pensou em pegar um band-aid, escondido de Brenda e remediar a
situação.
Achava normal tomar um ferimentinho uma vez ou outra, mas precisava
definitivamente buscar o band-aid, pois nova gota de sangue brotava e ele não era
qualquer vampiro para continuar se alimentando do próprio fluído vital.
Estudou a posição de Brenda na cozinha, o kit de primeiros socorros ficava numa
gaveta de uma cômoda localizada justamente no terreno do inimigo, na cozinha.
Brenda estava a lavar as louças, esperou um tempo até que ela entrasse na
despensa e com uma agilidade das selvas correu em direção à gavetinha, pegou o

26
band-aid e correu para a sala, sentou-se no mesmo momento em que a imagem
de Brenda aparecia novamente na cozinha.
Teve o cuidado de enrolar o band-aid no dedo não deixando de fitar Brenda, fazia
tudo escondido, pois não gostaria de preocupar Brenda nem de fazê-la se sentir
culpada pelos restos mortais de palha de aço que quase dilaceraram seu dedo.
Quando fosse dormir deveria tirar o band-aid, jogá-lo no vaso sanitário e dar
descarga para que Brenda nunca sonhasse com o acontecido.
O frio apertava e a névoa quase não permitia ter uma visão correta do que se
passava lá fora.
Ronald resolveu fechar a cortina, mas primeiro foi até a janela para contemplar a
rua deserta, uns cinquenta metros à frente de sua janela se encontrava a entrada
da floresta.
Enxergou o vulto de um homem passar pela rua e forçando as vistas pôde
reconhecer o lenhador Horace, seu vizinho do lado. Não foi difícil reconhecê-lo,
pois todos os dias ele fazia o mesmo trajeto em direção à taverna de Brad Fillman
e era muito alto e corpulento.
Resolveu fechar a cortina e trancar a porta, quando foi se virar para voltar ao sofá,
tomou um susto. Brenda da porta da cozinha estranhou o sobressalto do marido e
perguntou:
― Quer que eu arrume a tua roupa de caçar para amanhã?
Ela estava com uma bolha de detergente no nariz, ficou muito sensual provocando
um frisson em Ronald, sem dúvida, ela era uma gracinha.
Ronald se lembrou das vezes que iam sozinhos acampar e passavam quase uma
semana dormindo na barraca, pescando e se amando muito em lindas paisagens
e cachoeiras.
Após o nascimento de Sonny, o filho do casal de seis anos, os dois se tornaram
muito mais caseiros. Sonny precisava de atenção e não gostava de ficar na casa
dos pais de Brenda que também moravam em Pitfall. Porém, quando Sonny
estivesse mais velho, o casal voltaria a acampar junto e a sós. Sonny estaria na
fase de querer passar a noite na casa de algum colega por aí ou de alguma
namoradinha de verão.
Com imensa satisfação Ronald respondeu:
― Tudo bem querida, julgo ser melhor deixar a roupa no jeito, de antemão e para
falar a verdade não quero que se preocupe com isso.
Brenda conhecia seu marido e sabia bem que ele pensava estar amolando-a, sem
dúvida sentia grande admiração pela humildade e bondade de Ronald, no entanto,
nunca deixaria de cumprir seu dever de esposa com prazer.
Ronald foi até ela e abraçou-a pela cintura. Brenda com este gesto de carinho do
marido mudou de assunto:

27
― Querido, vou chamar o padre Leone para nos visitar amanhã, o que acha de
convidar ele para o jantar?
― Como queira, é sempre um prazer receber o padre Leone conosco, sem dúvida
é um homem cuja presença nos fará bem.
― Lembro-me até hoje quando ele batizou Sonny. ― ela acrescentou sorrindo e
olhando nos olhos dele.
Ronald afagou-lhe os cabelos e mudou de assunto como se ela já estivesse ciente
dele:
― Em breve nosso filho estará crescidinho e poderemos voltar a acampar, o que
acha?
― Eu acho ótimo querido, eu poderia deixá-lo com meus pais. Podemos tentar
persuadi-lo nos próximos dias. ― murmurou ela julgando não ser preciso esperar
ele crescer.
― Sim, mas somente se ele não tivesse medo de ficar com os teus pais. ―
conjecturou Ronald.
― Já estive pensando nisso e que tal se chamássemos meus pais para fazer-lhe
companhia aqui em casa?
― Sinceramente acho que não será possível, ele não aceitaria que...
Não terminou e Brenda ficou com o semblante tristonho. Ele pegou no queixo dela
e emendou:
― Querida, quero que me entenda. Na idade do nosso filho as crianças querem a
atenção dos pais, querem inclusive ficar grudados na saia da mãe e protegidos
pela cinta do pai.
Brenda deu uma risada, mas depois lhe escorreu uma lágrima dos olhos e os dois
se beijaram.
Ronald intimamente era uma pessoa muito frustrada, não se conformava em ter
que abater animais e se não fosse pela família já teria deixado o ofício. Diferente
de Horace que vez ou outra ia caçar com ele e não demonstrava o mínimo
ressentimento ao abater qualquer que fosse o alvo. Horace era um impiedoso
matador de animais que pudessem oferecer carne.
Ronald almejava partir para outro horizonte, mas teria que ser algo que
compensasse e que fosse garantido de antemão. Poderia tentar e se não desse
certo, voltaria à caça, de qualquer forma valia à pena tentar.
Já estudava a possibilidade de procurar algum emprego na cidade vizinha, mas
sabia fazer poucas coisas. O custo de vida em Pitfall era barato, mas mesmo
assim a família precisava ter uma renda fixa.
No dia seguinte Horace e Ronald iriam caçar juntos, Ronald gostava, pois deixava
o trabalho mais árduo para Horace executar, eram dias de alívio na alma, pelo
menos uma ou duas vezes por semana.

28
Os lábios se desgrudaram. Brenda se lembrou de algo que ia pedir ao marido:
― Ronald, eu gostaria de visitar os meus pais amanhã, irei logo pela manhã.
― Sim, eu fico a cargo de Sonny, vou levá-lo para ver Horace cortar lenha. Sonny
adora aquele cão do vizinho.
Brenda gostou da ideia e poderia ficar tranquila quanto ao menino. Os dois
desataram o abraço e ela com um gesto sensual de quadris foi em direção à
cozinha, mas parou à porta:
― Terminarei a louça e depois vou tomar um banho, vem comigo?
Eram muitas as vezes que ela fazia tal proposta e o deixava contente com a
fogosa mulher que tinha, assentiu com a cabeça e apresentou um sorriso:
― Vou terminar a limpeza no rifle e nós vamos...
― Você não está limpando o rifle, o está polindo e lustrando. ― ela deu um sorriso
irônico como se estivesse um ponto na frente dele em um jogo e se virou para a
cozinha.
Ronald gostou do gracejo e sentou-se na cadeira recomeçando o trabalho de
limpeza da arma, teve o devido cuidado de esconder o dedo lesionado para que
Brenda não percebesse.
Amanhã será um dia feliz. Pensou consigo.
O frio se intensificou e a névoa ficou mais branca e espessa, o inverno havia
chegado a Pitfall.

29
6

A TAVERNA

O hóspede desconhecido não hesitou e propôs a Norman entrar apontando o


interior do aposento com a mão. Norman sentiu um alívio ao notar que estava
lidando com uma pessoa normal, ao menos aparentemente, um homem entre
trinta e trinta e cinco anos, pouco acima do peso e de estatura semelhante à sua,
um metro e setenta e cinco aproximadamente.
― Sente-se na minha cama, estou terminando de me trocar. Suponho que vai à
taverna comer algum petisco.
― Acertou! É muito dedutivo. ― exclamou Norman com surpresa.
Norman não tinha certeza se havia alguma taverna, mas deveria reconhecer que o
homem acertara que ele estava atrás de algum lugar para tirar a barriga da
miséria.
― Então me aguarde, vamos juntos. Eles fazem uma truta ao molho que você vai
amar. Sente-se na cama, por favor.
O hóspede colocou a mão no ombro de Norman e o induziu a se sentar na cama,
este consentiu e se sentou.
Norman não deu muito crédito ao que aquele homem disse sobre truta ao molho,
a taverna não deveria ser um lugar diferente do hotel. O hóspede desconhecido
até então aparentava ser uma pessoa simpática e que recebia bem os seus
semelhantes.
― Deixe-me apresentar, sou Joseph Forbes, ao teu dispor.
― Norman Legrand.
Os dois se saudaram com um aperto de mãos e Norman sentiu o alívio ser cada
vez mais crescente, enfim encontrara alguém com quem conversar sem sentir
certo receio.
― Deixe-me ver, você esta de passagem e ainda não tem certeza de quanto
tempo vai ficar na cidade. ― Joseph indagou em tom de afirmação enquanto
arrumava a camisa de olho para o espelho.
― Acertou, sou um escritor de meia tigela que está buscando um lugar sossegado
e inspirador para escrever minha primeira obra séria.
Norman ficava assombrado com as deduções do outro, ele seria tão normal
assim?
― Não fale assim meu caro! Eu, por exemplo, adoro ler um bom livro e sei
apreciar a beleza da boa literatura...
― E você Forbes, o que faz da vida? Refiro-me ao trabalho.

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― Veja bem amigo, eu trabalho em um escritório da corporação FedEx e sou o
responsável direto por redigir declarações da empresa que devem acompanhar
pacotes cujo destino é o exterior. Deu para entender?
― Acredito que sim. Como veio parar neste fim de mundo? ― perguntou Norman
demonstrando interesse.
― Pois bem, eu estou de férias e sempre aproveito para espairar um pouco as
ideias viajando. Deste modo, eu estava passando pela estrada quando avistei uma
placa que me chamou a atenção, você deve ter visto ela.
― Se você se refere àquela com grafia estapafúrdia, acertou.
Forbes começou a gargalhar ao lembrar-se da placa, Norman o acompanhou e
soltou uma risada com gosto. Forbes já perdendo o fôlego falou:
― Somente alguém com um sério grau de retardo mental poderia ter feito uma
apoteose daquelas.
― O que faz deste lugar mais estranho ainda! ― exclamou Norman se lembrando
do quadro da criança morta e esta lembrança barrou sua gargalhada.
Forbes percebendo a mudança de ar de Norman também ficou sério, alguma
coisa perturbava seu companheiro e já sabia o que poderia ser. A sua tese foi
reforçada com a menção de lugar estranho.
Norman aproveitou a pausa e a careta que Joseph fez abotoando a camisa para
reparar no quarto. A estrutura e colocação dos móveis eram as mesmas do seu,
porém havia apenas um quadro na parede, uma paisagem que parecia contemplar
uma mansa brisa dominical.
― Sabe Joseph, estou no quarto ao lado, o número cinco, e gostaria de
compartilhar de um assunto com você...
Forbes respondeu já ciente do que Norman deveria dizer:
― Diga, amigos foram feitos para escutar a queixa do próximo.
Norman pareceu se embaraçar nas palavras, mas corrigindo a locução vocal falou.
Joseph se virou para encará-lo.
― Existe um quadro estranho no meu quarto, sabe, eu não sou medroso, mas que
pessoa em seu juízo normal colocaria a foto de uma criança morta em um quarto
de hotel? Diga-me.
Joseph o encarou, desta vez com um ar de muita seriedade, se encaminhou para
a gaveta mais elevada da pequena cômoda e abrindo-a tirou um quadro. Mostrou
para Norman que já imaginava do que se tratava.
Um homem e uma mulher de cerca de quarenta anos e vestidos de roupas antigas
estavam mortos sentados em cadeiras, uma ao lado da outra. A mulher com um
tenro vestido branco e o homem de paletó xadrez.
― Apenas um doido varrido poderia fazer isto. ― respondeu Forbes.

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― Eu sei que antigamente era costume tirar fotos de pessoas mortas, mas nunca
tive conhecimento de um lugar, principalmente um hotel de beira de estrada cujo
principal atração fosse fotos de pessoas em seu primeiro estado post-mortem! ―
emendou Forbes.
― Não tem a data gravada no verso dele? ― perguntou Norman.
Joseph virou o quadro e não havia qualquer escrito gravado que pudesse dar uma
ideia de que época e quem eram aqueles defuntos.
― No primeiro dia que cheguei aqui tirei este quadro da parede e o guardei na
gaveta, sabe o que aconteceu quando eu acordei no outro dia? Sabe qual foi a
minha surpresa?
Norman negou com a cabeça, muito sério e com os olhos bem firmes em Joseph
que se inclinou, colocou a mão no ombro de Norman e com uma voz calma e
intrigante falou:
― Na manhã seguinte o quadro estava novamente pendurado em seu devido
lugar!
― E não adianta falar que dormindo eu recoloquei-o lá, pois até onde me lembre
não apresento casos de sonambulismo! ― emendou.
― Ao menos até onde eu saiba. ― Forbes continuou dizendo e gargalhou de sua
ironia.
― Não poderia ter sido o dono do hotel? Ele deve ter a cópia das chaves de todos
os recintos do estabelecimento.
― É uma possibilidade, mas eu não acredito, essas portas velhas rangem muito e
eu tenho um sono muito leve. Se uma barata rastejar perto de mim eu acordo.
Agora, imagine o ranger ensurdecedor de uma porta de quinta na merda de um
hotel de sétima categoria.
Norman apontou o dedo para Joseph e com indignação falou:
― Eu te juro que se aquele quadro sinistro estiver pregado na parede amanhã de
manhã eu ponho fogo nele e dou uma bela surra naquele velho bastardo. Eu
findarei com aquele quadro e vamos ver o resultado!
Seus olhos pareciam brilhar de raiva por estar em um hotel que cobrava a estadia,
mas, cujo dono não demonstrava respeito aos hóspedes.
― Aliás, Joseph, o que sabe sobre aquele velho, o dono do hotel? ― não se
conteve e perguntou.
― Muito estranho de fato, acredito que seja um pouco surdo e se eu parar para te
relatar os acontecimentos anormais que presenciei aqui, ficarei falando até não sei
quando. Faz quatro dias que cheguei aqui e já vi muita coisa. Por exemplo, certa
noite acordei na madrugada e ouvi barulho de madeira rangendo, com um pouco
de raciocínio percebi que alguém andava para lá e para cá no saguão do hotel,
como eu sou curioso fui bisbilhotar, estava um breu perturbador. Quando eu

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cheguei à escada e consegui enxergar o saguão, o velho estava com um castiçal
de três velas na mão andando para lá e para cá como se estivesse esperando
alguém chegar ou algo acontecer. Definitivamente eu resolvi saber o que se passa
por aqui. Estamos lidando com um louco ou este lugar esconde um mistério que
não pode ser revelado? Reforço minha ideia em motivo das regras conservadoras
do velho, que você já deve estar sabendo, subir até meia-noite e descer após o
meio-dia.
― O que mais aconteceu aqui? Quando cheguei, precisei esgoelar com o velho
para poder conseguir um quarto tão ruim como estes e logo notei a anormalidade
dele e de seu hotel.
― Você deve simplesmente ignorar que aquele velho existe, enfiar cinco dólares
no bolso da calça dele toda manhã e perguntar na cara dele se está satisfeito! ―
Forbes gesticulou ironicamente com a mão no bolso.
Norman percebeu que o senso de humor de Forbes era elevado e aumentou sua
admiração por ele. Com inquietação solicitou:
― Conte o que mais aconteceu de estranho.
Aquilo estava se tornando interessante.
Forbes terminou de se vestir, guardou o quadro que havia deixado na cama e
começou a pentear o cabelo, após se certificar do penteado, assentou-se ao lado
de Norman e fez uma pausa para refletir quando enfim começou o seu relato:
― Vou te descrever desde o dia que cheguei aqui, na segunda-feira à noite, mas
aconselho que seja na taverna, assim poderemos comer e dialogar melhor. Não
duvido que aquele velho possa estar ouvindo nossa conversa, as paredes deste
lugar parecem ser portadoras de ouvidos biônicos.
― Eu, sinceramente estou pensando em arrumar outro lugar para ficar, gostei de
nada daqui, se veres a banheira do meu quarto não vais acreditar!
Forbes achou graça do modo como Norman reclamou e apontou para o banheiro
de seu quarto como se estivesse recebendo o convidado de uma festa:
― Tenha a bondade de ver a minha. ― sugeriu a Norman.
Norman se levantou e Forbes o acompanhou ao banheiro, a banheira de Forbes
apresentava cascas negras em maior quantidade do que a de Norman que ao ver
a banheira do vizinho sentiu ânsia e quase vomitou. Forbes riu-se da careta de
Norman:
― Está bem, está bem, não era para tanto.
Forbes pôs as mãos nas costas de Norman e o puxou de volta ao quarto.
― Acho que é hora de irmos à taverna, já estou com fome e aquele velho louco
fecha o hotel às onze.
Norman concordou. Forbes foi cerrar a cortina e viu a intensa neblina que impedia
a vista exterior.

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― Me parece que o frio vai se intensificar esta noite, acho melhor nos
agasalharmos, caso contrário, estaremos assinando um termo de masoquistas
que querem desfrutar dos prazeres da hipotermia. ― sugeriu Forbes.
Norman se lembrou que não havia trazido roupa para a ocasião e praguejou a
pressa ao sair de casa, deu um tapa na testa.
― Vai me dizer que não trouxe qualquer casaco ou algo do tipo? ― indagou
Forbes.
― Digo! Maldita pressa ao sair de casa, que ódio...
― Calma rapaz, eu tenho um casaco de pele de sobra aqui, sou precavido, em
viagens não se sabe por onde vai andar.
Norman sentiu-se aliviado, afinal o frio não estaria para brincadeira logo mais,
naquele momento a temperatura já atormentava.
― Obrigado Forbes! Te devo essa.
― Não tem problema, talvez em algum momento possa me recompensar, estive
pensando...
Não concluiu sua fala e Norman estranhando forçou o assunto:
― Esteve pensando em quê?
― Gostaria que você me ajudasse em algo, mas só te digo na taverna, é conversa
particular.
Norman tentou encaixar os fatos e deduzir qual seria a ajuda que seu novo amigo
precisava, enquanto isto, Forbes tirou do closet dois casacos de pele idênticos,
deu um a Norman e vestiu o outro.
Quando Norman terminou de se vestir, Forbes riu-se do resultado, o casaco ficou
um pouco grande em Norman que fingindo estar sem graça caiu o semblante,
apenas para ver a reação do amigo. Forbes procurou consolá-lo:
― Não esquenta, só achei graça. Lembrei-me de certa vez quando eu era guri,
meu pai me deu uma camisa de basquete do Chicago e eu acabei a usando como
lençol, meu pai era um armário de gordo!
Norman desta vez gargalhou junto com seu amigo. Um momento depois Forbes
se encaminhou para porta e Norman o seguiu, o novo amigo destrancou-a e girou
a maçaneta. O corredor estava apenas banhado pela luz do luar que não era de
muita utilidade no caso. Era possível notar que o saguão estava às escuras, a
lareira devia estar apagada novamente.
― Uma lanterna seria bom negócio aqui! ― exclamou Forbes.
― Aquele velho dormiu ou esta lendo seu jornal no escuro e não percebeu a
lareira se apagar novamente. ― sugeriu Norman.
― Não acredito em alguma das duas possibilidades. Aquele velho faz tudo de
propósito, não tem conversa e nem cara de bobo!

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Forbes fechou a porta e trancou-a, desanimava colocar uma chave daquele
tamanho no bolso. Precisou guardá-la no grande bolso por dentro do casaco.
― Vamos descer com cuidado, a luz do luar embora com seu efeito brando, neste
hotel nos guiará na caminhada, vou à frente, siga-me. ― sugeriu Forbes.
Forbes com cuidado direcionou-se à escada que dava acesso ao saguão, Norman
ia atrás.
Chegaram ao começo da escada e o saguão pouco iluminado parecia estar
mergulhado em um silêncio sepulcral. Forbes colocou o dedo na boca sinalizando
para que Norman não fizesse qualquer barulho. Começou descer os degraus bem
lentamente.
Degrau por degrau, atingiram o saguão e não se ouvia ruído algum. A lareira
apresentava suas últimas fagulhas de vida, não havia brasas luminosas. Os dois
homens se encaminharam até a porta de saída que estava fechada procurando
não fazer ruído algum. Passaram perto da lareira e estavam perto da porta,
sentiram um calafrio percorrer a espinha e chegar à nuca gélida, tremeram-se.
Alguém parecia segui-los com cautela e se aproximar à medida que avançavam
em direção à porta.
Finalmente chegaram à porta e Forbes com cuidado girou a maçaneta, a porta
estava destrancada, mas ao puxar a maçaneta para abri-la foi impossível conter o
barulho de mecanismo ferroso que já precisava de um óleo para funcionar
corretamente, um ranger alucinante desferido como um golpe revelador por todas
as portas daquele misterioso hotel.
A névoa do lado de fora estava densa e somente uma águia astuta poderia
enxergar o que se passava na rua, as ruas de Pitfall não eram asfaltadas e as
portas das casas davam direto para a rua de terra. Era difícil enxergar os carros
que estavam estacionados próximos à porta do hotel. Norman saiu e se virou
enquanto Forbes ia fechar a porta. Intrigado, Norman olhou para o saguão do
hotel e constatou que não havia alguém embora pudesse se enxergar pouco o
recinto, a última visão que teve antes de Forbes fechar a porta foi o quadro da
anciã com aquela anomalia no olho.
Os dois seguiram lado a lado, encaminharam-se à taverna que ficava perto do
hotel, havia o hotel, depois uma casa ampla e em sequência a taverna. Os dois
iam em silêncio, isto incomodava Norman. Forbes tinha os olhos obcecados.
Ele saberia algo extraordinário?
Presenciara um fato inexplicável?
As perguntas passavam pela cabeça de Norman, que resolveu quebrar o silêncio
que o apavorava indagando Forbes, a garganta de Norman estava quase seca e
pareceu cuspir as palavras:
― Aquele quadro da velha caolha no saguão, você já reparou nele?

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― É impossível entrar naquele hotel e não tomar nota de um inconveniente
daquele porte. Digo, respeito as anormalidades humanas, mas não acho que uma
criança ou uma mulher sensível que se hospede com seu chefe de família aqui
queira voltar ou ouvir falar desta vila, e tudo isto por causa daquele quadro
horrendo.
Forbes parecia responder querendo tranquilizar Norman e demonstrava esperar
por mais alguma pergunta, qualquer bom entendedor poderia formular várias. A
taverna estava a vinte metros.
― E o que você acha sobre? ― indagou Norman.
― Eu acho que deveríamos pedir uma boa coisa para comer e depois sim
conversar sobre, reconheço que minha maior preocupação agora é a fome. ―
respondeu Forbes secamente, mas como se estivesse oferecendo um conselho
paterno.
Chegaram à taverna. Norman leu um letreiro de madeira arcaico que denotava o
nome do local. As palavras estavam esculpidas com algumas deformidades na
madeira, mas que esbanjavam uma bela estética à estrutura de entrada da
taverna.
BAVARIAN’S TAVERN
Forbes empurrou a porta de vai e vem e os dois entraram.
A taverna era composta por quatro mesas com quatro cadeiras cada, apenas uma
mesa estava ocupada com quatro homens que jogavam cartas, bebiam cerveja e
comiam amendoim torrado. Um deles estava com um cigarro de palha na boca e
usava uma boina, vestia um macacão jeans vazado nos ombros, daqueles que se
usa apenas uma camisa fina e as ceroulas por baixo. Mas ele trajava apenas o
macacão.
Outro tinha aspecto de brutamonte, devia pesar cerca de cento e vinte quilos, e
tinha a barba crescida, acima do normal. Os outros dois eram calvos, já idosos e
pareciam irmãos pelos traços fisionômicos. O mais novo dos quatro era o fortão.
No balcão, um homem alto e com aproximadamente cinquenta anos anotava em
um caderninho, não se deu conta da entrada dos novos clientes.
No lado esquerdo do estabelecimento havia uma cabeça de búfalo empalhada, no
direito uma de alce e na parede do balcão uma de porco ou javali. Atrás do balcão
havia uma prateleira recheada de garrafas de bebidas como vodca, vinho e
uísque. Ao lado da prateleira havia uma escada que dava para um andar de cima.
Na parede perto da mesa de carteado havia uma lareira com um fogo voraz e
abundante.
Norman ao entrar reparou na mesa do carteado, o velho de boina jogou uma carta
na mesa e deu uma risada que chamou a atenção de Forbes e Norman. O homem
parecia estar com os pulmões nas últimas e enquanto ria se afogava junto, mesmo

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assim não tirava o cigarro de palha da boca que espalhava uma leva enorme de
fumaça.
O brutamonte murmurou indignado para os demais que estavam na mesa:
― Ou ria, ou fume!
Os outros dois, que pareciam irmãos, desataram a rir da cara de indignação do
brutamonte que juntou as cartas num monte e recomeçou a embaralhá-las,
apenas ele estava sério na mesa naquele momento, parecia não estar gostando
da ideia de perder. Norman e Forbes acharam graça da risada do velho de boina
que se tornava uma figura cômica quando ria.
Os dois desviaram a atenção e sentaram-se à mesa mais próxima do balcão de
atendimento, o atendente ainda não havia percebido suas presenças. Forbes
esperou alguns segundos e como o atendente ainda não os notara, deu dois tapas
na mesa querendo despertar o distraído garçom.
O homem do balcão olhou para a mesa, largou o bloco de anotações e usou a
orelha como suporte para o lápis. Foi em direção à mesa dos dois clientes.
Aproximando-se, perguntou:
― Em que posso ser útil, senhor Forbes?
Forbes olhou para Norman por um momento e voltou a olhar para o atendente:
― Cerveja, truta ao molho e ovos com bacon. Por favor, senhor Fillman.
O homem consentiu com um gesto na cabeça e antes de se retirar sem perguntar
se Norman desejava algo foi interpelado por Forbes:
― O senhor Bobster passou por aqui?
― Certamente que não, eu o teria visto.
O homem parecia educado aos olhos de Norman, mas este discordou do assunto
sobre o anfitrião ter visto Bobster ou não. Nem sequer percebera quando eles
entraram, achou que Forbes deveria estar pensando o mesmo. Bobster passaria
despercebido como um exímio espião aos olhos do distraído.
― Quero te apresentar um amigo, Norman...
Forbes não se lembrou do sobrenome do amigo e fez um gesto repetitivo com a
cabeça e as mãos indagando o amigo, como se estivesse em dúvida numa
operação matemática. O interrogado respondeu:
― Norman Legrand.
Norman cumprimentou o taverneiro levantando-se e com um chacoalhar de mãos.
― Brad Fillman à tua disposição, quando desejar algo para comer você deve me
procurar.
O taverneiro conversava seriamente, demonstrava ser alguém de respeito, à
primeira vista agradou Norman.
― Fico grato, meu amigo disse que você serve uma truta ao molho maravilhosa.

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― É verdade, nosso amigo tem bom gosto. Modéstia à parte, minha esposa faz
uma comida de lamber os beiços, espero que aprecie.
― Obrigado! ― agradeceu Norman.
― Vocês devem estar com fome, já são quase dez horas, me aguardem.
O taverneiro se retirou e Norman tornou a sentar-se, olhou para Forbes que
reparava na mesa do carteado e voltou a fitar o amigo após a saída do taverneiro.
― Parece ser uma boa pessoa.
― Sim, pelo tempo que estou aqui ele apresentou-se alguém bem lúcido para os
problemas que enfrenta.
― Que tipos de problemas?
― O filho dele...
Forbes procurou melhor as palavras para expressar a situação para Norman,
tendo a cautela de não usar palavras agressivas que pudessem exibir preconceito:
― O filho dele teve problemas quando criança, sabe, entende o que quero dizer?
Acabou tendo sequelas, complicações para o resto da vida digamos assim.
― Entendo.
Forbes tossiu e após se recuperar continuou:
― Não te espantes se ouvirdes gritos vindos lá de cima, é o filho dele que fica
preso em um quarto.
― Que horror! E as pessoas não se sentem incomodadas ao virem aqui?
― Como posso te explicar? São velhos amigos do Fillman. E ainda por cima não
existe outro ambiente para se tomar uma vodca ou comer alguma coisa na vila.
Estão acostumados.
― As pessoas aqui do vilarejo demonstram ser muito respeitosas quando se fala
dos Fillman, é um nome de respeito por aqui. ― emendou.
Norman estava pronto para dar continuidade ao diálogo quando uma gritaria na
mesa do carteado rompeu seu raciocínio. Os dois olharam para contemplar a
cena. O velho de boina estava com uma carta colada na testa e estava com a face
avermelhada dando uma risada com gosto, os outros dois também gargalhavam
enquanto o brutamonte se levantava.
O brutamonte deu um tapa na mesa e com a expressão de nervosismo desabafou:
― Mas, que droga de baforada na minha cara Parker! Misericórdia, vá escovar os
dentes sua enguia de merda! Eu conheço um dentista muito bom! Apague essa
droga de cigarro fedorento!
Voltou a se sentar enquanto os outros não paravam de rir, o de boina tossia, ria e
fumava ao mesmo tempo. O brutamonte demonstrava não gostar de perder no
jogo.

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Norman se voltou para Forbes, os dois também riam das personagens daquela
cena.
― Ei cara, você vai gostar de frequentar esta taverna, que espetáculo!
Norman ainda ria quando perguntou:
― Você os conhece?
― O fortão que está bravo é Horace Singer, pelo que eu saiba se alguém quiser
lenha na vila basta conversar com ele, deve ser um lenhador. O de boina e cigarro
eu não conheço, mas ele sempre está jogando quando eu venho comer e tomar
algo. Os outros dois são inéditos, nunca os vi por aqui.
A conversa foi interrompida pela chegada da refeição, o taverneiro amavelmente
depositou dois pratos com filés de truta ao molho, bacon e ovos fritos e uma
verdura escura, após depositar os pratos foi a vez de colocar à mesa uma garrafa
de cerveja e uma de água com um copo pendurado no bico de cada garrafa.
― Bom apetite, amigos! ― o taverneiro desejou e se retirou.
Os dois não tiveram tempo de agradecer quando um novo alarido na mesa de
carteado chamou-lhes a atenção.
O brutamonte novamente se levantou, agora parecia mais nervoso. Pegou a
cadeira e arremessou no chão, os outros três riam cada vez com mais gosto.
― Parker! Se você roubar outra vez, prometo que nunca mais jogo com vocês.
Aposto que existe meia dúzia de quatro de paus escondidos atrás desse macacão
cheirando a peido! Eu juro que esmago esse seu crânio de ratazana!
O fortão dizia fazendo um gesto com as duas mãos como se estivesse
esmigalhando alguma coisa. Os outros apenas riam, o fortão foi em direção ao
balcão e parecia estar tremendo de raiva, já estava perdendo o controle e ele
sabia disto, razão pela qual se retirou da mesa, pediu uma vodca para o taverneiro
e por fim bufou.
O velho de boina não parava de rir e tossir ao mesmo tempo, mesmo assim não
tirava o cigarro de palha fumegante da boca.
A cena já começava a parecer uma encenação cômica para atrair curiosos.
Norman pensou que tudo aquilo daria um bom seriado de comédia.
O taverneiro serviu o brutamonte que começou a tomar com extrema rapidez o
conteúdo do copo de vodca, pediu outro.
Norman e Forbes voltaram a atenção para o repasto da mesa e como estavam
com fome começaram a comer com vontade. Não havia tempo a perder devido o
horário que avançava e o regresso ao hotel se aproximava.
― Forbes, você é dono daquele carro que tem um colante com uma mensagem
de Deus escrita? Digo, o corvette.
Forbes afirmou com a cabeça, pois estava com a boca cheia.

39
Norman percebeu a mixórdia carnavalesca que se tornara o prato de Forbes.
O que fora interrogado terminou de mastigar e respondeu:
― É meu sim e procuro sempre cumprir a mensagem que lá está escrita.
Forbes voltou a encher a boca daquela salada de alimentos e Norman se serviu
de um pouco de água. O brutamonte se aproximou da mesa com um copo de
vodca na mão.
― Eu não conheço vocês dois, aliás, o senhor me parece já ter vindo aqui. ―
disse mencionando Forbes, dirigindo-lhe a conversa.
― Eu já estive algumas vezes por aqui, sempre venho fazer minhas refeições.
Chamo-me Joseph Forbes e este é Norman Legrand. ― Forbes deu um aperto de
mãos em Horace e apontou Norman, que por sua vez também cumprimentou o
recém-chegado do mesmo modo.
― Sou Horace Singer, o lenhador da vila, posso me sentar com vocês?
― Lógico, fique à vontade. ― respondeu Norman espontaneamente.
O grandalhão puxou uma cadeira e se sentou do lado de Norman, de costas para
a mesa do carteado, parecia querer evitar chacotas dos jogadores que o haviam
depenado.
A presença do brutamonte poderia atrapalhar o diálogo particular entre os dois
amigos, mas tudo indicava que logo se retiraria.
― O que fazem por aqui? ― perguntou após sentar-se folgadamente na cadeira.
― Estamos de passagem, somos forasteiros e viemos parar aqui pelo mesmo
acaso. ― respondeu Forbes.
― Está servido? Come conosco? ― emendou oferecendo a comida para o
lenhador.
― Não, muito obrigado, já me satisfiz muito bem. Fico-lhes grato.
― Qual foi o mesmo motivo que os levou a se hospedarem aqui? Creio que estão
no Bobster Inn, é o único hotel da vila.
― Estávamos de passagem e vimos uma placa indicando a vila, no meu caso,
tive que parar, pois uma chuva se aproximava, precisaria de abrigo urgentemente.
Forbes olhou para Norman dando a entender que o resto da resposta era com ele.
― Comigo ocorreu quase o mesmo, estava passando e a noite se aproximava até
que vi a placa.
― Afinal, poderia nos informar quem confeccionou aquela placa? ― perguntou
Norman.
― Você disse confeccionou? O autor daquela obra de arte quis desenhar seu
próprio nariz! Dou-lhes dez dólares se adivinharem quem dos três foi o artista.
Horace apontou para a mesa do carteado onde os três agora pareciam conversar
sobre outro assunto que não era o jogo.

40
― Meu voto vai para o velho de cigarro de palha. ― chutou Norman, e Forbes
concordou com o amigo.
Horace colocou a mão no bolso da calça e ia tirar o dinheiro quando Forbes o
impediu com as mãos:
― Não precisa te dar ao luxo, uma criança de três anos saberia a resposta!
Os três acharam graça da colocação de Forbes. Os dois forasteiros voltaram a
saborear a comida, não tocaram na cerveja.
― Nunca vi alguém pedir cerveja e não abrir antes de comer! ― Horace exclamou
com ar de quem queria um tomar um copo.
― Eu não tomo, peguei para meu amigo. ― Forbes apontou com a cabeça para
Norman.
― Eu também não tomo, achei que a havia pêgo para ti, homem. ― Norman se
defendeu.
― Nesse caso não precisam discutir, eu aceito um gole.
Horace terminou de engolir o resto da vodca e abrindo a cerveja com os dentes se
serviu de um copo. Era óbvio que sua intenção no caso era pagar a cerveja, mas
não encontraria restrições com os dois forasteiros.
Os novos clientes terminaram de comer e Forbes assobiou para que Fillman
viesse dar a conta, o taverneiro prontamente se encaminhou para a mesa.
― Desconte os pratos e as bebidas deles no meu nome. ― sugeriu Horace.
― De jeito nenhum, eu pago a conta! ― exclamou Forbes indignado com ar de
bom receptor de visitas de cortesia como fizera o lenhador.
Norman resolveu não entrar na disputa e a conta depois de muita insistência ficou
para Horace que alegou ser o anfitrião e que considerava de bom grado as visitas
em Pitfall que eram raras.
― Eu prezo uma boa companhia que é rara por aqui, faço questão de pagar a
conta. Tirou vinte dólares e deu ao taverneiro que por sua vez tirou um pacote de
notas do bolso e devolveu o troco.
― Gostaram da comida? ― perguntou o taverneiro em expectativa.
― Demais! ― Forbes fez um gesto de jóia com o dedo e Norman o seguiu.
O taverneiro satisfeito se retirou, o brutamonte esperou sua retirada e se servindo
de mais um copo de cerveja ia abrir a boca para falar quando foi cortado por uma
voz da mesa do carteado, era o velho de boina:
― Freguês paga a conta na mesa de carteado também!
O velho de boina desatou a rir, tossindo e fumando ao mesmo tempo, como
sempre. Os dois forasteiros mantiveram-se inertes, poderiam deixar nervoso o
lenhador que respondeu secamente sem olhar para trás:

41
― Não sou obrigado a pagar a cerveja que enche o bucho fedorento de velhos
rabugentos!
Tornou a tomar outro gole, o velho de boina se manteve sério e um tempo depois
começou a rir novamente, os outros dois da mesa de carteado estavam
conversando com o taverneiro, pagando a conta.
― E tem mais, amanhã se eu vier jogar será com carta escondida atrás das
mangas e não acaba por aí...
Tomou outro gole e emendou:
― Trarei também meu cão e você verá que ele estranha farejar peças improváveis
como você, uma hiena velha!
Horace Singer e o velho de boina, Josias Parker, na verdade, comumente eram
vistos juntos. Os dois não eram inimigos, mas na hora do jogo um não suportava a
vontade de tirar sarro do outro. O cão, Winepowder, que o brutamonte se referia,
se dava muito bem com Josias Parker. Para quem conhecia os dois, achava que
tudo aquilo era encenação.
Não era aquela amizade colorida, mas Parker sempre gostava de tirar um sarro da
cara do lenhador mesmo fora da mesa de carteado, às vezes. A rixa do jogo
levava o velho de boina a armar golpes em outros lugares, prejudiciais na maioria
das ocasiões.
Horace, por fim se levantou e despediu-se dos dois forasteiros, foi em direção da
cadeira que havia arremessado ao chão e a colocou no lugar.
Os dois velhos calvos voltaram para a mesa de carteado, o de boina se levantou.
Subitamente alguém que parecia estar correndo de algum carrasco abriu a porta
de vai e vem tomando a atenção de todos, era um homem todo sujo e descalço,
sua barba e cabelo cor de mel estavam por aparar, era tão maltratado que ao ver
dos dois forasteiros se tratava de um andarilho. O homem fez um par de chifres
em sua cabeça com os dedos indicadores das duas mãos e mostrou a língua,
estava sem fôlego e era como se quisesse dizer algo, mas não conseguisse falar.
Tudo aconteceu muito rápido, primeiro o taverneiro apagou a luminária, depois o
brutamonte gritou para os dois forasteiros:
― Para baixo da mesa!
O andarilho, o velho de boina, o brutamonte e os dois outros entraram debaixo da
mesa de carteado. Os dois forasteiros sem saber o que se passava, obedeceram
ao brutamonte e também se deitaram debaixo da mesa em que fizeram a refeição.
O taverneiro puxou um rifle de trás da prateleira de bebidas, se abaixou como se
buscasse proteção atrás do balcão, mas pronto para atirar. Apenas a lareira
emanava sua luminosidade bruxuleante, formando figuras fantasmagóricas nas
paredes do local e transformando as cabeças de animais empalhados em aliadas
do terror.

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Um silêncio apavorante tomou conta do recinto, todos estavam com uma
sensação de expectativa e se atentavam para a porta de vai e vem. Os dois
forasteiros poderiam perceber que os anfitriões pareciam estar numa posição de
proteção, em guerra, mas tudo se passou tão rápido que a tensão não permitia
sequer raciocinar. Passaram-se cerca de vinte segundos que transcorreu como
uma eternidade para os homens na taverna.
Enfim, os olhos dos dois forasteiros puderam ver o que afligia tanto os anfitriões.
Um feixe de luz esverdeada e incandescente tomou conta da soleira da porta de
vai e vem, zumbia com uma espécie de choque e dava a impressão de cruzar a
calçada andando. Brad Fillman se levantou e soltou dois disparos rumo à porta.
Um grito de agonia rompeu o silêncio da noite após os dois disparos. O grito vinha
do andar de cima da taverna e parecia uma presa que desesperada acabava de
ser capturada pelo predador.
Os gritos se propagaram durante um minuto e depois foram se abrandando, e por
fim cessaram, como se a presa visse com um alívio o predador a farejando e a
julgando carne de segunda, inviável para se devorar.
Mais alguns segundos de tensão se passaram quando Joseph Forbes quebrou o
silêncio:
― Mas, o que foi aquilo?
O lenhador colocou o dedo na boca sinalizando para que houvesse silêncio e fez
um ruído: "shhiiiii".
Após mais um minuto de tensão foi possível ouvir o ruído de choque como se um
inseto voador e de um tamanho considerável batesse suas asas. A luz novamente
passou pela porta da taverna, como se estivesse fazendo o caminho de volta,
mais lentamente desta vez, parecia farejar algo para ter certeza, por fim, ela se foi
e tudo voltou a ficar escuro novamente, o zumbido cessou.
Após alguns segundos, o lenhador se levantou, foi até o taverneiro e lhe tomou a
arma das mãos, correu em direção à porta almejando ver a luz verde.
Fillman o seguiu.
Enquanto os dois homens olhavam para fora, o restante dos homens começou a
se levantar e ir em direção à porta.
Todos se colocaram a fitar a mesma direção da floresta com os olhos atentos e
fixos. Podia-se distinguir uma luz verde de um metro mais ou menos entrando na
floresta do outro lado da rua principal, não se podia ouvir os zumbidos de tão
longe. Ia entrando cada vez mais na floresta, até que desapareceu, a névoa não
permitia ter uma visão completa do ambiente externo da taverna, podia-se ter
pouca noção do que se passava lá fora.
Brad Fillman olhou para o brutamonte e depois correu os olhos em todos os outros
homens, respirou fundo e depois cortou o silêncio:

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― Muito bem homens, vamos entrar, o show acabou.
Forbes franziu a sobrancelha e olhou para Norman que estava pasmo, sem voz,
como se fosse uma criança que estivesse vendo de perto o personagem do
desenho favorito, aficionada.
Horace e os outros homens estavam muito sérios. O brutamonte tomou uma
iniciativa:
― Acho melhor irmos embora.
Referia-se a Parker e os outros dois que jogaram cartas. O lenhador devolveu a
arma para Fillman e se encaminhou para casa, seguido pelos outros três. Fillman,
Forbes, Norman e o andarilho esperaram que os outros sumissem de vista,
olhavam o grupo se afastar da taverna em direção à metade da rua principal.
Enfim os homens se viraram e sumiram numa ruela do meio que dava acesso às
outras ruas da vila.
Fillman tornou à taverna, seguido pelo andarilho. Forbes e Norman esperaram um
pouco e resolveram segui-los.
O andarilho seguia o taverneiro aonde quer que fosse. Os dois novos clientes
ficaram à porta do lado de dentro olhando o ambiente, quando o taverneiro foi para
trás do balcão provavelmente para pegar o dinheiro do caixa, Forbes foi até ele.
― O senhor pode explicar o que se passou aqui? ― perguntou como se fosse um
detetive que acabava de presenciar um caso extraordinário.
Fillman o fitou seriamente e colocando o dinheiro numa sacola respondeu
secamente:
― Não sou a pessoa mais indicada para que dirija esse tipo de pergunta!
Forbes ficou sem graça. Norman o esperava na porta. Mas, Forbes considerava à
primeira vista a simpatia do taverneiro e redarguiu:
― Bem, qualquer um no meu lugar teria a curiosidade de saber o que se passou
aqui, alguém que mora por aqui deve saber algo sobre...
― Já te disse que não sou a melhor pessoa para dirigir tais perguntas.
Deu uma pausa, aparentemente ia levar o saco com o dinheiro para o andar de
cima quando novamente falou:
― Acho melhor irem embora, podem estar correndo perigo por aqui. Já vou fechar
a taverna, voltem amanhã, teremos uma comida deliciosa.
O taverneiro havia deixado a arma em cima do balcão e mesmo assim seguido
pelo andarilho subiu a escada que dava para o segundo andar e sumiu de vista.
― Ele não me pareceu tão aspero a princípio. ― Forbes murmurou se voltando
para Norman e se encaminhando para o amigo com uma feição de espanto no
rosto.
Norman propôs uma solução para a atitude do taverneiro:

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― Ele está visivelmente abalado, assim como os outros homens que estiveram
aqui.
O taverneiro começou a descer a escada, os dois amigos iriam esperar ele fechar
a porta da taverna. Dirigiram o olhar atento às atitudes do homem que após
guardar o rifle atrás da prateleira de bebidas se encaminhou para a porta.
Quando chegou perto dos dois amigos, o taverneiro fez sinal para que saíssem de
um modo educado com as duas mãos, apresentava um sorriso amável no rosto.
Os dois amigos foram para o lado de fora da taverna, o taverneiro puxou uma
porta que estava por trás da de vai e vem e a trancou com a chave. Pôde se ouvir
o ruído da chave na fechadura.
Os dois amigos ainda um pouco abalados e sem nada dizerem resolveram ir para
o hotel. Expulsos pelo taverneiro e de frente para a porta trancada da taverna.
Um uivo de lobo deixou o ar da pacata e ofuscada figura da rua principal mais
sinistro. A névoa era mais intensa e se os dois não tivessem cuidado de
certificarem-se em que lugar estavam pisando, poderiam tropeçar ou se
depararem com algo indesejado.
Com dificuldade chegaram à porta do hotel, Forbes novamente tomou a iniciativa
e girou a maçaneta, a porta se abriu. O recinto se encontrava apenas iluminado
por uma vela que estava em cima de um banquinho perto do balcão de
atendimento. Forbes sinalizou para que Norman fizesse silêncio. Encaminharam-
se para a escada lentamente, passo a passo, o velho do hotel parecia não estar
por ali. Norman pressentia que ele espreitava de algum lugar escuro e era o que
parecia pensar Forbes também.
O sangue que circulava nas veias de Norman parecia estar quente, sua face era
banhada pelo calor da tensão. Forbes chegou perto do primeiro degrau, quando ia
se preparar para começar a subir os degraus, Norman espirrou, não muito alto,
mas o silêncio chegou a atormentar quando cortado pelo som do espirro
repentino.
Forbes parou e o olhou, Norman tampou o nariz e a boca com as duas mãos e
espirrou, uma rajada de ar passou em seus dedos e fez uma brisa no rosto de
Forbes.
Forbes pegou no braço de Norman e começou a subir os degraus um pouco mais
depressa.
Chegaram ao último degrau, a vela se apagou, o breu tomou conta do local.
Mas, que falta de educação e consideração para com os clientes, não existe
iluminação num hotel em plena noite escura e nevoenta. Pensou Norman não
sabendo se teria uma conversa com o velho no outro dia, não tinha mais tanta
certeza assim se encararia aquele estranho senhor.

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Os dois homens com um sobressalto olharam para onde estava a vela, não se
podia saber qualquer coisa do que se passava lá embaixo devido a escuridão.
Um ruído soou lá embaixo, era a porta da frente sendo trancada, a chave sendo
girada na maçaneta, após dois segundos soou um barulho, desta vez era a chave
que caía ao chão, perto da porta de entrada.
O dono do hotel trancou a porta e deixou a chave cair ao pegá-la de volta?
Esta pergunta ficou no ar para os dois amigos, não se pôde ouvir mais ruído
algum, apenas o silêncio era capaz de responder perguntas naquele lugar.
Os dois apressadamente se dirigiram para o quarto de Forbes, com dificuldade
pela escuridão, mas o tato os ajudou muito a distinguir qual era a segunda porta
do lado esquerdo.
Forbes pegou a chave no bolso dentro de seu casaco e a colocou na fechadura,
destrancou, girou a maçaneta e empurrou a porta. Por fim, acendeu a luz e os dois
homens entraram, lá dentro parecia fazer mais frio do que lá fora.

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7

O DRAMA DOS FILLMAN

Brad Fillman subiu para sua casa que era o segundo andar da taverna. Sua
família era constituída por um filho problemático, Zack Fillman, vinte e poucos
anos e sua esposa Hilda Fillman, que como ele, tinha cinquenta e dois anos.
Visivelmente um amor que vinha dos tempos de colégio.
Sua mulher era a responsável pela comida servida na taverna, era uma ótima
cozinheira e para agradar os clientes, sempre inovava em seus pratos.
Brad entrou em seu quarto e começou a se despir para tomar um bom banho,
afinal, merecia aquilo, ficar um dia todo atendendo não era fácil.
O que mais cansava era o pouco movimento na taverna ao invés da alta demanda
de trabalho, vez ou outra chegava a cochilar por duas ou três horas sem receber
qualquer cliente.
À noite o movimento era garantido, muitos vinham jogar cartas ou até mesmo
tomar uma boa bebida, sem contar os forasteiros que chegavam, que sempre
faziam suas refeições na taverna, mas infelizmente, eram raras tais visitas.
Ficou nu e pegou a toalha que estava pendurada em um prego da porta e enrolou-
a escondendo sua nudez, se encaminhou para o banheiro que ficava em frente ao
seu quarto.
Deixara o andarilho fazendo companhia para Hilda na cozinha, esta terminava de
assar um bolo de milho.
O andarilho era da confiança de todos os moradores de Pitfall, chegava a ser
considerado um patrimônio público. Não tinha uma casa e cada dia estava em um
lugar, daquela vez, dormiria com os Fillman.
Brad tinha muito afeto por ele e na maioria das vezes o andarilho pernoitava na
casa do taverneiro. Afinal, tinha o quarto que deveria ser o de Zack sobrando e
deixar aquele homem respeitado por todos dormir sem um abrigo na noite gelada
seria uma maldade sem tamanho, no outro dia estaria morto com certeza, devido
às baixas temperaturas.
Brad terminou o banho, sua expressão a todo o momento era de muita seriedade.
Foi para o quarto no intuito de colocar a vestimenta para dormir, abriu um enorme
guarda-roupa de madeira e retirou o roupão. Vestiu-se e pendurou a toalha em
seu devido lugar para secar, não era daqueles que jogam a toalha em cima da
cama e lá a deixa até que a esposa tenha a boa vontade de pegá-la e colocá-la
em seu devido lugar.

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Brad respeitava muito a esposa e ela sabia retribuir sendo atenciosa e trabalhando
incansavelmente para não deixar faltar opções aos clientes na taverna. Sua
esposa com muita paciência cuidava de Zack, era um exemplo de mãe e mulher.
Saiu do quarto, dobrou um corredor que dava para a cozinha e caminhando
lentamente começou a assobiar uma mistura de ritmos. Chegou à cozinha e
entrou. Sua esposa e o andarilho já estavam o esperando para o jantar. Os dois o
fitaram ao entrar e continuaram assim até que ele se sentasse.
― A madrugada será fria, dê duas cobertas a ele. ― Brad disse mencionando o
andarilho.
Os três começaram a se servirem de comida. Hilda por sua vez replicou:
― Tudo bem, depois você me ajuda a vestir o Zack, afinal, já deveríamos tê-lo
feito.
Brad olhou para o andarilho que comia e não prestava atenção na conversa,
depois olhou para Hilda:
― Enquanto ele toma banho eu te ajudo. ― referiu-se novamente ao andarilho.
― O Zack gritou como louco e estava olhando para a rua, precisei bater à porta
para acalmá-lo. ― desabafou Hilda ao beber um gole de suco.
Era costume dos Fillman abrir a porta do quarto de Zack, dar algumas batidas
fortes na porta e dizer-lhe: "parou, gatinho", a fim de que ele acalmasse, isto
sempre funcionava e quando Zack tinha seus ataques de gritos era muito
necessário.
Brad respondeu olhando para seu prato e acrescentando tempero:
― Todos ouviram lá embaixo, foi aquela coisa outra vez.
Hilda pareceu dar um sobressalto e ter uma preocupação nos olhos, o andarilho
terminava de comer e levantou-se para colocar a louça que ocupara na pia.
Brad o interpelou:
― Já terminou? Vá tomar um banho, vou te dar uma das minhas roupas. Hilda
terá a bondade de lavar a tua amanhã cedo.
O andarilho olhou para trás e assentiu com a cabeça, novamente virou-se e
encaminhou-se para a pia. Depositou o prato na pia e sem olhar para os dois
benfeitores saiu em direção ao banheiro.
Precisavam vestir Zack com uma roupa para o frio tendo o cuidado de não deixar
qualquer instrumento que pudesse feri-lo ou engasgá-lo no quarto.
O quarto em que Zack ficava não tinha móvel algum e nenhum objeto, pois
qualquer coisa poderia ser uma arma de suicídio, faria uma tragédia
inconscientemente, pois não tinha a noção do que era perigo e do que não era.
Certa vez, Hilda tivera a imprudência de esquecer uma faca de cozinha no quarto
de Zack quando fora acalmá-lo. A sorte foi que em poucos segundos se lembrou e

48
voltou correndo pegar a faca. Zack já estava perto da arma e por mais alguns
segundos provavelmente poderia ter feito uma besteira que lhe custaria a vida.
Hilda naquele dia estava muito atarefada com a cozinha. Na ocasião, Zack
começou a ter seus ataques e ela no calor do momento correu levando a faca na
mão. Ao acalmar Zack, precisou ajudá-lo a se deitar no colchão, colocou a faca no
chão e não se lembrou. Brad cuidava da taverna e enquanto estivesse lá embaixo,
somente ela cuidaria do filho e o quarto do menino ficava um pouco longe da
cozinha, aquilo poderia ser um motivo de perdição.
Hilda apresentava quase todos os fios de cabelo da cabeça grisalhos, não tinha
idade para tal, mas com sua mãe ocorrera o mesmo problema de “grisalhisse
precoce”, cabelos brancos pouco depois dos quarenta anos.
Terminaram o jantar e Hilda decidiu deixar a louça para o outro dia.
Os dois saíram da cozinha e se encaminharam para o quarto de Zack.
Hilda antes disto foi ao guarda-roupa do quarto que deveria ser o de Zack, mas
que abrigava o andarilho vez ou outra e pegou uma roupa de frio para o pobre
menino.
Hilda entregou a chave a Brad, para que este destrancasse a porta.
Eles entraram, o rapaz estava deitado no colchão, dormindo e esta era a pior
ocasião para vesti-lo, ele odiava ser acordado e precisaria ser acalmado
novamente.
Enquanto isto, o andarilho tomava banho vestido com sua roupa suja, talvez não
tivesse se apercebido disto ou fosse acostumado a se banhar vestido. Quase
dormitava debaixo do chuveiro por causa da bebida, estava um pouco ébrio e
talvez isto justificasse sua imprudência.
Pesava muitos quilos a mais naquele momento devido às roupas encharcadas.
Era perigoso contrair uma pneumonia cometendo tal infâmia.
Ouviu os gritos de Zack e acordou do seu quase sono, desta vez terminaria o
banho sem tosquenejar, assim seria melhor, depois poderia cair na cama e dormir
até não poder mais.
Saiu do chuveiro e o fechou, com a roupa suja e ensopada se encaminhou para a
porta do banheiro, abriu e foi em direção ao quarto que deveria ser o de Zack com
a finalidade de pegar a outra roupa com Brad.
Quando chegou quase rente à porta de seu aposento de destino, o casal saía do
quarto de Zack.
Brad trancou a porta com extrema rapidez como se estivesse querendo evitar a
fuga da fera, o taverneiro fez este movimento olhando para o andarilho.
O casal deu uma risadinha bondosa e conduziu o andarilho de volta ao banheiro.
Estavam lidando com duas pessoas dependentes, totalmente, no sentido mais
crucial e veemente da palavra.

49
Poderiam ser bons cuidadores de idosos em asilos ou crianças em orfanato.
― Espere aqui, Hilda pegará um roupão meu para que você vista.
Enquanto Hilda ia buscar o roupão, Brad ficou à porta do banheiro como se
estivesse barrando a saída do andarilho, olhava a roupa encharcada do tolo, no
bom sentido.
― Você pode pegar uma pneumonia assim, o que digo é sério, se é que se
preocupa com a tua vida.
O andarilho abaixou a cabeça tristemente, como se estivesse levando advertência
do pai ou do professor. Hilda voltou com o roupão e entregou a Brad que por sua
vez a entregou ao andarilho, fechou a porta e ficou como se estivesse de guarda,
pois às vezes, o andarilho deixava de fazer uma coisa que levaria alguns
segundos para executar outra que demoraria horas e não era tão urgente no
momento, como por exemplo, deixar o roupão para lá e ir dormir naquele estado,
todo ensopado.
Brad ouviu uma batida na porta e abriu-a, o andarilho saiu e foi conduzido ao
quarto em que já dormira inúmeras vezes. Hilda ajeitava a cama para ele e após
terminar deu dois tapas no colchão e disse:
― Está pronta, use e abuse à vontade.
O andarilho deitou-se e após se embrenhar estranhamente debaixo das duas
cobertas não demorou a dormir. O casal saiu e desligou a luz, deixaram a porta
entreaberta.
Não era necessário emprestar uma escova de dente para o andarilho, os poucos
dentes que lhe restavam só teriam salvação com uma boa operação odontológica.
Brad em seu interior já pensara em levantar um dinheiro na vila para a operação
do amigo, mas muitos poderiam não gostar alegando que o andarilho voltaria a
derreter os dentes na base da cachaça.
O casal estava deitado.
Hilda dormia e Brad refletia algumas coisas. Não seria impossível conseguir a
verba para a operação do amigo, todos na vila gostavam dele e isto contava muito.
Aqueles dois forasteiros deveriam voltar no dia seguinte à taverna e Brad sentiu
remorso ao lembrar-se de como os tratara com indiferença após a vinda da luz
verde, mas aquelas perguntas não deveriam ser direcionadas a ele, no entanto,
eles não sabiam disto e se caso estivesse no lugar deles faria o mesmo.
Afinal não fora tão grosso assim e uma boa amizade não poderia acabar só
porque ele não queria mencionar assuntos desagradáveis. Enquanto uns teriam o
maior prazer em conversar sobre o caso, ele se sentia incomodado como se fosse
um cúmplice de um assassinato que estava sendo averiguado por investigadores,
isto muito lhe incomodava.
Ora bolas, poderia responder se quisesse!

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Os pensamentos o levaram a refletir que seria bom contar com um rádio ou uma
televisão, mas naquela droga de vila situada no meio de quilômetros de floresta
não era possível ter sequer sinal da idade das cavernas.
Em plena era da tecnologia, os nostálgicos habitantes de Pitfall...
Foi perdendo os sentidos e o cansaço do dia lhe venceu, estava dormindo e só iria
acordar de manhã, quando fosse chamado pela amada Hilda para mais um
massivo dia de interminável espera.

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8

UMA NOITE FRIA

Horace Singer caminhava em direção à sua casa, ia pelas calçadas das casas
vizinhas, pois com a neblina ficava impossível saber o que se passava nos
arredores e não seria bom negócio andar próximo à floresta.
Quanto mais afastado melhor.
Passou em frente à casa dos Malone e apertando os passos chegou finalmente à
porta de seu lar, doce lar.
Com o barulho da porta despertou seu querido cão que permanecera na mesma
posição onde se deitara quando o dono fora à taverna.
Passavam-se quase duas horas desde a sua saída e o fiel cão aproveitara para
dormir.
O cão com alegria correu até Horace que com uma mão acariciou-lhe e
contorcendo o corpo se virou para trancar a porta com a outra mão. Foi uma tarefa
que lhe rendeu uma fisgada nas costas e demonstrou-lhe como a idade poderia
pesar. Ela estava chegando, isto era um fato.
Feito isto, foi a vez de acariciar com as duas mãos seu cão que se equilibrava com
as duas patas dianteiras no abdômen do lenhador.
Horace refletindo, chegou à conclusão de que o horário estava um pouco
avançado para se ficar sentado ao lado da lareira.
No dia seguinte uma árvore de tronco bem grosso o esperava e ele queria
terminar o serviço cedo, seria sábado e estava ansioso para caçar com Ronald,
como não fazia há duas semanas.
― Vamos subir garoto, amanhã teremos um dia daqueles. ― murmurou
carinhosamente para o cão.
Quando se preparava para subir as escadas se lembrou do jogo de cartas na
taverna e amaldiçoou Josias Parker pela roubalheira.
Amanhã aquela velha hiena não me vencerá, vou arranjar três cartas secretas e
quero ver, se ele começar com suas gracinhas, calo-lhe a boca. Pensava.
Ainda estava indignado em perder e sequer sabia se o adversário estivera sendo
desleal, conhecia muito bem o velho Parker e era de se julgar que este estivesse
roubando no jogo.
Do contrário, caso estivesse enganado, um modo de amenizar a vergonha da
derrota era acusar o oponente de roubo, mas nunca congratulá-lo pelo magistral
êxito.
Terminou de subir a escada.
Seu cão sempre o seguindo.

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Chegou ao quarto que ficava com a porta aberta o tempo todo e entrou. Teria que
pegar dois cobertores que estavam dobrados em cima do guarda-roupa, olhou
para a mesinha ao lado da cama para se certificar se não houvera se esquecido
de trazer o café e ao constatar que ele estava lá, deu um sorriso de prazer.
Um bom café para me fazer esquecer do gosto da vodca. Pensou.
Jogou os dois cobertores na cama e Winepowder pulou garantindo seu lugar na
cama de casal. Era como se quem chegasse primeiro tivesse lugar para dormir.
Horace o olhou e fingindo estar lidando com um folgado falou:
― Virou o cão rei, seu pilantra?
O cão olhando-o pareceu entender e abanou o rabo, depois começou a se
esfregar na cama.
Deixando de contemplar a cena, Horace foi até o banheiro para se trocar e
escovar os dentes. Acendeu a luz e ficou contemplando seu rosto no espelho,
alguns cabelos grisalhos começavam a surgir na cabeça e na barba. Para ele não
era motivo de preocupação, mas, pensando melhor, estava muito carente nos
últimos tempos. Precisava do colo aconchegante de uma mulher.
Na verdade, sempre precisara, mas não dava o braço a torcer e insistia em manter
sua existência individual.
Escovou os dentes primeiro e tirou a roupa, trocando por uma de dormir que
sempre deixava de prontidão caso chegasse tarde da noite, assim não precisaria
ficar se preocupando com a roupa de dormir ou onde procurá-la.
Conhecia-se bem e sabia que se chegasse nocauteado de sono não aguentaria
trocar a roupa e se jogaria na cama adormecido antes mesmo de encostar a
cabeça.
Após fazer o que devia, voltou ao quarto, acendeu o abajur que se localizava junto
à garrafa de café na mesinha ao lado da cama e voltou à porta para apagar a luz.
Pensou que seria melhor ter um interruptor perto da cama, acessível.
Depois de apagar a luz olhou para Winepowder que deitado do mesmo modo que
estivera na sala, o fitava, parecendo estudar cada um de seus movimentos e
querer se tornar semelhante ao dono, em algum dia.
Horace deitou e o cão abanou o rabo com mais alegria.
Ele pegou a garrafa de café e se serviu de um copinho.
― Você não bebe café, não adianta ficar me encarando.
O cão estava sentado, o fitando, como se o homem estivesse comendo um
pedaço suculento de bife.
Wine assim permaneceu até o dono acabar de tomar o café, depositar o copo na
mesinha e encostar a cabeça no travesseiro.

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Como sempre, o cão foi ao rosto do dono e deu-lhe duas lambidas na boca, isto
era ritual antes de dormir, o cão sabia demonstrar seu carinho para com o
bondoso e fiel homem.
― Você não é minha mulherzinha para ficar me lambendo assim! ― falou em tom
de advertência como quem quer aconselhar um amigo, apontando o dedo
indicador e ameaçador.
O cão fez um ruído de sentir pena com a boca e se deitou. Horace jogou as duas
cobertas por cima dos dois, apagou o abajur e se virou para o lado de
Winepowder. O cão sabia que o dono o advertia brincando e ficava mais calmo
após o santo ritual da “lambeção canina”, quando degustava o sabor salgado do
rosto humano.
O silêncio, a calma do lugar permitia a qualquer um dormir relaxadamente. Um
uivo de lobo ao longe cortou a paz da noite, o lenhador percebeu que o cão
levantou a cabeça, mas voltou a deitá-la novamente.
Isto também era algo muito normal para Horace, como uma espécie de ritual
noturno.

***

Os dois amigos haviam entrado no quarto de Forbes que com movimentos rápidos
trancara a porta.
Estranharam o frio que fazia lá dentro, era como se na ausência deles a janela
estivesse ficado aberta, mas o quarto se apresentava exatamente como o haviam
deixado.
Norman começou a tirar o casaco a fim de devolver ao dono, mas foi cortado na
ação:
― Pode ficar com ele, acho que vai precisar.
Norman não trouxera cobertor algum, porém, era obrigação dos hotéis oferecerem
tal utensílio.
― Eu não trouxe sequer um cobertor. ― disse com a cara de preocupado.
Forbes respondeu com naturalidade:
― Não tem problema, eu também não trouxe. Segundo o velho, existem dois
cobertores em cada quarto, é só procurar no closet. Mas advirto que se os seus
estiverem no mesmo estado dos meus, não vais gostar do odor que eles expelem.
Deve haver um exército vietnamita de ácaros neles.
Forbes pareceu falar de modo irônico e sério ao mesmo tempo, Norman ficou
confuso, naquele instante trazia a certeza de que os cobertores de seu quarto
estariam no mesmo estado. Acrescentou:

54
― Tudo aqui cheira mal, não viu a banheira?
Forbes deu uma risada e respondeu:
― Paciência, não é como a nossa casa. Mas eu nunca vi lugar parecido com este
hotel, este aqui bate o recorde da imundícia. Engraçado que o hotel chega a ser
bem cuidado quando não se fala na parte que toca seus hóspedes.
Norman se lembrou dos modos do velho e disse:
― Tomando base pelo dono, percebe-se que o hotel é seu espelho e eu não estou
dando a mínima se ele estiver ouvindo eu falar isto!
― Não duvido, tanto que aquela conversa que gostaria de ter contigo ficará para
amanhã. Vou levar-te para conhecer um amigo meu e na ocasião poderemos com
cautela e tranquilidade trocar algumas ideias. Quero que me ajude em um plano e
paro de falar por aqui. ― Forbes se conteve em reprimenda.
Norman entendeu o recado, não poderiam mencionar algo comprometedor
enquanto estivessem no hotel e Forbes parecia garantir e estar ciente do que
afirmava, pois já passara algumas noites no hotel e trazia bagagem, experiência.
Ter sobrevivido talvez fosse a maior dádiva.
Lembrou-se do ocorrido na taverna e pediu a opinião de Forbes:
― Eu não consegui entender até agora o que se passou na taverna, foi muito
estranho, os homens da vila não pareciam os mesmo, a exemplo do tratamento do
taverneiro. O que você acha que aconteceu? Estou confuso por demais.
Forbes começou a tirar seu casaco e tinha a intenção de colocar a roupa de
dormir:
― Acho que o amigo que te apresentarei amanhã talvez possa nos dar uma
explicação, vou inclusive perguntar por ele...
Norman com um pouco de raciocínio entendeu que Forbes se referia ao dono do
hotel ao mencionar a palavra ele. Forbes foi ao closet e pegou a roupa de dormir,
preparava para vestir-se e continuou falando:
― Talvez até o próprio lenhador, como é o nome dele mesmo...
Forbes fez uma careta e um esforço mental, por fim, prosseguiu:
― Horace, seja mais aberto a assuntos do que o taverneiro.
Norman também pensava o mesmo e tinha a certeza de que o lenhador poderia
explicar o ocorrido.
― Acredito no mesmo, se o teu amigo não satisfizer nossa dúvida, acho que
devemos perguntar a Horace.
Forbes assentiu com a cabeça e acabou de se trocar, estava descalço e sentiu a
falta do casaco, o frio era intenso.
― Vou te mostrar meus cobertores, depois compare com os teus, amanhã me
diga o resultado...

55
Forbes tirou dois cobertores azuis do closet e os colocou perto do nariz de
Norman que ao sentir o odor estranho fez careta e afastou o rosto, praguejando:
― Hum! Parece cheiro de ovo podre, eu poderia apostar que há anos não são
submetidos aos serviços de uma lavandeira.
Forbes deu uma risada e jogou os cobertores na cama.
― Se você achar que o casaco é o suficiente para te proteger do frio pode levar o
meu, eu particularmente acho muito desconfortável dormir de casacos.
Norman pensou que em tais condições valia à pena tentar dormir com o casaco,
tudo dependeria do estado de seus cobertores. Forbes sentou-se na cama e olhou
para a parede onde estivera pendurado o quadro das duas pessoas mortas e
olhou para Norman perguntando:
― Vai experimentar tirar o quadro da parede do teu quarto e ver o que acontece?
Podes ter uma surpresa desagradável, isto eu garanto por experiência própria...
― Já fiz isto e compro guerra com quem entrar sem ser chamado no meu quarto e
tornar a pendurá-lo durante meu sono, aposto e ganho que é aquele velho o
intruso valentão.
Norman deu uma pausa e vendo que o amigo estava fora da proteção dos
cobertores sugeriu:
― Vou para o meu quarto, já está na hora de dormir, quando acordar bata na
minha porta, já vou avisando que se deixar, eu durmo até depois do almoço.
― Posso te garantir que não me atrapalha, pode dormir até quando quiser, estou
passando férias aqui e tenho a noite toda para me divertir. De qualquer forma vou
acompanhá-lo até o teu quarto.
Norman achou graça dos cuidados do amigo, mas não via necessidade de ser
acompanhado.
― Acompanhe-me até a porta do teu quarto que eu já me ponho por satisfeito.
Os dois se levantaram e se encaminharam para a porta. Forbes obedecendo a
vontade do amigo ficou da porta olhando até que ele entrasse em seu quarto.
Quando Norman chegou à porta de seu quarto, ouviu o som de pingos caindo no
chão que parecia vir do reservatório, olhou para o amigo que o fitava com um
sorriso e parecia não se dar conta, pois não estava escutando.
Norman entrou, acenou dando um tchau e entrou em seu quarto, fechou a porta,
mas não a trancou, esperou cerca de um minuto e tornou a abrir a porta, pôs
somente a cabeça para fora e olhou para o corredor escuro, Forbes havia entrado.
Aproveitou e foi caminhando bem devagar até a porta do reservatório, procurando
não fazer ruído algum nas madeiras velhas do piso do hotel. Encostou-se e
apoiou-se na porta, colou o ouvido esquerdo na porta procurando manter a visão
do corredor inteiro, escutou, naquele momento teve certeza, havia pingos que se
chocavam com o piso do aposento. A situação fez seu coração gelar aos poucos,

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a situação lembrava como nos filmes de terror e aquele hotel dava um ar muito
real para isto.
Esperou cerca de meio minuto, com os ouvidos atentos, o silêncio começava a
incomodar. Sentiu surgir um arrependimento de não ter falado a Forbes sobre o
que estava ouvindo.
No entanto, era algo normal pingos de água em um reservatório, talvez fosse
alguma torneira que o velho não havia fechado corretamente ou fosse uma
goteira. Tudo passava pela sua cabeça naquele momento, não deveria estar ali,
naquela vila, naquele hotel, naquele corredor, escutando atentamente aquela porta
num silêncio que poderia revelar o rastejar noturno de uma aranha ou o respirar
de alguém escondido na escuridão do corredor.
Mas uma coisa era certeza, tudo aquilo que estava vivendo naquela vila não era
normal.
E a luz verde que havia rastejado em frente à taverna?
Teria vindo para o hotel?
Tivera tempo de provavelmente passar pelo hotel, em frente e voltar rumo à
taverna e sumir na floresta. O som dos pingos misturado ao silêncio da noite lhe
fez lembrar-se de um cemitério, parecia estar dentro de um mausoléu, preso à
tensão do silêncio sepulcral.
De repente, um barulho ensurdecedor soou de dentro do reservatório, parecia ser
cadeiras sendo arrastadas.
Correu em direção ao seu quarto, entrou e fechou a porta, mas novamente não a
trancou. De nada valeria trancar a porta, naquele hotel não se garantia ter
segurança em lugar algum. A sua vontade naquele momento era pegar o seu carro
e dar o fora o mais rápido possível, o hotel lhe passava uma impressão de
assombrado desde quando chegara e o velho dono, parecia a assombração
principal, o bam-bam-bam, o fantasma da ópera.
Tudo passava pela sua cabeça, os quadros estranhos, o velho louco, a vela em
cima de um banquinho se apagando e depois a porta do saguão sendo trancada
na escuridão e a chave caindo ao chão.
O barulho da chave caindo ao chão, aquilo fora assustador.
Daquela vez deveria chamar seu amigo Forbes, não o estaria incomodando, pois
ele também falava de coisas estranhas que se passaram no hotel e teria interesse
em ajudar a investigar.
A lembrança de seu amigo o fez recordar o que ele havia contado acerca de um
castiçal de três velas que andava no saguão escuro do hotel pela madrugada, nas
mãos do velho que parecera esperar alguém de fora chegar. Parecia haver um
mistério ali e os dois poderiam desvendá-lo juntos. Estariam em perigo?
O que aquele velho poderia lhes causar?

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Criou coragem e estava decidido a chamar seu amigo, abriu a porta, olhou para a
porta do reservatório, não estava ouvindo os pingos, mas, não deu bola para isto,
fechou a porta e a trancou, correu até a porta de Forbes e deu três batidas
tímidas.
E se Forbes dormira e houvera mentido sobre possuir sono leve? Não despertaria
tão facilmente assim.
Deu outras batidas e a porta se abriu. Forbes parecia não haver dormido ainda, de
acordo com seus os olhos atentos.
Norman sem nada dizer entrou. Forbes o estava olhando com ar de curiosidade.
Norman lhe fez sinal para que fechasse a porta. Forbes obedeceu-lhe de
prontidão.
Norman olhou para aquele ponderado homem e procurou as palavras para
descrever o ocorrido, mas seu amigo falou primeiro com ironia:
― Ficou com medo de dormir sozinho e quer que eu te faça companhia...
Norman fez que não com a cabeça, espremeu a boca e gesticulando com os
braços, enfim, começou a narrar:
― Quando eu ia entrar no meu quarto, aquela hora que nos despedimos, ouvi som
de pingos vindo do reservatório...
Respirou fundo e continuou:
― Eu encostei o ouvido na porta do reservatório e fiquei algum tempo procurando
discernir se estava certo acerca dos pingos, teve um momento que me assustei,
ouvi um som mais abrupto e perturbante, um rastejar de cadeiras.
Forbes o olhava atentamente e acreditava em tudo que ele dizia, teve um
momento de reflexão. Sua resposta foi se encaminhar para a mala que estava ao
lado da cama, puxar o zíper e retirar um revólver. Norman não esperava que o
amigo estivesse armado e se assustou. Forbes pegou o casaco de pele no closet
e calçou seu par de chinelos, com o ar muito sério foi até Norman e disse:
― Eu acredito que algo muito estranho se passa por aqui e vou desvendar, é este
assunto que eu quero tratar contigo, vamos...
Saiu na frente com a direita escondida atrás do casaco, a mão que estava com a
arma. Norman o seguiu. Forbes fez sinal para que Norman ficasse na porta de seu
quarto:
― Você fica aí e qualquer movimento anormal me dê uma piscada, estarei atento
em ti. Quando eu der uma piscada você vem até mim, vou me certificar se a porta
está aberta e em caso positivo você vai vigiar o corredor para mim, se o velho
aparecer feche a porta do reservatório e me deixe lá dentro, disfarce até que ele
vá embora e abra a porta para que eu saia.
― Já estou com medo daquele velho, confesso...

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― Não te preocupe, eu duvido que ele vá aparecer, um castiçal flutuante é o único
que pode nos perturbar neste momento.
Forbes foi até a porta do reservatório e colocou os ouvidos procurando escutar o
som dos pingos enquanto Norman passeava o olhar pelo corredor e vez ou outra
fitava o amigo atentamente. Forbes procurava discernir algum som ou movimento
vindo de dentro do reservatório, mas o silêncio predominava.
Quando Norman fitava o amigo percebeu seus olhos se arregalarem, ele olhava
em direção à escada e havia visto uma luz que devia ser de uma vela refletir nas
paredes do hotel, alguém estava segurando a vela e subia as escadas lentamente.
Forbes não teve tempo de verificar se a porta do reservatório estava trancada,
correu de volta para o quarto e fechou a porta, depois a trancou. Norman, quando
havia visto o amigo correndo logo percebeu que havia algo errado se passando e
como o amigo vinha em sua direção, não hesitou e entrou no quarto antes do
anfitrião.
Forbes apagou a luz, havia corrido, mas não evitou o ranger da madeira velha do
piso. Se fosse aquele velho quase surdo quem subia as escadas, provavelmente
não teria ouvido os passos de Forbes.
Os dois amigos ficaram atentos, procurando perceber se alguém passava pelo
corredor. Suas suspeitas se concretizaram, não se podia ouvir barulho de passos,
mas pela soleira da porta uma luminosidade bruxuleava, vinha do corredor.
A luminosidade ficou mais branda, o velho deveria estar de frente para o
reservatório ou de frente para o quarto de Norman, não se podia saber, a menos
que soasse algum ruído comprometedor.
O silêncio continuava.
Apenas a respiração um pouco ofegante dos dois amigos soava no ar.
A luz parecia voltar lentamente e em dado momento deu a impressão de ficar
alguns segundos parada de frente para o quarto de Forbes.
Norman percebeu que o amigo em pleno frio estava suando, poderia ser a tensão
do momento, ele se mantinha com a arma em mãos e ficava atento, de tocaia, se
alguém abrisse a porta e mostrasse sinal de perigo, receberia um balaço na fronte.
A luz foi novamente se abrandando e parecia agora ir em direção à escada, algum
tempo depois tudo ficou escuro novamente. Forbes deu um suspiro e olhou para o
amigo que retribuía o olhar enigmático. Forbes murmurando num tom que quase
não podia se ouvir, explicou a Norman:
― Eu bem que poderia descer e ver o que se passa lá embaixo ou arrombar
aquele reservatório, mas, às vezes eu percebo que aquele velho pode ser
perigoso. Ele, com uma arma na mão não hesitaria em matar alguém, às vezes
me pergunto se ele de fato precisaria de uma arma para dar fim em alguém.

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Norman o fitava seriamente e com o rosto preocupado, não esboçou uma opinião,
apenas olhava para o amigo que tornou a falar:
― Existe um fato importante nesta história...
Forbes continuava suando, se aproximou de Norman e falando perto de seu
ouvido emendou:
― Desde o dia que eu cheguei aqui, nunca vi aquele velho...
Apontou para o piso como quem indica o saguão e falou em tom de inquietação:
― Depois das nove da noite.
Norman parecia refletir sobre o caso e decidiu dar uma ideia:
― Nós sequer sabemos se é ele quem passou pelo corredor agora, nem sabemos
se foi ele quem trancou a porta do hotel quando entramos e a chave caiu.
Forbes pareceu ter uma luz e apontando o indicador para o amigo expôs sua ideia:
― Se você ouviu um barulho que só podia ter sido provocado por mãos humanas
no reservatório, como arrastar cadeiras, eu acredito que temos duas
possibilidades em tudo isto...
― O que é? ― Norman perguntou interessado na ideia do amigo que sempre era
bem concisa e provável.
― Ou temos uma quarta pessoa aqui no hotel, ou...
Forbes hesitou por alguns instantes e voltou a falar:
― Não acredito muito nesta possibilidade, mas ou temos uma quarta pessoa por
aqui ou o lugar é assombrado!
Norman mesmo duvidando sentiu um arrepio percorre-lhe a espinha, lidar com
uma situação desta era demais para seus nervos, deveria ter uma explicação, um
cão poderia estar preso no reservatório e estar arrastando cadeiras. Mas as
perguntas não paravam de surgir, quem ofereceria num hotel, além de um
ambiente desagradável, uma banheira imunda e cobertores que pareciam há anos
não serem lavados?
O dono deveria mesmo ser um louco, mas tinha a possibilidade de ter ficado
assim por estar em um lugar assombrado. A verdade era que não se tinha
explicação alguma, Forbes voltou a falar:
― Quando você bateu aqui para me chamar, eu já estava de prontidão, eu sabia
que alguma coisa ia acontecer e que você voltaria.
Norman ficou surpreso, mas calculou que esta atitude do amigo se devia ao fato
de ele estar alguns dias lá e conhecer bem o lugar. Norman estava mudo, não
conseguia formular uma ideia ou articular palavras. Forbes percebeu a tensão do
amigo e respeitou aquele momento com silêncio também, ouviram um uivo
distante que deveria ser de um lobo, mas isto não despertava a atenção dos dois
que fixavam seus pensamentos naquele hotel.

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Norman sentia imensa vontade de ir embora, suas pernas estavam travadas, por
fim falou:
― Eu vou embora daqui, vou pegar meu carro e virar fumaça nem que tenha que
arrebentar aquela porta do hotel.
Forbes fez que não com a cabeça e com a boca cerrada de uma maneira como se
quisesse mostrar a impossibilidade do ato afirmou:
― Creio não ser possível, eu não me arriscaria descer ao saguão numa hora
destas. Juro para você que não sou supersticioso, mas tudo está muito estranho,
sem contar que quero que me ajude em algo, precisarei de você amigo!
Norman não sabia o que ele queria, mas sabia que não era assunto para ser
tratado ali, talvez fosse em relação ao hotel. Mas afinal, que ajuda seu amigo tanto
precisaria?
Forbes reforçou sua opinião:
― O que eu estou querendo dizer é que você pode tentar, mas não vai conseguir
sair daqui durante a noite!
Norman procurava descobrir qual a razão do amigo afirmar a impossibilidade de
fuga durante a noite. Deu uma suspirada procurando um ar mais calmo, mas não
encontrava, seu estômago dava a impressão de estar apertando, humildemente
poderia confessar, estava assustado com tudo aquilo.
O estrondo de um sino ecoou, parecia vir de longe. Norman olhou
interrogativamente para o amigo que não dava bola ao som. Norman permaneceu
olhando o amigo querendo uma explicação, sua mente não conseguia anexar
alguma. Forbes colocou fim ao dilema que assolava a paz do amigo, murmurou
baixinho em tom esclarecedor:
― É o sino da igreja, o padre tem o costume de tocá-lo à meia-noite.
Norman tranquilizou-se. Tratava-se de algo comum.
O suor do rosto de Forbes desapareceu e ele estava mais calmo, aproveitou o
momento para propor que deveriam agir:
― Vou até a escada ver o que se passa lá embaixo.
Norman não gostou da ideia, pensava não estar se tratando de algo normal e
assim, a arma não os defenderia, porém sentia confiança no amigo e não pouparia
esforços para ajudá-lo:
― Eu vou com você!
Os dois deram um aperto de mãos em tom de união e força.
Forbes com cautela destrancou a porta e a abriu, pôs a cabeça para fora a fim de
ver o que se passava no corredor. Perto do reservatório, tudo limpo, olhou para a
escada e podia perceber que havia uma luz de velas refletindo na parede do hotel.
Com a mão fez sinal para Norman o seguir, deixaram a porta aberta.

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Eles caminharam lentamente, o silêncio daquele lugar era algo estarrecedor.
Chegaram ao começo da escada e Forbes com precisão e exímio cuidado grudou
a testa na beirada da parede e fez um movimento para proporcionar um campo de
visão do saguão. Uma luz de três velas em um castiçal dava um aspecto
fantasmagórico ao hotel, o castiçal estava em cima da bancada de recepção, ao
lado do livro de inscrição.
Por algum momento, Forbes estudou o lugar, mas nem sinal do velho e nem ruído
algum soava. Na região da porta do saguão do hotel não se podia distinguir
qualquer coisa, um breu impedia visualizar o que ali se passava, podia muito bem
existir alguém espreitando como retratado naquele quadro do corredor.
O silêncio incomodava, um ar de mistério reinava. Norman estava quase
paralisado, em intervalos olhava na direção do reservatório. Por outro lado, Forbes
sentia imensa vontade de chamar o dono do hotel em voz alta, mas a advertência
do velho de que após a meia-noite não deveriam descer ao saguão e evitar sair do
quarto falava mais alto naquele horrível momento. Precisava de uma lanterna, no
dia seguinte seria sua prioridade conseguir uma. Algo que ele não lembraria.
Espiou por mais algum tempo e voltou-se para Norman, fez o sinal com a mão
igual a um homem que manda um funcionário despachar algum produto indicando
que voltassem ao quarto. Norman o obedeceu e Forbes o seguiu sempre atento
ao que se passava atrás de si, arma em mãos, por baixo do casaco.
Chegaram à porta de Forbes, mas Norman fez menção de ir para seu quarto:
― Já vou indo. ― cochichou Norman para Forbes.
Forbes não ofereceu resistência, parecendo preocupado se alguém os ouvia fez o
mesmo sinal que havia feito anteriormente indicando ao amigo que fosse.
Norman andou de costas e tomou o caminho de seu quarto, Forbes o fitava.
Norman chegando à sua porta a destrancou e a abriu, repentinamente a luz da
vela se apagou e o pouco que podia se discernir próximo à escada foi encoberto
pela escuridão da noite. Os dois entraram rapidamente e trancaram as portas, em
um segundo, houve a impressão de que ninguém esteve no corredor.
A primeira ação de Forbes ao entrar foi colocar a arma debaixo do travesseiro,
depois tirou o casaco e jogou por cima das cobertas, apagou a luz e entrou
debaixo das cobertas. O seu quarto era escuro e apenas uma claridade da lua
ofuscada pela neblina permitia-lhe discernir pouca coisa.
Norman, após trancar a porta, procurava se acalmar, os nervos ainda estavam
tensos. Percebeu que uma jorrada de sangue de tempos em tempos fazia pular
sua jugular devido à tensão e o calor do momento, nervos à flor da pele.
A solução seria entrar debaixo das cobertas e fingir que nada acontecera, olhou
para onde esteve pendurado o quadro da criança morta, não estava lá, havia
colocado no closet, trancado e lá ele deveria estar. Olhou para o quadro do

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homem de cavalo e embora impossível acreditar, a risada do homem no quadro
parecia ser direcionada à situação dele e do amigo Joseph Forbes.
Teve a sensação de estar lidando com um estranho e inusitado observador e
zombador de situações perigosas.
Deveria ter sido aquele tipo de pessoa que ficava feliz ao ver pimenta torrando os
olhos alheios.
Norman estranhando, se aproximou do quadro e constatou que esta impressão
aumentava, mas deveria ser a tensão sofrida.
Resolveu abrir o closet e pegar os cobertores.
Os pegou e os cheirou, se arrependeu. Jogou-os na cama e tirou o casaco, pegou
a roupa de dormir e se trocou, jogou as roupas que antes vestia no chão, sem se
importar se alguém iria reclamar, pois não iria, não era mais criança com uma mãe
cuidadosa.
Sua mãe naquele momento deveria estar dormindo e sonhando com animaizinhos
pulando a cerca em um sítio de veraneio com nuvens sorridentes, com rosto de
gente acolhedora.
Puxa!
Lembrou-se de como era bom ser criança e receber o apoio dos pais nas noites
de pesadelo, nunca tivera motivos para se preocupar quando acordava
sobressaltado após sonhar com coisas ruins.
Trancou o closet. Foi apagar a luz com as pernas um pouco travadas de medo e
voltou correndo para a cama, se cobriu até o peito para não inalar o cheiro dos
cobertores. Fechou os olhos por alguns segundos, lembrou-se do quadro do
homem de cavalo que estava acima de si e se caso desabasse seria para ferir sua
cabeça em modo de vingança pela ousadia de se bisbilhotar o restante do hotel,
olhou para cima, mas só podia ver a fresta inferior da moldura do quadro.
A tensão provocou uma sensação de relaxamento quando deitou e os nervos
proporcionavam uma sensação gostosa. Há mais de vinte horas não dormia e o
dia fora cansativo. Lembrou-se de quando estava na estrada e parara num posto,
quando chegou à porta da loja de conveniência, um homem que deveria ser um
ladrão passou correndo. O atendente saiu em seguida e deu dois disparos, mas
não acertou o infrator que fugiu em um carro.
Norman precisou se abaixar e depois correr para dentro da loja. O atendente ligou
para a polícia...
Norman em suas reflexões e muito confortável debaixo daqueles cobertores
desagradáveis perdeu os sentidos e dormiu...

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9

O HOMEM E SEU FIEL AMIGO

Amanheceu em Pitfall, a neblina se dissipava aos poucos e novamente era


possível ter uma visão do mundo exterior. As gramas da floresta apresentavam
gotículas de orvalho e as paredes das casas quando tocadas poderiam ser
confundidas com uma estrutura de gelo sendo derretida devido o abrandamento
do frio, as paredes apresentavam uma fraca umidade devido o contato do sol.
Para os moradores de Pitfall não era fácil sair do aconchego quente dos
cobertores e edredons, abandonar suas camas para fazer o que quer que fosse
seria motivo de descontentamento.
Horace Singer não tinha patrão e poderia adiar o seu trabalho para um tempo
depois, mas sabia de seu compromisso e sempre no horário certo, às sete da
manhã já estava de pé. Havia outra questão em jogo, iria caçar com o seu vizinho
naquele dia.
Seu despertador soou um alarido ensurdecedor que o obrigou a pular da cama.
Bateu a mão no botão da parafernália ensurdecedora a fim de desligá-la e bufou
ferozmente.
Olhou para Winepowder que deveria ter sido acordado pelo despertador, mas o
cão estava deitado e de olho aberto, isto fez o lenhador pensar que ele já estava
acordado antes do som estarrecedor. Era como se seus olhos estivessem atentos
há algum tempo, ele deveria estar zelando pelo sono de seu dono.
Horace sentiu uma picada dolorosa no braço e soltou um grito, olhou para o braço
onde havia mais de uma dezena de formigas. Veio-lhe um lampejo e olhou para a
garrafa de café, esquecera-a aberta na noite passada e a mesinha estava
infestada de formigas. Correu para o banheiro e abriu a torneira da pia, colocou o
braço debaixo da torrente de água a fim de banhá-lo e se livrar daquelas pestes
ambulantes. As formigas desceram pia abaixo.
Pronto, tiveram o que mereceram. Pensou o lenhador.
O cão estava na porta do banheiro o olhando e procurando saber o que
incomodava o dono. Horace olhou-o e imitou o ladrar dos cães. O animal latiu para
o dono, mas como se estivesse respondendo na linguagem canina, sem estranhá-
lo pelo ruído animalesco.
Deveria se livrar do batalhão de formigas e primeiramente levou a garrafa de café
à cozinha, pensou melhor, as formigas não teriam mais o atrativo e em pouco
tempo voltariam para suas malditas tocas.
Horace sempre seguido pelo cão, executou a primeira tarefa do dia, encher a
vasilha do animal de ração e dar-lhe um pouco de leite. Enquanto o cão comesse,

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ele trocaria de roupa e pouparia tempo, já que não ia deixar seu cão para trás. E
olha que o cão comia significativamente rápido.
Deixou o cão na sala e subiu ao quarto para se trocar, tirou a roupa de dormir e a
arremessou na cama, mais tarde a guardaria. Foi até o guarda-roupa e pegou a
roupa que usava para se embrenhar na floresta e rachar lenha, com sonolência
vestiu-a, foi até a cama e precisou se agachar e esticar o braço para apanhar o
botinão que estava debaixo dela.
Não precisaria se preocupar com a touca preta de lenhador. Usava-a para dormir
nas noites frias e não a tirava por dinheiro algum neste mundo.
Com um belo bicudo do botinão eu poderia estraçalhar a cabeça de uma maldita
cobra, bem que poderia dar um no meio de Parker. Deu um sorriso de sua
reflexão.
Levantou-se com o botinão em mãos, sentou-se na cama e vestiu o utensílio de
proteção sem se preocupar se alguma formiga perambulava por ali. Aliás, um
batalhão delas ainda estava desesperado em busca da fonte de alimentação que
encontraram por milagre na madrugada, mas que ele suprimira por castigo pela
picada ou ácido que incinerara uma parte minúscula de seu braço, outras estavam
seguindo uma trilha rumo à beirada da parede, visivelmente elas estavam alojadas
numa toca nas proximidades daquele lado do quarto, dentro da parede. Por sorte
não eram cupins devoradores que poderiam derrubar cidades, a propósito.
Levantou, desceu as escadas e foi até a cozinha preparar o café. Winepowder
terminara a refeição matinal e já o seguia abanando a cauda. Wine deveria estar
com vontade de fazer alguma necessidade canina ou ansioso para adentrar na
floresta numa aventura sem fim.
Horace preparou dois ovos fritos, jogou uma fatia de presunto e uma de queijo por
cima. Depositou a mistura num prato e colocou em cima da pia, o cão faria um
estrago se o prato permanecesse na mesa. Colocou água para ferver, para o café
e foi até a garrafa. Deveria ter inúmeras formigas mortas lá dentro e Horace
arremessou seu conteúdo pia abaixo, o café parecia estar empipocado de tantas
formigas mortas. Enxaguou a garrafa por dentro e por fora, e foi até um armário
pegar o pó do café. Winepowder acompanhava o processo de confecção da
bebida preferida do dono, até mais preferida que a maldita vodca.
Horace com uma colher misturou pó na água fervendo e mexeu, jogou por fim o
conteúdo no filtro e de pé mesmo começou a devorar os ovos com presunto e
queijo. Arremessou um pedaço significativo ao cão que no ar o abocanhou e
engoliu-o, sem mastigar, fazendo um barulho parecido com uma lambida de vaca.
Se Horace fosse dividir com o cão sua refeição, o assistiria degustar seu café
inteiro e ficaria somente babando na expectativa do cão se saciar. Terminou os
ovos e pegou um copo de café, bebeu quente em uma golada só e girou a tampa
da garrafa.
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Terminado o café, foi a vez de ir até a despensa ao lado da cozinha pegar duas
mudas de árvores. Sempre fazia o reflorestamento, era abater uma árvore e
plantar uma muda. Isto se tornara obrigatório no mundo inteiro, mas o lenhador
teria prazer em executar tal tarefa mesmo que não fosse por obrigação.
Escolheu duas mudas das que julgou mais bonitas e como entrara o inverno, a
lareira seria o lazer principal das famílias, eram dias de se abater duas árvores,
esforço em dobro, e suor também.
Winepowder começou a farejar a terra de uma das mudinhas, era um fato
estranho para Horace que olhou o cão com o cenho franzido como quem estranha
algo. O cão, após algum tempo, parou de farejar e voltou a agir normalmente.
Horace se retirou com as mudinhas em mãos, após o cão sair, empurrou a porta
da despensa com o pé.
Pegou a chave da porta da frente que estava pendurada num porta-chaves do seu
quarto e foi ao trabalho, precisou colocar as mudinhas no chão para trancar a
porta, feito isto, se encaminhou para a floresta rumo ao lugar onde deixara a
vagonete de transporte de lenha no dia anterior, de frente para sua casa. Seu cão
o seguia alegremente preparado para mais um dia.
Horace chegou à entrada da floresta e percebeu que as plantas apresentavam
gotículas de orvalho e uma amena neblina ainda dava um ar de mistério à floresta.
Foi até a vagonete, depositou as mudas lá dentro e se encaminhou ao lugar onde
havia trabalhado no dia anterior, cerca de trinta metros floresta à dentro.
Normalmente deixava seu machado enfincado no último tronco abatido, o povo de
Pitfall não cometia furtos e ele constatou que o machado estava em seu devido
lugar.
Lembrou-se de certa vez quando o idiota do Parker o havia pregado uma peça,
Horace tivera a surpresa de não encontrar seu machado e ficara irado, na ocasião,
ficou algum tempo refletindo e coçando a cabeça, quando ia voltar para sua casa
conferir se o machado estava lá, encontrou Parker sentado numa cadeira de
balanço na porta de sua casa balançando a machadinha na mão e rindo, tossindo
e com o cigarro na boca baforando ao Deus dará. Horace sentiu a raiva
inominável subir-lhe e se acalmou após lembrar que na noite anterior havia
educado Parker no carteado, assim, Parker achara um meio de tirá-lo do sério fora
das mesas de jogo, como que por revanche. Horace com calma pegou a
machadinha das mãos do velho e deu um sorriso de desprezo, voltou ao seu
trabalho.
Parker nada dizia, apenas ria, tossia e baforava ao mesmo tempo.
Deixou as lembranças de lado e pegou a machadinha, que embora de cabo
médio, tinha uma lâmina grande e era bem afiada.
O cabo médio se devia à musculatura de Horace, assim tinha mais produção e
golpes precisos. Olhou em volta para eleger uma árvore ao abatimento e não se
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demorou a decidir, andou alguns metros e começou o serviço, o cão, perto como
se estivesse vistoriando e de guarda caso houvesse a chegada de um intruso que
presenciasse o "delito" do dono.
Após alguns golpes no tronco, o suor brotou com intensidade no rosto do homem
que decidiu tomar mais um pouco de fôlego. A etapa de abater a árvore e
transformá-la em inúmeros pedaços era a mais rápida de seu trabalho, a mais
demorada era a de empurrar a vagonete com as achas de lenhas pelas ruas da
vila, por isto só terminava o expediente após o almoço. A parte de motoboy era a
que mais gastava tempo, o trabalho sujo era rápido.
Nestes momentos, o lenhador sentia-se muito bem na companhia de seu cão e no
meio da natureza.
Tornou ao trabalho pretendendo derrubar a árvore de vez e após cerca de mais
trinta golpes deu o alarme para que seu cão tomasse distância enquanto ele em
empurrões com a perna tombasse a árvore. Sua perna direita era a biônica para
esta etapa e apoiou-se na terra firme com a esquerda, encostou a direita no tronco
e com apenas um empurrão a árvore não aguentou, tombando.
Horace era um homem prudente e já ouvira histórias que na teoria seriam
impossíveis. A principal delas relatava o episódio em que um lenhador derrubara
uma árvore impulsionando-a com as mãos e recebera uma pancada violenta do
tronco no peito. Horace particularmente julgava isto impossível, mas era muito
crédulo às pessoas, exceto a Parker.
Sentou-se no toco restante do tronco da árvore que acabara de derrubar para
descansar e o cão veio ao seu agrado, o homem afagou-lhe com carinho olhando
em volta para eleger a próxima árvore e decidiu-se pela terceira à direita da que
acabara de abater.
O suor o incomodava, precisaria assim dar mais um tempo antes de retomar o
trabalho.
Dado o tempo necessário, ele se levantou e o cão ficou contente, abanando a
cauda com intensidade. Horace apertou o cabo da machadinha firmemente e
olhou para a próxima vítima ao mesmo tempo em que ia à sua direção. Parou de
frente para a árvore e respirou fundo, se concentrou e começou a desferir os
golpes.
Precisou novamente parar para um intervalo, talvez se fosse um jovem de vinte
anos com seu físico atual conseguisse derrubar árvore por árvore sem intervalos.
Voltou para a segunda série de golpes que foram suficientes para derrubar a
árvore, precisou sair em disparada, pois não deu tempo de impulsioná-la para seu
lado contrário, a árvore tombou em sua direção e a do cão, os dois com agilidade
se esquivaram da muralha de madeira que era derribada.

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Quando a árvore terminou sua queda, o homem jogou a machadinha no chão e
pensou que uma serra elétrica facilitaria muito seu trabalho, com certeza na
próxima vez que Oliver Kingston, o dono do armazém fosse à cidade de
Tallahassee fazer compras e encomendas, o lenhador acompanharia para adquirir
sua serra elétrica, dinheiro para tal possuía. Quando a idade avançasse um pouco
mais, ele não daria conta de derrubar árvores com pancadas que exigissem força.
Se fumasse como o mongolóide do Parker não aguentaria trabalhar, sempre
refletia sobre isto. No entanto, usaria a machadinha até ficar mais velho, gostava
de ser o mais natural e primitivo possível na profissão.
Era hora de se levantar e continuar o trabalho, não queria acabar muito tarde as
entregas de lenha. Pegou a machadinha e estudou a melhor maneira de rachar
em pedaços o tronco da árvore que acabara de abater que media cerca de oito
metros. Devido à estrutura das lareiras em Pitfall que eram amplas, poderia rachar
em pedaços maiores e mais brutos que não haveria problema, isto era mais um
ponto positivo. Outro ponto a favor era que sempre havia árvores de troncos mais
quebradiços para se derrubar. Era como se os troncos destas árvores estivessem
ressecados pela idade e fossem menos firmes.
Concluiu que dividiria o tronco em oito pedaços de um metro cada e depois os
racharia em outros pedaços. Como as duas árvores eram quase do mesmo
tamanho empregaria o mesmo esquema nas duas, começou o trabalho.
Meia hora depois, terminou a primeira e foi para a segunda. De soslaio percebeu
que alguém se aproximava vindo da direção da vila, olhou, era Ronald Malone e
seu pequeno filho.
Ronald e o menino foram em direção ao lenhador que já estava perto do tronco a
ser picotado. Horace deu um sorriso e cumprimentou-os:
― Bom dia senhor Malone, veio trazer teu filho para uma expedição na floresta?
― O Sonny me incomodou muito para ver você rachar lenha e aproveitar para
brincar com o teu cão. Eu aproveitei que Brenda foi à casa de seus pais e resolvi
satisfazer o desejo de meu filho, ele gosta muito de vocês dois.
O cão pareceu entender e abanou a cauda olhando para os dois que chegaram.
Horace com o agrado do amigo respondeu generosamente:
― É um prazer para mim, tê-los aqui, tenham certeza que para o Wine muito mais,
ele adora uma presença humana. Quanto mais, duas, de dois amigos.
O menino deu um sorriso tímido e foi em direção ao cão, afagando-lhe a cabeça, o
cão ficou satisfeito e pulou no menino que quase caiu, seu pai o amparou. Horace
ficou sem jeito:
― Desculpem-me, o Wine não tem noção de peso.
Ronald e seu filho não deram atenção à atitude do cão, pois era muito normal e
continuaram amáveis.

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― Não existe problema algum, cães são assim mesmo.
Ronald deu uma pausa e emendou:
― Aproveitando que estou aqui queria te dizer que não irei caçar hoje, senhor
Singer.
Horace Singer falou em tom de verdadeira lamentação:
― É uma pena, eu estava muito ansioso. Não gosto de ir sem a tua companhia,
portanto, decido não ir à caça e meu destino será a taverna o mais cedo possível,
preciso dar uma surra no danado do Parker, digo, no carteado.
O lenhador calculou que deveria convidar o amigo para o jogo e falou:
― A propósito, não gostaria de jogar hoje? Poderia fazer dupla comigo.
― É uma pena, mas eu não sei jogar e não me interesso muito. Pode ser que eu
dê uma passada lá para assistir.
Horace achou graça, mas no fundo sabia que o amigo não iria, pois era daquele
tipo muito atencioso com a família. Outra coisa, com aquela mulher linda em casa,
homem nenhum trocaria seu perfume e presença atraentes pelas baforadas
fedidas e as idiotices do Parker.
Era hora de Horace rachar o outro tronco e como os visitantes gostariam de ver
seu trabalho resolveu dar a apresentação:
― Pois bem, vou aproveitar que vieram para ver meu trabalho e estou com um
pouco de pressa. Fiquem à vontade!
Ronald assentiu com um sorriso no rosto e chegou a oferecer ajuda, mas o
lenhador negou, gostando da generosidade alheia. Era como se julgasse que o
outro não faria o trabalho tão milimetricamente correto como ele, o que era
verdade, experiência apita o jogo.
Horace começou então a desferir os golpes proporcionando o show aos visitantes.
Em pouco tempo terminaria de rachar o tronco e bastaria levá-los à vagonete,
ofereceria uma atividade ao filho do amigo, o de plantar as mudinhas. Ensinaria a
forma certa e o lugar a plantar, o serviço ficaria à mercê dos dois, como uma
atividade pai e filho. Depois de tudo isto viria a última parte de seu serviço, andar
nas casas e vender as lenhas, por fim, se sobrasse lenha o destino seria o
armazém do amigo Oliver Kingston. Bem que o lenhador poderia fornecer a lenha
somente ao amigo do armazém que a revenderia, mas nem todos os habitantes
teriam condições de buscá-las e transportá-las na mão, afinal, o tipo de trabalho
braçal de Horace Singer não era para o bico de qualquer um.

69
10

OS PAIS DE BRENDA

Os pais de Brenda estavam sentados à mesa tomando o café matinal. Moravam


ao lado dos Bombay e eram sexagenários muito religiosos, não perdiam uma
missa sequer, costume que inclusive fora herdado pela única filha, Brenda Malone.
Eram idosos cuidadosos com as coisas da vida e amavam a natureza, o que
provava o fato de Audrey Harter, a mãe de Brenda, possuir muitos tipos de flores
em vasos dentro de casa. O cheiro de flores dentro da casa dos Harter era algo
simplesmente agradável, alguém que fosse alérgico à fragrância de rosas
dificilmente conseguiria passar mais do que alguns minutos na casa dos idosos.
Lionel Harter era o braço direito do padre Alvarez Leone, que sozinho, por sua
vez, era responsável a levar os habitantes de Pitfall ao catolicismo, e como o
padre não tinha alguém que o ajudasse com atividades da igreja, um coroinha que
fosse, acabou enxergando potencial em Lionel Harter que naquela noite o ajudaria
com alguns preparativos para a missa matinal de domingo.
O velho Harter se sentia muito útil assim, o que o ajudava a vencer a sensação de
solidão que o acometia mesmo estando em família. Alguns anos antes sua esposa
pareceu se tornar indiferente a ele de vez em quando.
A atividade do dia na igreja seria dar uma lavada no chão e arrumar bancos,
tapetes e outros artefatos, tudo deveria estar no devido lugar para a manhã
seguinte. Porém, Harter era exagerado e estava muito afoito para ajudar o padre,
era um tremendo puxa-saco, tomava café com rapidez inacreditável, parecia como
um canibal no meio da selva dando luz a seu apetite voraz após encontrar uma
presa que fosse desejável. Fora as gotas de café que manchavam a toalha de
mesa limpinha de sua esposa.
Audrey chamava sua atenção reclamando da rapidez como ele tomava o café. A
situação chegava a ser engraçada e muito dramática. Ele tomava o café
matutando se deveria ir naquele instante até a igreja e passar a tarde por lá, era
inevitável ele apresentar estes sintomas de ansiedade nos dias de preparar a
igreja.
Lionel devorava uma fatia de queijo com extrema velocidade quando a campanhia
tocou, fez menção de se levantar para atender, mas foi barrado com um sinal de
pare da sua mulher, fiel e indiferente ao mesmo tempo. Audrey foi até a porta
atender quem chegava e a Lionel cabia apenas ouvir o que se passava, não tinha
ângulo de visão para a porta. Poderia ser o lenhador, mas ele vinha um pouco
mais tarde e Lionel já tinha ciência de que sua mulher seria responsável por
comprar a lenha para o fim de semana, com certeza ele não esperaria a noite e

70
estaria na igreja quando o lenhador viesse. Naquele momento, Lionel tinha plena e
absoluta certeza, iria à igreja o mais breve possível.
Terminarei o café e irei diretamente ter com o padre. Refletiu no melhor a fazer.
Com os ouvidos atentos reconheceu quem cumprimentava sua mulher, era sua
filha que veio visitá-los, para o velho era um prazer, mas poderia ser uma barreira.
E se ela resolvesse passar a tarde toda com eles? Bem, pelo menos nunca fizera
isto, até então, pois mal sabia ele que aquele dia seria o primeiro e seria feio
deixá-la falando sozinha, afinal era sua única filha que só os visitava de vez em
nunca.
Ora, não era tão grave assim, ela estava afastada por causa de sua rixa com o
maldito genro.
As vozes das duas mulheres que mais amava na vida vinham em direção da sala
se aproximando da cozinha, elas estavam chegando. Ele se levantou e usou um
pano de prato para enxugar as mãos tentando disfarçar a oleosidade na pele por
causa do queijo muito bom que comeu, não por modos, mas para evitar
comentários que o atrasasse. Elas cruzaram a porta, ele se virou, a filha correu
abraçá-lo:
― Pai, como vai o senhor? Quanta saudade. Moramos tão perto e poderíamos
nos ver com mais frequência...
Os dois se abraçaram e o velho deu uma resposta meio sem jeito, pouco
verdadeira e muito hipócrita:
― Mas, seria um prazer muito grande se viesse com a tua família passar alguns
dias conosco, afinal, teu marido e o "esquilibrizinho" são meus queridos também!
Tua mãe ultimamente tem feito um doce de leite de dar inveja aos gourmets
italianos vidrados em panetones e outros tipos de besteiras festivas.
Lionel Harter chamava carinhosamente seu neto de "esquilibrizinho" desde
quando o menino nasceu e o apelido se tornou muito normal para a família,
porém, Brenda sabia da falsidade de seu pai quando dizia que gostava de seu
marido, o que era uma mentira, pois além do rapaz não gostar de ir às missas no
domingo, tinha gostos muito diferentes do sogro. Brenda achava um absurdo a
atitude do pai, pois seu marido devia agradá-la em primeiro lugar e não era
obrigado a ir nas missas e virar padreco só por causa de seu enjoado papai.
Brenda fazia vista grossa nos momentos de falsidade do pai, isto era muito comum
nele e poderia estragar a aliança da família.
Desfeitos os abraços, a velha ofereceu uma cadeira para a filha e repôs alguns
itens do café, um pequeno, mas saboroso queijo fresco e novinho em folha, mais
uma jarra de leite. A filha aprovava o gosto da mãe por cafés e logo aceitou o
convite.

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Os tecidos da face de Lionel começavam a arder de preocupação com seu
compromisso e algum tempo depois começou a ficar inquieto na cadeira, como se
houvesse uma formiga o atormentando nas nádegas inalcançáveis, enquanto isto,
as mulheres conversavam sobre a vida e fofocas naturais, ele, porém, permanecia
avulso, vez ou outra falava sem vontade. Em nenhum outro momento mencionou
o genro, o julgava marmanjo o suficiente para não receber zelos de preocupação.
O tempo foi passando e o velho não prestava mais atenção na conversa, quando
sua mulher pedia que confirmasse algo ele demonstrava que estava com a mente
lá nas nuvens e confirmava fatos mentirosos, mas para sua sorte nada soava
comprometedor. Se as duas fizessem alguma fofoca confidencial sobre ele, com
certeza seria o último a saber.
Mas, depois, sua esposa mencionou para a filha um acontecimento de quando
eles foram ao círculo do terço proposto pelo padre, a oração fora realizada na
casa dos Blume e Lionel comandara o grupo. Ela havia perguntado a ele se havia
gostado de ser o mentor da oração e ele respondeu negativamente, como se
fizesse aquilo por obrigação, estava distraído, sua esposa estranhou a resposta e
iria conversar com o padre sobre. Se ela bem conhecia o zelo do padre para com
ele, sabia que aconteceria uma tentativa de admoestá-lo acerca da não obrigação
de fazer as coisas da igreja e que contra a vontade, a igreja não aprovava.
Elas continuavam falando sobre ele não sabia o que, quando ele cortou a
conversa:
― Pois bem senhoritas, vou retirar-me educadamente para a igreja, visto que
tenho muitos compromissos para a missa de ação de graças amanhã e minha
ajuda é de muita valia ao padre. Fique com Deus filha e venha nos visitar mais
vezes, traga também teu marido e meu netinho.
O genro era de posse dela apenas, sempre era chamado de teu marido e nunca
de meu genro.
Foi se levantando e se inclinou para dar um beijo no rosto da filha que estava
estranhando a pressa do pai, mas recebeu com carinho o beijo.
― Fico grata, pai. Pode deixar que viremos sim e mande lembranças para o
padre, diga a ele que amanhã eu vou à missa.
― Digo sim, ele conta com o maior número de pessoas amanhã e é bem provável
que passe na tua casa hoje à noite para convidar a família, de sábado ele roda
pela vila evangelizando.
― Nós o convidamos para jantar conosco hoje e estive pensando se o senhor e
mamãe não gostariam de nos fazer presença.
A senhora Harter aprovava com certeza e Brenda nem precisava receber o
consentimento dela, já o pai, falando de Ronald, seria difícil convencer. Um ponto
forte era a presença do padre, o mentor intelectual de Lionel.

72
Ele se esquivou da melhor forma, embora não achasse má idéia:
― Audrey e eu vamos combinar certinho.
― Querido, seria maravilhoso, já faz muito tempo que não vamos jantar com
Brenda, tenho certeza que será uma noite muito agradável. ― argumentou
Audrey.
Ele se virou findando a conversa:
― Talvez. Quando eu chegar veremos isso.
E foi para a igreja. As duas não demoraram em falar sobre ele, a mãe começou:
― Depois que ele tomou aquela pancada com taco de beisebol na cabeça pelos
assaltantes, não foi mais o mesmo.
Brenda riu-se da feição na cara da mãe:
― O pai sempre foi muito cuidadoso e ficou assim quando começou a zelar pelo...
pelos cuidados da igreja, é um trabalho sério.
― Eu só me espantei quando ele respondeu não ter gostado de conduzir o grupo
de oração do padre, eu acho melhor conversar com o "santíssimo" sobre a
resposta do teu pai.
Brenda cortou outra fatia de queijo e mudou de assunto:
― Este queijo é muito bom, eu nunca vi dele no armazém.
― Eu peço para o senhor Kingston trazê-lo quando vai fazer compras em outras
cidades.
― A senhora poderia encomendar alguns para mim? Não imagino como ele não
venda deste queijo no armazém, está perdendo uma boa oportunidade de faturar
alto.
A mãe assentiu e complementou:
― Eu já dei a ideia para ele que me convenceu de que a preferência do pessoal é
a outra marca e você sabe que no armazém não há muito espaço para arregalias.
Aff! Aquela estátua de pirata me dá calafrios!
Brenda também não aprovava uma estátua em um armazém e reforçou a tese da
mãe:
― Não sei por qual razão o senhor Kingston mantém aquele negócio lá, aposto
que se fizesse uma votação, no outro dia aquela estátua já estaria a quilômetros
daqui.
― Desde quando eu mudei para cá com teu pai ouço cada história...
― Do que está falando, mãe? Está me dando medo.
― Coisas irrelevantes que não acresentarão algo para você, meu amor, deixa este
assunto de lado e tome mais café. Olha, eu sei que você amou este queijo, vou
cortar mais uma fatia para você e tem mais, vou dar um para que leve, o Ronald
vai amar.

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Brenda percebeu a intenção da mãe de desviar o assunto e agradeceu pelo
queijo, mas deu ênfase no assunto tratado anteriormente:
― Eu quero saber mãe, de que história está falando?
Audrey ficou sem jeito e decidiu abrir assunto:
― O costume das pessoas, elas se mudam para cá por ser um lugar pacato e
para viverem numa vida mais reclusa, as pessoas daqui são estranhas e acho que
seu pai e eu não ficamos atrás. É como se o nosso comportamento fosse alterado
aos poucos sem que percebamos, ora, besteiras.
― Mas a senhora disse que já ouviu muitas histórias, do que está falando?
Audrey então se viu numa arapuca e decidiu abrir o jogo de vez com a filha:
― Quando Sonny era uma criancinha de colo, apareceu um homem de fora aqui e
decidiu passar um tempo no hotel do senhor Bobster, acontece que alguns dias
depois, rolou o boato de que ele era um investigador e a história foi correndo, ele
negava tudo é claro, mas aconteceu uma coisa horrenda numa manhã de
domingo... ele apareceu enforcado na velha forca!
Em frente ao xerifado existia uma forca datada de mais de cem anos atrás, a
mesma mencionada por Audrey. Brenda estava abismada e quis saber mais sobre:
― E ficou por isso mesmo? Ninguém descobriu algo?
Audrey ficou sem jeito, demorou um pouco, mas respondeu:
― Alguns afirmam que ele ficou louco, a floresta à noite é um lugar muito sinistro e
misterioso, ninguém nunca entrou na floresta durante a noite, exceto Horace
Singer que às vezes passeia com seu cão em noites quentes. Os que defendem
esta tese de que ele enlouqueceu, testemunham que viram o tal investigador
entrar na floresta no fim da tarde e não o viram mais, só na manhã seguinte.
Alguns acreditam que foi suicídio e outros dizem que foi...
Audrey engasgou, mas estava gostando de contar o ocorrido à filha:
― O fantasma da luz verde!
Brenda fez uma expressão de estar pasma com o que a mãe disse, tapando a
boca:
― Eu nunca ouvi falar sobre essa luz verde, aposto que só os mais velhos
conhecem essa história!
Audrey fez que não com a cabeça como se fosse uma negação que não tinha
prazer algum em expressar:
― Todos conhecem a história da luz verde, este não foi o único episódio. Seu
marido deve saber, ele vai muito à taverna e anda com o lenhador, é impossível
que ele desconheça sobre o assunto, ele deve ter encoberto para não te dar
medo. Mas é fato! A vila inteira conhece histórias sobre a luz verde e teme falar
sobre.

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― O que mais me deixou intrigada no teu relato foi ninguém ter conhecimento de
quem assassinou o investigador...
― Já veio um grupo de investigação aqui na vila para averiguar o ocorrido e
ficaram apenas dois dias, eles foram desanimando, pareciam temer algo que
pudesse acontecer com suas vidas. Eu não acredito que fosse uma ameaça
humana.
Brenda achou estranha a crença da mãe em ameaça não humana, se tratando da
religiosidade dela:
― A senhora que nunca acreditou nessas coisas agora vem me falar de ameaça
fora do normal!
Audrey parecia estar com o olhar distante e refletir numa lembrança do passado,
falou à filha de modo decisivo:
― Eles, aos poucos foram ficando estranhos. Pareciam estar sendo arrebatados...
― Como assim, mamãe?
― Seus impulsos se tornaram mais automáticos do que coordenados. Pareciam
zumbis, até que foram embora sem nenhuma explicação.
Brenda começou a ficar definitivamente assustada com a conversa da mãe e o
modo como ela falava:
― Acho melhor pararmos de falar sobre tal assunto, mãe.
Brenda engoliu em seco.
Audrey fez silêncio e deixou suas lembranças, olhou para a filha e pegou na mão
dela:
― As pessoas daqui não gostam de comentar sobre tais tipos de coisas, prova
disto é você nunca ter ouvido falar algo. Não é fato para se preocupar.
Brenda deu um abraço na mãe pensando no filho e no marido, calculava como se
sentia bem ao lado de sua família e naquele momento desejava ir embora...

***

Lionel Harter entrou na igreja e dando uma breve olhada no recinto não viu o
padre, porém, os bancos e o altar aparentavam já estarem organizados. Teria o
padre arrumado tudo? Tão logo de manhã?
Estudando melhor, podia constatar que de fato ainda não fora organizado um
centímetro da igreja e a tarefa seria dura. Melhor dizendo, se o pare havia
organizado a igreja, se tratava de uma organização de porco.
Ainda fazia um frio que incomodava e o velho não havia trazido casaco algum,
com a mão direita deu uma esfregadura no braço oposto e tomou o rumo dos
aposentos internos da igreja, o acesso era por uma porta ao lado do altar.

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Conforme adentrava mais e mais na igreja pelo corredor central, olhava as
diversas imagens de santos que estavam bem distribuídas no local. A igreja
possuía lugar para cerca de cem pessoas e não era muito grande, mas os
aposentos internos pareciam formar um verdadeiro labirinto, sentia frio na boca do
estômago ao pensar que poderia existir uma cripta secreta por lá, contendo restos
mortais de algum católico exemplar, uma boa pergunta a se fazer ao padre.
Ele chegou até a porta e a abriu, olhou para o corredor que se revelava na sua
frente e chamou pelo padre que não demorou a responder, a voz veio da
biblioteca, a terceira porta à direita. Rapidamente se encaminhou para lá.
O padre estava de costas e organizava um bocado de livros. Harter ao entrar deu
uma respirada funda e iniciou a conversa:
― Eu vim para ajudar-te no que for preciso, decidi sair mais cedo de casa
pensando que deveria ter muito a se fazer, principalmente a limpeza dos bancos.
O padre virou-se para cumprimentá-lo com um aperto de mão e um sorriso:
― Tudo já está organizado na igreja, eu gostaria que me ajudasse com os livros.
Eu decidi dar uma organizada neles e se o senhor pudesse bondosamente me
ajudar eu ficaria imensamente grato.
Harter bateu no peito como um soldado pronto para a guerra e disse:
― É comigo, basta dar as regras.
O padre riu-se da atitude do amigo e com a mão em seu ombro conduziu-o à pilha
de livros:
― Você é um bom amigo, Harter. Não sei o que poderia fazer sem você por aqui...
Harter ficou vermelho, o padre continuou:
― Hoje eu preciso ir de casa em casa convidar as pessoas para a missa de ação
de graças e não terei tempo de ficar aqui na biblioteca. Como o senhor pôde notar
eu já terminei a tarefa da igreja e acordei logo de madrugada.
Harter percebeu que o favor pedido pelo padre era que ele ficasse organizando os
livros, enquanto isto o amigo iria fazer o convite para a missa. Sentiu-se
perturbado em pensar que iria ficar sozinho naquela câmara de quartos no fundo
da igreja onde o silêncio era como em toda Pitfall, perturbador. Sem contar que os
livros deveriam passar de duas centenas e organizar um por um poderia levar um
bom tempo. Duas bancadas estavam vazias à espera dos volumes
correspondentes.
― Como vai a família, senhor Harter? Brenda é muito prestativa e me convidou
para jantar hoje, o senhor já deve ter conhecimento.
― Tudo esta nos conformes, exceto depois da missa do domingo passado, eu
fiquei meio ruim do estômago, mas foi razão de exagerar no churrasco...
O padre colocou a mão no ombro de Harter e com zelo retrucou:
― O churrasco estava uma delícia! O teu tempero é um gosto!
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O padre se virou novamente para a pilha de livros e emendou:
― Não me disse como vai cada membro da família...
― Ah! Sim, me desculpe, mas é que eu estou pensando na melhor forma de
organizar esses livros e nem me lembrei de responder, eles estão muito bem.
Segundo Brenda, todos estão bem, visto que eu posso responder somente pela
minha esposa e eu.
Hipócrita!
― Muito bem, senhor Harter, vou oficializar meu pedido para que arrume tudo aqui
enquanto eu ando por aí, mas antes vou buscar a garrafa de café e deixar para
que tome. Mas, você não deve demorar...
Harter pensou que o padre o julgava como "The Flash", mas deveria ser uma
prova de fé, quanto mais rápido organizasse os livros mais seria útil para a obra
da igreja, haja vista que o padre era carente de um braço direito.
O padre se virou, deu um sorriso para Harter e se retirou rumo ao labirinto de
quartos. Na porta, Harter espiou, curioso para saber qual direção tomava o
benevolente homem católico que o “amava”. Ele entrou em um recinto quase no
final escuro do corredor. Harter aproveitou para ver os livros enquanto esperava o
regresso do padre que lhe daria as coordenadas.
Na parede havia um quadro da Santa Ceia, ao lado uma enorme cômoda que
deveria ser o depósito de utensílios da igreja, teve um ímpeto feroz de
curiosidade, queria bisbilhotar caso estivesse destrancada a cômoda para ver todo
o conteúdo, mas além de ser uma operação arriscada poderia chatear o padre e
ele não queria que isto acontecesse, definitivamente não, era capaz de pôr a mão
no fogo por aquele bondoso homem da fé.
Escutou passos no corredor e se virou para olhar a porta, o padre entrou com uma
garrafa de café, um copo em mãos e um sorriso no rosto, aquele café com certeza
Harter aceitaria e não pestanejaria. Lionel de súbito fez uma pergunta que deixou
o padre de boca aberta:
― Santíssimo, o que pensa do celibato e todo este tipo de coisa?
Harter percebeu que o padre não gostou da colocação. O padre colocou o copo e
a garrafa na bancada ao lado da pilha de livros e se virou com ar sério, mas
amistoso para Harter e procurou ser objetivo:
― É uma regra da igreja católica e muito recomendada para quem deseja ter mais
tempo para a obra, excelente conduta de vida para ceifeiros.
Harter sem graça assentiu com a cabeça, se sentia intimidado perante o padre e
mais uma pergunta daquelas faria brotar lágrimas de vergonha em sua face. O
padre consultou o relógio e decidiu dar as recomendações a Harter:
― Pois bem, senhor Harter, temos aqui livros de capa grossa e livros de capa fina.
O que vou te pedir é simples, não precisa ordená-los alfabeticamente falando,

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basta colocar um livro de capa grossa e um livro de capa fina em seguida, eu digo
alternadamente, não sei se me entende...
Harter assentiu com a cabeça.
― Muito provavelmente em duas horas você termina, será então quase meio-dia e
gostaria de agendar um último favor, se puder é claro...
― Pode falar que estou à inteira disposição.
― Quero que toque o sino da igreja, assim como eu faço todos os dias nos
devidos horários e isto digo, é algo necessário, repito, é algo de sumo importância.
Portanto quero que me diga se poderá ou não, caso negar não tem problema, eu
mesmo voltarei e tocarei...
Harter imaginou que deveria percorrer aquele corredor sombrio até a sala da
torrinha do sino, não queria dizer não e foi o que fez:
― Certamente que o farei, com prazer.
O padre riu feliz com a amizade do velho e terminou suas instruções:
― E por último, vou dar um jeito de almoçar na taverna do senhor Fillman, ao
tocar o sino poderia trancar a igreja e me levar o molho de chaves?
Harter assentiu novamente:
― Será de imenso prazer, me sinto muito útil.
O padre Alvarez retirou um molho de chaves que estava pregado em sua batina e
entregou a Harter, apertaram-se as mãos e o padre desejou um bom trabalho a
Harter que sorriu agradavelmente.
Harter ainda acompanhou o padre até a porta da igreja e o viu dar início ao seu
itinerário na casa vizinha, os vizinhos o atenderam e ele sumiu de vista quando
entrou na casa. Harter respirou fundo e retornou à biblioteca. Deu uma estudada
na pilha de livros, eram inúmeros. Olhou novamente para a cômoda ao lado do
quadro da Santa Ceia e calculou se deveria ir até lá e verificar a possibilidade de
bisbilhotar. Não se conteve, foi, seu coração foi apertando a cada passo que dava,
estava curioso, mas ao mesmo tempo seria um alívio constatar que a cômoda
estivesse trancada. Pegou na maçaneta e girou, tentou duas vezes e foi tomado
por uma calma sobrenatural, a cômoda estava trancada e a curiosidade morreu.
Voltou então para os livros, mas primeiro decidiu servir-se café, estava quentinho e
muito, muito amargo, o padre deveria estar de brincadeira ou se esquecera do
açúcar, mas não seria ele quem iria buscar o açúcar no fim do corredor, não
mesmo. Engoliu o café que já estava em sua boca e derramou de volta na garrafa
o conteúdo do copo, iria simplesmente esquecer que aquele café estava ali e
começar a tarefa, ingrata tarefa, não por não querer botar a mão na massa, mas
por estar sozinho. Leu o nome do primeiro livro da pilha: "As obras da Santa
Igreja" de Van Holden, autor que não conhecia, deveria ser algum bispo de Roma
ou algum católico fanático, pegou outro livro na mão e leu o seu título: "A fé e o

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grão de mostarda" de John Winser, deu uma risada exprimindo um som da
garganta e pensou que deveria ser muito bom passar um dia lendo naquela
biblioteca, bastava pedir ao padre, seu grande amigo, quem sabe um dia?
Lembrou-se do corredor vazio, dos inúmeros quartos, do açúcar que se quisesse
poderia buscar, lembrou-se do sino que deveria tocar... uma sensação estranha
tomou conta dele, foi a partir daquele momento que os calafrios começaram...

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11

O AMIGO DE FORBES

Em Pitfall existiam poucas crianças, a predominância quando se referia a


habitantes era de idosos ou adultos que gostavam de levar uma vida mais
tranquila, longe das loucuras e confusões das cidades grandes.
Um fato importante a ressaltar era a não existência de uma escola no vilarejo,
havia algumas famílias, poucas possuíam automóveis, o cargo de transporte
escolar, caso necessário, ficaria por conta de Oliver Kingston que era uma espécie
de prefeito de Pitfall. Transporte que poderia ser feito com a sua caminhonete e o
único obstáculo seria a distância para a cidade mais próxima. Eram apenas duas
crianças que precisavam de tal locomoção e o senhor Kingston fazia sua tarefa
com prazer. Havia, porém, algo indigesto a acontecer, as crianças que estudavam
na cidade mais próxima sofriam algum tipo de preconceito dos colegas de escola,
o principal era a indesejável taxação de "estranho" que era imposta. Com o
corrente período de férias escolares, as crianças poderiam ter uma época de
trégua na sossegada Pitfall.
Para Tania Bombay, ultimamente, a questão do colégio se tornava uma
preocupação, pois no ano seguinte seria a vez de seu pequeno filho ingressar na
instituição do saber. A sua preocupação era fundamentada em dois aspectos,
primeiro, a distância, e segundo, a fama das pessoas de Pitfall que rodava as
cidades vizinhas, gerando os maus tratos na escola. Nos últimos dias, ela
calculava seriamente a possibilidade de se mudar de Pitfall, seriamente mesmo,
mas para realizar tal desejo era necessário um comprador que pretendesse sua
casa. Ajuda que pediria ao senhor Kingston, que seria incumbido de encontrar um
comprador. Ela estava com as mãos coçando, desejando tomar um diálogo com
ele.
Naquela manhã, ela terminou de lavar a louça e se preparava para pegar roupas
para lavar quando alguém bateu na porta. Seu filho dormia e sua avó tomava um
sofrido banho, ao menos isto ela conseguia fazer sozinha.
Tania foi à sala, abriu a porta e deu de cara com o lenhador, seu cão ao lado.
Horace tirou seu chapéu estilo exército que colocara após rachar os troncos em
modo saudação:
― Bom dia senhorita Tania, deseja comprar lenha para o fim de semana? E que
frio fim de semana!
Tania amistosamente concordou com o brutamonte:
― Deveras, precisaremos. O meu filho adora escutar histórias da vovó ao lado da
lareira em noites frias.
Horace fez um gesto de concordância e foi até a vagonete enquanto perguntava:
80
― Quantos tocos deseja?
― Se estiverem do tamanho de sempre, vou precisar de uns oito, mais ou
menos...
Os tocos que o lenhador cortava eram grossos e duravam a queimar na lareira,
parecia que a habilidade do lenhador no que fazia proporcionava um rendimento
surpreendente do seu produto. Horace pegou o monte de oito tocos, os prendendo
entre as mãos e foi em direção à casa da cliente. Tania fitava os bíceps
avantajados do homem, mas sempre se lembrava do seu falecido e amado marido
e logo sentia tristeza em cometer tal ato. Definitivamente não conseguia superar a
perda e deixava de viver o curso normal da vida. A barba de Horace transbordava
os limites da tolerância, mas o homem demonstrava não se sentir incomodado.
Tania o seguiu, não precisava indicar a lareira ao homem que sempre fazia a
entrega transportando ao local de destino para os clientes. O homem colocou a
pilha ao lado da lareira com cuidado enquanto Tania buscava o dinheiro na
cozinha, ela não demorou a voltar com as notas e entregou ao homem que sorriu
amavelmente:
― Muito obrigado, doce senhorita...
Tania respondeu com um sorriso de cortesia, o homem se retirou, ela foi até a
porta para acompanhar até que ele fosse à próxima casa. O homem pegou uma
haste da vagonete e com firmeza a empurrou avante, o cão ia atrás.
Horace educara seu cão para fazer a guarda do produto fora da casa dos clientes
enquanto ele entrava para fazer a entrega, o cão obedecia, entendendo a postura
do dono.
O lenhador não cobrava lenha de quem não tinha condições de pagar, não que
gostasse de ser caridoso, mas viver em volta de uma imensidão de árvores seria
um pecado fazer choradeiras por causa de alguns pedaços de madeira. Afinal,
todos precisavam se aquecer, tendo grana ou não.
O homem se foi.
Tania bateu a porta e a trancou.

***

Quem não teria medo ou receio que fosse de passar a noite em um lugar
desconhecido, e pior, que se apresentava perigoso?
Para Norman Legrand, a noite anterior fora como estar em um pesadelo e se não
contasse com a presença de seu novo amigo Joseph Forbes, com certeza já teria
feito o impossível para estar milhas e milhas de distância daquele hotel e de toda
Pitfall. Uma simples arma poderia lhe passar uma sensação de segurança quando
não sabia com o que estava a lidar?

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Durante a noite, sonhou que adentrava cada vez mais e mais em uma floresta
escura e conforme avançava o ar lhe faltava gradativamente. Mas um pesadelo
era apenas um pesadelo e nada significava, principalmente pela razão de ter
passado maus momentos na noite anterior em meio àquela atmosfera misteriosa
que era o hotel e depois se tornara a vila num todo.
O sol banhou o seu rosto adormecido e logo o despertou, se sentiu perdido a
princípio, mas assimilou a situação à sua volta e voltou à tona. A primeira
lembrança da noite anterior foi o quadro que havia trancado no closet, mirou seu
olhar na direção do lugar que deveria estar o quadro ao mesmo tempo em que seu
coração deu um pulo, mas foi tomado por uma onda de alívio quando constatou
que o quadro não estava pendurado, ninguém entrara em seu aposento durante a
madrugada e provavelmente nada fora mexido. Aproveitou a situação para estudar
o outro quadro, o do homem montado num cavalo e constatou que continuava em
seu devido lugar esbanjando a sua ironia corriqueira.
Pareceu uma grande coincidência, mas neste momento alguém bateu à porta,
parecia uma mão pesada que desferia os golpes na velha madeira. Logo pensou
em Forbes e se levantou indo em direção da porta, atento, perguntou:
― Quem é?
Uma voz baixa e quase inaudível soou no recinto, mas conseguiu distinguir e
reconhecer seu bom amigo:
― Sou eu, teu improvável e amigo Forbes...
O linguajar do amigo era algo digno de nota, destrancou dando passagem ao que
chegava e que vestia um colete preto parecido com o dos agentes da lei, com um
charuto na boca baforou quando entrou:
― É incrível como você dorme, eu pensei em ir sozinho ao armazém do
Kingston...
Mas Norman captou o tom de zombaria e argumentou a seu favor:
― É que ontem foi um dia corrido e eu não havia dormido tão bem nas duas noites
anteriores, fora o frio daqui que nos faz mais sonolentos e desejosos de uma boa
cama, que não é o caso destas do hotel.
― Verdade, mas você acredita que eu não demorei a pegar no sono quando
deitei?
― Eu acredito, mas você deve se sentir seguro tendo aquela arma ao teu dispor...
― Também, e como eu havia dito é difícil algum ruído por mais simples que seja
conseguir se esquivar de meus ouvidos. É por tal razão que acredito em algo fora
do normal quando me deparei com o quadro pendurado em seu devido lugar,
lembrando que eu o havia trancado e estava no poderio das chaves do closet.
Norman refletiu no que o amigo havia dito, tirou a roupa de dormir e começou a
vestir a roupa de guerra, prosseguiu no que dizia:

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― Eu fiquei assustado ontem, veja onde estava o quadro...
Norman apontou para o lugar da parede onde estava o quadro da criança morta.
Forbes atento e dando outra tragada no charuto fitou a parede.
― Pelo visto você não foi atormentado enquanto dormia.
Norman se virou em direção à mala que estava ao lado da cama e pegou a
escova de dente e o mini pente:
― Vou escovar os dentes e pentear o cabelo, depois podemos ter com o teu
amigo.
― Não te afobes, sou paciente. E os cobertores?
Norman indo em direção ao banheiro fez careta:
― Cheiram muito mal, eu gostaria de conversar acerca disto com aquele velho...
― Experimente fazê-lo e receberá a mesma resposta que recebi.
Forbes seguiu o amigo até o banheiro e este, após pressionar o tubo de pasta na
escova perguntou:
― E o que foi que aquele louco respondeu?
Forbes deu uma olhadela na banheira de Norman, fez careta e respondeu:
― Ele me falou que se eu estiver incomodado posso ir embora!
― Acredita que estou começando a ter nojo desta casca negra da banheira
também? ― emendou Forbes.
Norman começou escovar os dentes e fez jóia com a mão. O seu pensamento se
voltou para a noite anterior na taverna, desejava assim como o amigo receber uma
explicação de alguém.
Forbes parecia esperar alguma reação do amigo. Norman terminou de escovar e
enxaguou a boca e a escova, depois tentou mais uma vez recuperar a tampinha
perdida, mas sem êxito.
― Forbes, você tem alguma pinça ou algo parecido para que eu possa pegar
minha tampinha que caiu no buraco da pia?
Forbes ficou surpreso, em meio aquele ar de mistério, quase drama, o amigo
estava preocupado com uma bosta de tampinha.
― Deixe-me ver...
Retirou a chave de seu carro e foi até a pia, fez uma alavanca e recuperou a
tampinha do amigo. Deu na mão dele e sugeriu:
― Você se esqueceu da chave do teu carro.
Norman não teve tempo de raciocinar sobre e percebeu como sempre esteve com
a solução na ponta dos dedos. Sua preocupação era que a pasta adocicada
pudesse atrair certos tipos de insetos.
Os dois amigos se retiraram para o quarto. Norman se esquecera da porta aberta,
de modo que alguém poderia ter entrado em seu quarto e escutado a conversa,

83
mas era algo que não deveria significar problema se o velho do hotel respeitasse
sua posição de dono e fizesse jus aos modos de cortesia e recepção.
― Acho melhor irmos. Algo mais a se fazer? ― perguntou Forbes.
Norman guardou seus utensílios, pegou a chave do quarto na porta e respondeu,
saindo:
― Não, tudo resolvido.
Norman esperou que o amigo saísse do quarto e fechou a porta, um rangido
ensurdecedor soou no hotel, capaz de ser ouvido no andar de baixo, tudo parecia
ser feito de propósito para delatar alguma infração. Mas o velho não tinha a fama
de surdo? Talvez para despistar suspeitas, mas quem sabe ele ouvisse e muito
bem.
Ao sair, Forbes estudou o corredor enquanto o amigo trancava a porta. Os dois
caminharam lado a lado até o começo da escada. Olharam para a porta principal
do saguão com expectativa e ficaram surpresos ao constatar que estava fechada,
resolveram descer, mas lentamente. Lá embaixo não se ouvia barulho algum e a
claridade da luz do dia permitia uma visão completa do aposento.
Terminaram de descer e logo se encaminharam em direção à porta, sem se
preocuparem se o velho estava os vendo ou não. Prosseguiram e percorreram
quase metade do caminho quando soou uma voz que fez tremer a nuca dos dois:
― Passaram bem à noite? O que acharam da hospitalidade?
O velho saiu de um aposento perto do balcão de recepção, o mesmo em que fora
buscar a chave para Norman no dia anterior. Os dois amigos se viraram e fitaram
ele.
Norman fez uma pergunta e causou indignação em Forbes:
― O senhor poderia explicar primeiro o motivo de os cobertores cheirarem a
mofo?
Norman ficou inquisidor e sentia medo por dentro ao mesmo tempo. O velho se
aproximou e pareceu tomar o rumo da porta fechada quando respondeu em tom
de desafio:
― Se não estiver contente pode se retirar e procurar outro lugar para ficar, as
regras aqui não são ditadas pelos hóspedes.
A resposta desconcertou Norman e Forbes havia ficado indignado, pois sabia o
que o amigo ouviria ao perguntar. O velho se agachou perto da porta e pegou o
molho de chaves, atitude que fez os amigos se entreolharem de olhos
arregalados.
O velho destrancou a porta e a abriu, um rangido parecido com portas de castelo
antigo soou, ele parecia fingir que os dois amigos não estavam presentes.
Terminou sua tarefa e se retirou em direção à sua cadeira de balanço, um jornal
estava em cima dela, ele pegou o jornal, sentou-se e começou a ler e a balançar a

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cadeira, sempre indiferente. Os dois amigos estudavam a ação do velho, mas
acharam melhor ir logo para o armazém de Kingston.
Ao saírem, sentiram o vento ainda gelado que rodeava a vila, porém o sol já era
aconchegante e bastaria andar onde o seu raio batia, e naquele momento era a
cerca de vinte metros das casas e para lá eles foram. Forbes e Norman
caminhavam em direção ao armazém que ficava além do xerifado, na outra
divisão da rua principal.
Ao passarem em frente à taverna perceberam que a porta estava fechada, afinal
não era horário de expediente, exceto para o café matinal. Depois, Norman olhou
para as janelas de cima e na primeira delas em direção ao hotel viu o rosto de
uma pessoa, pôde distinguir que era um jovem de cabelos loiros e que ele era
estrábico, o jovem olhava atentamente para a floresta e nem se deu conta que os
dois amigos cruzavam a rua.
― Aquele é o filho do senhor Fillman, o mesmo que eu havia mencionado ontem à
noite.
Norman que já se apercebera disto lançou uma pergunta:
― Quer dizer que aqueles gritos que ouvimos quando aquela luz estranha
passava pela porta da taverna eram dele?
Forbes balançou a cabeça em afirmação e complementou:
― Ele teve uma visão privilegiada da luz misteriosa, quem dera pudesse nos
descrever detalhadamente. A verdade é que nós deveríamos deixar de sermos
bananas e ir atrás da luz quando esta voltar, se é que isto vai acontecer outra vez.
― Sim, mas ontem fomos pegos de surpresa e não sabíamos o que se passava.
Quando o fortão disse para que fossemos para baixo das mesas eu pensei que
alguma quadrilha de mercenários ia em direção da taverna com sede de sangue.
― Você tem razão, qualquer um imaginaria que estávamos prestes a presenciar
um assalto ou um terremoto quando alguém que conhece o lugar nos diz
desesperadamente para nos protegermos.
Os dois cruzaram a divisão da rua principal e estavam se aproximando do
xerifado.
Norman viu uma enigmática estrutura de paus e questionou o amigo acerca,
apontando com o dedo indicador:
― O que são aquelas madeiras?
― É uma velha forca, o Kingston me disse que já conta com mais de cem anos e
foi construída logo na fundação de Pitfall. Kingston me garantiu que existe uma
lenda que certa vez um investigador amanheceu enforcado ali, ele me afirmou que
foi suicídio, embora não me convencesse, principalmente pelo fato de tal lenda ter
sido descrita pelo dono do hotel, aquele doido.

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Norman deu uma risada do grau de credibilidade que aquele velho radiava,
estudou a estrutura de madeira quando chegaram perto. Forbes apontou o
xerifado e disse ao amigo:
― E ali é o xerifado, veja, o xerife Frank Silver e seu ajudante George Conway...
Norman olhou em direção ao xerifado e viu dois homens sentados folgadamente,
bebiam algo que devia ser café e conversavam gesticulando muito.
― É bem provável que o xerife queira interrogá-lo, é algo normal, a vila é
sossegada, mas ele faz perguntas como uma medida de ter controle. Você
entende...
Norman não respondeu, mas fez menção de concordar com a cabeça. Os dois
fitaram a casa anterior ao armazém e viram uma mulher de óculos que os olhava
parecendo estranhar. Forbes explicou:
― É uma reação normal por aqui, forasteiros são farejados e tratados como um
enigma, mas bem recebidos...
Forbes virou noventa graus e foi em direção do armazém.
― Pronto, chegamos.
Uma placa de madeira e pirografada meticulosamente indicava o nome do lugar:
"Jack-o'lanterns & Vultures Market"
Norman ficou curioso em saber a razão de tal nome inusitado. Forbes entrou no
local seguido de Norman. Haviam quatro bancadas cheias de produtos como leite
de caixinha, pacote de café, arroz e macarrão. Na verdade, lá era o mercadinho
da vila. Havia uma estátua de pirata, era fabricada inteira de madeira, incluindo os
adereços e ficava em pé ao lado do balcão de atendimento como se fosse um
objeto espanta ladrão, comportava-se como um espantalho de humanos, esta era
a impressão. Forbes bateu uma palma para chamar a atenção de Oliver Kingston
que estava empilhando algumas pequenas caixas atrás do balcão e não se dera
conta da presença dos dois. Oliver se levantou e virou em direção aos dois
amigos, era um negro de trinta anos, corpulento, com os músculos um pouco
avantajados e de estatura mediana, mais baixo do que os dois forasteiros,
esboçava virilidade. Usava uma camiseta branca que realçava sua masculinidade
e calça jeans. Ele de cara demonstrou prestatividade aos dois amigos se
aproximando:
― Vejamos quem vem me visitar. Deseja alguma coisa, Joseph?
― Viemos trocar uma conversa contigo, quero antes de tudo apresentar o meu
amigo Norman Legrand...
Os dois saudaram-se com um aperto de mãos e Oliver complementou:
― Você deve ser de fora também, conheço o nome e a idade de cada habitante
daqui e na minha lista mental não consta a tua descrição...

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Forbes colocou a mão na frente do rosto de Norman demonstrando que desejava
barrar amistosamente a conversa vã de Oliver:
― Poupe ele, meu caro, faça de conta que ele já é um habitante de Pitfall!
Oliver entendia a colocação amigável de Forbes e prosseguiu a conversa:
― Melissa, minha irmã, costuma dar seus palpites meteorológicos desvairados e
acertar no alvo. Ela me afirmou que hoje vai irromper uma tempestade tenebrosa
por aqui...
Os dois amigos se entreolharam e imaginaram a possibilidade. Forbes jogou o
restante do charuto num cinzeiro que era um adorno de uma das mãos do pirata
de madeira e perguntou:
― Existe algum motivo específico que a faz afirmar tais acontecimentos?
― Não sei bem explicar, parece um dom, basta ela falar e quase que em cem por
cento das vezes acertar.
Norman decidiu entrar na conversa:
― Eu soube de um caso parecido, um professor de Oxford que eu não me lembro
o nome apontava um rumo no céu e transcorriam dois segundos, uma descarga
elétrica ocorria no local exatamente apontado, digo, um raio em momentos de
tormenta.
Forbes sugeriu uma solução em tom explicativo:
― Ele pode ter simplesmente criado alguma espécie de detector de energia...
― Não acho que fosse possível, isto aconteceu há mais de cinquenta anos atrás e
teria se transformado em um aparelho detector de sucesso no mercado. Mas
como isto não aconteceu, provavelmente seja conversa fiada dizer que ele
contava com o auxílio de alguma parafernália secreta. ― retrucou Norman.
Oliver Kingston assistia calado o debate e decidiu não esboçar opinião, embora
gostasse de estar numa roda de amigos jogando conversa fora. Forbes aceitou a
colocação de Norman como a verdade, o negro foi até a despensa pegar cadeiras
para fornecer um ambiente mais agradável e receptivo aos visitantes. A
inquietação do anfitrião ao se preocupar com os assentos dos amigos
demonstrava o seu nível de hospitalidade.
Kingston regressou trazendo duas cadeiras e as ordenou estrategicamente, no
intuito de proporcionar uma posição favorável aos três. Norman permanecia
calado estudando as atitudes do anfitrião e não deixando de fitar a estátua uma
vez ou outra, em seu modo de pensar, aquela estátua parecia um objeto do hotel
de Jim Bobster, passava um ar de mistério como todo aquele estabelecimento, o
hotel, que devia simplesmente aconchegar os visitantes e clientes. Mas, respeito
parecia faltar naqueles homens de Pitfall, primeiro com o grosseiro modo de Jim
Bobster, segundo, a forma como o taverneiro os havia tratado, num lampejo, num
piscar, fora o extremo da amabilidade e depois se tornara o mais vil e rude dos

87
seres, aquele tipo de ignorante que despreza até o espaço de suas crias. O que
poderia justificar a atitude do taverneiro era o medo da estranha manifestação da
luz verde, um mistério que na lógica deveria fazer tempestade nos pensamentos
do taverneiro. Oliver Kingston teria algum surto de ignorância em algum
momento? Norman poderia levar uma amizade com o homem mais influente de
Pitfall sem se decepcionar?
Norman, em determinado episódio na sua infância aprendera o que era ser
reprimido e naquele momento, naquele pensamento, seu subconsciente o
aconselhava o basta, assim como um professor admoesta o aluno histérico.
Forbes se sentou e Norman o imitou.
Kingston fez menção de novamente se retirar para outro cômodo do armazém e
antes que algum outro o interpelasse, questionou:
― Os amigos gostariam de provar alguns cookies? Minha irmã faz cookies
irresistíveis e colocou para assar alguns neste momento. Vou trazer, vamos
provar...
Kingston se mostrava amável e antes que sumisse de vista, Forbes respondeu
amigavelmente:
― Você quer acabar de me estourar, olha, incitar a obesidade neste país já obeso
é crime.
Norman gostou da colocação do amigo, o anfitrião sorriu e sumiu de vista, foi
possível ouvir seus passos numa escada.
Forbes olhou para o amigo:
― Quando ele voltar, nós vamos questioná-lo o que tanto nos atormenta. Eu
penso que ele poderá nos dar informações valiosas.
― Gostaria de saber primeiro sobre o dono do hotel, quem sabe nos é revelado
que ele seja portador de um grave e perturbador problema mental.
― Como queira, provaremos dos cookies e aproveitaremos para iniciar conversa
na base do susto, mas como quem não quer nada.
Forbes concordou, em pensamentos, ceder à vontade do amigo, que insistia em
saber sobre o misterioso dono do hotel. No fundo desconfiava que Pitfall inteira
fosse composta por habitantes de outro mundo, porém, Kingston era exceção.
Soou o barulho de passos na escada e os dois amigos se prepararam para
receber o anfitrião que trazia a guloseima. Kingston surgiu trazendo um prato de
porcelana com peixes estampados em azul, e a maior atração era dois cookies de
chocolate, ambos com cerca de dez centímetros de diâmetro, eram quase um
almoço.
Kingston ofereceu a iguaria aos amigos que não hesitaram em logo provar com
uma mordida, o anfitrião parecia satisfeito. Norman logo notou que o cookie
possuía um delicioso aroma de chocolate misturado com café, mas momentos

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depois um gosto estranho tomou-lhe o paladar, gosto de queimado, a irmã do
anfitrião provavelmente extrapolara no tempo ao forno. Norman não se deixou
entregar com alguma careta ou reclamação, do contrário, demonstrou aprovar
com gosto:
― Fenomenal, sempre comi cookies por onde passei e nunca provei um tão
delicioso e bem feito como este.
Kingston ficou satisfeito com a "aprovação" do visitante e com orgulho declarou:
― Modéstia à parte, minha irmã é a melhor cozinheira que conheço...
Deve ser por esse motivo que adivinha quando vai ocorrer um temporal, por
exemplo. Pensou Norman, mas depois se sentiu mal ao pensar com ironia tal
disparate da irmã do amigo. Forbes quebrou seu próprio silêncio:
― Eu também adorei este cookie e digo o mesmo, foi o melhor que já comi em
toda a minha existência.
Norman ficou na dúvida se o amigo estava disfarçando para não ser inconveniente
ou se de fato o outro cookie estava com um gosto atraente, mas a verdade era
que o cookie estava sendo devorado com gosto pelo amigo e o anfitrião assistia
de braços cruzados, satisfeito como alguém que conseguiu fazer um filho pequeno
comer verdura ao invés de porcarias. Para Norman restou apenas o dever de
terminar a árdua tarefa de dar um fim naquele biscoito, assim não transmitiria
desconfiança, não perderia os modos de um homem educado. Firmou um
compromisso consigo mesmo, devoraria o cookie como Forbes e fim de papo,
mesmo que isto lhe custasse a integridade do estômago. E foi assim que fez,
conseguiu como havia planejado, sem pestanejar, bastou pensar em algo
agradável de mordida em mordida.
Kingston esperou o termino da refeição para colocar o prato em cima do balcão,
se virou para os dois e com a cara de ainda satisfeito demonstrou seu zelo para
com o interesse dos outros:
― Pois bem, desejam tratar de qual assunto comigo? Não estão sendo bem
recebidos aqui em Pitfall?
Norman e Forbes se entreolharam, era evidente que Norman gostaria de
responder o que pensava da recepção do dono do hotel. Forbes inteligentemente
decidiu explicar os fatos:
― Como o amigo deve saber, estamos hospedados no hotel de Jim Bobster...
Kingston não esperou terminar a pausa do amigo e demonstrou ser prestativo
também na conversa:
― Sim, é o único hotel no raio de muitas milhas. Mas, queira explicar-se melhor...
― Tudo bem, gostaríamos que nos falasse sobre o dono do hotel.
Kingston franziu o cenho, estranhando a colocação do amigo que demonstrava
sério interesse em sua resposta.

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― É que ele tem tido alguns comportamentos estranhos. ― Emendou Forbes
após perceber a inquietação do anfitrião.
Kingston bem conhecia o dono do hotel e cada habitante de Pitfall, mas valeria à
pena permitir que qualquer forasteiro tivesse conhecimento da vida do povo de
Pitfall? Por fim, procurando evitar o assunto, perguntou ao visitante:
― Que tipo de comportamento? Que eu saiba, Jim Bobster não apresenta sinais
de caduquices, embora seja tão reservado como um assento exclusivo para
idosos.
― Vou passar a palavra ao meu amigo Norman, ele descreverá o que tem lhe
incomodado em relação ao velho dono do hotel.
Forbes olhou para Norman como quem espera uma justificativa ou um
ensinamento. Norman não se deixou embaraçar e iniciou suas queixas ao
anfitrião, porém medindo as palavras, as pessoas desconhecidas de Pitfall o
intimidavam.
― Ele parece não se importar com seus clientes.
Kingston riu da queixa do amigo, era óbvia a atitude do dono do hotel, nenhuma
novidade para toda a Pitfall. Porém, não sabia como explicar aos amigos de forma
convincente que em um único lugar do mundo, o dono de um hotel não era apto a
receber pessoas. Se sentindo impotente, ficou sério:
― Pode parecer loucura, mas infelizmente ele é assim, estranhe se algum dia ele
apresentar outro modo de tratar com os demais.
― Mas como pode todos vocês de Pitfall aceitarem que um homem suje a imagem
da vila ou vilarejo, sei lá o quê? É assim a hospitalidade de Pitfall? ― Forbes se
mostrou indignado e quase perdeu o equilíbrio.
― Reconheço que eu deveria tomar alguma decisão sobre, mas me compreenda,
o fundador de Pitfall é um antepassado de Jim Bobster e... bem, não é que ele
mande aqui, mas temos um certo respeito pela influência do nome dos Bobster...
Norman não gostou da atitude do anfitrião, parecia como a dos homens na
taverna, de verdadeira covardia, crianças com medo de um bicho-papão.
― E tem mais, não posso mudar o jeito dele e tenho dito, não há mais algo de
estranho no Bobster. ― tentou se justificar o anfitrião, mas estava se
embaraçando.
Forbes olhou para o teto como quem se cansou de tentar avisar um ignorante.
Norman citou outros pontos significativos:
― Já entrou nos quartos daquele hotel, Senhor Kingston? Entre no meu e terá a
impressão que, desculpe o assunto, mas de se estar presenciando um verdadeiro
enterro.
Kingston não se chocou com a colocação:

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― Nunca entrei nos quartos, o que há de ruim? Quer dizer, já levei algumas caixas
para o reservatório do hotel, mas isto foi muitos anos atrás, eu não passava de um
recém-chegado que fazia favores por poucos centavos.
Norman fez expressão de surpresa irônica:
― Pois então, você acreditaria se eu te afirmar que pendurado na parede do meu
quarto existe um quadro com a foto de uma criança morta? Em minha opinião
quem tem este tipo de quadro na parede de um hotel, ou quem apóia tal atitude
não bate bem da cabeça.
Forbes abrira mão de conversar, Kingston se mostrou um pouco surpreso, não
duvidava da demência do velho do hotel, mas nunca tivera conhecimento do
quadro.
Todavia, era hora de entrar no mesmo nível da conversa:
― Vou contar uma verdade, alguns habitantes de Pitfall já pernoitaram no hotel
Bobster Inn e a vila toda tem receio de passar lá em frente, dizem que é um lugar
mal-assombrado, eu particularmente acho que é uma conversa mole, muito mole.
Forbes como quem encontra a solução para uma difícil equação matemática
propôs:
― Então sinta-se convidado a passar uma noite conosco no hotel, daremos um
jeito do velho não ter conhecimento da tua presença, embora pensando bem, julgo
esta ideia inviável, uma vez que as paredes daquele hotel provavelmente têm
ouvidos, olhos e talvez nariz, e um miserável cérebro quem sabe.
Kingston não julgou má a ideia do amigo, afinal, já pensara em vasculhar o hotel
de ponta a ponta. Ora, até o mais comportado dos homens teria a curiosidade de
explorar um lugar que era taxado como mal-assombrado por muitos. A ideia pegou
o anfitrião de surpresa, acertaram-lhe no ponto fraco, flecha ao alvo, e teria o
auxílio de dois amigos para tal tarefa.
― Não acho má ideia, meu amigo, eu confesso que desde a minha chegada a
Pitfall quando subi pela primeira e única vez no segundo andar do hotel, trago
certa vontade de conhecer melhor aquele lugar, vocês sabem, o povo fala tanto
que acabou de fato abrasando este meu desejo de adolescente, de explorar o
inexplorável. Quando cheguei aqui havia acabado de fazer dezoito anos e
convenhamos, é a idade de buscar aventuras.
Forbes e Norman se animaram com a decisão do anfitrião.
― Podemos combinar uma forma, vamos traçar um plano. ― Norman estava
empolgado.
― Eu concordo, podemos fazer um plano com cuidado e executar no momento
mais propício. ― Forbes reforçou a idéia.
Kingston que já havia se animado com a ideia, resolveu prosseguir a conversa até
extrair uma decisão mais plausível e de menos dificuldade:

91
― Ora, se já somos adultos e entendemos tudo do mundo, somos capazes de não
acreditar em histórias da carochinha e chegar à conclusão de que não existem
assombrações e de que o Bobster é só um velho, se agirmos com cautela acredito
que sim, poderemos dar uma vasculhada em cada centímetro do hotel, tipo uma
expedição.
Norman apesar da empolgação dos outros dois e de si próprio, trazia suas
dúvidas, no hotel seria difícil alguém de fora entrar sem o velho ter conhecimento
e a presença de outra pessoa que não fosse os dois hóspedes seria logo
averiguada, se o velho já colocava regras para hóspedes, dava para imaginar o
que aconteceria se um terceiro entrasse no hotel, ou pensasse em entrar.
Kingston contestou:
― Se o velho ter conhecimento de que eu estive lá sem permissão, ele levará o
caso aos ouvidos do xerife, embora o xerife não seja simpatizante de Jim Bobster,
um homem da lei não deixaria de fazer o seu papel.
― É por isso que devemos estudar a melhor maneira de fazer um pente fino no
hotel. ― Forbes sugestionou sempre cauteloso.
Naquele momento soou o cantarolar do ritmo de uma música, a voz era feminina e
vinha da escada que conduzia ao segundo andar, a atenção dos dois visitantes se
virou para a voz. Oliver Kingston fez questão de logo explicar aos amigos:
― É a minha irmã, ela tem o costume de cantarolar enquanto lustra os móveis de
madeira. Não vou chamá-la aqui, pois não gosta de ser interrompida nos serviços
domésticos.
Os dois amigos se aquietaram e Norman logo questionou:
― Em que parte da conversa estávamos?
Forbes pegou no braço do amigo e pressionou como quem dá uma admoestação
por trás das cortinas, logo depois falou:
― É melhor irmos embora, o dia já se aproxima de sua metade e nos vamos dar
uma passada na taverna para comer algo. Embora o cookie da tua irmã possua o
tamanho de um bolo, apenas doce não deixa o homem em pé.
Forbes se levantou puxando com leveza o amigo pelo braço, o anfitrião estranhou
a atitude do outro e questionou:
― Não desejam terminar a conversa? Estavam tão interessados em saber sobre o
hotel...
Forbes negou com a cabeça e espremeu a boca:
― Na verdade já sabemos o que queríamos e não vamos tomar mais o teu tempo.
― É um prazer a visita de vocês. Voltem quando quiserem, estarei sempre aqui e
durante a noite podem me chamar também, como sabem, sou quem soluciona os
problemas da vila.

92
Kingston entendeu a postura dos amigos, nunca foi de forçar alguém a nada e não
seria para ter a presença de amigos que agiria como uma criança. Recebera uma
boa educação e respeitava o espaço e decisões dos outros.
― Nós agradecemos por tudo, saiba que tem em nós dois amigos, esta é a
mesma opinião de Norman com certeza.
Norman concordou e fez uma afirmação com a cabeça.
― Eu agradeço. Pois bem, voltando ao serviço...
Oliver Kingston se virou e novamente movia as pequenas caixas
estrategicamente. Os dois visitantes se viraram e saíram do estabelecimento, não
olharam para trás pelo motivo do anfitrião ter voltado a se entreter com o serviço.
Ambos estavam calados e andaram alguns metros de distância das casas em
direção à floresta, tomaram o rumo da taverna. Ninguém espreitava pelas janelas,
no xerifado não era possível ver alguma alma viva, somente a mobília, a vila
parecia ter sido arrebatada, ninguém fora de casa na rua principal. Norman
quebrou o silêncio:
― Não entendi a tua afobação para sair depressa.
Forbes não esperou o amigo concluir, cortou conversa:
― Eu notei algo errado.
― Como assim? Algo errado? Continuo sem entender.
― Você se sentiria bem estando em um lugar que alguém tenta esconder algo de
você, como se você não pudesse saber de qualquer coisa e se caso soubesse,
causaria um transtorno?
Norman fazia feição de quem estava confuso.
― Vou explicar especificamente, quando a irmã de Kingston começou a cantarolar
aquela melodia eu notei que o Kingston queria esconder algo. Lembra quando ele
disse que ela afirmou que vai haver uma tempestade hoje?
― Sim, mas qual a relação?
― É como eu havia dito, ontem o taverneiro decidiu fechar a taverna e mandar
todos embora, mas ele fez isto por qual motivo?
― Por causa da luz verde, com certeza todos lá ficaram com medo e queriam ir
embora.
― Acha mesmo? Não seria pelo motivo de o filho dele começar a gritar? Um grito
que mais parecia um uivo de dor. Ou seja, ele poderia não gostar de alguém ter
conhecimento sobre os seus problemas pessoais, no caso, a doença de seu filho.
― Exato. Você pode ter a razão, mas por qual motivo Oliver Kingston esconderia a
sua irmã? E ele me pareceu natural, não notei algo anormal.
― Mas eu notei. Vou te dar um exemplo, o cookie que ele me deu estava com
gosto de queimado, ou seja, havia excedido seu tempo no forno.

93
Norman havia se esquecido do cookie queimado que comera, embora o gosto
amargo permanecesse em sua boca. Forbes dizer aquilo foi como música para
seus ouvidos, os dois cookies estavam queimados. Nem sequer se lembrara de
tocar no assunto com o amigo e já recebera a resposta que desejava.
― Eu gostaria de te perguntar sobre o cookie, pois o meu também estava com o
gosto de queimado!
Joseph Forbes arregalou os olhos, e disse:
― Você viu? Era sobre isso que eu me referia, você acha mais provável que a
irmã do Kingston se esquecera do cookie no forno ou que quando chegamos ao
armazém, o próprio Oliver Kingston se esquecera do cookie que já estava prestes
a chegar ao ponto?
Norman entendeu o ponto de vista do amigo e percebera o seu faro de detetive
aguçado:
― O quê você pensa de tudo isso?
Forbes de prontidão respondeu:
― Eu penso em duas possibilidades, a primeira delas é que foi o próprio Oliver
Kingston que fez os cookies e os assou e a segunda que eu acredito é que a irmã
dele estava atarefada e sugestionou que o irmão assasse os cookies. A pergunta
é, se uma destas possibilidades estiverem corretas, por qual motivo Oliver
Kingston nos mentiu num detalhe tão pequeno? De falar a verdade sobre quem
estava assando os cookies.
― Talvez ele quisesse ter escondido que foi ele que fez os cookies caso
estivessem com algum gosto ruim.
― Certo, mas eu sinto que há algo de errado em tudo isso. Eu sinto que esta vila
esconde um segredo que todos não desejam fazer menção e procuram evitar e
sou capaz de apostar que você pensa o mesmo.
Norman estava boquiaberto e nada respondeu, apenas afirmou com a cabeça. Os
dois se aproximavam da porta da taverna. O filho de Fillman não estava na janela.
Entraram na taverna e procuraram notar em primeiro lugar quem estava no
recinto.
Brad Fillman conversava perto do balcão de atendimento com um homem que
parecia usar roupa de padre, e pela postura deveria de fato ser um religioso. O
dono da taverna notou a presença dos dois amigos e cortou a conversa com o
outro homem:
― Vou atendê-los, se vieram almoçar vale à pena esperar alguns minutos pelo
delicioso prato surpresa que minha mulher está preparando.
― Obrigado, a nossa fome ainda é branda. ― Forbes o tranquilizou.
― O padre Alvarez Leone está me convidando para a missa de amanhã cedo e
estamos aproveitando para conversar alguns assuntos, mas já estamos findando.

94
O padre se achegou até os dois amigos e houve saudações com apertos de mão,
o povo de Pitfall era bem educado neste sentido.
― Vocês também se sintam convidados para a missa de amanhã.
Após convidar os dois amigos o padre ouviu o obrigado de Norman e voltou a
conversar com o dono do hotel. Os dois amigos por sua vez sentaram na mesma
mesa da noite anterior. Norman ainda refletia sobre o que o amigo havia dito sobre
Kingston, não fazia sentido, uma vez que o dono do armazém não lhe esboçara
qualquer intenção suspeita. Para Norman, o amigo estava equivocado, pelo
menos daquela vez. Poderia ser justificado pelo fato de os dois estarem
impressionados pelos últimos acontecimentos, melhor dizendo, acontecimentos
desde a chegada de Norman naquela vila misteriosa.
Era possível ouvir a conversa entre o dono da taverna e o padre, o padre dizia que
precisava ir embora tocar o sino da igreja, pois o dia já chegava à sua metade.
― Mas o problema é que eu não tenho certeza de que Lionel Harter ainda esteja
na igreja, preciso me certificar...
O dono da taverna parecia insistir que o padre continuasse na taverna ou
esperasse o almoço, sempre elogiando os dotes de cozinheira da mulher. Forbes
estava de frente para Norman e de costas para os outros dois, de modo que virou
a cabeça para assistir a cena. O padre insistia que devia ir embora, cuidar das
obrigações da igreja e encontrou uma saída para as insistências do taverneiro:
― Tudo bem, eu vou tocar o sono e daqui a pouco volto para degustar do teu
delicioso almoço.
O rosto do taverneiro adquiria uma expressão de mais contentamento:
― É por conta da casa!
O padre sempre aproveitador de situações deu um aperto de mãos no taverneiro:
― Fechado!
O homem da igreja, embora não pudesse mentir, tinha dúvidas se de fato voltaria
para almoçar, os dias de sábado eram corridos para ele. O padre se retirou e
Forbes voltou à sua posição normal, o taverneiro se aproximava dos dois amigos:
― Vou pedir para a minha mulher separar dois pratos especiais.
Forbes disse ironicamente:
― O meu bem caprichado.
O taverneiro sorriu e foi em direção à escada, esbanjava virilidade a cada degrau.
Forbes sempre amante de boas comidas olhou para o amigo:
― Gostaria de saber que prato especial é esse...
― Tomara que não seja nada com trutas, já enjoei, embora goste de peixes. ―
disse Norman.
― Não fale de peixes que minha boca se enche toda de água.

95
― Pois então se lembre das banheiras e dos cobertores do hotel. ― brincou
Norman.
O amigo fez uma careta e deu uma risada com vontade, o taverneiro descia com
um bloco de notas e uma caneta em mãos. Aproximava-se da mesa dos dois
clientes para anotar os pedidos.
― O que desejam senhores?
Forbes fez o pedido primeiro:
― Além do prato especial, se tiver um suco de frutas eu gostaria, e um pouco de
café para depois.
O taverneiro terminou a anotação e olhou para Norman.
― Para mim o mesmo, mas eu gostaria de comer algum doce após a refeição.
O taverneiro terminou de anotar e informou:
― Temos os sucos e um doce de chocolate.
Norman se lembrou do cookie amargo, um chocolate com certeza iria bem para
adoçar a boca e o faria esquecer-se do acontecido na casa de Kingston.
― Traga dois doces. ― sugestionou Forbes que ficara com vontade de apreciar o
doce.
O taverneiro se virou, iria levar o pedido para sua mulher que era responsável por
ordenar a bandeja, sempre caprichosa no que fazia.
Joseph Forbes dedilhou na mesa como se estivesse tocando piano, olhou para o
amigo e sugestionou:
― Se o amigo desejar, podemos depois do almoço dar uma andada pela vila, nas
outras ruas.
Norman gostou da ideia do amigo:
― Melhor do que ficar naquele hotel.
Forbes sempre ficava satisfeito com o bom humor e a disposição de seu amigo. O
taverneiro regressava com uma bandeja em cada mão, descia as escadas como
um equilibrista profissional, era impressionante sua habilidade ao se concentrar
nos degraus e trazer uma bandeja que devia pesar significativamente em cada
mão. O dono da taverna depositou as bandejas na mesa e desejou bom apetite
para os clientes que sentiam o cheiro agradável da comida, até o café tinha um
cheiro gostoso, diferente. Numa vila estranha como Pitfall, os habitantes tinham
comida de primeira à disposição, não restavam dúvidas.
Os dois se preparavam para comer quando entrou um cão na taverna, o que os
fez desviar a atenção para a porta. Um homem forte estacionava uma vagonete do
lado de fora, não foi difícil para os amigos reconhecerem o brutamonte da noite
anterior.

96
O lenhador equilibrou alguns tocos de lenha nas mãos, tocos que selecionou de
dentro da vagonete. O fortão entrou na taverna, o taverneiro lhe fez um sinal com
a mão para que pudesse subir, quando o fortão entrou, o cão saiu da taverna e
ficou de guarda ao lado da vagonete. Uma cena sincronizada e interessante que
chamava a atenção dos presentes.
Horace Singer ao passar pelos outros três olhou rumo à mesa e piscou o olho
direito sem nada falar, como quem sabia o que fazia e fazia bem. Subiu as
escadas pesadamente, um ruído soava a cada degrau. Naquele momento os
amigos voltaram suas atenções para os pratos e começaram enfim a degustar o
almoço, o taverneiro foi sentar-se numa cadeira de balanço atrás do balcão.
Ao fundo começava soar o estrondo do sino da igreja, o dia chegava à sua
metade.
Os amigos sem nada falar devoravam o almoço, já haviam se esquecido dos
cookies de Kingston. Norman a cada colherada bebia uma golada de suco de
limão.
Forbes se concentrava na comida, gostava de comer e depois beber. O prato
especial era macarrão com algumas verduras picadas, estava uma delícia.
Norman ao tomar uma golada do suco se lembrou do hotel e sua mente
milimetricamente lhe mostrou que não haveria alternativa quando a sede
chegasse, somente a torneira do banheiro proporcionava água para os hóspedes
do hotel. Mas, a vantagem era que as noites eram frias e a sede dificilmente viria.
Poderiam levar uma garrafa com água da taverna.
O fortão desceu as escadas e iria fazer mais uma viagem com tocos de lenha, a
taverna possuía lareira e o taverneiro tinha uma lareira em seu quarto, daí a
necessidade de se comprar mais lenha. Quando o lenhador saiu, o cão deu dois
latidos como se fosse um soldado que mostrava seu trabalho bem feito para o
coronel.
Horace Singer repetia o processo de transporte da lenha, ao passar pelo balcão
fez o seu pedido:
― Veja um prato para mim, por favor.
O taverneiro se levantou e seguia o brutamonte que subia as escadas.
Forbes terminava a refeição e começava a tomar o suco, o de Norman já havia
terminado e ainda restava macarrão em seu prato.
― Vou terminar o suco e atacar o pudim de chocolate. ― informou Forbes.
― O meu suco já acabou. ― ironizou Norman.
― Beba um gole do meu. ― sugestionou Forbes, sério.
― Obrigado amigo, mas estou de olho é no pudim.
O taverneiro e o lenhador voltavam do segundo andar.

97
Fillman trazia uma bandeja, depositou na mesma mesa que o lenhador jogara
cartas na noite anterior.
A taverna possuía quatro mesas de quatro cadeiras cada, era o suficiente. O
lenhador sentou-se e o cão surgiu na porta em posição de guarda. O fortão olhou
para os dois amigos e disse:
― Eu o alimento com ração da boa, vejam que belos pêlos.
― É um cão muito bonito. ― Forbes disse amistosamente.
Horace Singer gostou do agrado e modestamente disse:
― Eu cuido muito bem dele, um cão muito especial, seu nome é Winepowder, um
verdadeiro guerreiro.
― Interessante o nome. ― Norman entrou na conversa.
― Tenha a bondade de se sentar conosco. ― Forbes cortou o assunto.
― Muito obrigado, estava esperando um convite.
O lenhador se levantou com a bandeja na mão, sentou-se ao lado de Forbes,
também de frente para Norman.
― O amigo não precisa esperar convite para sentar conosco. ― disse Forbes.
Norman pensou que era uma boa oportunidade para tirar informações sobre o
hotel e o velho Bobster, mas sabia que o lenhador poderia desconversar e evitar o
assunto.
― Entendo, mas é falta de educação sentar numa mesa já ocupada. Ora, vamos
deixar este assunto de lado. ― sugestionou o lenhador.
― De qualquer forma tenha liberdade de sempre se sentar conosco quando
quiser. ― argumentou Forbes.
O fortão começava a comer o seu prato especial, enquanto os outros tomavam
café e comiam o pudim. O taverneiro estava sentado na cadeira de balanço atrás
do balcão e pigarreou, a sua intenção era ouvir comentários sobre o pudim, mas
os clientes pareceram não entender sua intenção e continuaram calados a comer.
Forbes repentinamente se levantou, pediu licença e foi em direção ao taverneiro,
pegou oito dólares na carteira e os entregou ao taverneiro.
― A comida estava deliciosa e o pudim divino. ― elogiou.
― Nós agradecemos e voltem sempre, inclusive, amanhã a taverna é aberta.
Era uma boa atitude do taverneiro e sua mulher, pois forasteiros não teriam onde
comer no dia de domingo, sem contar que muitos velhos vinham jogar cartas na
taverna no domingo à noite.
Forbes voltou para a mesa e disse a Norman que havia pago a conta, Norman por
sua vez não tinha mais como chorar o leite derramado e resolveu aceitar o favor
do outro de bom grado.
― A próxima é por minha conta. ― informou Norman.

98
Forbes deu dois tapas amistosos no ombro do amigo e tornou a sentar-se. Horace
Singer comia com gosto o conteúdo do prato, ao lado, um copo de cerveja. O cão
na porta do hotel olhava atentamente o dono se alimentar.
Antes do começar o passeio por Pitfall, os dois amigos resolveram esperar alguns
minutos e aproveitaram para fazer companhia ao lenhador, mas ambos em seus
pensamentos chegaram à conclusão de que não deveriam tocar no assunto do
hotel nem sobre a luz verde da noite anterior, a conversa com o lenhador fluiria
naturalmente. O cão continuava a olhar o dono, mas naquele momento colocava a
língua para fora e demonstrava estar com sede. O lenhador terminou de comer,
pegou o copo de cerveja e resolveu quebrar o silêncio na mesa.

99
12

TAREFAS DE UM IDOSO PRESTATIVO E MEDROSO

O padre Alvarez Leone acabava de tocar o sino da igreja, a torre era pequena. A
altura do sino era de três metrôs a partir do telhado, bastava subir alguns degraus
e puxar a corda do sino para o estrondo soar e notificar aos habitantes de Pitfall
quando o dia chegava a sua metade e o momento em que findava e nascia o
próximo.
Lionel Harter não pôde tocar o sino, pois não havia achado a chave da porta da
torre, isto foi o que ele afirmou para o padre, mas foram os calafrios que não o
deixaram sair da biblioteca. As suas pernas ficaram travadas como se sofresse de
paralisia dos membros inferiores.
Poderia receber o apelido de “cagão”, visto que o padre não engolia as afirmações
sobre não se ter encontrado a chave.
O único favor que conseguira fazer para a igreja foi a organização dos livros na
biblioteca, ao menos um favor de grande valia. Recebera os elogios e
agradecimentos do padre que desejava mais favores de Harter. O padre precisava
visitar algumas famílias ainda e seu ajudante valeria mais se adiantasse a
organização do salão da igreja, organizar bancos que eram poucos, o altar, mas a
tarefa mais demorada seria lavar o chão, o que era feito apenas nos dias antes da
missa dominical. Confessando, o padre não havia organizado a igreja de manhã.
O padre julgava melhor que o altar deveria ficar por sua conta, de modo que
resolveu incumbir o ajudante de lavar o chão que depois poderia ir embora. O
homem da fé desceu as escadas da torre, o ajudante lhe aguardava embaixo, os
calafrios haviam passado. O padre ao pisar em terra firme sacudiu as mãos e
esfregou uma na outra como se quisesse dissipar algum fragmento ou pó das
mãos.
― Deseja tomar um café comigo, senhor Harter?
― Claro, mas eu prefiro adoçado. ― Harter ironizava secretamente.
O padre não entendeu o que o outro quis dizer, mas procurou não estender o
assunto, apenas o conduziu à copa, pequena, mas dava para cozinhar.
Enquanto o padre passava o café, refletiu que não gostaria de perder o favor do
outro e pareceria folgado se voltasse na taverna para almoçar, primeiro daria um
tempo com o ajudante e depois sairia para terminar de convidar as pessoas para a
missa, e aproveitaria para almoçar na taverna, assim não daria a impressão de
quem fosse folgado.
Lionel Harter assistia o outro preparar o café, o padre por fim falou:

100
― Se o amigo puder lavar a igreja enquanto eu termino os convites para
amanhã...
Harter se lembrou dos calafrios, mas como era muito prestativo não demorou a
dar um parecer como se fosse impulsionado por opiniões unânimes:
― Lógico que sim, eu esperava fazer esse favor, em pouco tempo eu lavo a igreja.
O padre ficou satisfeito, demonstrou no rosto com uma expressão de quem sabia
qual seria a resposta do outro e dizia: “era isso que eu gostaria e saberia que iria
ouvir”.
― Você está sabendo que eu fui convidado para jantar hoje na casa da tua filha?
Não havia me respondido quando perguntei mais cedo.
Lionel Harter fingiu ser pego de surpresa e mentiu respondendo:
― Não fiquei sabendo, mas que dádiva minha filha é, sempre prezando a religião
e seus representantes.
― Com certeza, tua filha é uma mulher de muita fé.
― O que o senhor acha de meu genro?
― É um homem muito manso e merece ter o amor de Brenda.
Harter quase engasgou, era um disparate ouvir da boca do padre elogios sobre o
genro, o sangue lhe subiu nos olhos, deu-lhe vontade de desmentir e inventar
podres do genro, mas sinceramente não conseguia sequer pensar em algum. Se
dissesse que ele bebia seria facilmente desmentido, se dissesse que ele fumava
escondido no meio da floresta, seria desmentido pelo lenhador que muito
adentrava na floresta e saberia informar sobre a presença de tocos de cigarros,
enfim, nem deveria pensar em dizer que o genro era sem vergonha em relação às
mulheres e adúltero, pois pouco saía de casa e achar mulher em Pitfall, só se
fosse a fêmea perdida de algum urso. Deveria engolir os elogios de boca fechada.
Não estava mais com idade para passar nervoso e faria o possível para desviar o
assunto, embora fosse ele próprio quem puxara o tema indigesto. Resolveu dar
uma resposta que saía como carrapicho e prego de sua garganta:
― O senhor tem razão, meu genro é uma... gracinha.
A verdade era que julgava seu genro um tremendo de um pé rapado e que não
tinha onde cair morto, mas quem seria bom partido para sua filha na desolada
Pitfall, aquele fim de mundo?
O padre encheu duas xícaras e entregou uma a Harter que por sua vez numa
golada tomou o café todo. O padre pegou a garrafa e fez menção de encher a
xícara do outro novamente. Harter ergueu a xícara para facilitar a tarefa do padre.
― Pode ir almoçar se estiver com fome.
O padre pegou o velho de surpresa com esta colocação.
― Não, tomei um café da manhã delicioso e reforçado. Acredito que posso
terminar de lavar a igreja e ainda não sentir fome.
101
― Como queira, quando terminar pode trancar e levar a chave, eu a buscarei na
tua casa se não for importunar, é claro.
― Nunca o senhor será mal recebido na minha casa, a minha mulher é um anjo e
o senhor a conhece bem. Eu gosto muito do senhor, não é um padre qualquer.
― Ora Harter, não me venha com lisonjas.
― É verdade, já conheci vários padres, mas nenhum é como o senhor.
― Fico grato pelo teu elogio, meu amigo, servos como o senhor nos dá fôlego
para continuar o serviço da mãe igreja.
― E padre como o senhor dá disposição a um velho como eu, consigo até lavar o
chão da igreja.
― Mentira, Harter, você ainda está inteiro.
O padre não se deixava orgulhar por elogios e particularmente não gostava de
recebê-los, mas do amigo e ajudante era uma honra, seu rosto começou a
apresentar um tom rubro, fato raro em si.
Harter terminou a segunda xícara, o padre ofereceu-lhe outra, mas recebeu uma
negação.
― Vou deixar a garrafa aqui na copa, deste modo, enquanto limpa a igreja pode
vir tomar um bom café se desejar.
― Não! Quer dizer, é melhor eu levar a garrafa comigo, assim não preciso vir à
copa toda vez que desejar um café, eu tomo muito, se deixar o dia todo.
O padre estranhou a excitação do ajudante, mas novamente resolveu não
adentrar no assunto. O padre consultou o relógio e disse:
― É hora de voltar ao campo e colher trigos.
O padre ia se retirando. Harter pegou rapidamente a garrafa de café e seguiu-o,
mas estava se esquecendo de algo que logo iria lhe causar um sério
arrependimento.
Os dois chegaram à porta da igreja, o padre parou e se virou para o velho
ajudante para passar as instruções:
― A vassoura, a mangueira e o rodo estão no banheiro ao lado da biblioteca. Já
os panos, no pequeno armário da copa.
O coração de Harter deu um pulo. A mangueira deveria ser acoplada à torneira da
pia do banheiro, pois não havia uma na igreja propriamente dita. O padre se virou
e falou:
― Bom serviço, senhor Harter!
O padre se retirou para a rua e andava com passadas rápidas. Harter se virou em
direção da porta que dava acesso ao grande corredor e sentiu um calafrio, nunca
fora tão medroso, um pouco às vezes e não conseguia entender o motivo de ser
atormentado pelos sentimentos de fraqueza e a sensação de que alguém o

102
observava. Olhou para o teto e nada havia, firmou a vista no corredor, não era
possível enxergar o seu fim, estava muito escuro. Era como se a presença do
padre dissipasse todo o mal enquanto ele esteve lá.
Deveria terminar sua tarefa e seria bom fazê-la no menor espaço de tempo
possível, definitivamente estava com muita vontade de ir embora. Arrependeu-se
de não ter desejado ficar em casa, na presença de sua filha, inventar uma
desculpa, dizer que a presença dela era rara e ilustre ou fingir estar doente, dizer
que o frio da noite anterior lhe proporcionara um terrível resfriado.
Aproximou-se da porta do corredor com os olhos sempre firmes naquele ambiente
escuro, procurando detectar algum movimento suspeito ou algum ruído incomum,
mas não conseguiu constatar qualquer anormalidade, deveria estar ficando louco.
Passou em frente à biblioteca que estava com a porta aberta e passeou com o
olhar no cômodo, o banheiro de destino ficava ao lado da biblioteca. Harter não
conseguiria em apenas uma viagem levar todas as ferramentas necessárias para
uma boa limpeza, resolveu encaixar a mangueira e levá-la na mão esquerda,
poderia usar a mão direita para levar a vassoura e o rodo, depois, quando
precisasse enxugar o chão voltaria para dar a segunda viagem. Precisava de um
tempo para respirar e ficar longe do corredor.
Executou a tarefa de encaixar a mangueira com uma rapidez e afobação incríveis,
abriu a torneira sem se importar em molhar o corredor, depois passaria um pano
rapidamente. Pegou a mangueira, o rodo e a vassoura e se encaminhou para o
salão da igreja, ao passar pela biblioteca sentiu um arrepio na nuca que desceu
para a espinha, seus passos se tornaram frenéticos e teve a sensação de se estar
flutuando e sendo observado.
Chegou enfim no salão, com as ferramentas em mãos. Encostou o rodo e a
vassoura na parede ao lado do altar e deu uma puxada na mangueira, mas para
sua infelicidade o fluxo de água foi interrompido. Ao fundo podia ouvir a água que
jorrava da torneira e batia com violência na pia do banheiro.
Mas que coisa, eu nasci virado para a lua! Pensou.
Um pensamento mais profundo lhe ocorreu. A mangueira escapou da torneira
quando ele deu o puxão ou alguém brincava com a sua cara e lhe pregava uma
peça?
Lembrou-se de estar sozinho, mas outra reflexão na mente foi mais forte e anulou
o poder de persuasão da primeira, da mangueira ter escapado no puxão, a
sensação de estar sendo espiado.
Não poderia deixar de limpar a igreja e muito menos a torneira aberta, gastando
rios de água. Voltou ao banheiro, sempre que passava pelo corredor um olhar
passeava pela biblioteca. Ocorreu-lhe a lembrança da cômoda ao lado do quadro

103
da Santa Ceia na biblioteca, os calafrios haviam começado no momento em que
desejara bisbilhotar a tal cômoda.
Ela guardava algum segredo? Impossível.
Ao entrar no banheiro não mais se lembrava da possibilidade de alguém estar lhe
pregando uma peça. Fechou a torneira, colocou a ponta da mangueira em seu
devido lugar, no bico da torneira, macho e fêmea.
Abriu-a novamente.
Voltou rapidamente para a tarefa, sempre com a sensação de alguém o espiar no
corredor escuro.
Ao pegar a mangueira, decidiu não fazer uso da vassoura, apenas empurraria a
poeira com a água, depois puxaria o excesso d’água com o rodo e buscaria os
panos para enxugar a igreja e sua tarefa estaria feita. O padre bem que poderia
organizar o resto durante a noite, o jantar na casa da filha não era tão tarde e
sobraria uma parcela noturna para o padre que na meia-noite deveria tocar o sino,
ou seja, muito dificilmente dormiria antes de tal obrigação e assim poderia arranjar
um tempinho precioso para a manutenção da casa da fé.
As borrifadas de água davam uma impressão agradável, o piso parecia novo em
folha depois de receber um jorro do elemento mais abundante e vistoso da
natureza. Harter procurava se entreter ao máximo com o serviço.
Alguns minutos depois, terminou o salão e o altar, bastava secar o chão e dar o
fora. Pegou o rumo do banheiro e aproveitou para levar a vassoura na mesma
viagem. Criava coragem para terminar a obrigação.
Fechou a torneira, apoiou a vassoura na parede, retirou a mangueira e a enrolou
estapafurdiamente, depois a lançou no seu lugar de origem. Apagou a luz do
banheiro e correu para a copa, com pressa abriu o pequeno armário e retirou três
panos já muito gastos, mas eram os velhos que muito enxugavam. Sentiu um
alívio por estar com a missão quase cumprida, quer dizer, enxugar levaria alguns
minutos, significativos minutos, mas bastaria arregaçar as mangas de verdade e
brevemente estaria no aconchego de sua casa, lar doce lar.
Trabalhando de modo concentrado e versátil, terminou seu serviço. Com pressa
levou o rodo para seu devido lugar, voltando ao salão da igreja dobrou os três
panos e os colocou na porta de entrada, do lado de dentro. Não se preocupou em
enxugar o corredor. Apalpou a fechadura e não encontrou a chave para trancar a
porta.
Agora eu atirei e acertei a lua! Pensou inconformado, mas o fato de já ter
terminado o consolava. Foi procurar a chave na biblioteca e ao vê-la em cima do
balcão no centro do recinto se sentiu ainda mais aliviado.
Se eu acertei a lua, ela me mandou o tiro de volta.

104
Vibrou em seus pensamentos e até começava a imaginar passos de dança de
tanto contentamento. Saiu da biblioteca e nem se lembrou do corredor escuro,
percorreu o salão, ao sair da igreja puxou a porta rapidamente, trancou-a e voltou
para seu bendito lar com a mesma afobação e pressa com que fora à igreja.

***

A chegada da idade avançada e suas complicações não fizeram de Dixie Bombay


uma pessoa depressiva e querelosa, muito pelo contrário, ela guardava sua
virtude e tomava postura quando era necessário. Principalmente nas condições
em que Tania se encontrava, que tanto precisava de uma mão amiga e um abraço
carinhoso para vencer a parte mais difícil de sua vida.
Dixie tomara o seu banho matinal e se aconchegara no amplo sofá da sala,
esperaria para fazer tricô depois do almoço que já aspergia um cheiro agradável.
Para Tania fora difícil dormir na noite anterior, era rara a vez que seu filho podia
dormir como um anjinho obediente e livre de pesadelos.
Os gritos do filho do taverneiro soavam como um filme de terror aos ouvidos do
pequeno menino, mais difícil do que dormir nestas condições seria explicar que o
filho do taverneiro era uma pessoa normal, assim como nós.
O menino se recusava acreditar e soltava as asas da imaginação, julgava que o
grito vinha de inúmeras fontes, mas não conseguia imaginar uma pessoa berrando
daquela forma pavorosa. Todavia, quem pode conter a imaginação de uma
criança? Principalmente quando acaba de perder seu pai, seu herói, seu ponto
forte e seu refúgio.
Na noite anterior, o menino precisou ser agradado por muito tempo até pegar no
sono, sua mãe sempre à disposição e carinhosamente ao seu lado.
A zelosa mãe não aprovava a ideia de dar calmante para o filho, sabia de seus
efeitos e julgava um pecado obrigar um anjinho como o seu filho tomar remédio
desenvolvido para adultos problemáticos e depressivos.
Tania comprara alguns livrinhos de historinhas para ler na hora de dormir, mas
também surtiram pouco efeito. O grito parecia ser o pior dos pesadelos do filho,
mas ela não sentia ódio do taverneiro nem de seu filho, eles não tinham culpa.
Tania recebera boas instruções da avó na fase da adolescência e a principal delas
era viver em harmonia, respeitando o espaço dos outros.
Se fosse uma mulher estressada e nervosa, com certeza já teria dado a ideia para
que o taverneiro mandasse internar seu filho. Porém, ela, se estivesse vivendo o
mesmo drama, faria o mesmo que o taverneiro e sua mulher. Abrigaria seu filho
em casa, cuidaria com carinho e coitado de quem contestasse tal atitude.

105
O constrangimento da noite anterior somado à questão do futuro profissional de
seu filho era o principal motivo do desejo de se mudar da pacata Pitfall. Tania
alimentava este desejo que crescia cada dia mais e mais. Mas, considerando o
fato de ser difícil encontrar um comprador para sua casa, quase chegava a
desanimar, porém nunca perdia a fé.
Tania apresentava olheiras, dormira mal e acordara cedo.
Preparava o almoço e uma bandeja com um copo de leite e uma fatia de pão
integral para o filho que ainda dormia pesadamente. Dixie estava no sofá da sala
com os pensamentos obtusos. Tania carregava a bandeja e ao passar pela sala
deu um sorriso para a avó que retribuiu. Subiu as escadas e desencostou a porta
do quarto com leveza para não assustar ou acordar o filho. O menino estava
coberto com um edredom estiloso, havia golfinhos e caranguejos estampados, no
fundo, uma ilha bordada com perfeição. Tania se lembrou de quando era criança,
ganhara aquele edredom da mãe, saudades dos pais que moravam a milhas de
distância. Chegava o tempo de visitá-los. O pai era mecânico de automóveis e
nunca deixara faltar pão na mesa da família. Tania desejara morar em Pitfall com a
avó que ficara sozinha após a morte de seu avô. Na ocasião, o intuito foi o de
cuidar da avó e por felicidade do destino conhecera Stace.
Tania depositou a bandeja em cima da cômoda de brinquedos do filho, um índio
de miniatura parecia lhe apontar uma flecha com ponta pintada de laranja e
vermelho, uma flecha incendiária.
O menino gostava de todos os tipos de diversão que se relacionava a exércitos e
batalhas no ar e no mar, até mencionava a vontade de ser um grande herói da
nação, mas para ela era difícil considerar o patriotismo uma grande virtude ou
dádiva natural.
Com o tempo a idade avançaria, a adolescência chegaria, as namoradas
apareceriam e outros interesses entrariam em cena. Tania orava todas as manhãs
e noites para o filho ser um bom elemento na sociedade e um exemplo de homem
que orgulharia o nome da família e homenagearia o pai.
O menino despertou, sentou na cama e demorou a abrir os olhos, mas quando o
fez recebeu um sorriso de sua mãe, uma agradável surpresa. Todas as manhãs
recebia o café na cama. Tania fazia questão de estar junto ao filho diariamente.
Abraçaram-se.
― Veja o que eu trouxe para você.
Tania pegou a bandeja e depositou no colo do filho.
― Coma tudo e depois você deve escovar os dentes como eu tenho te ensinado.
― Vou te mostrar mamãe, eu já aprendi direito como se escova os dentes, mas
dói na janelinha.

106
Tania apertou a bochecha do filho que bebeu uma golada do leite após o ato de
afeição da mãe.
― Mamãe...
O menino a chamou e bebeu outra golada de leite.
― É verdade que eu nunca mais terei dente na frente, no lugar desta janelinha?
Tania achou graça da colocação do filho, mas sempre instruía e corrigia os
equívocos do menino:
― Lógico que não, essa janelinha não demora a ser tampada por um belo e
branco dente e você será o rapaz mais bonito da escola.
― Mas a vovó usa dentaduras e os dentes dela não crescem mais.
― Vovó já está velhinha e você é um menino novinho e muito bonitinho,
entendeu?
O menino bebeu outro gole e charmosamente balançou a cabeça afirmando que
havia entendido. Depositou o copo na bandeja e pegou o pão integral, lançou
outra questão antes de dar uma mordida com vontade:
― E como é a escola, os adultos são bravos e batem em nós?
― Que menino ingênuo! Lógico que também não. Os adultos estão na escola para
te ensinar a escrever, fazer continhas, plantar mudinhas, ser educado e muitas
coisas mais...
― Entendi, e o que significa ingênuo?
Tania achava linda a forma como o filho questionava o que não sabia, a
curiosidade nas crianças era sinal de que se interessariam pelos estudos no
futuro, mas esta curiosidade às vezes poderia levar a lugares tortuosos. A
preocupação de Tania com o filho era tamanha. Por fim, respondeu:
― Eu quis dizer que você é inocente, um menino bonzinho.
O menino terminava de comer a fatia de pão integral e restava um pouquinho de
leite no copo. Tania apertou o nariz do menino e perguntou:
― Entendeu?
O menino bebia o último gole de leite e fez afirmação com a cabeça.
― Eu sabia que entenderia, é um menino muito inteligente e especial, meu filho.
Agora enquanto eu levo a bandeja e vejo o almoço, você trata de escovar os
dentes, depois eu volto para te colocar uma roupa bem bonita que vamos mostrar
para a vovó.
Tania pegou a bandeja e o menino levantou com rapidez e alegria, como se
houvesse despertado em um dia muito especial e que tinha coisas diferentes e
legais para fazer. Estava pensando em organizar um esquadrão estratégico com
seus soldadinhos de miniatura e simular uma guerra contra os indígenas.

107
Tania se retirou, o menino foi escovar os dentes no banheiro que era acoplado ao
quarto. A casa dos Bombay possuía dois banheiros, um no andar de baixo, para a
felicidade de Dixie e o banheiro no quarto de Tania e Howard.
A escova de Howard era azul com bolinhas brancas, a única da vida do menino
até então. Ele não se lembrou da noite anterior até então, embora fosse rotina os
pesadelos e os gritos misteriosos.
Escovava frenética e erroneamente, a mamãe o ensinara o modo certo, mas a
vontade e ansiedade de brincar com os soldadinhos de miniatura eram
gigantescas e o obrigavam a executar movimentos incorretos na escovação.
Terminou e enxaguou a boca, jogou a escova de qualquer jeito no suporte de
plástico. O closet estava uma bagunça, devido à batalha de brinquedos do dia
anterior, para Tania, restava dobrar as roupas e reorganizá-las, mas a mulher
nunca reclamava com o filho, chegava a ser um exagero passar a mão na cabeça
do menino daquela forma, em algum momento o menino iria precisar tomar uma
admoestação, porém, ela não julgava ser o momento e idade ideais.
O menino voltou ao quarto no mesmo momento em que a mãe regressava para
vesti-lo. Tania se encaminhou para a bagunça do closet e mexeu nas roupas,
esperando encontrar uma combinação ideal para o filho. Tania pegou em mãos
uma camisa branca com pegadas de animal vermelhas, no meio havia um logotipo
com um menino montado em uma onça, abaixo uma faixa escrita: “Tall Boy”.
Era interessante como o sol anulava o frio do inverno recém-chegado.
― Mais tarde eu vou arrumar essa bagunça. ― informou Tania.
― Mamãe, depois do almoço eu posso brincar com meus soldadinhos?
― Claro que sim querido, mas procure não bagunçar suas roupinhas. Do contrário
precisará usar camisas amassadas e não fica bem em meninos lindos como você.
O menino vibrou com a resposta da mãe:
― Legal!
Tania selecionava a calça, decidiu-se por uma bermudinha azul, visto que não
estava tão frio como deveria, ao menos dentro da casa.
― Mamãe, eu quero ganhar uma roupinha de soldado no meu aniversário.
Tania sentiu-se triste por não poder presentear o filho no ato, mas o mais depressa
possível realizaria o desejo do menino.
― Tudo bem, eu prometo que farei o impossível para comprar logo.
Tania despiu o menino e com habilidade o vestiu com as roupas que havia
selecionado, por fim elogiou:
― Que lindo!
O menino gostava dos elogios da mãe que apresentava um belo sorriso no rosto.
― Mamãe, que tipo de monstro grita durante a noite?

108
Tania sentiu o ventre gelar e as pernas bambearem, queria desviar a atenção do
filho para tais assuntos.
― Querido, é o filho do senhor Fillman que grita daquele jeito, ele não é monstro.
Já vi em filmes, soldados gritarem daquela forma durante a guerra, como se
estivessem informando a presença de um soldado do exército rival.
Tania foi bem na sua colocação, o filho pareceu dar mais atenção no que a mãe
disse sobre os filmes.
― Eu queria ver um soldado de verdade, quando ele gritar de noite, vamos falar
com ele?
Tania sorriu, sentia gozo por ter driblado o assunto indigesto.
― Vamos falar com ele sim e vamos pedir para ele fazer aquelas pinturas de
camuflagem no teu rostinho, meu soldadinho.
O menino empolgou-se e naquele instante ignorava os medos da noite anterior.
― Agora, enquanto eu aproveito para organizar essa bagunça toda, você vai dar
um abraço, um beijo e desejar um bom dia para a tua avó.
O menino saiu em disparada pelo corredor e desceu a escada simulando ser um
soldado recebendo ordens. Tania sorria da atitude do menino, se virou para o
closet e começou a imaginar por onde começar a ordenar aquela mixórdia de
peças de roupas.

109
13

NORMAN É INTERROGADO

Norman Legrand e Joseph Forbes deixaram a taverna após alguns minutos de


descanso, o almoço somado aos cookies os deixou com a sensação de se ter
comido um búfalo e fora necessário um repouso até que a sensação de
enchimento excessivo os deixasse.
A temperatura baixara e a tarde apresentava os indícios de um verdadeiro inverno
que não demoraria em mostrar suas características mais ríspidas.
A temperatura cairia gradual e silenciosamente conforme a chegada da noite. A
imensidão de árvores seria responsável por intensificar e proporcionar um frio
mais agressivo.
Naquele momento, o sol ainda exercia um papel de sumo importância, espantando
a percepção total do inverno nos seres viventes e dando uma visão deslumbrante
da floresta.
Os dois forasteiros se encaminhavam rumo à divisa da rua principal. Joseph
Forbes iria apresentar a vila para o amigo. Os dois não gostariam de voltar para o
hotel antes do anoitecer que com o frio intenso os obrigariam a se recolher em
seus únicos leitos disponíveis naquele lugar perdido.
Um homem estava de braços cruzados ao lado do xerifado, fitando os dois
forasteiros que avançavam pela rua principal, era o ajudante do xerife que parecia
estudar a presença de Norman e o esperava para um interrogatório. Forbes se
apercebeu da intenção do homem da lei e aconselhou:
― É melhor fazermos uma visita ao xerife e deixar o passeio para depois. O xerife
te fará apenas algumas perguntas, não vou dar mais detalhes, pois o ajudante do
xerife pode entender que estamos combinando algo.
O ajudante do xerife os fitava firmemente, esperando uma reação de ambos.
Norman consentiu com um gesto afirmativo e disse:
― Eu entendo.
Os dois cruzaram a metade da rua principal que apresentava uma ruela, caminho
para o restante de Pitfall. O ajudante percebeu que seu gesto de seriedade surtira
efeito, pois eles aparentavam se encaminhar ao xerifado.
Conway adotou postura normal como quem esperava para guiar os visitantes ao
seu devido posto.
Os dois amigos tinham um olhar de submissão e seriedade, mas não se deixavam
intimidar, uma sensação de nada dever tomava conta dos dois.

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Quando chegaram à porta do xerifado, o ajudante acenou para dentro, indicando o
caminho que devia ser tomado pelos dois que entraram seguidos do ajudante do
xerife.
No meio do recinto se localizava uma ampla mesa com papéis, um vaso de
plantas e algumas estátuas de miniatura, as principais eram uma réplica perfeita
da estátua da liberdade e uma de um antigo templo asteca, não era difícil perceber
que eram confeccionadas de cerâmica, eram pintadas inteiramente da cor branca
e demonstravam a habilidade de seu criador. O xerife estava sentado de um lado
da mesa, com uma caneta em mãos, usava óculos preto e não era possível ver os
seus olhos. A lareira ficava atrás da cadeira do xerife. No outro extremo da mesa
havia duas cadeiras dispostas de frente para o homem da lei. Atrás das duas
cadeiras havia uma prateleira de madeira que aparentava ter acabado de sair da
fábrica. Ao lado da prateleira, uma porta conduzia a um cárcere. Cárcere que era
provisório. Pitfall nunca fabricara um criminoso potencial para o mundo e se algum
dia tal desleixo acontecesse, uma casa de detenção maior e exemplar, em outra
parte do estado da Flórida seria o destino do infrator.
Os dois se assentaram, o ajudante do xerife ficou de pé, virado para os outros
três, rente a porta, como quem protege a saída de um possível forasteiro que
maquina intenções errôneas.
O xerife, por fim, abriu interrogatório:
― Eu sou o xerife Frank Silver, responsável por manter a justiça por aqui...
Apontou para Forbes e continuou:
― O amigo já me conhece e a primeira pergunta que devo fazer é clara e objetiva,
tenho a pretensão de não receber uma resposta inverídica.
O xerife bateu a caneta na mesa, brandamente, olhou para Norman e perguntou:
― O que faz por aqui e quando chegou?
Norman respondeu sem vacilar e não apresentou qualquer desequilíbrio nervoso:
― Estava a passear pelo estado da Flórida, sou escritor e decidi conhecer alguns
lugares. Estou hospedado desde ontem...
― Presumo que esteja assim como o teu amigo no Bobster Inn. ― o xerife o
cortou.
Norman acenou afirmativamente com a cabeça. O xerife deu prosseguimento:
― E como teve conhecimento desta isolada e perdida vila?
O xerife perguntava como quem julgava impossível para o mundo exterior ter
conhecimento da existência de Pitfall naquele meio de bosques.
― Eu estava na pista, quando a noite se aproximava, e vi uma placa que indicava
esta vila, pensei se tratar de uma cidade. Como andei por milhas e só vi imensidão
de árvores e nada de cidade, resolvi passar a noite por aqui, fiquei com medo de

111
rodar, rodar e estar perdido ou demorar horas a encontrar um lugar que pudesse
me acolher.
O xerife pareceu entender e acreditar na versão do forasteiro.
― Por obséquio, me descreva a placa que indicava o caminho de Pitfall.
Norman esboçou um sorriso. Forbes permanecia sério e segurou o ímpeto de
imitar o amigo. O xerife e o ajudante a princípio não entenderam o sarcasmo do
forasteiro que justificou sua repentina mudança de feição após o pedido do xerife:
― A placa parecia ter sido feita por uma criança que acabou de ingressar na
escola, uma verdadeira garatuja, mas pior.
O xerife olhou para seu ajudante que levantou os olhos para o teto e abriu a boca
como quem se cansou de avisar um ignorante. O xerife inconformado falou para o
ajudante:
― Mais uma do Parker.
O ajudante permanecia sério e pela primeira vez fez soar sua voz no recinto:
― Eu te avisei, não sei quando isso vai acabar.
O ajudante tornou a olhar para os dois amigos, o xerife voltou ao interrogatório:
― Percebi que vocês dois mantêm uma amizade. Já se conheciam antes de
chegarem a Pitfall? Estou direcionando esta pergunta a Norman.
Os dois amigos se olharam espantados, não se lembravam de terem dito ao xerife
ou a seu ajudante o nome de Norman. Mas de qualquer forma, era fácil deduzir
que algum habitante do vilarejo já tinha sido interrogado pelo xerife acerca do
novo forasteiro. Os dois tornaram às suas posições normais. Norman respondeu:
― Não nos conhecíamos, como somos os únicos hóspedes do hotel é natural
mantermos contato, uma vez que somos os estranhos da história.
O xerife desmentiu cordialmente o interrogado:
― Você está certo, é natural manterem um contato mais íntimo, mas nós não os
consideramos estranhos. O povo por aqui é muito acolhedor e receptivo, embora
apresente comportamento descomunal.
― E que comportamento é esse? ― Forbes tomou a palavra.
O xerife respondeu naturalmente:
― O fato de serem muito caseiros, é lógico que neste verdadeiro fim de mundo
não existe qualquer atração que não seja a floresta, mas por aqui é raro contato
de vizinho com vizinho.
― A floresta na verdade não é um bom lugar para se explorar, pois conforme vai
se adentrando, a vegetação vai se tornando cada vez mais cerrada. ― informou o
ajudante do xerife.

112
Norman lembrou seu pesadelo da noite anterior, ficou claro que o fato de entrar
cada vez mais e mais no meio da floresta no sonho se relacionava à Pitfall envolta
por árvores sem fim.
― Pois bem, não gostamos de desordeiros e nem de encrencas. Se vocês se
comprometerem a manter comportamento digno de homens, podem permanecer
por aqui o tempo que desejarem, caso contrário, estão convidados a se retirar, a
porta é a serventia da casa. Mas eu prefiro acreditar que estão por aqui passando
férias ou fazendo um passeio turístico.
O xerife deu uma pausa, se levantou e começou a andar pelo recinto, por fim
continuou:
― Então, vocês se comprometem a manter o equilíbrio e harmonia com o povo?
Eu tenho certeza que não estou a falar com vândalos.
Os dois amigos confirmaram o que o xerife apostava, seus compromissos de
manter a normalidade com o vilarejo foram firmados perante o homem da justiça e
seu bravo ajudante que apresentaram posturas de satisfação.
― Sejam bem-vindos conforme a vossa promessa. ― desejou o xerife.
Os dois amigos se levantaram e fizeram menção de sair. O xerife os interrompeu
com um convite:
― Desejam tomar um café?
Forbes respondeu por si e pelo outro:
― Obrigado. Nós acabamos de almoçar.
O xerife não se ofendeu com a negativa, entendia que o almoço da taverna era
delicioso e fartaria a qualquer um.
― Tudo bem, vocês estão liberados.
Apontou para o ajudante e continuou:
― Como devem saber, ele é meu ajudante George Conway, precisando, basta
procurá-lo. Qualquer anormalidade que possamos resolver, não hesitem em nos
notificar.
Forbes disse como porta-voz:
― Ficamos gratos, estamos à disposição também.
O ajudante fez uma expressão de confusão no rosto como quem não entendia em
que os forasteiros poderiam auxiliar, o xerife decidiu findar a conversa:
― Correto.
Os dois amigos se viraram para a porta e se retiraram, o xerife e o ajudante
dialogavam. Joseph Forbes disse seriamente ao amigo:
― Eu pensei em entrar no assunto sobre o hotel.

113
― Foi o que deveríamos ter feito. Embora, eu pense que aqueles homens da lei
fossem desconversar, este assunto parece soar desagradavelmente nos ouvidos
de todos por aqui.
― Você tem razão, para falar a verdade eu já me acostumei com aquele hotel.
Viraram noventa graus e tomaram o rumo da segunda rua do vilarejo, era possível
notar que a temperatura caira um pouco e o frio não tardaria a dominar toda Pitfall
e transformar a floresta em um lugar inabitável. Os dois amigos pararam ao chegar
ao meio da segunda rua, Forbes informou:
― Vamos pelo lado direito, depois voltaremos cruzando a rua toda.
Tomaram o rumo almejado, logo no começo do lado direito da segunda rua era
possível reconhecer a igreja de Pitfall. Em silêncio, caminhavam olhando cada
casa, não era possível ver habitante qualquer, o povo de fato era muito caseiro.
Um menino parecia brincar com miniaturas de soldados na janela do segundo
andar de uma das casas, era a casa dos Bombay, que ficava atrás da taverna. O
menino percebeu a presença dos estranhos e olhou para a rua com certo receio,
os dois amigos também o encaravam, mas desviaram a atenção sem cerimônias
ao perceberem que poderiam causar algum inconveniente, assustando a inocente
criança.
O menino pensou na possibilidade de serem dois soldados que vieram para
guardar a floresta e sentiu enorme excitação, estava com o olhar fascinado nos
dois homens que nunca vira, o mais gordo tinha um colete preto que parecia dos
agentes secretos, o mais magro e mais novo tinha ar de espião naval. O menino
achou o máximo e acompanhava atentamente cada passo dos dois.
Norman seguia o amigo que já andara pelo vilarejo noites atrás.
― Essa falta de movimento é desolante e me deixa inquieto.
― Você não viu tudo ainda, espere para ver a última rua, quase todas as casas
por lá são abandonadas.
Os dois chegaram ao fim da rua que logo dava entrada para uma parte da floresta.
― Vamos voltar e enfim cruzar a rua toda. ― sugestionou Forbes.
― Acho melhor irmos para a próxima rua, já tenho noção de como seja o resto
desta.
― Não te inquiete, aposto que você, assim como eu, não deseja voltar antes do
anoitecer para aquele hotel maldito.
Norman dava razão para o outro, de fato tinham a tarde toda livre e não custaria
fazer um passeio minucioso pelo vilarejo. Os dois voltavam e passavam em frente
à casa dos Bombay, o menino não estava na janela, mas ele havia posicionado
quatro soldadinhos com armas apontadas para a rua, os dois ficaram
maravilhados com o espírito de humor do menino que devia estar simulando um
campo de batalha. Norman foi o primeiro a comentar:

114
― Ele parece estar brincando conosco.
― Talvez deseje nos recrutar. ― Forbes comentou, os dois riram.
O menino não apareceu novamente na janela, os dois amigos desistiram de olhar
para o alto, a nuca começaria a doer e os olhos seriam forçados, provocando dor
de cabeça. Passaram em frente à igreja quando ocorreu ideia plausível na mente
de Forbes:
― Já pensou na possibilidade de o menino estar tentando nos dar um aviso?
Norman tentou, mas não conseguiu compreender a relação da atitude do menino
com as palavras do amigo.
― Não entendi a relação.
― Os soldadinhos apontando as armas para nós pode ser uma espécie de aviso
do menino, consciente ou não, ele pode estar querendo dizer para darmos o fora
daqui o quanto antes!
Norman se assombrou com a possibilidade que de fato tinha sentido, era
impressionante como o amigo captava os supostos sentidos das coisas no ar.
Cruzaram a metade da rua, caminhavam sem pressa, olhavam de um lado ao
outro, absolutamente ninguém fora de casa, nenhum outro rosto aparecia na
janela. Pitfall transmitia a impressão de ser um lugar fantasma. No restante da rua
havia apenas casas. Os dois aventureiros foram para a terceira rua.
― O que será que vamos encontrar nessa rua?
― Não acredito que veremos qualquer alma viva. ― Forbes respondeu.
A temperatura caíra mais um pouco, os dois passeavam pela terceira rua do
vilarejo que à primeira vista estava vazia, ninguém fora de casa.
Algo chamava atenção, havia um poço de pedras muito gastas no lado direito da
rua, Forbes propôs:
― Vamos ver do que se trata.
Não era possível ver seu fundo, Norman deu uma ideia clássica ao amigo:
― Vamos jogar pedras para se obter uma estimativa sobre a profundidade.
Forbes gostou da ideia.
― Certifique-se de que ninguém nos vê. Pode ser motivo de constrangimento
cometer um ato semelhante, uma vez que, se este poço for útil por aqui e contiver
água potável, podemos nos meter em uma tremenda fria.
Norman vasculhou o chão com o olhar em busca de alguma pedra, encontrou um
pequeno pedaço de cascalho e o pegou disfarçadamente.
Forbes esperou que o amigo se levantasse e o segurou no ombro advertindo:
― Não sei se é uma ideia prudente. Eu acredito que existam no mínimo dez pares
de olhos nos observando, e não duvido se houver ouvidos nos escutando. O povo
aqui tem medo de algo, mas é muito esperto.

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Naquele momento, um homem cruzou a ruela, vinha da quarta rua. Rapidamente
foi possível reconhecê-lo. O recém-chegado, junto com seu cão se aproximava
dos dois forasteiros e foi logo falando:
― É bom vê-los por aqui, significa que gostaram do vilarejo.
Forbes mentiu para parecer cordial:
― É um lugar exuberante.
Horace Singer conhecia como ninguém o lugar e imediatamente esboçou sua
opinião:
― Fique mais alguns dias e mudará de opinião.
O fortão assentou-se na boca do poço, o cão imediatamente deitou no chão
entendendo que era hora de descanso do dono. Os dois amigos se sentiram
tentados a imitarem o outro e não hesitaram em seguir sua atitude. Os três
homens sentados davam a impressão de ser uma comitiva que espera seu
transporte ferroviário.
― Isso quer dizer que o amigo tem um julgamento definido do vilarejo. ― disse
Forbes.
O fortão de uma olhadela para o cão que fitou o dono no mesmo instante.
― Eu quis dizer que este vilarejo não é um lugar que se possa viver de modo
descente, a não ser, quando se vive sozinho. É um lugar muito isolado e pacato.
― Como explica o acontecido na taverna, na noite anterior? ― Norman
questionou.
O lenhador esboçou sorriso irônico.
― Aquilo é natural por aqui, eu já perdi a conta de quantas vezes aquela luz verde
perambulou pela vila durante a madrugada.
Forbes e Norman se entreolharam com resquícios de assombro. Não acreditavam
que o lenhador debateria sobre o assunto tão facilmente, era o momento de se
extrair o máximo de informações necessárias. Norman, inteligentemente, lançou
outra questão:
― Como assim natural? O senhor sabe o que é aquela luz verde?
O lenhador olhou sério para Norman:
― Ninguém sabe. O povo ignora o assunto com o orgulho do leão.
A conversa começava a se tornar produtiva para os dois forasteiros que se
interessavam pelo mistério de Pitfall. Forbes decidiu seguir a onda do amigo e deu
uma sugestão:
― Nos conte sobre a luz verde.
O lenhador esfregou as duas mãos nas pernas.
― Vai fazer um frio de cinema.

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O silêncio imperou. Forbes fez um gesto com as mãos como quem procura
refrescar e incentivar a memória do outro. O lenhador percebeu o sentido do gesto
e falou despreocupadamente:
― Certa noite, cerca de três meses atrás, eu estava com insônia, pois havia
dormido muito na noite anterior e não precisei cortar lenha naquela manhã...
Soltou um pigarro e deu prosseguimento:
― Uivos de lobos muito distantes bombardeavam o silêncio sepulcral que devia
dominar a madrugada já avançada. Meu quarto fica no segundo andar e meu cão
dorme comigo. Em certo momento senti o ímpeto de olhar pela janela e estudar o
movimento na floresta, talvez algum lobo transitasse e me chamasse atenção,
distraindo a minha mente que se recusava mortalmente a proporcionar a
sonolência cotidiana que sempre fora minha aliada. Assim, me levantei e de
joelhos na cama comecei a assistir a floresta através da janela. É lógico que eu
não teria um espetáculo digno de nota, mas, a floresta durante a noite parece
exprimir sentimentos dos mais retraídos e vis aos mais categóricos e abastados
de boas sensações. Fitei atentamente a floresta banhada apenas pela luz do luar,
passaram-se alguns minutos de atenção, quando uma luminosidade elevou-se
gradativamente no meio das árvores, eu havia cortado duas fileiras de árvores
para obter lenha, o que me proporcionou uma visão da floresta mais ao fundo, e a
luminosidade parecia se aproximar do vilarejo, lentamente, senti a necessidade de
pegar meu rifle e dar um fim na conversa, mas sempre com um receio mortal, não
sabia o que era aquilo. Quando a luz cruzou a floresta e adentrou o vilarejo, cerrei
a cortina e me escondi o máximo que pude, aquilo me chamava a atenção e
aquele espetáculo me deixava de boca aberta. Quando a luz se aproximou mais
um pouco, não pude acreditar no que via, a luz vestia uma espécie de capa de
chuva negra, melhor explicando, a luminosidade verde substituía a cabeça, pernas
e braços da suposta pessoa, era uma visão incrível, impossível de acreditar e eu
não ousava ou não conseguia tecer qualquer conjectura que me confortasse os
nervos. A luz verde pareceu notar algo e se retraiu, voltou pelo caminho de onde
viera. Foi o momento que eu corri pegar meu rifle, vesti meu botinão e dei voz de
alarme ao meu cão, desci e corri rumo à floresta com uma versatilidade que
duvidava ainda poder oferecer devido à idade, meu cão saiu em disparada. A luz
verde parecia já estar distante. Em certo ponto, meu cão, já avantajado em relação
a mim, se manteve fixo em sua posição e começou a latir como um cão portador
de raiva, babava, parecia irradiar um ódio mortal da luz verde, talvez ele tenha
percebido o incômodo que esta causara ao meu sono e quisesse revidar me
protegendo. Perdi a luz verde de vista, o cão cessou de latir e entrou em uma
excitação frenética como se esperasse minha atitude de dar um tiro e alvejar um
objeto distante, fora do nosso alcance, foi quando desisti, chamei o cão e voltamos
para o lar, eu, no caminho de volta, sempre receoso olhava para trás, na floresta,

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para me certificar da presença da luz misteriosa, entrando em casa, me certifiquei
que havia esquecido a porta de casa aberta quando corri para a floresta e me
preocupei, alguém ou algum lobo poderia ter entrado durante o curto período de
minha ausência. Subi a escada em guarda e até me certificar que ninguém havia
entrado não soltei o rifle, por fim, dormi com o rifle sob meu alcance, na cômoda
ao lado da cama.
O lenhador terminou seu relato deixando os dois amigos intrigados. Era incrível
como aquele vilarejo cercado de florestas proporcionava mistérios em todos os
cantos. O lenhador manteve silêncio, esbanjava olhar despreocupado.
― Este poço é usado pelo povoado? ― Forbes indagou.
― Este poço está inativo desde quando eu me mudei para Pitfall. Nunca vi alguém
tirando água dele. O máximo que vão encontrar no seu fundo é água de chuva.
Mas, ele proporciona utilidade que estamos usufruindo neste momento, como
assento. Muitas pessoas de vez em quando se assentam aqui para descansar ou
contemplar o movimento.
Norman agitava a pedrinha na mão e a mostrou para os demais.
― Silêncio.
Norman se virou e a lançou no poço, todos ouviam atentamente. Dois segundos
depois, soou o barulho da água recebendo a pedra.
― Não é tão fundo. ― Norman tirou suas próprias conclusões.
― Nunca pensei em jogar uma pedra no poço, também nunca consegui enxergar
seu fundo, só conheceria sua profundidade se algum dia, talvez, tivesse que
ajudar a resgatar alguém que caísse aí. ― Horace Singer informou não dando
importância ao assunto.
Norman Legrand mudou o assunto para sua queixa principal:
― O que pode nos falar sobre o hotel?
― Vocês são investigadores? Não levem a mal minha pergunta, mas, vocês
parecem querer tocar em alguma ferida estancada, porém, não cicatrizada
totalmente.
― Não somos investigadores, mas o que quis dizer sobre ferida? Porventura
existe alguma? ― Forbes indagou como quem dá um xeque-mate no adversário.
― Existem muitas feridas em Pitfall, todas acarretadas pela má fama que recebe,
nada mais.
O lenhador se levantou e parecia estar incomodado com o assunto, embora tenha
aberto o jogo, seu cão o imitou e levantou.
― Vou jogar cartas na taverna hoje à noite. Se estiverem por lá poderemos
conversar mais um pouco.

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― Obrigado. Creio que iremos jantar na taverna e nos encontraremos. Quem sabe
a luz verde não volte para nos visitar. ― disse Forbes ainda com ar de
superioridade sobre o lenhador.
O lenhador que já começava a caminhar, se virou com um sorriso mesquinho:
― É, quem sabe.
Tornou a se virar e tomou o rumo da última rua, os dois amigos esperaram que o
fortão se afastasse um pouco para dizerem algo confidencial.
― Vamos dar uma pausa e depois seguir para a última rua. ― Forbes deu um
conselho.
― Tem razão. Eu estranhei o comportamento do lenhador.
― Talvez esteje cansado e deseje tomar um banho.
― Pode ser, não deve ser fácil empurrar aquela vagonete cheia de lenha para lá e
para cá.
― Correto, eu não gostei quando ele nos questionou se somos detetives, você
acha que estamos sendo muito intrometidos? De fato, temos pinta de detetives?
― Forbes indagou.
― Estamos parecendo detetives ou bancando eles, na visão dos outros é claro.
Mas, eu acho que quanto mais perguntamos, mais damos liberdade de nos
questionarem, de revidarem perguntas incômodas.
O lenhador virou a ruela, rumo à última rua e sumiu de vista. Em momento algum
olhou para trás, para estudar algum movimento dos dois forasteiros, o cão seguia
seu ritmo.
― É triste falar, mas creio que eu vou para o hotel tomar banho antes de ir para a
taverna. ― Norman Informou.
O amigo não estranhou sua colocação, pois ele tinha plena razão.
― Você está certo, sem contar que vamos ter que usar casacos para a noite que
chega e os deixamos no hotel.
Ambos fizeram silêncio e se levantaram. Caminharam para a ruela.
― Eu não acredito que Oliver Kingston esteja de fato seguindo o nosso raciocínio
de explorar o hotel. ― Norman quebrou o silêncio.
― Isso não vai nos impedir de construir e executar um plano. Às vezes eu fico a
imaginar como os demais quartos do hotel são mobiliados.
Norman tinha os mesmos pensamentos do amigo e foi mais além:
― Eu penso o mesmo, cada vez que olho para a porta daqueles quartos sinto um
perigo iminente, é como se a qualquer momento alguém fosse destrancar aquelas
portas repentinamente e sair em busca de nós, humanos. O reservatório é o local
mais sinistro daquele hotel, não suporto ouvir torneiras pingando em ambientes
cerrados por chave.

119
― Eu proponho a necessidade de traçarmos um plano rapidamente, e se
aproveitássemos o resto da tarde para colocar duas cabeças para trabalhar?
Viraram a ruela e já podiam avistar a imensidão de árvores.
A última rua apresentava algumas casas com vidros quebrados, eram visivelmente
abandonadas.
― Que horror! ― Joseph Forbes exclamou com exasperação, algo raro em si.
― Seria melhor dormir em alguma dessas casas do que ficar no hotel.
Forbes sorriu da colocação do amigo:
― Tem razão.
Ninguém fora de casa, nem a olhar pela janela aquela rua que apresentava o
aspecto mais pavoroso das quatro do vilarejo.
― É impressionante como lugares abandonados emanam um ar de inquietação.
― disse Norman.
Chegaram frente à casa dos Malone, Forbes apontou para a próxima e
aconselhou:
― Vamos voltar, aquela é a casa do lenhador que ao nos ver perambulando por
aqui pode pensar que estamos a lhe investigar os passos.
― Exato, é hora de encontrarmos um lugar propício para combinar um plano.
Os dois voltaram para a ruela. Forbes pensou ter encontrado a melhor solução:
― Creio que não podemos confiar nos habitantes, nas paredes das casas e tão
menos nas árvores. Onde quer que formos, terei a impressão de estar sendo
observado. Mas eu penso que poderemos conversar particularmente sentados
naquele velho poço, basta não elevarmos a voz mais do que o necessário e
mantermos os olhos e ouvidos atentos ao mundo exterior. Espero não existir um
morador secreto no interior do poço.
Cruzaram a ruela e chegaram à rua do poço. Norman concordou com a opinião do
amigo após ser acometido por um calafrio ao ouvir falar do possível habitante do
poço, acenou para o alvo e disse:
― Concordo e é para lá que vamos.

120
14

A CAÇADA

Brenda Malone estava em sua cozinha preparando o jantar que deveria ser
requintado para receber o padre. Convidara seus pais, sabia que a mãe aceitaria o
convite sem vacilar, mas o pai poderia ser um empecilho por não gostar do genro.
Enfim, era preciso caprichar na gastronomia, mas não seria uma tarefa difícil para
uma exímia e cuidadosa cozinheira como ela.
Brenda preparava primeiro a sobremesa, um delicioso suflê de morango, depois,
temperaria um suculento frango para ser assado, posteriormente organizaria um
cesto com um pão recheado com bacon na massa e cortado em fatias e por fim,
um macarrão com massa de tomate e requeijão.
Trazia a certeza de que o jantar seria de dar água na boca e surpreenderia os
presentes, torcia tanto para ter a presença dos pais. A família toda reunida com o
padre seria uma verdadeira benção.
Ronald Malone não fazia questão de saborear pratos diferentes, mas os da sua
mulher era uma tentação à gula.
Brenda colocou o suflê no freezer e aproveitaria o tempo seguinte, vago, para
preparar o tempero do frango. Deixaria o frango temperado, o molho do macarrão
pronto e iria bater a massa do pão.
Serviço era tudo que não faltava para a prestativa e cuidadosa mulher.
Ronald Malone estava sentado na sala com seu filho que brincava com um
carrinho e um helicóptero. O homem assistia o filho se divertir e se lembrava da
infância, como era bom ser criança, quando não se precisa ter certas
responsabilidades como o caçador tinha de tirar vidas de animais indefesos.
Comer uma carne do animal não era a mesma coisa que lhe tirar a vida. O
coração do caçador pesava grandemente quando se lembrava dos animais que
abatera.
Existem fases na vida da pessoa que a deixam sentimental e reflexiva sobre o
valor da vida. O caçador fazia reflexões em sua mente, poderia abater um animal
que tinha suas crias, sua família, seu lar e ele, comparava tudo isto e mais um
pouco à sua família. Afinal, era tão bom poder desfrutar do aconchego do lar com
a esposa e o filho. Ele não conseguia imaginar perder um deles. Os animais
também portavam sentimentos e gemiam na dor. Pior, também possuíam suas
correntes familiares.
Mais difícil para o caçador era pensar no que iria fazer da vida se parasse de
abater animais, onde conseguiria um emprego decente para sustentar sua família?
Em Pitfall, não conseguia encontrar tais respostas e sua mente mergulhava em um

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vazio profundo. Caso adquirisse um emprego em outro lugar, longe daquele
vilarejo, como se locomoveria até o trabalho?
Mudar para outro canto da Flórida era uma possibilidade, mas valia à pena trocar
a paz de Pitfall pelas loucuras e delírios de alguma cidade industrializada, onde
um formigueiro de gente quase se mata para conseguir o tão necessário pão?
Mas pensando melhor, existiam cidades pacatas e que proporcionavam uma mina
de ouro, poderia pedir ajuda para seu primo jornalista que o indicara Pitfall e
assim, grandes coisas viriam no futuro. O caçador decidiu naquela mesma noite
se abrir com a esposa, ainda possuíam um bom, mas modesto dinheiro guardado
debaixo do colchão e teriam tempo para fazer um planejamento e não tomar
decisões precipitadas. Afinal, o futuro do pequeno também estava em questão.
O menino estava absorto em um mundo de imaginação, era difícil prever onde a
mente da criança vagava e que conclusões tomava. O menino brincava em
silêncio, movimentando o carrinho e o helicóptero, provavelmente simulando
alguma cena de filme de ação.
O caçador se levantou. O menino não percebeu ou se percebeu, não deu
importância. Continuava entretido em sua brincadeira.
Ronald Malone procurava não interromper a mulher enquanto cozinhava e era
nestes momentos que ficava a refletir sobre a vida, o futuro tão próximo. Não seria
má ideia chamar o amigo Horace Singer para uma caçada esportiva na floresta,
aquelas em que o objetivo é encontrar os animais, mas não abatê-los, afinal, a
parte mais legal da caçada era encontrar os rastros dos animais, uma aventura
para poucos.
Sua mulher não fazia censuras em relação às distrações do marido,
principalmente quando estava ocupada com deveres, e sem contar que o filho era
muito obediente e não moveria uma agulha do lugar sem ter permissão dos pais
ou responsáveis que o estivessem cuidando.
O caçador foi à cozinha e chamou a mulher pelo nome, ela largou o serviço e deu
um abraço carinhoso no homem que começou a acariciar os vastos cabelos da
amada.
― Vou chamar o lenhador para dar um passeio na floresta.
A mulher apoiava o marido e não queria vê-lo preso o sábado todo, seria legal o
marido sair com o amigo para espairecer a mente que deveria estar se
preocupando com as implicações do sogro que talvez viesse para o jantar. Mas a
mulher nem sonhava que o marido não dava atenção às palavras infantis de seu
pai, o caçador demonstrava um domínio impressionante de si.
― Tudo bem querido, vão caçar?

122
― Não, o lenhador sempre passeia com seu cão pela floresta e eu pensei em lhe
fazer companhia, talvez coloquemos o cão para farejar o rastro de algum animal,
mas apenas por aventura.
Brenda estranhava a atitude do marido que há alguns dias não saía para caçar,
talvez estivesse passando por algum problema, na hora de dormir, poderia
questioná-lo de modo desinteressado, como quem não quisesse nada. O caçador
se preocupava e temia ouvir tal pergunta da boca da mulher e nem sonhava sobre
qual desculpa dar.
Os dois trocaram um sorriso amável. Ele se retirou e decidiu conversar com o
lenhador antes de trocar a camisa e reforçar o calçado, se a resposta do amigo
fosse afirmativa, o sinal estaria verde.
O caçador abriu a porta principal da casa chamando a atenção do filho.
― Posso ir junto...
O caçador se virou para o filho e respondeu:
― O papai vai falar um pouco com o lenhador e já volta.
― Mas eu posso ir com você?
― É melhor você ficar e proteger a mamãe do bicho-papão da floresta, eu não vou
demorar.
O menino se alegrou com a resposta do pai sobre não demorar em regressar, mas
demonstrou bom raciocínio:
― Se eu for e nós não demorarmos, o bicho-papão da floresta não terá tempo de
entrar em casa.
O caçador ficou boquiaberto com a inteligência do raciocínio do filho, mas resolveu
dar um fim na conversa:
― Mas a mamãe tem medo do bicho-papão e é melhor que um homem faça
companhia para ela.
O caçador não mentia para o filho. Brenda tinha muito medo das histórias que o
povo de Pitfall contava sobre os mistérios vindos da floresta, estranho que nunca
falara a ela sobre a luz verde, mas ela o interrogou acerca naquele mesmo dia,
talvez o sogro houvesse metido medo na filha que sabia de histórias que
perambulavam pelos arredores, mas nunca soubera da luz verde que era a mais
temida. Nada, porém, que a impedisse de ficar sozinha em casa.
O menino ficou a olhar o pai que fechou a porta sem ressentimentos.
Ele deu duas batidas fracas na porta do vizinho. Alguns segundos depois, um
homem barbudo espreitou pela janela, procurando ter ciência de quem estava a
lhe chamar naquele horário tão exótico. Ficou surpreso ao constatar que se tratava
do amigo caçador e logo abriu a porta. O lenhador ofereceu com cordialidade:
― Tenha a bondade de entrar.

123
― Obrigado pelo convite, mas eu vim perguntar se deseja passear na floresta, eu
resolvi fazer uma caçada esportiva e melhor seria com a companhia de dois
amigos, mudei de ideia acerca do que havia te falado hoje pela manhã.
O cão estava ao lado do dono, recepcionando o visitante, fazia uma expressão
facial de cachorro policial que junto com seu comandante, questiona um possível
infrator. O lenhador não conhecia a linguagem usada pelo amigo e ficou na dúvida,
coçou a vasta barba e fez cara de confusão. O caçador percebeu a dúvida do
vizinho.
― É como pesca esportiva, você pega o peixe e o solta. Na caçada esportiva, o
objetivo é encontrar os animais, mas não abatê-los.
O lenhador se intimidou com sua ignorância e sorriu como quem compreende algo
que já entendia, mas que não se lembrava no momento.
O lenhador olhou para o cão, fez-lhe um cafuné e perguntou:
― O que acha de passear na floresta, amigão?
O cão pareceu entender a mensagem e balançou o rabo contente, talvez ele
entendesse a entonação da voz do dono ou compreendesse o que o amigo queria
dizer sobre floresta. O lenhador olhou para o caçador que achava graça da atitude
do inteligente cão. Horace disse cordialmente:
― É um programa bom para quem vive neste fim de mundo e não tem o que fazer.
Meu amigo aceitou e eu não vou ficar de fora.
O cão soltou dois latidos e correu para dentro de casa, o lenhador se alegrava
com a vitalidade do fiel escudeiro e se empolgou:
― Volto dentro de cinco minutos.
Era o tempo que o caçador precisava para fazer o que faltava. Difícil seria explicar
para o filho que embora muito obediente, oferecia resistência, às vezes.
― Nos encontramos dentro de cinco minutos. ― disse Malone.
Ambos tornaram para suas casas. Ao entrar, o caçador não viu seu filho na sala,
mas os brinquedos estavam espalhados pelo carpete. Caminhou silenciosamente
para o segundo andar, subia a escada com cautela, talvez o filho estivesse na
cozinha com a mãe e aquele seria o momento de evitar aborrecimentos. Seria
difícil sair em disparada pela floresta com uma criança que corre
insignificantemente. Sem contar os perigos de se machucar em algum espinho ou
levar um capote.
Chegou ao quarto do casal. Brenda estava trocando o lençol da cama. O caçador
se lembrou de como foram as noites de amor com a mulher que aquele lençol
recém-chegado à cama proporcionara. O lençol fora presente de casamento dado
pelos pais da mulher, era todo vermelho com um enorme coração bordado no
meio e com babados brancos em seu contorno.

124
A mulher não se apercebera da presença do marido. Veio à mente do caçador que
o sogro o odiava, mas havia lhe proporcionado o maior tesouro de sua vida depois
de Deus, Brenda Malone.
A mulher se virou para o marido que indicou silêncio colocando o dedo na boca. O
caçador perguntou em baixo tom:
― Cadê o pequeno?
Brenda Malone com o olhar despreocupado, assimilando a intenção do marido,
respondeu baixinho:
― Eu o coloquei para tomar banho agora mesmo, eu sabia que você voltaria e
resolvi deixá-lo pronto para a noite, assim ele não te amolará. Você merece ter um
tempo para passear na floresta.
O caçador deu um beijo na amada e correu aproveitar o tempo que lhe restava, o
barulho da água do chuveiro tomava conta do andar superior. O banheiro ficava ao
lado do quarto do casal. O menino tomaria banho no dobro de tempo que o
caçador necessitava para sair.
Os pais de Brenda sempre passeavam pela casa quando os visitava e a intenção
de Brenda ao colocar na cama o lençol ganho pelos pais era a de talvez amolecer
o coração do pai em relação ao genro.
Quem sabe naquela noite, com a presença e benção do padre, o milagre não
acontecesse na penúltima casa da última das poucas ruas da pequena, desolada
e esquecida Pitfall.

***

Horace Singer revirava seu closet em busca de um casaco de frio não usado há
muito tempo, não possuía muitas roupas, mas a desordem de seu closet poderia
ocultar um elefante.
Achou o objeto desejado no fundo do bolo de roupas e logo o vestiu, o cão tratava
a incessante procura do dono como uma brincadeira e apenas assistia a cena. O
lenhador, após vestir o casaco, sentou-se na cama e calçou o botinão usado no
trabalho.
A casa do lenhador fornecia temperatura aconchegante contrastando com o frio
inquietante de mundo exterior. Ele terminou de colocar o botinão e afagou a
cabeça do cão.
― Vai degustar uma bela ração de carne quando voltarmos.
O cão balançou o rabo, entendia o que o dono dizia e era bem acostumado com o
regime da ração, embora sempre ganhasse uma lasca de carne do almoço ou ovo
frito do café da manhã do dono que tinha preferência por bacon com ovos na

125
primeira refeição do dia. Se tornara ritual o lenhador lançar metade de um ovo frito
na boca do cão toda manhã.
Horace Singer não se sentia bem em ir à taverna e deixar o cão trancado dentro
de casa, afinal, era melhor a companhia do amigo fiel do que uma corja de velhos
babando para ganhar uma partida de baralho. Sem contar que o lenhador perdia
para o velho Parker há mais de dez partidas. O lenhador desconfiava do rival,
provavelmente este escondia uma carta atrás da manga, no caso específico, uma
carta escondida no macacão fedido. Mas ele daria um jeito de descobrir e a
máscara do rival iria cair.
Voltou ao closet e colocou a mão na divisão mais alta, apalpava em busca de algo,
o cão estudava cada movimento do dono, por mais insignificante que fosse. O
brutamonte fez uma cara de satisfação ao encontrar o objeto desejado, era um
disco de plástico dominado pela poeira, um frisbee.
Bendito Fred Morrison!
O homem correu para a pia do banheiro e deu um banho no disco imundo, depois
abriu uma gaveta ao lado da pia e retirou um pano gasto pelo tempo, enxugou o
disco e lançou o pano em qualquer direção. Os dois desceram a escada em tropel,
o homem à frente segurando firmemente o frisbee.
A sala não apresentava o calor aconchegante do segundo andar, mas a lareira
resolveria o problema na chegada da noite. Os dois saíram, o brutamonte retirou
um molho de chaves do bolso e trancou a porta.
O caçador esperava pelos amigos e sorriu com satisfação ao notar o frisbee na
mão do lenhador, há muito tempo não via o amigo lançar o disco para o cão
buscar de modo frenético. O caçador ria com gosto ao ver a ansiedade estampada
nos olhos do cão quando um frisbee era lançado, mas a parte mais engraçada era
como o cão babava nos momentos da brincadeira.
O lenhador mostrou o disco para o caçador e disse:
― Vou treiná-lo um pouco e avaliar sua postura.
― Ele é um verdadeiro caçador, tenho certeza que não te dará chances.
O lenhador concordava com a opinião do outro. Os três se encaminharam para a
floresta, lugar que conheciam como a palma da mão. O lenhador lançou o disco
com força rumo à floresta.
― Pega essa garoto!
O cão se pôs a correr com extrema velocidade, o frisbee quebrava o ar com
rapidez e entrou na floresta, o cão corria em incrível perseguição e seus instintos
lhe apontavam a direção e localização do disco milimetricamente. O disco se
chocou com um tronco grosso e se pôs a cair sem vida da mesma forma como um
pássaro em alta velocidade se abalroa com um objeto firme.

126
O cão já estava aos pés da árvore esperando o disco chegar ao seu alcance,
pulou e agarrou firmemente o frisbee com os dentes, olhou rumo ao dono e correu
em sua direção devolver o objeto. Eram impressionantes a vitalidade e agilidade
do cão, se comparando com a velocidade que o frisbee era capaz de atingir
quando lançado com força.
Os dois homens aplaudiram o cão quando o mesmo devolveu o objeto na mão do
lenhador. O caçador fez um afago na cabeça do impressionante animal.
Era hora de um merecido descanso, o lenhador esperaria o próximo momento
oportuno para lançar o disco novamente.
O grupo adentrava a floresta e seguia sem destino, o caçador não deixava de ficar
atento a qualquer ruído que levasse ao rastro de algum alce.
O sol se mostrava ameno, com intensidade branda em relação ao frio que
dominava a floresta. Por este motivo os exploradores da floresta não poderiam se
demorar, pois sofreriam os danos de uma hipotermia. Não era tão simples lidar
com o frio de um vilarejo envolto por floresta, durante a madrugada seria quase
impossível sair de casa.
O cão era indiferente à situação climática que já começava a atormentar os dois
humanos, os seus casacos aos poucos se tornavam proteções insuficientes. O
brutamonte fez um movimento de supetão, surpreendendo o cão e o caçador, o
disco deixava a segurança de uma forte mão para viajar pela floresta com uma
velocidade média, o cão entendeu o movimento do dono com versatilidade e
perseguiu o objeto voador. A colisão com uma árvore não demorou a acontecer, os
dois homens pararam para assistir a cena, o cão novamente esperou que o disco
chegasse à sua altura para abocanhá-lo e entregá-lo com satisfação ao dono. O
lenhador afagou o cão e disse:
― Está mais esperto que um coelho e mais rápido que uma pantera!
O cão abanava a cauda pelo elogio do dono, o caçador também estava mais
admirado do que antes, sem dúvida o cão estava no auge da sua saúde e
jovialidade. Era a época de o lenhador aproveitar a presença do amigo antes que
este ficasse velho e indiferente à amizade dos humanos.
O pensamento do caçador o transportou para os recentes sentimentalismos que o
dominavam, nem mesmo ele sabia qual era a razão da fragilidade que chegava a
arrebatar sua mente tão vorazmente. Era uma compaixão com os animais e uma
compreensão gigantesca com os humanos. Sentia como se tivesse que aproveitar
o máximo de tempo para estar com a mulher e o filho. Não era possível descrever
o motivo da súbita mudança de comportamento mental que chegava a afligi-lo. O
grupo retomava a caminhada, o lenhador sentia que era hora de voltar daquela
expedição na floresta que já durava quinze minutos, as árvores se tornavam mais
compactas com um espaçamento menor entre uma e outra, o frio também era
mais denso naquela região. O grupo caminhava em silêncio, o lenhador não se
127
atentava ao que se passava ao lado e fitava o chão enquanto caminhava. O
caçador e o cão estavam de ouvidos atentos ao ambiente.
Quem não estivesse acostumado a explorar a floresta teria a sensação de que
alguém estivesse observando a chegada de um intruso. O grupo chegou a uma
inclinação significativa no solo, daquelas que não se há disposição física para
escalar em um clima daqueles. O caçador quebrou o silêncio, sem perder a
postura:
― Eu acho melhor voltarmos. Já estive nessa região e a subida é muito íngreme.
Não estou disposto para tal aventura. Creio que seu cão pensa de outra forma.
O grupo estacionou frente à encosta, o lenhador, com mais de quarenta anos,
apesar do bom condicionamento físico, concordou com o amigo.
― Eu não tenho mais idade para encarar essa simples escalada. E como você
disse, Winepowder pensa diferente, fareja aventura. Eu também conheço aqui e
sei que não valerá à pena continuar a caminhada.
O grupo tornou pelo caminho de onde viera, o lenhador aproveitou para lançar o
disco o mais forte e rápido que conseguiu. O cão não hesitou e correu em busca
do frisbee que daquela vez quebrava o ar mais rápido do que nunca. O bíceps do
forte lenhador se expandiu no lançamento do disco. Assistiam a caçada na qual o
cão era o caçador e a presa voava, estavam admirados, o disco novamente se
chocou com uma árvore e o cão esperou pacientemente até que o disco chegasse
ao seu alcance. O disco foi mais longe daquela vez, atingiu cerca de cem metros
de distância. Era impossível o frisbee não se chocar com alguma árvore, somente
uma curva milimetricamente calculada como os mísseis teleguiados permitiria um
voo livre ao disco. O cão de fato deixaria qualquer um admirado com sua
inteligência ao driblar as árvores que empecilhavam sua carreira.
O cão regressou com o disco. O lenhador pegou a entrega.
― Eu gostaria de saber como é a vida de casado.
O caçador teve um sobressalto com a colocação do amigo e se sentiu retraído em
falar sobre o assunto, sabia que o lenhador poderia trazer algum trauma referente.
― É uma vida muito boa. É maravilhoso ter filho, uma família.
O lenhador fitou o amigo e interrompeu a caminhada.
― Se precisasse escolher entre estar sozinho e casado. O que escolheria?
O caçador não tinha dúvidas da resposta e não hesitou:
― Com certeza é melhor estar casado, principalmente quando de fato você ama a
outra pessoa. Você deveria experimentar na prática.
― Eu já estou velho para ter uma relação, sem contar que não existe uma mulher
ao meu alcance.
Ronald Malone esperava tirar um mal pela raiz:
― Lógico que não, você é novo ainda, acabou de passar dos quarenta.
128
Horace Singer era acostumado com a vida de solteiro, sabia que o sossego que
tinha na floresta e no silêncio de sua casa, junto com seu cão, não se comprava.
Mas naquele momento seu pensamento o levou até a imagem de Tania Bombay, o
lenhador nunca sentira o ímpeto de ter contato com uma mulher como sentia ao
lembrar-se da viúva do vilarejo.
― E te digo mais, é muito melhor dividir teu tempo com quem se ama do que com
a solidão. A solidão deprime, oprime e nos deixa pouco sensíveis aos mínimos
detalhes. Se é que me entende...
― Compreendo perfeitamente.
― Se eu pudesse te convencer a mudar de pensamento, juro que o faria
repentinamente.
Horace Singer sabia da sinceridade e amizade do caçador, mas pensava em não
estender o assunto, quanto mais falava sobre, mais se lembrava de Tania Bombay
e a angústia dominava seu peito. Era difícil explicar, mas depois de vinte anos,
estava apaixonado por alguém, algo que nem sequer lembrava como era.
Os dois retomaram a caminhada de retorno, o lenhador procurou apagar de vez o
assunto que tanto lhe incomodava:
― O que vai fazer de noite?
― Convidamos o padre para um jantar, acho que os pais da minha mulher estarão
presentes. Desculpe-me se não fiz antes, mas está convidado para nos fazer
companhia, teremos prazer em recebê-lo.
― Eu agradeço, mas tenho uma indigesta missão na taverna e pensei em te
convidar para nos fazer companhia. Não sei se sabe jogar cartas...
O caçador se riu do lenhador e poderia jurar que o outro já havia feito aquela
pergunta pela manhã:
― Qual é a indigesta missão? Quando eu me lembro do velho Parker, meu
estômago faz cócegas e não seguro o riso, aquele velho não é normal.
― A indigesta missão é desmascará-lo, não queria tomar a atitude que planejo,
mas desconfio que aquele velho guarde uma coleção de cartas de baralho
debaixo aquele macacão. Você ainda não me respondeu se sabe jogar cartas.
― Sei muito pouco, me dou melhor com um rifle na mão. Mas não escondo que
gosto de assistir o vosso jogo. Com certeza seria um bom programa para a noite,
mas hoje não será possível.
O caçador refletia que devia ser melhor passar uma noite rindo dos desvarios de
jogadores viciados do que enfrentar a indiferença tola do sogro. Mas a
consideração para com sua mulher e para com o padre que sempre os
aconselhava vinha em primeiro plano.
― Talvez amanhã eu vá. ― emendou o caçador.

129
Já se aproximavam do vilarejo e era possível lançar o disco sem que o mesmo se
chocasse com alguma árvore, o lenhador visualizou as condições e calculou uma
força média para que o disco não quebrasse o vidro de alguma janela. No campo
de visão, estava a casa do caçador. O frisbee foi lançado, o cão correu latindo.
O disco deixou a floresta e perdeu a força, o cão o alcançou com facilidade e
pulou já abocanhando o duro objeto. Os homens passaram ao lado do tronco de
uma das árvores que o lenhador abatera naquela manhã, a machadinha estava
presa ao tronco.
Seria melhor levá-la embora para evitar qualquer brincadeirinha do velho Parker
ou até mesmo um furto, mas isto na foi feito pelo lenhador.
O furto era uma possibilidade praticamente remota, mas não se podia facilitar.
Daquela vez, o cão não levou o disco para o dono, sabia que estava próximo da
casa e esperou que os dois homens chegassem. O cão ficou com frisbee preso
nos dentes, seria o responsável por transportar o disco até o seu devido lugar, era
a última parte do treinamento.
― Preciso tomar um banho. ― informou o caçador.
― Tudo bem, tenham um ótimo jantar.
O caçador retribuiu à altura:
― Tenha um bom jogo e que consiga desmascarar o Parker. Queria estar presente
para ver a cena...
O lenhador riu do amigo que também se pôs a rir. O caçador se encaminhou para
sua casa.
Horace Singer virou o olhar para a floresta e fitou a imensidão de árvores, elas
pareciam estar mais próximas do vilarejo, mas talvez fosse o ar frio que
embaçasse a visão fantasmagórica que a floresta oferecia. O lenhador sentiu
crescente vontade de fazer uma vigília naquela noite, tomaria seu rifle, colocaria
munição, arrastaria a cama deixando a janela livre, pegaria a cadeira de balanço e
colocaria rente à janela que oferecia uma visão privilegiada da floresta. Não
poderia se esquecer de mascarar sua presença, colocaria duas cortinas na janela
com uma pequena abertura, uma fresta para espiar, sentado na cadeira
confortavelmente, balançando e estudando a floresta. O cão poderia dormir se
quisesse, mas o lenhador há muito tempo não sentia vontade de ficar de tocaia
esperando que algo se manifestasse. Estaria pronto para agir dentro de seu
bunker oculto. Poderia até colocar alguma armadilha na entrada da floresta, mas
correria o perigo de capturar alguém inocente como o andarilho da taverna.
O cão estranhava a demora do dono, largou o frisbee e latiu chamando a atenção.
Horace Singer abandonou seus pensamentos e tomou o rumo de sua casa, o cão
abocanhou o frisbee novamente e caminhou na frente do dono.

130
O lenhador entrou em sua casa, empolgado com o resultado de suas reflexões.
Primeiro iria à taverna desmascarar o idiota do Parker e comer alguma coisa,
depois em sua casa, com rifle em mãos e preparado, esperaria a possível
chegada do algo que era conhecido no vilarejo como a misteriosa luz verde.

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15

UMA COMBINAÇÃO ENTRE AMIGOS

O fim da tarde chegava e a noite se aproximava rapidamente, a floresta fazia o


seu papel e aumentava a potência do frio.
A floresta tomada pela neblina transmitia uma imagem fantasmagórica e era difícil
prever se seria possível deixar de se estar próximo a uma lareira durante a noite.
A lareira era a única parte confeccionada de pedra nas casas de Pitfall que eram
inteiras de madeira.
As lareiras foram projetadas para não superaquecer a parede mais próxima e por
este motivo eram padronizadas nas moradias da esquecida Pitfall.
Seria impossível um lenhador ficar sem obrigações em um vilarejo como aquele.
Por mais barato que fosse o preço da lenha em nada afetaria uma sólida renda ao
homem que se oferecesse a abater árvores e extrair achas de lenha.
Norman Legrand e Joseph Forbes estavam sentados no poço abandonado,
conversando cautelosamente. O comportamento do velho do hotel os incomodava,
seria mais prudente abandonarem o vilarejo, mas algo os atraía no hotel. Um dono
de um estabelecimento que deveria oferecer o máximo de hospitalidade atendia
mal seus hóspedes e não poderia em hipótese alguma ser considerado normal.
Os dois estavam atentos aos arredores, pareciam estrategistas que estavam
infiltrados como espiões em um campo de concentração inimigo e quaisquer
descuidos significariam o provável fuzilamento.
― Qual é o teu plano? ― Forbes foi questionado pelo amigo.
― Eu percebi que de fato precisamos agir por conta e não pesquisar algum delito
já cometido pelo velho do hotel. Este negócio de querer extrair informações sobre
aquele maluco foi um erro imenso de nossa parte. Primeiro preciso te explicar o
que me levou a traçar o plano que descreverei.
Joseph Forbes começava a sentir as consequências de se estar exposto ao frio
intenso e tossiu timidamente.
― Eu tenho certeza que o teu plano será de muita valia. Vamos contar com Oliver
Kingston?
― Não. Por enquanto. Como eu havia dito, ele não me inspirou tanta confiança
como no começo. A nossa visita o incomodou em algum aspecto.
― Talvez ele estivesse precisando terminar algo de caráter urgente e ficou sem
jeito de se abrir conosco.
― Isso é pouco provável. Você acredita que em um lugar como esse as pessoas
tenham tantas obrigações que lhes tomem todo o tempo?

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― Nisso você tem razão, não consigo imaginar alguém se matando em
obrigações por aqui. Até mesmo o lenhador pode fazer seu horário como bem
entender.
Norman Legrand não conseguia perceber o que o amigo percebera no
comportamento do dono do armazém.
― E o plano?
Joseph Forbes procurou a melhor maneira de se expressar para que o amigo
entendesse:
― É algo simples, mas que pode ser muito esclarecedor.
Forbes deu uma pausa, estava com os olhos e ouvidos atentos ao redor, ninguém
aparecera e não fora possível perceber qualquer sinal de movimento nas casas
daquela rua.
― Temos a desconfiança de que alguém consegue se infiltrar em nosso quarto
enquanto dormimos e mudar objetos de lugar, como por exemplo, recolocar o
quadro na parede. No meu caso não é uma desconfiança, mas uma certeza. Você
deve se lembrar de como descrevi a minha primeira noite aqui...
― Sobre o quê?
― Sobre o quadro que eu havia tirado da parede e quando acordei de manhã ele
lá estava em seu devido lugar. Ora, não sou tão idiota e não consumo bebida
alcoólica. Tenho a certeza de que não estava sonhando ou delirando quando tirei
o quadro e o depositei na primeira gaveta da cômoda.
Norman Legrand não se lembrara do acontecido com o amigo até que este
voltasse a relatar. Até aquele momento, Norman não fazia ideia do plano que o
amigo iria propor, mas sua mente clareou para o que o amigo dizia.
Joseph Forbes novamente procurou saber se alguém os espreitava e continuou:
― Acho que já tem alguma ideia do que vou dizer.
Norman Legrand queria deixar que o amigo descrevesse suas ideias sem se
intrometer:
― Não, ainda não foi possível entender em que lugar o amigo quer chegar.
― Pois bem. Você deitará para dormir normalmente esta noite e deixará o teu
closet destrancado...
Norman Legrand sinceramente se surpreendeu com a descrição feita pelo amigo,
não era o que imaginava. Isto provava que duas cabeças pensando poderiam
levar a horizontes e dimensões distintas de apenas uma. Joseph Forbes deixou o
amigo pensar um pouco, mas percebeu que este ainda não chegara numa
conclusão definitiva:
― Vou dizer uma frase e você vai entender tudo...
Joseph Forbes falou num tom baixo e em código:

133
― Enquanto o inimigo feroz se aproximava, a atalaia escondida o fitava e o
aguardava.
Norman fez uma expressão de surpresa e apontou o dedo para o amigo:
― A atalaia no quarto seria você.
Joseph Forbes fez um sinal positivo com a cabeça.
― Exatamente.
― Enquanto eu finjo que durmo, você vai estar dentro do meu closet, obtuso, a
espreitar.
― Vejo que compreendeu bem o plano, mas é melhor não comentarmos mais
sobre.
Joseph Forbes deu uma palmada no ombro do amigo e se pôs a rir:
― Você pode até dormir se quiser, mas eu estarei a observar qualquer movimento
suspeito.
Norman Legrand se pôs a rir com o amigo. Era um plano genial que de fato
poderia lavar muita roupa suja. Mas era preciso em todo caso considerar o
descuido, um erro poderia ser fatal. Pensando melhor, o que o velho do hotel
poderia fazer com os dois? De um louco armado poderia se esperar tudo, homens
como o dono do hotel não se preocupavam em apodrecer na cadeia ou acabar na
cadeira elétrica. Por outro lado, Joseph Forbes possuía sua arma e seria muito útil
naquela noite, talvez.
Algo que era combinado com cautela e se tinha zelo em fazer tinha uma
probabilidade quase perfeita de dar certo. A mente de Norman Legrand calculava
os perigos daquela missão e um empecilho foi encontrado em suas reflexões:
― Me diga uma coisa. O que acontecerá se alguém adentrar o teu quarto primeiro
e constatar que você não está lá? Eu creio que vai desconfiar de algo.
Joseph Forbes não havia considerado tal possibilidade e o amigo tinha razão em
mencionar aquele empecilho, verdadeiramente Norman conseguira em apenas
poucas palavras relatar o perigo principal daquele plano. Mas não foi o suficiente
para Forbes se abater:
― Eu não vejo perigo naquele velho, estou pouco me importando se ele entrar no
meu quarto e não me encontrar. Ele que me mande embora do hotel.
Norman Legrand sorriu da ousadia e coragem do amigo que eram cativantes.
Definitivamente era hora de voltarem para o hotel. A neblina invadia o vilarejo e os
sinais da escuridão da noite começavam a se manifestar pouco a pouco criando
uma atmosfera desoladora. Um vento forte passou pelo vilarejo e se ouviu os
assobios das árvores, era como se fosse anunciada a breve chegada de alguma
surpresa trazida pela noite que deveria ser aguardada com cautela. Alguém que
não estivesse habituado à Pitfall teria vontade de correr naquele momento, em
modo de fuga.

134
― A noite se aproxima e o momento de voltarmos ao hotel para um banho é
chegado. ― Forbes informou.
Norman Legrand sentia uma contração na boca do estômago só de imaginar o
regresso ao hotel, a vontade de ir embora o mais rápido possível lhe dominou sem
piedade. Não era o velho do hotel que lhe provocava aquelas sensações, mas a
atmosfera oferecida por Pitfall naquele começo de noite.
Os dois se preparavam para voltar ao hotel quando algo chamou a atenção de
Joseph Forbes que colocou a mão no ombro do amigo chamando assim sua
atenção:
― Olhe disfarçadamente para a casa da esquerda.
A casa da esquerda estava sentido a última rua de Pitfall.
Norman Legrand sentiu um frio na barriga quando ouviu a voz tão diferente do
amigo, de um modo como nunca ouvira antes. Virou o rosto para fitar a cena, os
dois disfarçavam e olhavam atentamente para a tal casa.
Um homem vestido de juiz estava de lado para os amigos, dentro da casa. Usava
uma peruca branca antigamente usada por juízes, toga negra, óculos e tinha um
martelo na mão. Ele estava sentado em uma mesa olhando atentamente para
frente e se comportava como se estivesse julgando uma causa. O momento mais
espantoso foi quando o misterioso homem levantou o martelo e o bateu na mesa.
Era possível perceber que falava e gesticulava muito. Os dois amigos procuraram
se afastar do campo de visão do juiz caso ele fitasse a rua, depois com seus
olhares procuraram saber quem era o possível julgado, mas na área interna da
casa que podia ser vista não havia qualquer resquício da presença de outro
humano.
As mentes dos dois amigos estavam confusas, o que poderia explicar aquela
cena? Quem estava sendo julgado por aquele misterioso juiz?
A visão foi um choque para os dois que não conseguiram refletir por alguns
segundos. Por fim, Norman falou:
― Deve ser mais um louco do vilarejo. Por aqui não falta gente do tipo.
Joseph Forbes coçou a cabeça e concordou com o amigo:
― Não é tão anormal assim, ele pode estar simulando um julgamento. Embora
não for possível ver algum espectador na casa.
― Tem razão. Eu mesmo converso com as paredes às vezes. ― Norman procurou
normalizar o acontecido.
― É um hábito que todos temos. Mas proponho que deveríamos novamente voltar
ao poço, escondidos e estudar melhor a cena, algo me cheira mal.
Norman Legrand apesar de ter se identificado com o amigo, julgava que o mesmo
estava no começo de uma paranoia. O que ele teria visto de estranho na casa ou
no juiz misterioso?

135
― Eu vou observar o que se passa...
Norman Legrand achava arriscada a decisão do amigo. Forbes prosseguiu:
― Você fica aqui e me dá cobertura...
Joseph Forbes tirou um charuto do bolso e lançou próximo ao poço abandonado.
Esperou alguns segundos e foi em busca do objeto com passos lentos e
despreocupados.
Agachou-se para pegar o charuto e aproveitou para dar uma olhadela na casa
enquanto se levantava.
Suas pernas fraquejaram. Tomou um susto ao olhar a janela da casa. O homem
vestido de juiz estava com o rosto colado à vidraça da janela e fitava o poço
firmemente com o olhar absorto, estava em outra dimensão e parecia nem sequer
ter dado conta da presença do forasteiro. O misterioso homem aparentava ter
cerca de quarenta anos, mas seus olhos refletiam uma virilidade privilegiada.
Norman Legrand, de sua posição, tinha ciência da presença do juiz na janela e
percebera o acontecido. Fora incrível, mas no único segundo que Norman se
colocara a observar a ação do amigo rumo ao poço fora o suficiente para o juiz se
posicionar na janela como uma alma penada, seu coração quase saía pela boca.
Naquele momento tinha a certeza absoluta de que aquele homem vestido de juiz
não era normal. Ninguém tinha a velocidade de em um segundo dar alguns
passos e se firmar em uma posição tão enigmática.
Enfim, a intenção de passarem despercebidos ao estranho homem fora por água
abaixo. Sobrava apenas o caminho do hotel ou conversar com o homem que
aparentava não ser lúcido.
Joseph Forbes retornou à companhia do amigo e logo o induziu a seguir
caminhada, rapidamente.
― Agora tenho a certeza de que este vilarejo é mais estranho do que aparenta.
Acredito que aquele homem tenha escutado toda nossa conversa apesar da
distância e do tom baixo de voz que conversávamos.
Norman não concordava com o amigo, que deveria pensar que o homem vestido
de juiz procurava escutar a conversa pessoal dos dois forasteiros a fim de relatá-la
ao velho do hotel.
Joseph Forbes apressou os passos induzindo o amigo a imitá-lo. Quando estavam
quase tomando a ruela, olharam rumo à casa do misterioso homem. A cortina
estava fechada e o aposento estava mergulhado na escuridão. O acontecido
parecera um sonho, pesadelo em que o olhar firme de um desconhecido fora
capaz de causar inquietação.
Os dois forasteiros atravessaram a ruela e viraram à rua principal em direção ao
hotel, seus olhos sempre procurando por algum habitante nas ruas ou em alguma
vidraça de janela.

136
― Eu acredito que possamos estar periclitando. Não sei se percebeu, mas não
somos bem-vindos por aqui. ― disse Forbes.
Norman Legrand concordava que não eram bem recebidos e principalmente que
corriam perigo.
― Eu entendo e não me sinto seguro mais. Não compreendo como um lugar pode
abrigar tantas pessoas estranhas.
― Não podemos pestanejar um segundo sequer. Principalmente dentro do hotel.
― Forbes retrucou.
Os dois forasteiros se aproximaram do hotel. Seguiram para perto de seus carros.
A porta do hotel estava entreaberta e o saguão emanava apenas a luz da lareira
que bruxuleava na parede e refletia fora do hotel. Era uma visão medonha.
O incomodo apossou fortemente as sensações dos dois forasteiros. Joseph
Forbes escorou o corpo no carro de Norman, este, por fim ficou de frente para o
amigo.
O buick negro de Norman apresentava o rigor do frio. Suas latarias obtiveram uma
coloração esbranquiçada, a neblina tomava o vilarejo drásticamente.
Joseph Forbes em tom de voz baixo confidenciou seriamente com o amigo:
― Deseja dar o fora daqui? Basta entrar no hotel, subir as escadas, pegar teus
pertences e descer rumo ao teu carro. Não se esqueça de pagar o velho e se
certificar que nenhum objeto pessoal teu foi deixado para trás.
Norman Legrand sabia que o outro tinha um tom de seriedade em suas palavras.
O seu tão corajoso amigo estava com medo?
― Sinceramente já pensei sobre. Creio que pensa o mesmo. ― desabafou
Norman.
― Se engana, ficarei por aqui até o fim da minha planejada estadia.
Joseph Forbes transmitia firmeza em suas palavras. Norman não deixaria o amigo
sozinho naquele povoado.
― Eu também vou ficar até o fim da minha estadia. O velho quer o pagamento
apenas na hora da partida. Melhor assim, pois não desejo dar de cara com ele
outra vez. Sua grosseria me deixa inconformado.
― Controle-se. Espancar um velho vai te render um bom tempo atrás das grades.
Não é o melhor a se fazer. Lembre-se da atalaia.
― Temos uma combinação e não vou rompê-la. Pode contar comigo.
Joseph Forbes deu uma palmada no ombro do amigo.
― Você também pode contar comigo, amigo.
A porta do hotel rangeu fracamente chamando a atenção dos dois, aparentemente
foi a brisa gelada. Norman sugestionou ao amigo:
― É hora de entrarmos para nossa tão hospedeira moradia.

137
Joseph Forbes não evitou uma fraca gargalhada. Ambos seguiram o rumo do
hotel.
Norman ia à frente e foi o responsável por empurrar a pesada porta de madeira
que rangeu estrondosamente. Os dois forasteiros sentiram enorme fúria.
O ambiente era perturbador. O velho estava assentado na cadeira de balanço com
um jornal na mão, pareceu não se dar conta da entrada dos dois hóspedes.
Havia um castiçal com suporte para sete velas em cima do balcão da recepção.
Velas de prontidão completavam o castiçal, de modo que este estava pronto para
ser usado em toda sua capacidade de iluminação.
Com certeza o velho era precavido e deveria fazer uso frequente de tal apetrecho.
A luz que passeara pelo corredor na noite anterior deveria ser o castiçal banhando
o ambiente com a luminosidade das velas, provavelmente o velho fora o
transportador.
Os dois amigos seguiram lentamente rumo à escada. O velho continuava em sua
leitura. Talvez não quisesse atormentar os hóspedes.
Norman seguia na frente do amigo. Subiam a escada, atentos aos possíveis
movimentos do velho. De vez enquanto perlustravam o saguão para se
certificarem de que o velho não os olhasse ou seguisse.
Cruzaram a escada e tomaram o corredor sem que o velho os olhasse. Era difícil,
mas havia a possibilidade de terem passado despercebidos pelo saguão.
Norman sabia que se estivesse sozinho no hotel, sem a presença do amigo, já
teria dado o fora há muito tempo.
Chegaram rente à porta do quarto de Forbes que tirou a chave do bolso e colocou
na maçaneta.
― Nos veremos daqui a pouco. Pode tomar banho tranqüilo, se conseguir é claro.
― Daqui uma hora eu venho te chamar, darei três batidas rápidas na porta. ―
Norman retrucou.
― Combinado. Não se esqueça de trancar a tua porta e se algo tiver sido
modificado no teu quarto não te espantes. Eu tenho certeza que aquele velho
possui cópias das chaves.
Um ruído de algo pesado caindo soou no andar de baixo. Joseph Forbes sinalizou
para o amigo seguir para seu quarto rapidamente, sinal feito com repetidas
curvaturas da mão apontando o quarto ao lado, o do amigo.
Norman rapidamente seguiu a direção de seu quarto, pegou as chaves do bolso,
mas as deixou cair. Joseph Forbes assistia a cena, pois esperaria o amigo entrar.
Norman se agachou e pegou a chave rapidamente, colocou-a na maçaneta e
girou. Deu uma olhadela para se certificar se o velho não os observava. Joseph
Forbes e Norman Legrand entraram em seus quartos e trancaram suas portas
com uma sincronia quase perfeita.
138
Norman mergulhou na escuridão do quarto, começava a soar frio. Teria uma
surpresa ao acender a luz?
O medo por alguns segundos o paralisou, seus ouvidos tentavam captar algum
ruído dentro do aposento.
Por fim, criou coragem e acionou o interruptor. Rapidamente passeou o olhar no
quarto, nada de anormal poderia ser identificado, de fato, o quarto não fora
visitado ou nada havia sido modificado, era o que pensava.
Lançou a chave sobre o colchão e foi em direção ao banheiro.
Olhou a parede e ficou satisfeito ao estar cônscio de que o indesejável quadro da
criança morta deveria estar trancado no closet.
Tirou a camiseta e a calça jeans, jogou-os na cama cobrindo a chave. Entrou no
banheiro. Despiu-se das vestimentas inferiores e parou de frente para a banheira.
Sentiu náusea da casca negra que imperava naquele objeto que deveria oferecer
conforto aos usuários. Mas enfim, era normal para aquele hotel, tudo era possível
em um lugar como aquele.
Norman mergulhou um braço dentro da banheira e puxou a tampa que fechava o
cano de sucção, aos poucos a água descia. Norman assistia a cena e sentia a
chegada do sono. Dificilmente suportaria ficar aguardando alguém durante a
madrugada. Mas seu papel era dormir ou fingir que dormia. A tarefa difícil de vigília
noturna era com o amigo.
A banheira se esvaziou. Norman colocou a tampa e abriu uma velha torneira que
deveria encher novamente a banheira. A banheira, para sua sorte tinha a
capacidade de aquecer a água.
Faltava uma lareira nos quartos do hotel. Norman começava a sentir o frio lhe
dominar, que misturado ao sono o transformava em alguém quase indefeso, uma
presa de fácil captura.
A torneira demorou quatro minutos para tornar o nível da água significativo.
Norman entrou na banheira e se deitou.
O sabonete do hotel estava gasto quando chegara na noite anterior. Norman era
precavido e não andava sem objetos de higiene. Sem contar na dúvida que tinha
sobre a procedência do sabonete do hotel.
A água estava em uma temperatura que convenceria qualquer humano
permanecer o máximo possível na banheira. Norman tinha quase uma hora e
poderia desfrutar da água quente. Urinou demoradamente na água e sentiu
imenso alívio, a região da urina expelida se tornou mais quentinha e aconchegante
do que as demais. Seus olhos se recusavam a ficarem abertos, o dia fora
desgastante e o frio era amigo da preguiça.
Estava quase dormindo. Abria os olhos, mas rapidamente suas pálpebras
pesavam e o obrigavam a cerrar suas janelas da alma.

139
Norman dormiu com a cabeça escorada na borda da banheira. A torneira
permanecia aberta e o nível da água aumentava.
Quando o nível da água transbordou, Norman acordou sobressaltado com o ruído
da cascata da água se chocando com o chão. Rapidamente percebeu o que
acontecera e fechou a torneira. Levantou da banheira.
― Mas que mula eu sou!
Retirou a tampa e permitiu que o cano de sucção engolisse um pouco de água.
Sentiu o frio lhe dominar, acabara de sair da água quente e era óbvio que o frio
agiria mais intensamente.
Recolocou a tampa e tornou a se acomodar na banheira. Desta vez prestava
atenção para não dormir e atrasar seu banho novamente.

***

O começo da noite inundou o vilarejo na escuridão. Era uma tarefa difícil


conseguir enxergar a floresta de dentro das casas.
O vilarejo no período noturno tinha mais carência da presença humana nas ruas
se comparando ao dia.
O xerife Frank Silver e seu auxiliar estavam sentados frente à mesa do xerifado.
― E então. O que achou do novo forasteiro? ― questionou o auxiliar.
O xerife tinha o costume de bater sua caneta na mesa enquanto conversava. Uma
garrafa de café sobre a mesa, ajudada pelo tempo frio, exalava vapor no
ambiente.
― Ele não me pareceu encrenqueiro. Mas espero não estar enganado. Não
podemos tolerar mais bandoleiros por aqui.
O auxiliar continuava com a expressão séria desde o interrogatório:
― Ele não transmite uma imagem de quem procura encrencas. Mas eu acho
estranho o fato de primeiro chegar um e depois outro. Em pouco tempo se tornam
amigos confidentes a ponto de andarem para lá e para cá praticamente grudados.
― Ora essa. Eles são os únicos hóspedes do hotel e é normal manterem uma
amizade, e qualquer um pode chegar aqui a qualquer momento.
O auxiliar demonstrava não se contentar com as opiniões de seu superior.
― Não convenceram totalmente a mim.
― Nesse caso eu te outorgo o direito de seguir os passos dos dois.
O xerife falava com firmeza, como um sábio. O auxiliar percebeu em que lugar o
superior queria chegar. Parecia querer mostrar que o subordinado estava
enganado, este se manteve em silêncio.
― Pense comigo...

140
O xerife tirou seus óculos escuros e olhou nos olhos do outro.
― É mais fácil ficarmos de olho como quem não demonstra interesse em ações
suspeitas. Assim qualquer delito será facilmente percebido por nossos olhos. É a
velha história que diz para darmos corda e ver até que lugar uma pessoa é capaz
de ir.
O auxiliar parecia entender o ponto de vista de seu experiente chefe.
O xerife tornou a encher sua xícara com café e continuou:
― Entenda que se agirmos apenas com os olhos e os ouvidos, deixaremos o
possível suspeito ficar à vontade e se tiver que cometer algo, acredite, cometerá.
Compreende?
― A tua experiência é muito sabia.
George Conway ingressara recentemente no seu posto de segundo xerife e não
possuía o faro e a experiência do superior.
― Eu sinto que aqueles dois foram muito sinceros em suas palavras e não nos
darão trabalho. ― prosseguiu o xerife.
O auxiliar acatara de vez o ponto de vista do xerife. Se fosse para refletir, os dois
forasteiros inspiravam confiança. Mas não se podia esquecer que os maiores
criminosos transmitem uma imagem de mocinho ou de ovelha e é descoberto
apenas quando se tira a pele.
O xerife se levantou e bocejou de sono, pegou sua xícara e tomou uma golada de
café. O auxiliar permanecia sentado em sua cadeira, com as pernas esticadas e
escoradas na mesa.
― A noite será tranquila e não vejo a necessidade de você pernoitar aqui. Se
quiser pode ir embora. ― disse Frank.
Os dois se revezavam na tarefa de dormir no xerifado, caso algum habitante
precisasse de auxílio ou tivesse uma queixa, bastava bater na porta do xerifado
durante a noite que o homem da lei de plantão de pronto atenderia.
― Ficarei por aqui. Estou guarnecido de comida e cumprirei minha obrigação.
Quem sabe não surja alguma queixa. Não desejo que atrapalhem a tua folga
noturna.
O xerife riu-se das palavras sinceras do auxiliar.
― O que é mais fácil para alguém que mora perto da minha casa? Acordar-me ou
andar até aqui para te chamar?
As palavras do xerife faziam sentido. A experiência do homem da lei prevaleceu
nas decisões mais uma vez.
― Vou-me embora. A noite apenas começou, mas estou nocauteado de sono.
O xerife tirou seu chapéu e o pendurou em um suporte ao lado do armário. Seus
cabelos eram grossos e grisalhos, esboçavam respeito.

141
George Conway se levantou e despediu-se do chefe, este por sua vez se retirou
logo. O auxiliar não acompanhou o xerife até a porta, mas não demorou a fechá-la
e trancá-la. O frio penetrava com força no xerifado.
Apesar de o povoado ser pequeno, os homens da lei precisavam cumprir seus
turnos no xerifado, pois eram contratados do governo do estado da Flórida.
A noite seria longa para George Conway, demoraria algumas horas até o sono
chegar.
Ele aproveitou para tomar mais uma golada de café e calculava sobre qual horário
arrumaria sua cama. Um sofá improvisado que poderia ser arrastado da sala da
cela para o recinto principal do xerifado.
Vez ou outra destrancaria a porta e passearia o olhar pela rua principal que
concentrava a taverna, lugar mais movimentado do vilarejo, em noites frias
principalmente.
O solitário homem em silêncio estava mergulhado na calma da noite. De tal modo
era possível sentir a ação do frio com mais percepção.
Alguns livros estavam depositados numa prateleira do armário, seria uma boa
distração para o homem da lei que aproveitava para ler às vezes, a fim de
espantar a demora do relógio nas longas noites solitárias do xerifado.
A calma do vilarejo botava tédio no homem da lei que refletia na possibilidade de
fazer rondas na rua principal naquela noite. Ver o movimento da taverna de meia
em meia hora não iria matá-lo, do contrário, iria distrair sua cabeça.
A floresta com suas árvores de folhas inertes dominadas pela neblina intensa
pareciam dormir. Não havia como negar que era preciso um pouco de ação
naquela noite para não enlouquecer um homem sóbrio que estava a fazer o seu
trabalho, tranqüilo trabalho.

142
16

JOSIAS PARKER

A primeira ação de Josias Parker após o seu demorado banho foi ver seu reflexo
no espelho do banheiro. O objeto apresentava rachaduras nos cantos e
demonstrava o grau de relaxo do velho.
Morava sozinho e costumava não permitir a visita de alguém. Assim não teria
dores de cabeça ao ser motivo de chacotas e nem ficaria mal falado na boca do
povo. Mas afinal, tal preocupação não passava pela sua cabeça. Era um velho
desencanado com as opiniões alheias. Não por ter um bom autocontrole, mas pelo
motivo de se preocupar com absolutamente nada.
Gostava de viver sozinho em sua casa e não resistia um belo jogo de cartas na
taverna.
Estava sempre abastecido com seus charutos e possuía dois macacões de jeans
que não trocava por nada no mundo, e também não os tirava por nada no mundo,
somente no momento de se banhar.
Estudava sua fisionomia no espelho. Estava perto dos setenta anos.
Apresentava uma magreza que poderia ser confundida com anorexia e tinha uma
calvície que lhe deixara apenas alguns fragmentos das faixas laterais do cabelo.
Era sem dúvida uma visão muito hilária. Ele achava graça de si próprio e não tinha
vaidade na sua aparência.
Era com certeza aquele tipo de homem que nunca se preocupou em ficar bonito
para as mulheres. Sempre fora muito difícil agradar o público feminino, mas já
recebera assédios de mulheres querendo conhecê-lo e havia se casado há muitos
anos atrás. Detalhes que não colocaremos em pauta.
O velho começou chacoalhar o corpo que proporcionava uma imagem engraçada
no reflexo do espelho. Deu uma risada frenética, mas começou a tossir
repetidamente. Ria e tossia ao mesmo tempo. Conseguia fazer as duas coisas
sem esconder uma.
Abriu uma caixinha que estava sobre a pia do banheiro e pegou um pente de
bolso. O velho começou a pentear seus poucos e ralos fios de cabelos laterais.
Sentia um enorme prazer em estar quase pronto para ir à taverna.
O frio deu início à sua ação voraz e o velho começou a sentir suas consequências.
Era preciso acelerar o processo de se vestir.
Terminou de pentear inutilmente o cabelo que não tinha e guardou o pente.
Encaminhou-se rapidamente para seu quarto. Pegou o macacão pendurado e se
atrapalhou na hora de vesti-lo. O macacão grudava em sua pele molhada e estava

143
difícil de ajustar. Não era sempre que o velho Parker se enxugava depois do
banho, mais uma prova de seu relaxo.
Estava a ponto do nervosismo.
Levantou a perna esquerda para poder ajustar parte do macacão na perna direita.
Caiu pesadamente no chão, de lado. Começou a rir do acontecido, a tosse não
demorou a acompanhar a risada. Tinha o costume de se elogiar ironicamente.
― Ah, seu velho idiota. Velho guerreiro e gostosão.
Sua face apresentava uma vermelhidão peculiar conforme ria, a rouquidão de sua
voz aumentava gradativamente.
Permaneceu deitado na posição que tomara o tombo e deu continuação à sua
tarefa de se vestir.
Foi um processo lento e doloroso, a risada o atrapalhava, mas conseguiu ajustar o
macacão no lado direito do corpo.
Sua vestimenta ficou espalhafatosamente umedecida ao ter contato com a água
que estava atormentando sua pele.
Pôs-se de pé e começou a ajustar o macacão no lado esquerdo do corpo que
ofereceu uma rejeição menor do que o direito. O velho não tinha cueca lavada e
não usaria uma naquela noite.
Puxou o zíper e cerrou o macacão de jeans, se sentiu aliviado e confortado.
O macacão não seria o suficiente para protegê-lo do frio, grande parte de seu
peito estava descoberto devido à parte vazada da vestimenta, mas ele se
preocupava apenas em estar bem vestido.
Procurou a boina, não se lembrava em que lugar a colocara. Passeou o olhar pelo
quarto e não a viu. Deveria a ter esquecido perto da lareira.
― Depois eu pego aquela ingrata. ― resmungou.
Aproximou-se de uma cômoda e retirou uma caixa de papelão de uma das
gavetas.
Depositou a caixa em cima da cômoda. Seus olhos brilharam.
Acariciou os lados da caixa. Pegou-a e levou até a cama. Virou seu conteúdo no
colchão.
Centenas de cartas de baralho invadiram o seu leito. Aquilo era de dar inveja a
qualquer colecionador.
Possuía vários formatos de figuras ilustrativas no verso das cartas. Seu grupo de
cartas preferido era o que trazia ilustrações de diversos tipos de árvores.
O velho possuía um grupo com figuras de lutadores de luta-livre. Pegou uma das
cartas deste grupo e visualizou-a. O lutador apresentava o aspecto de um agente
funerário, horrível.

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Pegou a próxima e começou a tossir fortemente. Não conteve a risada ao ver a
carta que pegara. O lutador desenhado trazia uma reserva avantajada de gordura:
― Vai ganhar o torneio deste ano. Aposto em você campeão.
O velho falava como se os lutadores pudessem o ouvir. Soltou a carta, misturando-
a no bolo aleatório e pegou a próxima em que um lutador calvo com cabelos loiros
grandes nas laterais e barba não menos loira arregalava os olhos:
― Queria ver você pegar eu, Hulk Hogan.
Não conteve um frenético riso. Já estourara a cota de risadas do dia. Era melhor
deixar de ver as cartas e fazer o que faltava.
Soltou o grupo de cartas que tinha em mãos e começou a procurar algo no meio
do bolo. Esperava encontrar um grupo semelhante ao que usavam para jogar na
taverna. Como o baralho era o único que o taverneiro tinha, não havia perigo de
ser pego de surpresa ao usufruir de suas trapaças.
Encontrou uma das cartas que desejava. A ilustração de fundo mostrava algumas
tiras vermelhas intercaladas. Era idêntica ao baralho do taverneiro.
Separou a carta que era um às de espadas e continuou a mexer no bolo.
Fora um tremendo idiota ao misturar novamente as cartas que usava todas as
noites no bolo infinito. Pensou na noite anterior que o lenhador ficara tão nervoso
que não jogaria mais na roda da taverna. E que viesse outro freguês perdedor e
reclamador.
Precisava encontrar outras três cartas. Encontrou-as alguns segundos depois.
Estavam juntas.
Beijou a frente de uma delas e soltou uma gargalhada, a tosse não demorou a
acompanhar a risada violenta do velho.
Depositou as cartas encontradas sobre a cômoda e abriu a última gaveta, a mais
próxima do chão. Retirou um carretel de linha de costura com uma agulha
espetada.
Nem mesmo se preocupou em fechar a gaveta. Colocou-se a trabalhar. Passou a
linha no buraco da agulha e abaixou o zíper do macacão novamente, até a cintura.
Precisou esticar o braço para alcançar uma tesoura que estava em cima da
cômoda.
Observou a parte interna do macacão. Haviam quatro bolsos mal costurados e
embaraçados com linha. Em um deles havia uma bolota de linhas emaranhadas
do tamanho de uma bola de beisebol. Não havia perigo de alguém perceber a
costura mal feita pelo velho, pois os bolsos internos estavam rentes e quase
simétricos aos bolsos externos.
Josias Parker se pôs a tentar remendar o bolso interno superior, do lado esquerdo.
A situação parecia piorar, pois o velho manejava muito mal a agulha. Era como se
disparasse tiros no escuro.

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O bolso quase chegou a cair. O velho ficou nervoso. Eram raras as vezes que ele
não ria em situações adversas.
Conseguiu traspassar a agulha em um ponto desejado e começou a se empolgar.
Seu rosto demonstrava que a situação mudara e a sorte estava do seu lado.
Terminou o ponto desejado. Era necessário mais um cruzamento de linha para
firmar o bolso, destino das cartas ocultas.
Josias Parker possuía um orgulho sem tamanho. Seu orgulho era capaz de tampar
a boca de um vulcão. Poderia estar dialogando com uma autoridade máxima que
até mesmo nesta situação teria um olhar altivo. Sua pior qualidade era a de não
saber se portar como homem na sociedade, levava tudo na brincadeira, zombava
de tudo e de todos.
Lembrou-se da placa que fizera a pedido do xerife enquanto começava a costurar
o segundo bolso. Novamente deu uma gargalhada seguida de incessante tosse. A
placa fora coisa de cinema. Não ouvira uma pessoa comentando sobre a placa,
mas sabia que o xerife ao tomar conhecimento de seu trabalho mal feito de
propósito, ficaria aloprado.
Conseguiu cumprir a meta no segundo bolso e ficou mais satisfeito do que antes.
O terceiro bolso não precisaria de remendo. Seu alvo era o quarto e último. Depois
bastava comemorar o trabalho feito e missão cumprida.
Precisou passar mais um pedaço de linha pelo buraco da agulha e fez sem
pestanejar tal ação. Estava concentrado no seu serviço e imaginando a cara do
lenhador ao continuar perdendo partidas atrás de partidas. Pensando melhor,
poderia deixar que o inconformado adversário ganhasse uma ou duas para dar
uma despistada. Depois era só continuar vencendo e zombando como um
campeão.
Terminou de consertar o último bolso e depositou os artefatos usados em cima da
cômoda. Quando voltasse poderia guardar sua bagunça de cartas. Não tinha
pressa para dormir.
Sentia o frio lhe incomodando, mas se julgava macho e viril o suficiente para
suportar.
Sentaria do lado da lareira na taverna como todas as noites e esqueceria o frio
durante o jogo. O velho era bom de papo quando a arte em questão era trapacear
para vencer.
Depositou cada carta em seu devido bolso no macacão e tornou a subir o zíper.
Correu se olhar no espelho do banheiro e ficou feliz em constatar que seu truque
não seria descoberto tão facilmente. Aliás, seria impossível desde que tomasse
todas as precauções.
Caso o lenhador quisesse tirar-lhe o macacão para se certificar da existência de
caminhos secretos, seria taxado como homossexual e passaria vergonha na frente

146
dos presentes. Era mal visto quem procurava despir um alheio, do mesmo sexo. O
lenhador era imprevisível e capaz de tudo na fúria, mas o velho Parker era apto a
afetar um bom psicológico e viraria a situação facilmente.
Josias Parker voltou ao quarto para vestir um sapato marrom gasto pelo tempo.
Cumpriu esta tarefa com agilidade.
Naquele momento bastava aguardar alguns minutos sentado em sua cadeira de
balanço ao lado da lareira e quando o momento de ir à taverna chegasse, pegar
seu caminho.
Não possuía o costume de trancar a porta principal da casa, somente no horário
de dormir. Nem sequer se lembrava em que lugar deixara o molho de chaves.
Desceu correndo a escada rumo à sala de estar, o cômodo de entrada da casa.
Passeou o olhar pelo aposento e encontrou a boina jogada em cima de sua
cadeira de balanço. O molho de chaves estava coberto pela boina. O velho soltou
uma gargalhada ao encontrar os dois objetos necessários com facilidade. O
mundo conspirava a seu favor.
A tosse o dominou em pouco tempo, mas as risadas continuavam.
Sentou-se na cadeira de balanço e acendeu um charuto. Começou a fitar a porta e
balançar a cadeira brandamente, para não sentir enjoo.
Percebeu a escuridão que dominava o mundo exterior através da janela, que
apesar da cortina cerrada demonstrava a voracidade do verdadeiro apagão que a
floresta proporcionava ao vilarejo.
Josias Parker morava na segunda rua do vilarejo e na casa atrás do xerifado. Era
um dos habitantes mais antigos de Pitfall.
Seu semblante estava sério e seu olhar absorto. Já tinha as manhas das suas
trapaças e precisava apenas esperar o momento certo de usufruir da ação
proibida. Gostava muito do modo como o principal adversário de cartas ficava
enfurecido.
Sua boca distorceu e se converteu em uma risada, o velho começava a achar
graça de seus pensamentos que vagavam pelos caminhos mais imprevisíveis e
tomava conclusões mal refletidas.
Um ruído soou e quebrou o silêncio da noite em seus ouvidos. Batidas tímidas
eram dadas na porta de sua casa. O velho parecia saber de quem se tratava.
― Pode entrar, seu monte de merda.
Olhava firmemente a porta com um sorriso estampado no rosto. A porta foi aberta
lentamente e um homem mal vestido entrou. Era o andarilho do cabelo cor de mel.
O andarilho estava com um semblante de quem estranhava as palavras ouvidas.
Foi o suficiente para o velho soltar uma gargalhada com vontade, fumava e tossia
enquanto ria. A fumaça de suas baforadas dominava o perímetro da cadeira de
balanço.

147
O andarilho fechou a porta timidamente e fitou o velho com firmeza, uma feição de
vergonha estampada em seu rosto.
― O que foi? O gato comeu a tua língua? ― perguntou o velho.
Josias Parker deu a risada mais forte do dia. Não se podia explicar o motivo de
tanta vontade de rir que dominava o velho a todo o momento. Talvez julgasse os
seus semelhantes inferiores, muito inferiores a si próprio.
O andarilho sorriu timidamente, se divertia com a risada do velho que acabara de
lhe agredir verbalmente.
Josias Parker tinha ciência de que o recém-chegado não podia falar e se
aproveitava de sua fragilidade para uma boa piada. O andarilho, por sua vez, tinha
um coração bom e não guardava ressentimentos do velho ignorante que sempre o
abrigava.
O recém-chegado se aproximou do velho e continuava o fitando firmemente.
― Afasta-te de mim, posso sentir teu mau cheiro. Andou se enrolando pela
floresta?
O som da gargalhada foi tão alto que poderia ser ouvido nas casas vizinhas. O
andarilho se sobressaltou e fez a vontade do dono da casa, se afastou dois metros
para o canto esquerdo do aposento.
Josias Parker conhecia as necessidades do andarilho e sabia o que o mesmo
queria. Mas, não deixou de perguntar:
― O que deseja aqui? Não diga que me acha um velho gostosão.
O andarilho sorriu e fez o sinal de não com o dedo indicador. Gesticulava de uma
forma confusa que desejava comer e um lugar para dormir. O velho achou graça
da afobação do visitante, riu e tossiu enquanto baforava o charuto.
Novas batidas foram dadas na porta. O andarilho se sobressaltou e olhou para o
dono da casa com um olhar de medo. O velho Parker não sabia de quem se
tratava e fechou o semblante. Fitava a porta e parecia calcular algo seriamente.
― Pode entrar, seu saco de estrume.
A porta não foi aberta. Quem estava do lado de fora ouviu as palavras do velho e
as ignorou.
O andarilho foi até a porta e a abriu. O padre entrou com o rosto distorcido pelo
disparate que ouvira, mas não teceu comentários sobre. O velho olhou para o
rosto do novo recém-chegado e gargalhou parecendo combinar as palavras ditas
por si com o possível semblante do padre ao escutá-las do lado de fora.
O padre olhava com desdém para o dono da casa e esperou até que a gargalhada
do velho amainasse para dizer:
― Eu vim convidá-lo para a santa missa de amanhã de manhã. Mas creio que não
és capaz de receber bem os teus semelhantes.

148
O descontentamento do padre somente ajudou aumentar a força da graça que o
velho sentia de toda aquela cena, sua gargalhada ganhou mais fúria. Mas a tosse
o dominava na mesma proporção e cortava o riso vez ou outra. Nem sequer
conseguia colocar o charuto outra vez na boca.
O padre abraçou a cintura do andarilho fraternamente e continuou:
― Aliás, o convite é feito para os dois. Mas apenas os humildes recebem de bom
grado as palavras de um representante da mãe igreja.
O padre mencionava o andarilho como humilde e procurava abrir os olhos do
anfitrião que cada vez mais aumentava sua risada das palavras do padre. A voz de
indignação e desprezo do padre era o ápice de tudo o que o velho Parker poderia
ouvir em um momento de descontração.
O padre permanecia olhando o velho de modo indignado. O andarilho se divertia
com a situação.
― Só quero te dizer uma coisa senhor Parker...
Parecia não haver remédio, quanto mais o padre falasse mais o velho riria. Talvez
fosse melhor se retirar, mas a sua missão era a de ter paciência em qualquer
situação.
― Só quero te dizer senhor Parker, que é melhor ouvir do que falar e não se
zomba de um representante como eu...
O velho Parker perdeu as forças da mão e largou o charuto que caiu no chão. O
anfitrião parecia que morreria de tanto rir. Seu rosto estava todo vermelho e
apresentava contrações com a mistura da risada e da tosse.
O padre decidiu esperar algum tempo em silêncio para poder dar continuidade ao
seu sermão, mas seu rosto de indignação e desprezo era motivo de risos.
Josias Parker foi voltando ao normal cerca de um minuto depois. O padre
percebeu que era o momento de retomar a palavra.
― Deixo o convite e faça bom proveito.
O anfitrião queria responder e precisou se controlar por um momento antes de
continuar a incessante risada:
― Você não me tapeia. Não conseguirá extorquir o meu dinheiro com estratégias
religiosas.
O padre chegou ao ponto de ficar irado com a forte risada que voltou a surgir na
pessoa do velho. Era o momento de dar um basta na sua visita, pois tinha um
jantar com pessoas iluminadas logo mais.
A casa do velho Parker era sempre a última que o padre visitava e nem sempre
fazia tal visita. Era melhor deixar a tarefa mais difícil para o lugar derradeiro da fila,
mas acabara de se convencer que o grau de dificuldade chegava ao status de
impossível diante da situação.
― Eu não tenho paciência para lidar com velhos raquíticos.
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O padre se retirou com um semblante que nunca deveria dominar um
representante da santa igreja. Tomar o seu caminho foi o melhor a se fazer.
Esperava a presença do andarilho na missa.
Pôde constatar que a gargalhada do velho não cessara, mesmo estando alguns
metros da casa que não gostava de visitar.
Josias Parker cessou de rir, pois os músculos de seu rosto já chegavam ao
patamar da cãibra. Pegou seu charuto, colocou na boca e se levantou. Era hora
de ir à taverna.
― Ninguém merece uma visita tão engraçada como a do padre! Ele ainda me
mata do coração!
O andarilho sorriu das palavras do anfitrião e confirmou com a cabeça. O velho se
virou rumo à cozinha e chamou o andarilho:
― Vou te mostrar uma coisinha, vem comigo.
O andarilho seguiu o anfitrião, seu estômago roncava de fome.
Chegaram à cozinha. Josias Parker pegou um pote dentro do armário e
destampou, apontou para o andarilho de forma para que o mesmo pudesse ver o
conteúdo do pote:
― Isto serve para você?
O andarilho se assustou com a visão. Um grande pedaço de pão extremamente
dominado pelo bolor, o pote apresentava inclusive teias de aranha em seu interior.
Josias Parker não conteve a gargalhada e o charuto parou novamente no chão, o
andarilho se alegrou com o bom humor do velho que tornou a tampar o pote e
depositá-lo no armário.
O velho esmagou o charuto com o pé esquerdo, não conseguiria fumar com tanta
gargalhada.
― Não tenho culpa de achar tanta graça da cara do padre.
O andarilho fez sinal positivo com a cabeça, sempre concordando.
O anfitrião se encaminhou para um aposento contíguo. Uma despensa de
alimentos. O visitante seguia o anfitrião em qualquer lugar que fosse.
Josias Parker retirou um pacote de biscoitos de uma caixa e entregou na mão do
andarilho que não conseguia esperar a chegada da hora de poder comer.
― Biscoito é para os fracos, se quiser uma comida de macho é só falar...
O andarilho aceitou a ideia do anfitrião com um sinal positivo com as mãos, mas
segurava firmemente o pacote de biscoitos, contrariado.
O velho puxou uma pequena escada e subiu dois degraus para alcançar uma
caixa localizada na parte de cima de um armário. Retirou um pote de creme de
amendoim e lançou na mão do visitante. Desceu a escada.
― É o seguinte, não vou te dar comida de macho...

150
Pigarreou e continuou:
― Você pode se queimar no fogão ou mandar minha casa pelos ares. A comida de
macho precisa ser frita e fica para outro dia, não perderei mais do meu preciso
tempo com um lixo como você.
O anfitrião começou a sentir certo grau de inquietação quando se lembrava da
taverna. Precisava ir imediatamente para a mesa de jogo. Retirou-se da despensa
e tomou o rumo da sala para pegar seu pacote de charutos. O andarilho o seguia.
Josias Parker se virou para o visitante e deu as últimas instruções:
― Coma biscoitos com creme de amendoim. Nem sonhe em ligar o fogão ou
acender a lareira. Vai ao meu quarto e retire o colchão que está dentro do closet.
Pode tomar banho, sei que não gosta, mas milagres acontecem.
Gargalhou fortemente e tornou a sentir os músculos da face cansados de tantas
risadas.
Alguns segundos depois, o anfitrião pôde dar a palavra final:
― Enquanto eu estiver fora você é o macho da casa e responsável por ela.
Portanto, cuide bem do que é meu, seu orelha de asno.
Ele não economizou energia para gargalhar na taverna, pois as tinha de sobra.
Josias Parker se virou rapidamente para a porta e se retirou, gargalhava
fortemente de suas últimas palavras. Trancou a porta e tomou o rumo da taverna.
O andarilho podia ouvir sua gargalhada a metros de distância.

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17

JANTAR NA CASA DE BRENDA

Norman Legrand fumava um cigarro olhando a rua principal através da janela de


seu quarto. Não vira qualquer movimento humano. Nem mesmo alguém se
encaminhando para a taverna.
O frio embaçava o vidro da janela. Terminou o cigarro e rapidamente vestiu o
casaco emprestado pelo seu amigo do quarto ao lado. Sentia-se mais seguro e
potente tendo a companhia de Joseph Forbes e sabia que o amigo compartilhava
de tal sentimento. Sentindo o mesmo.
Era como um policial que estava mais seguro tendo outro dando cobertura.
Estava usufruindo, talvez, do momento mais tranquilo do dia. Por mais incrível que
parecesse, o banho no hotel relaxara seus nervos e aliviara suas tensões.
Sentou-se na cama e vestiu suas meias. Seus pés estavam congelando e foi
necessário que os protegessem da ação voraz do tempo frio.
Não demorou em calçar seu par de tênis e se levantar. Chegava a hora de ir à
taverna.
Queria ter certeza que o quadro misterioso da criança morta estava trancado no
closet. Pegou a chave e destrancou o cadeado, esperou alguns segundos,
precisava respirar. Apalpou a parte mais alta do closet que era usada para
depositar cobertores e edredons e sentiu a borda de madeira do quadro. Sentiu
um calafrio e tornou a trancar o closet rapidamente.
Lembrou-se do plano ousado que o amigo inventara. Se o velho desconfiasse de
algo ou descobrisse que o amigo não iria pernoitar em seu devido quarto, seriam
expulsos do hotel. Mas qual era o problema? O velho não pediu tal requerimento e
não podia cobrar qualquer atitude dos hóspedes. O importante era estar dentro do
hotel no horário solicitado e quem quisesse que dormisse na rua.
Norman Legrand refletia que o velho tinha certa razão em exigir um horário de
chegada para os hóspedes, pois se distribuísse uma cópia da chave da porta do
saguão para todos os hóspedes, haveria um imenso tumulto, tudo se tornaria
bagunça e poderia haver a perda do valor chamado respeito. Sem contar que as
portas do hotel rangiam tão alto que poderiam competir com o estrondo do sino da
igreja, acordando assim, quem quisesse uma noite de paz.
Uma questão passou pelas suas reflexões. Em que canto do hotel o velho dormia?
Talvez a salinha rente ao saguão fosse o quarto do velho.
Dissipou tais pensamentos e voltou ao banheiro para escovar os dentes. Estava
com pressa, mas aprendera desde criança a fazer uma escovação completa e
satisfatória. Seu pai lhe dera esta lição que levava por onde quer que andasse.

152
Estava um pouco atrasado e se encaminhou para a porta de seu quarto
rapidamente. Pensou em fazer um teste para quando regressasse, deixou a luz
acesa e saiu do quarto. Trancou a porta e tomou o rumo do quarto do amigo. O
corredor estava banhado na escuridão.
Era possível distinguir pouca coisa. Norman se sentiu perturbado. Alguém poderia
estar parado no corredor, oculto, observando quem transitasse por ali. Deu três
batidas na porta do amigo e aguardou.
Ouviu o som de um pingo se chocando com um objeto sólido, tudo era silêncio. O
som parecia vir do reservatório.
O que haveria no reservatório? Caixas empilhadas? Móveis antigos? Seria um
cômodo vazio e decrépito?
Imaginar tais perguntas transtornava os nervos de Norman.
Preparou-se para dar novas batidas na porta do amigo, mas não teve tempo. A
porta se abriu.
Joseph Forbes puxou o amigo para dentro do aposento e trancou a porta
rapidamente.
Norman Legrand foi o primeiro a dizer algo:
― Você demorou a abrir a porta, já estava sentindo calafrios daquele corredor
escuro.
Joseph Forbes sentiu pesar pela queixa do amigo, mas ironizou:
― Fantasmas passeavam pelo corredor...
― Não estou brincando. Experimente andar por aquele corredor escuro e sentirá o
drama.
Joseph Forbes sorriu do amigo.
― Me desculpe. A calça deu trabalho para encaixar no meu corpo privilegiado.
Norman Legrand não segurou o sorriso. Afinal, o amigo não tinha culpa se o hotel
era um verdadeiro hotel do espanto e não possuía iluminação no corredor.
― Você não tem culpa. Eu não deveria parar em Pitfall para passar a noite
anterior. Mas como não vi uma cidade há muitas milhas, fiquei preocupado e
bastava uma cabana abandonada que fosse para eu passar a noite. Não sei se
me entende...
― É lógico que sim. Eu passei pelo mesmo transtorno e precisei me hospedar no
pior hotel do planeta.
Joseph Forbes vestiu o casaco e trancou o closet, se virou para o amigo e disse:
― O nosso plano está de pé e tenho certeza que poderá esclarecer alguma coisa.
― Eu torço para que você não durma dentro do closet.
Joseph Forbes fez sinal para que o amigo falasse mais baixo. Norman percebeu
que exagerara na altura da voz:

153
― Desculpe-me. Aqui não é o local apropriado para este tipo de conversa.
― Tem razão e é por isso que vamos rapidamente para a taverna, jantar e ficar um
pouco distantes deste hotel.
Joseph Forbes penteou a cabeleira.
― Estou pronto. Vamos.
Forbes tomou a dianteira, destrancou a porta e apagou a luz. Um breu épico,
digno de nota, invadiu o local.
Forbes girou a cabeça noventa graus para fitar o corredor. Talvez seus olhos
tivessem se acostumado com a escuridão e fosse possível saber o que se
passava no escuro recinto. Mas o corredor continuava banhado em um breu
misterioso e a perturbação de Norman se elevou.
Os dois amigos saíram. O hóspede do quarto trancou a porta sem dificuldades em
encaixar a chave na maçaneta. Parecia um verdadeiro perito no assunto, apesar
da escuridão.
Era possível notar um bruxulear de luz que parecia vir da lareira do saguão. Pelo
menos os degraus da escada estavam visíveis e poderiam ser a perdição apenas
de alguém que enxergasse muito mal.
Os dois hóspedes se encaminharam para perto da escada, mas se ocultaram da
visão do saguão. O velho não conseguiria notá-los na posição que se
encontravam.
Forbes cochichou no ouvido do amigo:
― Vamos dar um tempo aqui. Sinto que possamos ouvir algo...
A espinha de Norman congelou em pensar que o velho poderia estar de tocaia no
corredor escuro. Apenas achando graça da atitude dos dois. Era um pensamento
perturbador.
Desejava dar o fora do hotel e ir à taverna, mas o amigo estava entretido no
silêncio que dominava o local.
Os dois hóspedes estavam encostados na parede como soldados que esperam o
momento de atacar o pelotão inimigo. Inimigo que não conheciam e que não
hesitaria em julgar duramente os adversários.
Algo perturbava no hotel, na atitude do velho e em toda Pitfall. Tudo aquilo parecia
um verdadeiro pesadelo para Norman.
Joseph Forbes bateu fracamente no braço do amigo. Era o momento de descer a
escada e ir à taverna.
Seguiram lentamente. Pisaram no primeiro degrau de cima. Tiveram uma visão
ampla do saguão.
Norman ficou aliviado ao perceber que o velho estava sentado em sua cadeira de
balanço, dormindo com a boca aberta. O jornal no colo.

154
Os dois se animaram e agilizaram os passos, mas alguns degraus estavam muito
gastos e rangiam. Talvez houvesse um exército de cupins habitando as madeiras
do hotel.
Chegaram ao saguão e fitaram firmemente o velho que dormia. A lareira crepitava
e aquecia o ambiente.
Não queriam acordar o velho e com calma se encaminharam para a porta que
estava aberta com uma pequena fresta. O frio da noite entrava, mas era
neutralizado pela chama da lareira.
Norman virou a cabeça e fitou o aposento que deveria ser o quarto do velho. A
porta estava fechada.
Um par de espadas entrecruzadas penduradas na porta do aposento
desconhecido lhe chamou a atenção. Não era possível distinguir se o objeto era
original ou um adorno da porta. Mas era um assunto que deixaria para depois, em
motivo de o amigo ter tomado a dianteira no saguão.
Forbes puxou a porta e a abriu. Um ranger dominou o ambiente.
Olharam para o velho e ficaram satisfeitos em constatar que ele não acordou.
Talvez estivesse fingindo e como uma sábia coruja, estudasse os passos alheios.
Os dois hóspedes se retiraram do saguão. Forbes puxou a porta e a fechou, era
pesada e rangia violentamente, mas se o velho acordasse, não os encontraria no
hotel.
A neblina imperava na rua principal, não era possível ver a floresta.
Era impossível não pensar que humanos estavam à mercê de qualquer coisa no
vilarejo, se uma fera estivesse passando pela rua, não poderia ser vista.
Os dois amigos se encaminharam para a taverna. Não tinham boas lembranças da
noite anterior, mas era o lugar do vilarejo que mais lhes proporcionava paz e
segurança.
Forbes pegou a mão do amigo e o fez apalpar sua cintura:
― Entende o que quero dizer?
Norman percebeu que se tratava da arma do amigo. O casaco de Forbes
apresentava tanta folga no tamanho que não era possível distinguir a arma.
Norman não vira o amigo colocar a arma no casaco. Talvez já estivesse encaixada
em um bolso interno e oculta anterior à sua última visita ao quarto do outro.
― Compreendo. Pode ser útil caso a luz verde torne a perambular perto da
taverna.
Forbes soltou a mão do amigo. Estavam perto da taverna.
― Eu não tenho medo daquela luz verde. Eu a encaro de frente.
Norman sorriu da colocação do amigo que falava em tom sério.

155
Chegaram à taverna. Norman empurrou a porta de vai e vem. Os dois estudaram
o ambiente antes de procurarem uma mesa.
Quatro homens, os mesmos da noite anterior jogavam cartas distraidamente.
Parecia ser o início do jogo, pois o fortão acabava de tirar as cartas da caixinha.
O taverneiro estava de pé atrás do balcão. Anotava algo em um bloco de notas.
Nenhum dos cinco presentes percebeu a chegada dos dois.
Norman olhou para as cabeças de animais empalhados e calculou que parecia um
adorno digno do hotel de Pitfall.
O velho e sinistro hotel.
Andaram até a mesa de costume e se sentaram. O taverneiro os olhou e se
encaminhou para atendê-los. Provavelmente notara que alguém chegou, mas
aguardou até que se acomodassem.
O taverneiro pegou o bloco de notas, virou uma folha e preparou a caneta para
escrever:
― O que desejam comer nesta noite fria?

***

A mesa acabava de receber todos os seus convidados. De um lado, o padre e os


pais de Brenda, e do outro, Brenda e os dois homens de sua vida.
Ronald Malone sentara de frente para o sogro. Brenda de frente para a mãe, nos
lugares do meio, e o padre de frente para o pequeno filho do casal que oferecia o
jantar.
Todos possuíam um prato e um jogo de talheres à disposição e a mesa estava
perfeitamente enfeitada.
Brenda tomou a iniciativa e se preparou para servir o jantar:
― Servirei o macarrão.
Serviu primeiro o padre, depois seus pais, seguidos do filho e do marido. O padre
procurou ser gentil:
― Tenho a certeza que esse macarrão está delicioso. Já posso cheirar o capricho
que foi usado para prepará-lo.
― Obrigada pelo elogio, santíssimo. É um prazer receber minha família, quanto
mais com a tua ilustre presença.
O velho Harter estava com olhar de timidez e obtuso à conversa. Podia-se
imaginar que a vergonha que sentia do padre e o desprezo pelo genro somavam-
se e produziam uma bomba explosiva chamada acanhamento que poderia
estourar a qualquer momento e provocar uma situação calamitosa.

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O pequeno Sonny era o que mais sorria de todos, mas se portava como gente
grande e não cortava a conversa dos adultos. Nem fazia perguntas idiotas como
seu avô.
Audrey Harter acariciou o braço da filha que servia o macarrão:
― Que Deus abençoe a minha filha querida por nos proporcionar este momento
de alegria em meio a esta noite friorenta.
Brenda retribuiu com um sorriso o reconhecimento da mãe e continuou a servir
com prazer.
O senhor Harter fitou a esposa, seu semblante estava gravemente sério. O padre
se apercebeu disto:
― Não está passando bem, senhor Harter?
O velho ficou com sua vergonha mais agravada. O que responderia para o padre?
Embaraçou-se, mas conseguiu esboçar uma resposta que a princípio soou
confusa:
― O frio me deixa sonolento. Acho que minha pressão cai em noites muito frias.
Sua esposa se preocupou, mas sentia que era mais uma das mentiras do marido:
― É melhor chamarmos o médico. A pressão descontrolada é perigosa e deve ser
cuidada.
O velho negou com a cabeça. Estava de cabeça abaixada e não fitava os
presentes:
― Não precisa, a comida vai me curar. Talvez seja fome.
A lareira crepitava e era a principal aliada dos humanos naquela noite fria.
Brenda se preocupou com o pai e começou a servir o frango. O padre decidiu ser
o último a receber um pedaço suculento do frango cujo tempero aspergia um
aroma delicioso:
― Sirva-me por último, por favor.
Brenda estranhou a atitude do padre:
― Nada disso. Qual é o teu pedaço preferido, santíssimo?
O padre se envergonhou. Não podia continuar negando:
― Que seja. Eu gosto da coxa...
Gostava de ser chamado de santíssimo, não pelo nome em si, mas demonstrava
sua responsabilidade com a igreja e seu zelo com os membros.
Brenda espetou uma enorme coxa com o garfo. Já cortara o frango em pedaços
antes da chegada dos convidados ilustres. Depositou a coxa no prato do padre
que transbordava macarrão.
Ronald Malone sentiu pela vida do frango, mas não deixaria de abocanhar com
vontade um pedaço avantajado em carne e suculência por nada no mundo. Aquele

157
assassinato não poderia ser desfeito, se caso o frango ressuscitasse, não teria a
capacidade de sequer caminhar.
Brenda serviu todos com pedaços de frango. Seu filho ficou com a outra coxa.
Seus pais gostavam de fatias do peito e seu marido se contentou com uma asa e
uma fatia do peito. Brenda, por sua vez, pegou alguns pedaços da pele.
― Sirvam-se à vontade do pão recheado com bacon. Aconselho comerem o
macarrão e o frango primeiro, pois o pão está um verdadeiro manjar e vai fasciná-
los, assim se fartarão de pão e se esquecerão do meu bom macarrão.
Brenda sorria com satisfação e se preparava para comer. O pequenino falou pela
primeira vez:
― Mãe, estou com medo.
A mesa parou, os barulhos de talheres cessaram. Todos olharam para o menino
com o olhar de quem estranha, estavam intrigados. Brenda perguntou, com
vergonha do padre:
― Medo de quê?
O menino não sabia definir a razão de seu medo, mas não hesitou em responder a
primeira coisa que lhe veio à cabeça:
― Medo do frio. Ele é mal.
Um alívio tomou conta de todos que sorriram. O padre esticou o braço e acariciou
a vasta cabeleira do menino:
― O frio não é mal. Ele apenas ajuda a espantar o calor que o sol traz durante os
dias de inverno. Já pensou se fizesse calor todos os dias? O mundo pegaria fogo
ou seria como o sol, por exemplo. Assim, não estaríamos vivos. Graças ao Criador
podemos regozijar das variações de temperatura.
O menino abaixou a cabeça e se mantinha sério, não soube como se expressar:
― Eu não gosto do frio, o vovô está ruim por causa dele.
Foi a vez de Ronald acariciar os cabelos do filho:
― Todos odeiam o tempo frio. Mas basta se agasalhar adequadamente e mostrar
uma banana para ele.
O velho Harter resolveu expressar uma opinião para não se passar por chato,
como quem não se preocupa com a criança:
― É verdade esquilibrizinho. O frio tem medo de agasalho e um bom casaco pode
mandá-lo para bem longe. Você ainda deve ter aquela coberta dos escoteiros que
te dei...
O menino se contentou com as respostas, mas permanecia sério. O padre
sugestionou:
― Vamos fazer uma oração antes de comer?

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O velho Harter já estava com a boca manchada de molho de tomate e requeijão,
procurou disfarçar. O padre havia se esquecido da oração e não se preocupou se
alguém houvesse se alimentado com alguma garfada.
Todos abaixaram a cabeça e fecharam os olhos. Alguns segundos depois o padre
disse:
― Amém.
O jantar começou de fato e barulhos de garfos se chocando com os pratos
soavam no ambiente.
Audrey Harter olhou para o genro e perguntou:
― Anda caçando ultimamente?
Era a pergunta que Ronald precisava receber para perder a fome. O velho Harter
olhou para o genro como quem dá um xeque-mate, parecia que desejava
perguntar a mesma coisa, mas não sabia como. Ronald, por fim, respondeu:
― Faz dois dias que não caço. Não precisei e penso em parar um pouco de
abater animais.
És um vagabundo e não darás futuro para minha filha e meu neto. Pensou o velho
Harter.
Audrey demonstrou compreender a resposta e sabia que o marido deveria estar
se segurando para não gritar grosseiramente com o genro. Conhecia muito bem o
marido e poderia interceptar seus pensamentos.
O padre seguia entretido na comida.
Um jantar que deveria ser um momento de comunhão entre pessoas,
demonstrava um grau de desentendimento em alguns dos presentes. Era possível
perceber tal comportamento a quilômetros.
O padre aproveitou um momento de silêncio para entrar em um assunto desejado:
― Como todos sabem, amanhã é domingo, dia da santa missa dominical. Gostaria
de contar com a presença de todos, mas de coração aberto, não como por
obrigação.
Os presentes se mantiveram em silêncio, pareciam entender que o padre não
concluíra seu raciocínio.
― Quando eu digo não por obrigação, me refiro à imagem negativa que trazem
sobre a igreja católica de que somos obrigados a participar dos compromissos da
igreja na força...
O padre pegou a garrafa de vinho e virou uma dose em seu copo.
― Portanto quem estiver sentindo a vontade de estar presente à igreja amanhã,
sinta-se como um privilegiado, e do contrário, quem não estiver sentido a mesma
vontade, o mesmo ímpeto, também se sinta um privilegiado por estar recebendo o
meu convite. Sejam abençoados todos vocês.

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O homem da fé esboçou um sorriso, levantou o copo de vinho como quem brinda
e tomou um gole.
Ronald Malone mantinha-se de cabeça baixa, comendo, mas calculava que fazia
parte do grupo dos que não sentiam a necessidade de acordar domingo de manhã
para ir à missa. Afinal, era dono de si e não devia satisfação a qualquer pessoa,
tinha o dever de cuidar de sua família, apenas, e o fazia com prazer. Estava
tranquilo e respeitoso.
Lionel Harter decidiu confrontá-lo:
― E então Ronald, vai à missa amanhã? Você tem a obrigação de acompanhar a
minha filha a qualquer lugar que ela vá.
O caçador guardou a calma e sabia do fundo de verdade que as palavras do sogro
traziam.
― É muito provável que eu não vá. Como o senhor já sabe, não me sinto bem em
lugares com muitas pessoas, prefiro a calma.
A resposta foi repentina e demonstrou um grau de alteração no humor do sogro:
― Você se sente bem na floresta, no meio dos animais...
― Vamos parar com essa conversa, senhor Harter, já disse que não devemos
doar nosso tempo à igreja por obrigação.
O padre procurava trazer um ar de paz por onde passava.
O caçador continuava demonstrando ser uma fortaleza nas adversidades, o sogro
abria a boca apenas para confrontá-lo, mas suas investidas não prosperavam.
― Papai, eu não gosto que trate meu marido assim. Fico plenamente magoada. ―
os olhos de Brenda apresentavam o começo de um lacrimejar.
― Ela tem razão Lionel, onde vamos parar com essa tua rixa? ― foi a vez de
Audrey esboçar opinião.
O alvo das indignações lançou seu guardanapo à mesa e rebateu:
― Ora, vamos, custava ele ter feito uma faculdade quando saiu das fraldas? Ele é
muito inexperiente.
O caçador em silêncio se levantou:
― Com licença, vou ao banheiro.
Brenda se preparava para segui-lo, quando o padre lhe barrou com um sinal de
mão, como quem diz: “pode parar”.
― Deixa que eu converse com ele, garanto ter um bom conselho.
Sonny, de boca aberta, assistia aquela cena dentro de sua casa sem entender por
completo o que acontecia.
O padre subia a escada atrás do caçador. Brenda começou a chorar
disfarçadamente. Audrey depositou a mão no ombro da filha que debruçou na
mesa escondendo o rosto.

160
― Querida, teu pai é um velho rabugento. Você o conhece.
Audrey olhou para o marido e piscou pedindo cobertura, como quem exige uma
correção, o menino tudo via.
― Ele sempre estraga tudo. Não consegue se portar como meu pai, como sempre
se portou. Ele não gosta do meu marido, mas deve respeitá-lo como respeita a
mim.
O choro ganhou mais força, o rosto do velho Harter ficou vermelho de vergonha e
arrependimento. Não pelo que dissera, mas por magoar a filha. Decidiu então
vencer o orgulho e foi ao encontro da filha, consolá-la. Colocou a mão no ombro
dela que estava com a cabeça escondida entre os braços e a mesa:
― Minha querida, perdoe-me, eu estava fora de mim...
A moça levantou a cabeça, fitou o pai e demonstrou seus olhos vermelhos e
molhados aos presentes:
― Sempre a mesma conversa, mas quem se arrepende não repete o mesmo ato,
o padre sempre diz isto e o senhor não leva em consideração.
Audrey interveio:
― Veja o pequeno Sonny, o que deve estar pensando quando vê um monte de
adultos se portando como verdadeiros soldados em campo de batalha? Uma
guerra verbal.
O menino, por fim, disse algo:
― Vovó, estou pensando nos meus brinquedos e quero dormir com a coberta dos
escoteiros que o vovô me deu.
Sabia sair de situações que o raciocínio complexo dos adultos lhe proporcionava,
jamais seria facilmente enganado. Era como um sistema de defesa que lhe
avisava quando não devia se intrometer. Uma virtude herdada do pai, mas a
genética tratara de agravar sua escala.
Audrey afagou o menino que apresentava um semblante muito sério.
― Com certeza que sim, mas, termine a tua refeição antes.
― Perdi a fome, ninguém vai comer comigo e mamãe não pára de chorar...
Brenda ouvia as palavras do filho e sabia que era o momento de se controlar, para
não afetar a criança. Levantou sua cabeça e procurou enxugar suas lágrimas.
Lionel Harter de fato se arrependera e de pé, ao lado da filha, permanecia
obsoleto ao diálogo.
― Mamãe está bem, querido. Faça o que vovó disse e trate de comer, você adora
o meu franguinho assado.
O menino pareceu se animar. Lionel Harter tornou a sentar no seu devido lugar.

161
O pão recheado com bacon e a sobremesa caprichosamente preparada nem
chegariam a ser servidos devido o tumulto. Audrey permanecia com as mãos
confortando os ombros da filha como uma espécie de massagem terapêutica.
O menino pegou o garfo e ia se preparar para tornar a comer quando disse:
― E o meu pai, ele não vai mais comer?
Tais palavras doeram em Brenda, que sabia que o marido não tornaria à sala, para
evitar problemas. Audrey, em sua sabedoria de avó, remediou a situação falando
com o tom de uma professora zelosa:
― Eu me encarrego de te fazer comer. Eu pego a colher, faço um aviãozinho de
comida, e você pode abrir a boca como quem espera o avião aterrissar,
combinado?
O menino sorriu e assentiu com um gesto de cabeça. Lionel Harter esboçou um
sorriso irônico. Brenda gostava da forma como o menino recebera a ideia da avó.
Os quatro à mesa, não sabiam qual era a conversa entre o caçador e o padre.
No andar de cima, o padre e o caçador estavam sentados na cama do casal. O
padre se preocupava com a situação e queria a qualquer custo remendá-la.
Ansiava por apresentar uma imagem de um homem que poderia ser alvo de
confiança, como um pai para Ronald.
Ronald Malone de cabeça baixa ouvia o sermão do padre, era duro de admitir,
mas não gostava de ir à igreja, quanto mais levantar cedo no domingo para ir à
missa.
O quarto apresentava apenas a luminosidade de um abajur sobre um criado-mudo
ao lado do confortável leito dos Malone.
― Eu tenho o senhor Harter como meu braço direito, o conheço bem e posso
garantir que ele com a idade que possui, é inocente de tudo...
O caçador permanecia de cabeça baixa, refletindo, ouvindo os conselhos do
padre.
― Ele não tem cerca para abrir a boca e falar babaquices. Eu percebo que de
fato, ele não permite que o seu gênio combine com o teu.
O padre fez uma pausa, esperando que o caçador dissesse algo, mas o silêncio
reflexivo foi a resposta peremptória.
― Eu até já conversei com ele várias vezes, dizendo que não é o certo te tratar
assim, mas, ele possui um coração orgulhoso como um muro instransponível,
difícil de quebrar.
O caçador ergueu a cabeça e fitou o padre, sério:
― Eu conheço o meu sogro e sei que o que ele diz é verdade. Eu deveria ter dado
uma vida melhor para Brenda.
― Posso garantir que não. Veja bem, você deixa faltar algo de comer para teu
filho e esposa?
162
O caçador negou com a cabeça. O padre estava acertando a flecha no alvo.
― Vocês moram em um lar abençoado. Pode chover ou nevar e a tua família não
se molha e nem sofre com o frio.
Ronald percebia em que lugar o padre queria chegar, refletindo melhor, seu sogro
não tinha razão em lhe taxar como um incompetente. Os conselhos vinham de
muita valia, sua visão parecia se abrir.
― Vocês possuem roupas que sobejam, ultrapassam o limite da necessidade.
Deus é o supridor e você, o cabeça da família.
Ronald sentiu uma forte sensação de conforto em seu coração ao ouvir o padre
falar de Deus.
O padre decidiu atingir o ápice da conversa pessoal:
― Pode se abrir comigo, algo te aflige. Confie em mim, estou aqui para ajudar.
O caçador trazia a necessidade de compartilhar com alguém sua súbita mudança
de pensamento sobre abater animais, mas sabia que se fosse para se abrir com
sua esposa, embora compreensiva, uma espécie de medo crescia em si.
― De fato, muita coisa mudou nos últimos dias.
Ronald calou-se, o padre fez um gesto de sim com a cabeça, desejava que o outro
continuasse sua confissão pessoal.
― Digo que mudou muita coisa em meus pensamentos, eu vejo o mundo de outra
forma. Trago a necessidade de dar uma reviravolta em minha vida, e o que me faz
temer, é que a vida da minha família será afetada, também mudará. E a minha
dúvida é, para melhor ou pior?
― Pode me contar, quem sabe eu não tenha uma sugestão.
O padre lhe transmitia uma sensação de conforto, era o momento de o caçador
falar de seu segredo para alguém.
― Ultimamente eu tenho estado muito sentimental, o senhor vai rir, mas tive um
súbito desejo de abandonar meu posto de caçador. Sinto pela vida dos animais
que abato, é estranho, mas gostaria de sustentar minha família de outra forma.
Sem que os dois percebessem, Brenda subiu ao segundo andar e se escondeu
perto da porta do quarto do casal, estava preparada para ouvir a conversa, sua
preocupação era que seu marido estivesse com rancor de seu pai.
― Eu entendo, mas você sabe fazer o quê além de caçar?
― Esse é o problema, o meu sogro tem um fundo de razão ao dizer que eu
deveria ter me esforçado e estudado, sei fazer absolutamente nada. Não possuo
outras aptidões profissionais.
O padre não sabia o que responder até então, suas poucas palavras foram:
― Você tem razão. Pitfall é um vilarejo grotescamente isolado.

163
Ambos ficaram pensativos, o caçador parecia entender que o padre receberia uma
iluminação a qualquer momento e surgiria uma nova ideia salvadora. Brenda ouvia
e percebia tudo o que se passava, avulsa ao campo de visão dos dois homens.
― Como sacerdote há muitos anos, eu posso te garantir que a carne do animal foi
feita para nos alimentar. Portanto, convém que você abata animais, desde que não
os faça sofrer...
O padre sabia que ainda não era o que deveria ter dito ao necessitado. O caçador
não se contentou com tais palavras e permaneceu em silêncio. Brenda não
conseguiu compreender perfeitamente sobre o que os homens conversavam, uma
peça faltava para completar o quebra-cabeça, o que sabia era que o marido se
queixava de sua profissão, mas ele sempre fora tão apaixonado pelo rifle e pela
adrenalina de perseguir um futuro banquete.
― É complicado de explicar ou expressar o sentimento que tomou conta de mim,
perece uma valorização à vida, que me constrangeu significativamente.
Brenda se lembrava das palavras de seu pai ditas à sua mãe, como um filme,
assistido muitos anos atrás: “quando uma pessoa se torna extremamente
sentimental e piedosa ou carece do amor dos mais próximos, pode escrever, sua
morte não tarda a chegar”.
Foi uma lembrança chocante que fez sentido para Brenda, mas não queria perder
seu marido.
O ruído de alguém subindo a escada soou aos ouvidos da mulher preocupada.
Pensou rapidamente, tanto seus pais como seu filho, poderiam fazer um alarde ao
vê-la e entregá-la. Sua ação foi súbita e magnânima, adentrou o quarto como
quem chega de repente, tomando a atenção dos dois homens:
― Vocês não vão terminar o jantar?
O padre fez uma feição de confuso e respondeu:
― Sim, faz sentido retornar à mesa e terminar a refeição.
Virou-se para o caçador e continuou:
― Você vem senhor Malone?
O caçador negou com a cabeça, se aproximou de sua esposa e deu-lhe um beijo
na testa.
― Estou com muito sono e vou tomar um banho.
Brenda e o sacerdote ficaram em silêncio, fitando o caçador que percebeu os
olhares de questionamento e se justificou:
― Não faz sentido eu voltar à mesa, minha presença é indesejada para alguém.
Encaminhou-se para o corredor direto para o banheiro. Brenda fez menção de ir
atrás do marido, mas o padre em sua sabedoria lhe barrou com um sinal de mãos.

164
― É melhor deixá-lo sozinho por enquanto. Quando forem se deitar, você
conversa com ele.
Brenda acatou, olhou para o corredor e seu olho começou a lacrimejar, abraçou o
padre.
― Não chore mais, o teu pai precisa de um bom puxão de orelha e eu farei isto.
A mulher buscou forças para desabafar.
― Desculpe-me. Eu ouvi a conversa, quando eu era criança meu pai disse que
quando uma pessoa se torna extremamente piedosa, é sinal que vai morrer.
A pessoa que subira a escada se portara em posição de ouvidor oculto, assim
como Brenda fizera anteriormente. Audrey Harter estava chocada com as palavras
da filha. A sua sorte era que o genro não percebera sua presença ao sair do
quarto rumo ao banheiro. O barulho da água do chuveiro permitiu à mulher
continuar escondida com tranquilidade, mesmo que fizesse soar algum ruído ao
caminhar.
O padre decidiu acalmar uma dos membros mais fervorosos da igreja.
― É apenas um dito popular, é normal o teu marido estar assim, é alguma
carência de afeição ou fase de transição para melhorar suas vidas. Eu explicaria
assim, ele precisa do carinho da família, no caso, de você principalmente. O
menino é extremamente apegado ao pai e como eu percebi, o convida sempre
para brincar. Você poderia dobrar a atenção e o carinho ao seu marido.
― Mas eu sou uma esposa dedicada...
O padre entendeu a queixa da mulher.
― Eu sei que sim, mas para pessoas no estado do teu marido, isso não basta.
Você precisa, por exemplo, apoiá-lo em tudo o que disser ou quiser fazer.
A mulher fez menção de retrucar e o padre fez sinal para que ela se calasse.
― Exemplificando melhor, jamais negue as vontades dele, por mínimas que
sejam. Qualquer negativa pode magoá-lo profundamente. Entendeu?
Brenda afirmou com a cabeça. Audrey estava boquiaberta com a complexidade
dos fatos. O padre continuou:
― É melhor descermos e continuarmos o jantar que não será o mesmo, é claro.
Logo poderão vir atrás de nós. As horas passam e daqui a pouco chegará o
momento de se recolher.
Audrey tornou à sala com rapidez para não ser vista. Brenda e o padre seguiram o
mesmo caminho.
O menino brincava com seus helicópteros de miniatura no carpete da sala. Lionel
Harter estava de frente para a janela que dava vista para a floresta, limpando os
óculos. Audrey se aproximou do esposo e o questionou, todos os presentes
ouviram.

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― O que foi? Deixou os óculos cair?
O velho se embaralhou, mas respondeu:
― Não. Pensei ter visto algo. Apenas.
― E o que você pensou ter visto? ― não se contentou sua mulher.
― Deve ter sido algum bicho. Algum alce ou urso. Sei lá.
Os olhos do velho pareciam absortos em algum tempo remoto. Os presentes
estavam presos àquela situação, exceto o menino que brincava distraidamente.
O velho não convencera com os seus argumentos, estava se portando
embaraçadamente como uma barata tonta.
― Tem certeza de que está bem? ― questionou-lhe o padre.
Harter afirmou com a cabeça, mas não inspirou certeza.
― Acho que podemos terminar o jantar, a hora voa e eu ainda tenho alguns
afazeres na paróquia.
Todos consentiram com a colocação do padre. Brenda pegou o filho pelo braço e o
puxou cuidadosamente até a mesa.
― Papai não vem?
― Não querido, papai está muito cansado e precisa dormir. ― disse Brenda com
convicção.
A mesa tornou a ser preenchida, exceto o lugar do caçador. Os presentes voltaram
suas atenções para o resto da refeição que já não expelia seu calor do início,
afinal a temperatura baixava vorazmente naquele vilarejo perdido no meio da
floresta.

166
18

JOGO DE CARTAS

A comida na taverna foi motivo de satisfação para os dois forasteiros, novamente.


A mulher do taverneiro era uma cozinheira de ponta, repleta de talentos.
Um arroz acompanhado de bacon e ovos agradou por demais Norman Legrand e
Joseph Forbes.
Os presentes na taverna eram os mesmos da noite anterior, mas o frio era mais
agravado e a noite mais escura. Era possível ver o céu negro através da porta de
vai e vem da taverna. Um vento brando e gelado atormentava os clientes que não
estavam perto da lareira, no caso, os dois forasteiros.
De início, Norman pensara em sugerir que os dois mudassem para a mesa onde
ocorria o jogo de cartas que ficava ao lado da lareira, mas abandonara tal ideia
que poderia soar mesquinha aos ouvidos do amigo, que por sua vez, parecia
possuir a sabedoria de velho eremita das montanhas, com certeza rebateria a
ideia.
Soou uma gritaria na mesa de jogos, o lenhador estava com a face vermelha de
raiva e humilhação, com certeza acabava de perder mais uma rodada.
Josias Parker tossia, baforava um charuto fedorento e ria ao mesmo tempo. Os
outros dois jogadores seguiam a onda da estranha figura deixando o lenhador
mais nervoso ainda.
― Vocês fizeram complô para me ver perder, esse pateta sempre lança uma
dourada quando eu vou fechar o jogo! ― acusou o lenhador.
― As tuas roubalheiras não vão mais me enganar Parker, eu juro! ― continuou.
Os dois hóspedes do misterioso hotel assistiam divertidos a indignação e o
desabafo do mal perdedor. Alguma diversão deveria existir naquele vilarejo ermo e
fantasma.
― A comida daqui é deliciosa, mas é melhor ver o pessoal jogando e se
estafando. ― Forbes riu quase sem fôlego.
― Sem dúvida. O fortão barbudo é o mais nervoso e o único que perde.
Forbes fez uma careta de contrariado.
― Vai ser impossível ele ganhar uma que seja.
― E por que diz isso?
Forbes tomou uma golada de vinho, bufou e baixando a entonação da voz
confidenciou com o amigo:
― A criatura esquisita... ele é trapaceiro. Possui apenas cara de idiota, mas estão
caindo em seu alçapão há muito tempo.

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Norman Legrand fez uma feição de quem não entendia. Forbes tentou elucidar
melhor:
― Ora, você ainda não percebeu que o velho viciado em charuto porta centenas
de cartas por debaixo do macacão?
― Você é um excelente observador ou ele é mestre em tirar um coelho da cartola.
― As duas coisas. Ele é mestre em truques e eu estudo os mínimos detalhes. Mas
acredite, ele vai ser descoberto mais cedo ou mais tarde e aquele lenhador possui
os braços tão fortes que precisará se controlar para não matar o velho coitado com
um soco.
Norman estava impressionado com a percepção do amigo, sua facilidade em notar
anormalidades.
― Ora, no que está pensando, não precisa ser nenhuma bem treinada sentinela
para saber que um velho desses é responsável por cometer desonestidades. Ele é
muito malicioso.
Forbes usou o termo sentinela para que o amigo lembrasse o plano e se mantesse
alerta.
― Talvez eu seja distraído demais. ― argumentou Norman.
― Não. É questão de se manter antenado com o que se passa ao derredor, por
exemplo, percebestes que o taverneiro, em certo momento enquanto jantávamos,
trouxe sua espingarda disfarçadamente e a depositou no compartimento debaixo
do balcão de atendimento?
Norman negou com a cabeça.
― Pois bem, e por qual motivo ele estaria se preparando de tal modo? Como se
esperasse um grupo de salteadores.
As ideias clarearam na cabeça de Norman:
― Podemos considerar a possibilidade de a luz verde tornar a nos visitar nesta
noite?
Forbes fitou a porta da taverna com um semblante de quem busca a solução de
um enigma.
― Você está plenamente correto. Eles consideram que a luz verde seja uma
manifestação não humana, porém, acreditam que a espingarda pode ser um meio
de defesa. Pergunto, defesa como último recurso ou não têm tanta certeza de que
a estranha manifestação seja de outro mundo?
Norman permaneceu em silêncio, pasmo. Forbes prosseguiu:
― Eu posso te afirmar que existe algo que ainda não nos contaram. Talvez por
medo.
Norman voltou sua atenção para a mesa de jogos, tudo transcorria normalmente.
Parecia um sonho ter caído pelo acaso em Pitfall. Era como se houvesse sido

168
transportado para outra dimensão, suas reflexões não eram as mesmas de antes
de conhecer aquele vilarejo. Tudo era complexo de se esboçar uma definição e
parecia transmitir um mistério, a cada milímetro daquele lugar envolto pela
floresta.
― Todos por aqui parecem ser tão anormais, até mesmo as casas. Não consigo
imaginar como é entrar no meio da floresta. O ar daqui é tão sinistro.
Forbes compreendeu a colocação do amigo. Talvez estivessem ficando loucos
com o ímpeto de desvendar as maluquices do dono do hotel.
O taverneiro se aproximou.
― O que acharam da comida?
― A tua esposa caprichou novamente, parabéns. ― respondeu Norman.
― Ela sempre capricha nas ocasiões mais do que especiais.
O taverneiro mostrava um sorriso de satisfação, como era bom ver seus raros
clientes contentes com a refeição e com o atendimento.
Forbes surpreendeu os outros dois com uma pergunta:
― O senhor sabe se existem muitas casas abandonadas por aqui?
O semblante do taverneiro se tornou sério:
― Que eu saiba somente duas na rua da outra extremidade. Por qual motivo
deseja saber isso?
Eram as palavras que Joseph Forbes gostaria de ter ouvido e que tornaram a
possibilidade de chegar ao alvo desejado mais alcançável.
― Pelo motivo de não querermos mais pernoitar no hotel de Jim Bobster. Ele
possui comportamentos muito estranhos.
O olhar do taverneiro mostrou surpresa, era como se estivesse sendo interrogado
sobre um crime que cometera.
Hilda Fillman surgiu no topo da escada:
― Brad, suba agora, o Zack não está bem.
O taverneiro se virou e tomou a direção da escada. Forbes olhou com indignação
para o amigo:
― Ele não me escapa.
― É difícil saber quem é de confiança por aqui. ― disse Norman.
O lenhador se animara. Parker jogara três rodadas sem usar de seus truques,
perdera duas e afastara a desconfiança da cabeça do brutamonte que com
agilidade distribuía as cartas para começar a próxima rodada.
Um vento gelado tomou conta do ambiente agravando o desconforto dos dois
forasteiros, seria melhor se aconchegar perto da lareira. Norman, por fim, decidiu
agir. Levantou-se e pegou sua cadeira.
― Estou com muito frio, vou me assentar próximo à lareira.

169
― De acordo. ― retrucou Forbes levantando-se e pegando sua cadeira também.
Aproximaram-se da mesa do jogo e assentaram-se o mais próximo possível da
confortante lareira.
― Vão fazer dupla para o próximo jogo? ― perguntou o lenhador na expectativa.
Forbes pensou como seria a reação dos jogadores se delatasse o trapaceiro.
Seria melhor ficar de boca fechada e nada dizer, deixar o rio seguir seu curso.
― Eu não jogo cartas, obrigado. ― respondeu Forbes.
― Tão menos eu. ― emendou Norman.
― Pois bem, sintam-se convidados para assistir. ― retrucou o lenhador.
― Perdedores não são bem-vindos. Odeio jogadores que não são páreos para
mim.
Josias Parker se orgulhou de sua colocação e começou a gargalhar e baforar. Os
dois forasteiros levaram na esportiva.
O lenhador deu um brando tapa no ombro de Parker e disse:
― Pode ter certeza de que seria um tormento jogar com um trapaceador como
você!
― Vocês não gostam de jogar comigo, pois eu sempre ganho, sou o mestre das
cartas. Cale a boca, seu dendroclasta barato. ― Parker se referia ao lenhador.
Forbes pensou na possibilidade de desmascarar o velho na frente dos ouvintes,
analisando melhor seria uma atitude impensada.
Aos olhos de Norman, era incrível o silêncio que mantinham os outros dois
jogadores, não fora possível ouvir suas vozes até então. Um deles, o mais baixo e
o que aparentava mais idade disse:
― O problema é que não temos o que fazer em casa, aqui é a nossa distração,
temos que aguentar esse velho todas as noites.
Josias Parker gargalhou da opinião do outro e retrucou:
― Vocês não vivem sem mim, seus três solteirões e viados!
Dizia como se fosse bem casado ou tivesse um ombro para deitar à noite. Ele
poderia muito bem se encaixar naquele grupo de solteirões.
O lenhador estava impaciente com a demora do começo daquela rodada, queria
ganhar mais uma de Parker para calar-lhe a boca:
― Vocês jogarão ou continuarão com essa rixa idiota?
Parker esfregou as duas mãos e respondeu:
― Distribua as cartas!
O lenhador obedeceu à instrução e com habilidade foi dividindo as cartas, uma
para cada um por vez.
O calor da lareira fez os dois forasteiros esquecerem-se do frio. Estavam sentados
ao lado da lareira e de costas para a porta de vai e vem da taverna.

170
Começou o jogo, o lenhador deu a saída. Somente os quatro jogadores entendiam
o que se passava no jogo e qual era a sua situação.
Um som de passos descendo a escada soou, era o taverneiro que voltava às suas
atividades, distante de seus clientes. Forbes o fitou e após alguns segundos olhou
para Norman, a fim de ver a sua reação em relação à cena que presenciavam. O
taverneiro estava agachado atrás do balcão, mexendo em algo, no local onde
depositara a espingarda anteriormente.
― Ele está muito excitado para o meu gosto. ― confidenciou Forbes aos ouvidos
do amigo, os demais permaneciam fissurados no jogo.
― Algo cheira mal no comportamento dele. ― retrucou Norman.
― Vou chegar até o balcão, como se porta um cliente comum e pedir-lhe um copo
de vodca. Espiarei o que há por trás daquele balcão.
― Mas você não bebe vodca, vai disfarçar como?
― Simples, eu a dou de presente para o nosso amigo lenhador.
Norman gostou da ideia do amigo e esperou sua reação, procurou se entreter na
mesa do jogo quando o amigo se levantou e seguiu o rumo do balcão de
atendimento, mas sem deixar de assistir a ação de Forbes. De onde estava foi
possível ouvir:
― Por favor, senhor Fillman, poderia me servir um copo de vodca?
O taverneiro levantou-se rapidamente e abandonou o objeto que estava mexendo,
deveria ser a espingarda.
― É um prazer atender-te.
Virou-se, pegou um copo e o encheu de vodca até o bico. Era preciso muita
cautela para não banhar o chão. Mais um sinal de seu receio, qualquer atendente
se aperceberia do fato, do copo farto de bebida.
Forbes continuou sua conversa com o taverneiro, mas era impossível para os
ouvidos de Norman captar o que diziam.
― Não terminamos a nossa conversa momentos atrás. Gostaria de saber por qual
motivo o velho Bobster se comporta de um modo tão estranho.
― É difícil explicar, ele deve estar ruim da cabeça, é um homem sofrido.
Forbes compreendeu a colocação do outro.
― Já notou algo estranho com aquele hotel?
Brad Fillman, ao contrário da conversa anterior, respondeu calmamente a
pergunta:
― Se eu entrei duas vezes naquele hotel foi muito, sem contar ter sido há muito
tempo atrás.
― Quanto tempo atrás?

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― Questão de anos, é isto, questão de anos e nada mais. Mas, qual é o interesse
em saber o que eu penso ou deixo de pensar do pobre coitado do Bobster?
― Nada. Tenho notado que ele não anda bem da cabeça como você mesmo
afirmou anteriormente, acredito que ele não seja a pessoa mais indicada para
tomar conta de um hotel. O anfitrião de um hotel precisa ter zelo com os
hóspedes, isto falta de sobra no Bobster.
O taverneiro não sabia o que dizer. Como rebater um assunto que pouco lhe
interessava?
Ganhara na loteria ao receber os dois novos clientes e precisava mantê-los
seguros com o seu atendimento, não apenas pelo interesse, mas sim pelo respeito
que trazia em seu caráter.
― Você tem razão, chega certa idade e a pessoa vai se tornando em algo
indigesto para algumas situações. Minha falecida avó, por exemplo, possuía
costumes estranhos e que exigiam muito do meu tempo quando estava a cuidar-
lhe.
― Interessante. Diga o que ela fazia se não for te importunar, é claro.
O taverneiro se virou e ficou de costas para Forbes, começou a enxugar alguns
copos. Norman não se continha em não saber sobre o que conversavam e decidiu
se aproximar e participar da conversa.
― De modo algum. ― respondeu o taverneiro.
― Ela jogava uma bolota de lã para fazer tricô debaixo do sofá e queria que eu me
abaixasse e pegasse a bolota. Estranho não? E se eu não pegasse a bola, ela
chorava, seus olhos lacrimejavam. ― emendou.
― A psicologia deve explicar isso como uma carência, quando você não se
agachava para pegar a bola de lã, sua avó pensava que você não a estava a
respeitar, pior, a estava ignorando.
― Acertou na mosca. Era exatamente esse o diagnóstico.
― Simples, os idosos são carentes. Mas o velho do hotel é o contrário, ele
apresenta o desejo ardente de se manter a distância de milhas de qualquer ser
que possua um coração batendo e um par de pulsos palpitantes.
Norman pegou o fio da conversa, seu amigo era imbatível no raciocínio.
― Concordo, ele é estranho mesmo, tanto que nem gosto muito de falar sobre ele.
― Pois bem, e sobre o estranho acontecimento de ontem? ― perguntou Norman,
deixando seu amigo a pensar na burrada que ele acabava de cometer. Pergunta
fora de hora.
O taverneiro travou os movimentos no lugar em que estava, respirou fundo e
respondeu:
― É um urso selvagem que habita perto do vilarejo. Acredito que já lhes avisaram
para evitar ao máximo adentrar a floresta, estou certo?
172
― Isso não vem ao caso, com todo o respeito, mas ontem o comportamento de
vossos senhores foi digno de cinema. ― Forbes tentou remediar a situação, não
era bom forçar certos assuntos com os habitantes de Pitfall, até aquele momento
ninguém demonstrara ser uma pessoa normal e de confiança.
― Completando, um urso por mais bravo que seja não pode meter medo em
alguém munido de arma de fogo, deve ser tão fácil alvejar um animal de tal porte a
qualquer distância, para quem saiba atirar, é lógico.
― Somos péssimos atiradores por aqui, acho que nem mesmo o xerife e seu
ajudante saibam como se portar corretamente no momento de efetuar um tiro.
A voz do taverneiro não soou convincente.
― Está certo, acreditamos em você. ― disse Norman.
― E por que duvidariam? Não vai tomar a vodca?
― Perdi a vontade, vou passá-la para algum companheiro da mesa do carteado.
― Que não seja para o Parker. Ele é um verdadeiro selvagem quando está fora de
si.
Os dois forasteiros acharam graça do que disse o taverneiro.
Forbes levou o copo até a mesa e ofereceu ao lenhador que aceitou de prontidão.
Parker não perdeu sua chance:
― Assim eu fico com ciúmes.
A mesa toda gargalhou. Forbes aproveitou o momento em que os jogadores
voltaram suas atenções ao jogo para tornar à companhia do amigo e do
taverneiro.
Fillman organizava algumas garrafas, mas parecia querer se distrair para passar o
tempo.
― És um homem benevolente. ― elogiou Forbes em relação ao bom atendimento
do taverneiro tanto para servir como para dialogar.
― Obrigado. ― retrucou o taverneiro educada e secamente.
Um ar gelado pairou na taverna. Um clarão aumentou a luminosidade do recinto.
Norman e Forbes se viraram para a porta de vai e vem quando ocorreu o
relâmpago.
― Aproxima-se uma chuva. ― ponderou Norman.
O vento invadiu o recinto de maneira mais violenta, pôde-se ouvir o som de um
assobio vindo das árvores da floresta quando receberam a rajada de vento.
― Mais parece a chegada de uma tempestade daquelas. ― Forbes deu sua
opinião.
Norman se lembrou de algo e apresentou uma excitação fora do normal.
― Lembra-se do que nos disse Oliver Kingston hoje pela manhã?
Forbes abriu a boca, pasmo e respondeu:

173
― É lógico que eu me lembro, disse que sua irmã afirmou que hoje à noite
ocorreria uma tempestade. Mas eu não vejo algo de anormal em tudo isso, foi
apenas um palpite.
― Mas ele jurou que ela sempre acerta tais palpites.
Na cabeça dos dois amigos passava uma espécie de reflexão semelhante, nada
naquele vilarejo parecia ser real, era como uma cena armada para pregar-lhes
uma surpresa. Mas, como alguém naquele fim de mundo poderia saber o dia em
que iria chover vorazmente?
O som dos pingos da chuva inundou a taverna, o vento continuava a demonstrar
sua força hercúlea aos humanos. A lareira aspergia brasas no ar quando era
agredida pela força do vento.
Dava-se a impressão de que ocorria uma guerra no meio da floresta, a força da
ventania em contato com as árvores ressonava sons indecifráveis, de todos os
tipos. Alguém que estivesse no meio da floresta naquele momento poderia sentir
apenas... medo.
Os jogadores começaram a se levantar. Cartas voavam, inclusive algumas que
Parker trouxera escondidas debaixo de sua manga, porém o espetáculo de terror
transmitido pelo fenômeno da natureza não permitiu que os outros se
apercebessem disto.
Joseph Forbes e Norman Legrand se viraram para o balcão, os quatro jogadores
procuravam se proteger do vento frio e das fagulhas de lenha em chamas que
voavam da lareira aleatoriamente sobre o recinto.
O taverneiro parecia calmo, retirou o pente do bolso e como quem quer
demonstrar segurança começou a pentear o bigode.
― Seria melhor fechar a porta principal. ― sugestionou o jogador que não falara
até então, pelo menos para que os forasteiros ouvissem.
O taverneiro pareceu não concordar com a ideia, pegou um pequeno tonel cheio
de água e se encaminhou para a lareira, infundiu o conteúdo do tonel na lareira e
apagou o fogo, sobrou apenas alguns sinais de brasas. Todos fitavam o taverneiro
que voltou para trás do balcão, aproximou-se a um espelho que estava sobre
outro tonel gigante, ao lado do armário de garrafas, pegou seu pente e começou a
pentear o bigode novamente, desta vez olhava seu reflexo no espelho.
― Ele tomou algumas e parece estar meio perdido. ― comentou Norman.
Os dois forasteiros voltaram a fitar o dono da taverna que permanecia na sua
odisseia para deixar o bigode simétrico, ao que parecia.
Um ruído soou na porta de vai e vem, os dois forasteiros estavam de costas para a
saída da taverna, mas se viraram quando os olhos do taverneiro se arregalaram
após o ruído da porta. Os olhos de Fillman se arregalaram como se ele estivesse

174
hipnotizado, ele estava de costas, mas foi possível aos forasteiros perceberem tal
ato devido o reflexo do espelho que mostrava apenas parte do rosto do anfitrião.
Viraram-se ao mesmo tempo para ver o que se passava, a porta de vai e vem era
aberta aos poucos, por alguém, todos assistiam calados.
Pingos gigantescos de chuva começaram a chocar-se no chão da taverna, caíam
através da abertura da porta, relâmpagos incessantes iluminavam o céu negro, o
vento parecia mais furioso.
A porta de vai e vem foi aberta completamente, o taverneiro também se virara para
ver a cena, surgiu uma figura, um impermeável amarelo, o recém-chegado estava
de cabeça baixa e não era possível ver o seu rosto, pois o capuz tudo encobria.
Lentamente, a figura da porta foi erguendo o pescoço, revelando seu rosto aos
poucos. Boca fechada e semblante sério, rosto pálido como o de um defunto e por
fim, olhos que não eram deste mundo. Soou finalmente a voz misturada com os
sons fantasmagóricos da natureza produzindo um eco cavernoso, mas audível:
― Vim buscar os meus dois hóspedes.

175
19

A TEMPESTADE

Houve então o início da tempestade que não economizava esforços ao exibir o


seu poder. O pavoroso vento que passeava com rapidez em meio às árvores da
floresta provocava o soar de assobios frenéticos que poderiam ser comparados a
uivos distantes de centenas de lobos.
O velho dono do hotel surgira como um ser desconhecido e surpreendera a todos
que presenciaram sua atitude de louco, nem mesmo uma capa de proteção contra
a chuva era uma justificativa para se dar ao luxo de perambular debaixo da
tempestade.
Os pingos da chuva quando chocados ao corpo poderiam ser comparados a
dedos que cutucavam a fim de importunar alguém. Esta era a sensação que
Norman e Forbes dividiam.
Os dois forasteiros seguiam o velho Bobster rumo ao hotel. Precisaram se
submeter a encarar um banho de água gelada, do contrário, dormiriam fora do
hotel, o que não seria uma má ideia. Mas era preciso zelar pelos seus pertences e
não seria uma boa atitude contrariar o velho do hotel. O plano de espionagem
amadora dos dois forasteiros ainda estava de pé e ocorreria naquela noite. Ambos
ansiavam por descobrir algo, pareciam sentir que a noite seria produtiva.
Chegaram à porta do hotel que estava aberta e entraram com rapidez, o velho
seguia à frente protegido por sua capa, os demais estavam encharcados e
precisavam de um banho quente com urgência para evitar o início de uma
hipotermia.
Jim Bobster cerrou a porta, soou um barulho estarrecedor, a porta umedecida
parecia pesar uma tonelada a mais e abalar as estruturas do hotel.
O saguão, como sempre, apresentava um aspecto fantasmagórico. Norman
estudou melhor as espadas penduradas na porta ao fundo e constatou que devia
se tratar das de esgrima, autênticas aparentemente. Talvez uma arma de alto
perigo nas mãos de um louco como Bobster.
O velho retirou a capa de chuva e a pendurou em um suporte próximo ao balcão
de atendimento. Os dois forasteiros permaneciam estudando o ambiente
juntamente com o velho e nem sequer se lembravam do estado em que se
encontravam, ensopados.
Os olhos de Jim Bobster estavam arroxeados, fora do normal, parecia um
verdadeiro cadáver ambulante. Passavam-se apenas duas explicações na cabeça
de Forbes, o velho era de outro mundo ou estava profundamente doente. Se a
segunda possibilidade fosse verdadeira, a doença afetara a mente do pobre

176
coitado e seu comportamento poderia ser justificado. Ultimamente não duvidaria
se a primeira possibilidade viesse à tona, a de o velho pertencer a outro planeta.
O que mais chamava a atenção de Norman era o quadro da velha caolha que
parecia estar os fitando com interesse em saber sobre quem acabava de chegar.
Uma visão que causava vertigem a Norman. Era difícil admitir, mas pareciam estar
em um verdadeiro hotel fantasma.
O velho acendeu as velas do candelabro e cortou o silêncio apavorante do recinto:
― Já podem se recolher para seus aposentos.
Forbes fez menção de abrir a boca para falar e o velho cortou em modo grosseiro:
― Retirem-se!
― Nós vamos nos recolher única e exclusivamente pelo motivo de necessitarmos
de um banho. ― disse Forbes com segurança em palavras e gestos.
― Não queira pensar que estamos nos submetendo ao que disseste, mas pense
como um homem da idade que és, pense com prudência.
Jim Bobster gargalhou forçadamente para rebater as palavras de Forbes, depois
tomou o candelabro em suas mãos:
― Não queira ver este candelabro flutuando pelos cantos do hotel.
Tais palavras afetaram Norman que já se comportava como uma criança após a
visão do quadro misterioso.
― Acho melhor fazermos o que ele diz, estamos hospedados aqui e devemos
seguir as normas.
Norman, o seguidor de normas.
Forbes percebeu que os nervos de seu amigo estavam mais brandos e decidiu
acatar a proposta.
― Boa noite. ― Desejou Forbes ao velho e os dois se viraram seguindo o rumo de
seus quartos.
Bobster os fitava segurando o candelabro e esboçando um sorriso irônico, era
incrível como seu olho arroxeado transmitia uma veracidade se fosse considerar
um cadáver de pé.
Chegaram ao corredor, o breu dominava.
― Mas que velho mais mesquinho. ― comentou Forbes ainda indignado.
― Esqueça ele por hora, precisamos mesmo é de um banho quente.
Pararam de frente para a porta de Forbes que abaixou o tom de voz para
confidenciar:
― Daqui uma hora eu sairei do meu quarto e darei batidas leves na tua porta.
Abra, pois iremos colocar o nosso plano em ação.
Norman concordou com um gesto de cabeça, mas se preocupava com o corredor
escuro, o velho bisbilhotaria facilmente a ação do amigo ao se mudar de quarto.

177
Aquele ambiente que parecia o extremo de uma caverna poderia abrigar uma
multidão de monstros, oculta à visão de visitantes indesejados.
Um relâmpago iluminou fracamente o corredor que era pouco banhado pela
luminosidade exterior.
― Muito bem, estarei de prontidão no horário combinado. ― acatou Norman.
Norman se retirou e Forbes destrancou a porta de seu quarto, esperou até que o
amigo chegasse à porta de seu aposento e a abrisse e entrou rapidamente. Tal
ação foi propícia para Norman que decidiu vencer o medo e escutar o que ocorria
no reservatório, apenas com o barulho da tempestade aos ouvidos. Encaminhou-
se à porta de destino e pensou na possibilidade de o hotel possuir mais algum
hóspede, em algum dos outros quartos.
Definitivamente se aproximou da porta do reservatório e plantou o ouvido
esquerdo na madeira quase em estado de decomposição, sempre atento à escada
que conduzia ao saguão do hotel.
Passaram-se alguns segundos e ele poderia estar confundindo o som da
tempestade com o que escutava, mas uma sequência de pingos se chocava no
chão do reservatório, talvez houvesse uma goteira, entretanto, no dia anterior não
chovera e os pingos também soaram.
Não era algo de se ter em consideração, uma vez que seria absolutamente normal
uma torneira em péssimo estado naquele hotel em status de podridão. Mas, algo
parecia lhe atrair para o reservatório.
Estava com os ouvidos atentos ao derredor, seu receio era que o dono do hotel
surgisse misteriosamente em qualquer parte. Precisava de um banho, mas daria
para aguentar mais um tempo, sempre vivera encharcado quando criança após
banhos de piscina até receber a repreensão de sua mãe que não estava por perto
para frustrar seu plano de invasão.
Sentiu um ímpeto de averiguar se a porta estava destrancada e abraçou a
maçaneta com a mão esquerda, sempre atento e vigilante.
Clique.
O trinco da porta estalou, não podia acreditar, a porta se abriu.
Sentiu um calafrio na boca do estômago, o reservatório poderia abrigar algum ser
desconhecido e perigoso. Mas como saber se as suas reflexões eram verídicas?
Seu espírito de aventureiro falou mais alto, criou coragem e empurrou a porta,
mas gradativamente. A porta não abriu completamente e emperrou, mas era
possível entrar no aposento com alguma dificuldade.
Lembrou-se do perigo que representava a presença do dono do hotel e virou a
cabeça repentinamente para estudar o corredor escuro, a sorte estava a lhe sorrir,
o breu imperava e nenhum sinal de luminosidade se apresentava.

178
Entrou no aposento misterioso. Um cheiro de mofo invadiu o seu respirar,
incomodando-o. Sentiu náusea e seu estômago embrulhou, tampou o nariz com
os dedos e continuou a adentrar o recinto que aparentava estar fechado há muito
tempo. Não há tanto tempo assim, pois a porta estivera trancada na noite anterior
demonstrando que no mínimo alguém havia a destrancado.
Os ruídos dos pingos vinham do fundo do aposento. Seus olhos se acostumaram
à escuridão e foi possível discernir a estrutura do local.
Parecia um verdadeiro desfile de fantasmas em seus lençóis alvos, vários móveis
estavam cobertos para conservação, parecia enxergar teias de aranha que
imperavam no suposto reservatório. Naquele momento soube que se tratava de
um reservatório de móveis em desuso, de fato não era um quarto que abrigaria
algum cliente.
Caminhava com cuidado para não tropeçar, um raio iluminou o aposento
proporcionando uma visão pavorosa. Deveras, o ambiente parecia estar
abandonado há séculos. Temeu pela sua integridade. O dono do hotel, sem
dúvida, possuía um parafuso a menos. O velho estaria subindo ao segundo
andar? Tremeu, virou-se para fitar a porta do reservatório, o corredor continuava
mergulhado no seu breu cotidiano.
Ocorreram os efeitos da luminosidade de outro raio, foi possível perceber que a
janela do aposento estava cerrada com tábuas de modo que a luminosidade do
raio surtia pouco efeito.
Surgiu uma questão em sua mente. Por que não procurara por um interruptor ao
entrar no recinto? Talvez da mesma forma como o escuro nos deixa em um mar
de dúvidas sobre o que se passa ao derredor, também nos protege de ser vistos,
nos encobre.
Suas pernas estavam quase travando, chegou ao fim do aposento, perto da janela
cerrada por tábuas. Os sons dos pingos haviam cessado, não percebera até
então. Outra questão difícil de explicar, os pingos cessaram pela sua presença ou
ao acaso?
Um turbilhão de reflexões passou pela cabeça de Norman, o seu quarto seria um
lugar mais seguro e precisava retornar para um banho, pois o amigo poderia o
chamar e constatar a sua ausência.
Tomou o rumo da porta, era possível distinguir pouca coisa ao derredor. Sentiu
uma crescente inquietação e queria estar em seu aposento o mais depressa
possível. Em seu íntimo, desejou correr e quebrar as barreiras das cogitações,
mas sabia que deveria ser prudente e não alarmar sua presença.
Passo a passo e com calma chegou até a porta de saída, contorceu-se para
atravessar a porta e foi parar diretamente no corredor. Bastava fechar o limite do
reservatório misterioso com o corredor e ir para seu quarto como quem nada viu.

179
Abraçou a maçaneta, desta vez com a mão direita e forçou mais do que o normal
para conseguir encostar a porta e fechá-la. Executou sua tarefa sem alarde, como
um espião, o corredor continuava mergulhado na escuridão.
Suas reflexões eram suas inimigas. Talvez existisse alguém ou algo no recinto que
acabara de visitar que o fosse seguir, sentiu o estômago gelar, queria entrar em
seu quarto e trancar a porta imediatamente, se abrigando, obtuso ao restante do
hotel.
Correu destrancar a porta de seu quarto, abriu-a, acionou o interruptor e o abrigo
se iluminou antes que surgisse o sinal de mais um raio. Entrou e trancou a porta
com extrema rapidez, pensou no banho, mas nem se preocupou se algo em seu
quarto fora modificado. Encostou-se à porta e refletiu que o que mais queria
naquele momento era possuir a única chave capaz de trancar para sempre a porta
do reservatório.

***

A primeira reação do padre Alvarez Leone ao entrar na igreja foi analisar se o


serviço prestado por Lionel Harter havia sido concluído.
A luz proporcionada pelos incessantes raios substituía a necessidade de uma
fonte contínua de iluminação da igreja.
Fechou a porta atrás de si e a trancou. Procurou pelo interruptor apalpando a
parede ao lado da porta, logo a nave da igreja se iluminou.
O padre estava completamente molhado, pois tomara alguns segundos de chuva
que era capaz de ensopar em questão de milissegundos. Ele ainda não vira
tempestade parecida, soava como um capricho majestoso da natureza reservado
para aquela noite que antecedia a missa dominical.
Era o momento de recordar as últimas obrigações antes de se recolher e dormir. A
primeira que lhe veio à mente foi a de tocar o sino à meia-noite, a última
obrigação. Necessitaria esperar algumas horas para executá-la e enfim poder cair
na cama.
Correu para o banheiro e se dispôs da indumentária que muito lhe atormentava.
Ligou o chuveiro e deixou que os jatos de pingos aquecidos banhassem seu
corpo.
Cumpria toda a sua obrigação com prazer, mas algo lhe atormentava quando
tomava banho. A questão do celibato levantada por Lionel Harter o fizera lembrar
de que ainda não deixara sua masculinidade de lado e tinha plena consciência de
que era um homem comum, inclusive na área sexual.

180
Uma dúvida lhe incomodava muito. Todos os padres seriam verdadeiros eunucos
ou se aguentavam uma vida toda, a fim de não esboçar seus desejos naturais de
homem?
Não acreditava que a sensação de se sentir homem o pudesse render uma
punição eterna. Lembrava-se de Brenda Malone, de tez tão tênue, possuía uma
beleza escultural. Não que a desejasse, mas discernia a diferença de homens e
mulheres ao redor. Homens como semelhantes e mulheres como portadoras de
uma diferença especial, capaz de completar a parte que faltava no homem, ele no
caso, se incluía em tal reflexão.
A água quente lhe dava um vigoroso prazer de viver, o desconforto da tempestade
fria em seu corpo se dissipou por completo.
Garantir um delicioso café seria outro prazer para aquela noite, depois bastaria
selecionar uma leitura para aguardar a transição de um dia para o outro e tocar o
sino.
Ora bolas, ninguém conseguiria escutar o toque do sino com uma tempestade
daquelas, mas precisaria tocá-lo, era bom não facilitar.
Desligou o chuveiro e pegou seu pijama azul que ficava pendurado no banheiro,
sempre. Enxugou-se procurando não recordar de sua parte masculina, vestiu o
pijama e se encaminhou para a biblioteca que era também o seu quarto, dormia
no imenso assento aconchegante envolto por livros. O cheiro de livros gastos pelo
tempo estimulava seu sono. A parte interior da igreja não possuía um pequeno
cômodo que pudesse servir como quarto, elegera então a biblioteca como
aposento.
Chegando à biblioteca, vestiu suas pantufas e correu à cozinha preparar um bom
café. Não sentia frio, pois seu pijama era revestido por uma camada de pele de
animal, como a dos casacos usados comumente nas regiões glaciais do planeta.
A água fervendo emanava um vapor de temperatura mais convidativa que a do
banho, o padre inalava o vapor já imaginando o café quente banhando seu
estômago, definitivamente era muito bom esticar as pernas e relaxar.
Misturou uma quantidade significativa de pó de café na água que fervia, queria
tomar um bem forte e pouco adoçado.
Soou o estrondo de um trovão que lhe fez tremer o corpo todo, o mundo parecia
estar prestes a desabar. Julgou ser o trovão mais forte da tempestade até então.
Era impressionante como o clarão de um relâmpago era capaz de transformar
ambientes escuros e abandonados em atmosferas fantasmagóricas. Pôde
constatar isto na nave da igreja, quando transportava o café da cozinha para a
biblioteca. Pensamento vão, uma vez que tinha certeza de estar em um ambiente
santo.

181
Faltava dar uma olhadela nos livros e escolher qual iria ler até o findar do dia.
Estava enjoado de temas escatológicos e da história da igreja. Já sabia
praticamente tudo sobre.
De seu leito improvisado era possível ver parte da igreja e seus assentos,
imaginou que alguém estivesse ali sentado o observando, mas afastou os
pensamentos torpes. Não acreditava na manifestação de seres de outro mundo,
uma vez que conhecia muito bem a verdade, e sabia que a mente de uma pessoa
é a sua principal inimiga, podendo levar a mundos inimagináveis.
Portou-se rente à estante recheada de livros que haviam sido separados pelo seu
fiel mão-direita Lionel Harter. Passeou os olhos pelos volumes, buscando um que
lhe contentasse.
Parou o olhar em um volume enorme e de capa grossa, o retirou da estante, devia
pesar cerca de cinco quilos, talvez três de poeira, seu ajudante havia espanado
muito mal os volumes literários.
Parecia um volume sobre psicologia e religião, seu título era “O mal do século”, do
autor Zacharias L. Wooden.
Virou a capa grossa e leu a página inicial em voz alta.
― Uma fascinante analise psicológica do autor nos leva a questionar se o mal do
presente século é de fato a depressão ou se o mal se resume estritamente à
religião...
Entendeu que o autor defendia a tese de que a religião era o mal do século.
Desabafou como quem praguejava:
― O mal do século é a incredulidade, quanto mais estudam mais se afastam dos
mandamentos da mãe igreja. Torpes!
Lançou o livro sobre seu leito.
― Vamos ver do que se trata.
Foi buscar um cobertor, os relâmpagos estavam mais vorazes e temíveis, era
como se estivessem avisando sobre a breve vinda de um acontecimento histórico.
Talvez, de fato, aquela fosse a tempestade mais terrível que já vira.
A chuva batia com uma força tamanha nas paredes da igreja que dava a
impressão de que Pitfall iria para os ares a qualquer instante. O frio se misturara
com a tormenta para impedir que qualquer ser vivo saísse de seus abrigos, casas
ou tocas.
Pegou seu cobertor, queria poder dormir, mas as horas pareciam não passar, a
tempestade parecia impedir que o tempo transitasse.
Acomodou-se, coberto, abriu o volume no primeiro capítulo e deixou sua mente se
envolver pela leitura, esquecendo-se de tudo o que acontecia ao derredor.
“Buscando informações em diversos países e analisando fatos históricos cheguei
à conclusão de que deveria me incumbir da missão de mostrar aos leitores que

182
verdadeiramente o mal do século é a religião, e não a depressão como dizem por
aí.
Nas minhas peripécias pela Europa encontrei um pupilo italiano que aos sete anos
estava convencido a seguir os caminhos de um padre. Sua mãe frequentava a
igreja e o menino para não ficar sozinho a acompanhava, era uma mulher religiosa
e queria que o menino seguisse o bom caminho e fosse um bom homem.
Porém com o tempo, o menino ficou apegado de maneira tão agravada com o
padre que chegou ao ponto de não mais considerar sua mãe, haja vista que uma
criança da referida idade não rompe seus laços com a mãe tão facilmente, na
verdade, isto é praticamente impossível.
A pedido da mãe, não me aprofundarei nos detalhes, mas o auge da desavença
foi quando o menino afirmou que o padre o ensinara a lavar os pés dos homens
da igreja.
Para os fiéis, o menino teria entendido de maneira errônea uma colocação do
padre e transformado um simples ensinamento religioso em uma verdadeira
tempestade no copo d’água.
Em minha opinião, uma criança de sete anos não deveria se envolver
profundamente com qualquer religião e ponto final.
Outro fato que presenciei na Irlanda foi o de um pastor ser visto gastando o
dinheiro da oferta na compra de cerveja, o povo queria linchar o pobre homem,
enforcá-lo em praça pública.
Gastei minhas economias buscando casos parecidos pelo mundo, a fim de retratá-
los neste livro e acreditem, fui recompensado, hoje muitos estão convencidos de
que a religião pode escravizar quando mal pregada.
Tive o prazer de desmascarar um telepata charlatão que afirmava se transformar
no Drácula em seu castelo na Transilvânia, toda lua cheia, à meia-noite, ele fazia o
seu show que será um prazer descrever nas próximas linhas.
O povo assistia maravilhado o número que acreditavam ser real, o homem subia
no topo do castelo abandonado e com um segredo de luz refletida em espelho
retratava um homem de capa preta flutuando pelos ares em torno castelo.
Hospedei-me nas redondezas e numa noite em que muitos espectadores vindos
do mundo todo se aglomeraram para o número falso, subi ao castelo de modo que
o charlatão não me visse e quando ele acionou sua engenhoca, entendi seu
funcionamento que contava com um espelho. Quando o número estava em seu
auge, quando todos acreditavam estarem vendo o Drácula em carne, osso e
caninos, eu virei o espelho e a imagem refletida passou a ser repentinamente a do
charlatão escondido fazendo algo que eu não entendia na sua engenhoca, talvez
preparando um fato inédito para o show.

183
O povo que não era bobo, mas sim significativamente culto percebeu o que se
passava e subiu em multidão ao topo do castelo para tirar satisfação com o falso
mágico. A sorte do telepata foi que os castelos antigos possuem passagens
secretas que são praticamente impossíveis de serem encontradas, mas ele já
havia estudado a construção histórica e se escondeu numa delas que eu acredito
ser na torre central do castelo.
Eu fui confundido com ele pela multidão, mas logo consegui acalmar os ânimos,
quase me custou a vida aquela noite, mas entrevistei o charlatão dias depois e me
passei como alguém da multidão, ele não entendeu até hoje como sua sorte, ou
espelho virara misteriosamente, mas sua teoria é de que despertara o Drácula que
não queria ser alvo de imitações e fora castigado da maneira mais leve possível.
É divertido desmascarar charlatões. Este que eu desmascarei pode até chegar a
ler este livro e querer se vingar, mas acredito que quando minha obra for
publicada, ele já será um velho calvo e vendedor de pães que aprendeu muita
coisa na vida.
Não tenho queixas contra as religiões, mas sim com muitos falsos líderes
infiltrados e enganadores, é como eu acredito, lobo em pele de cordeiro.
Muitos escravizam os fiéis, os mandando limpar seus templos, e pior, senhores de
idade que quando se deitam para dormir pedem clemência ao sentirem fortes
dores lombares...”
O padre cortou a leitura, estava incomodado como se as palavras que lera lhe
servissem de carapuça, fechou o livro e praguejou:
― Herege!
Mas o que havia de mal em ser ajudado pelos fiéis que estavam se dedicando à
obra? Devia dar um crédito para o autor que deixara bem claro que existem os
líderes religiosos bons e os ruins.
Levantou-se do leito que já aquecia de modo agradável, era preciso dissipar o
sono que começava a lhe dominar.
Foi ao banheiro lavar o rosto e aproveitou para escovar os dentes que desde a
manhã daquele dia não recebiam uma boa dose de higiene e cuidado. Ao passar
pelo corredor escuro pôde contemplar a visão alucinante que era a igreja ao
receber o lampejo de um raio. Definitivamente sabia que a mente era capaz de
transportar para mundos não existentes. Sentiu calafrio, algo que sentira apenas
quando criança.
Correu para o banheiro fazer sua higiene pessoal e agradeceu a Deus por mais
aquele dia que fora corrido, mas recompensador para a obra da mãe igreja.
Quem garantia que fosse verdade os fatos relatados pelo autor do livro que
acabara de dar uma bisbilhotada?

184
Tinha a firme certeza em seu coração de que era um homem de bem e altruísta,
acreditassem ou não, poderia colocar a mão no fogo pelas pessoas, quer dizer,
pensando melhor não sabia qual era a sensação de ter sua carne consumida por
brasas, talvez estivesse enganado. Porém não largava a certeza de ser um
homem reto.
Terminou de escovar os dentes e lavar o rosto. A tempestade não amainara,
parecia ter piorado. A chuva batia no teto da igreja com uma força descomunal,
era possível se ter a impressão de que a qualquer momento tudo iria pelos ares.
Certa vez ouvira dizer que as árvores atraiam as descargas dos raios, talvez a
tempestade parecesse tão rigorosa pelo fato de Pitfall ser envolta por imensidão
de bosques.
Voltando à biblioteca, pegou o livro que lhe ofendera brutalmente e o depositou em
seu devido lugar, talvez o queimasse após a missa dominical.
Contemplou a cômoda ao lado do quadro da Santa Ceia e seus olhos pareceram
esboçar um sentimento alegre e sombrio, tateou os livros em busca de algo.
Encontrou o que tanto desejava, um molho de chaves bem escondido dentro de
um volume oco que por sorte passara despercebido aos olhos de Harter. Foi
destrancar a cômoda que lhe causava fascínio, sem hesitar.
Rodou a chave no trinco e ouviu um clique, poderia abrir a cômoda quando
quisesse. Esperou alguns segundos antes de abrir o móvel rústico, como quem se
preparava para o que iria encontrar.
Enfim, girou a maçaneta e teve a visão do conteúdo da cômoda, que por sua vez
muito intrigara seu ajudante Lionel Harter.
Firmou os olhos no canto esquerdo da cômoda. Pela segunda vez em alguns
minutos agradeceu a Deus. Naquele momento, de olhos fixos contemplava o seu
alter ego, a menina dos seus olhos, o que mais lhe deixava feliz nas noites frias.
Sentia um imenso gáudio.
Estava espantado com a sua atitude, não sabia se pelo olhar fixo demais ou pela
emoção, mas seus olhos estavam a ponto de lacrimejar.
Aquilo era bom.
Mas não era possível, sabia no seu íntimo ser um homem incorruptível.
Uma lágrima sorrateira escorregou pela sua face.
Há quanto tempo o padre Alvarez Leone não chorava de emoção por algo ou
alguém!

***

Os planos de fazer rondas durante a noite pelo vilarejo foram varridos pela
tempestade.
185
George Conway deveria ficar preso no xerifado. Por ironia, o seu trabalho era
infligir a lei, prender. Porém era ele que se sentia impedido de ver a luz da
liberdade naquela terrível noite.
Era terrível a seu ver, pois nunca vira uma tempestade tão avassaladora como
aquela. Não tinha a plena certeza se o teto e as paredes do xerifado aguentariam
a força brutal da natureza por mais tempo.
Poderia se abrigar na taverna, mas como saber se a mesma não fora fechada pelo
dono por causa da tempestade? Não custaria dar uma averiguada.
Abriu a porta do xerifado e investiu sua cabeça contra as vigorosas gotas da
chuva. Não poderia deixar que a água entrasse na sala do recinto por muito tempo
e seria imprescindível fechar a porta novamente. Deu uma olhadela na direção da
taverna e constatou que tudo estava apagado, caso a taverna estivesse aberta,
poderia perceber uma fresta de luz iluminar a rua principal.
Ter certeza do que pensara era tudo o que queria, fechou a porta e a trancou.
Sabia da necessidade de alimentar a lareira com mais achas de lenha. Correu
cumprir esta tarefa.
Depois se serviu de um bom uísque Red Label, presente do xerife para o amigo
tão prestativo. Afinal, merecia receber tais dádivas, de fato era um ajudante muito
precioso.
Ouviu o estrondo de um trovão ao longe, as árvores pareciam clamar por
misericórdia, cansadas de receber as investidas da chuva.
Consultou o relógio da parede. Nove e meia.
Demoraria em o sono chegar. Precisava elaborar alguma atividade atrativa que lhe
despertasse o sono.
Não podia reclamar, dormia muito bem durante as noites. Mas sentia falta de algo
para fazer, naquela noite em específico.
Trocou sua vestimenta com paciência, operação tartaruga. Depois refletiu no que
poderia fazer para satisfazer a sua impaciência.
Algumas flexões ou abdominais estavam fora do alcance, pois o suor lhe invadiria
junto com o desconforto de se estar ensopado de líquido malcheiroso. Não seria
uma atividade atrativa.
Pensou em jogar golfe na cela, mas o que poderia usar como taco e bolinha?
Nada no xerifado poderia simular um taco tão menos algo uma bolinha.
Foi arrumar sua cama, como queria estar com sono. Era como querer chegar ao
cume de um monte que já era sabido ser inalcançável.
Mas espere aí, o xerife possuía uma cartela de calmantes em sua gaveta, junto
com algumas balas de espingarda. E até onde sua cultura chegava, sabia que um
calmante era capaz de derrubar qualquer um em questão de um quarto de hora.
Estava ciente da solução para o seu problema.
186
Tomou mais um copo de Red Label, outra solução era se embriagar e desmaiar,
porém driblando sua conduta de oficial, não se rebaixaria a tal ponto.
Correu até a gaveta do xerife e procurou pela cartela de comprimidos em meio à
bagunça de pequenos objetos. Apalpou três balas de espingarda, um óculos não
mais usado pelo seu superior e enfim tateou a cartela de calmantes. Havia dois
comprimidos, outros oito já haviam sido consumidos. Pura sorte, um comprimido
bastaria para salvar a sua noite, depois se justificaria com o xerife que não levaria
a mal sua atitude.
Quem poderia precisar de auxílio numa noite como aquelas em que não é possível
sequer sair de seu aconchego? Assim, poderia dormir despreocupado.
Retirou o comprimido e o engoliu, tomou um gole de uísque por cima. Já estava
com o estômago enjoado do gosto do uísque, mais puxado para o gosto de
madeira do que para o sabor de álcool.
Olhar as paredes também de madeira e imaginar os troncos das árvores
incrementava seu enjoo.
Bastava esperar que as substâncias químicas do comprimido invadissem a sua
corrente sanguínea para dormir como uma criança. Novamente olhou para o
relógio.
Nove e quarenta.
Aproximadamente às dez da noite passaria do mundo dos vivos para o mundo dos
que dormem.
Estava mais calmo em saber que sua agonia duraria pouco tempo, o estrondo dos
trovões chegavam a incomodar, mexer com os nervos, até mesmo de alguém
sangue frio como ele próprio.
Passaram-se dez minutos e ele começou então a sentir os efeitos do calmante,
sentiu fraqueza nos nervos e um desejo de dormitar. A mesma sensação de quem
acorda muito cedo para trabalhar e deseja mais cinco minutos na cama.
A dosagem do calmante do xerife parecia ser além do normal, poderia derrubar
um touro talvez.
Passaram-se mais cinco minutos.
George Conway estava quase em estado de paralisia. Seus músculos a muito
custo poderiam ser movidos, fechou os olhos, lembrou-se de sua cama bem
arrumada o esperando, mas não daria tempo de se levantar e chegar até lá antes
que a calma proporcionada pelo santo remédio o abatesse por completo.
Escorou a cabeça na mesa do xerife e dormiu, entrou em estado de sono profundo
rapidamente, mais do que o normal. O xerife precisava rever a dosagem de seu
calmante.
O dopado homem não mais pensava ou se pensava não chegava a ter noção
sobre o quê.

187
Entrou em um sonho. Caminhava pela campina de um reino e se aproximava de
um castelo, cavalgando em um cavalo imenso e negro.
O que mais lhe chamava a atenção no sonho era o som dos cascos do cavalo se
chocando contra o chão. A campina cheirava o uísque que bebera de modo que
seu estômago enjoou.
Aproximou-se da imensa porta de madeira do castelo e desceu da montaria.
Mais madeira na jogada, aquilo era perseguição.
Antes que pudesse reagir e impedir seu cavalo, assistiu o imenso animal investir à
porta do castelo com suas patas, dava fortes pancadas com seus fortes cascos e
produzia um estrondo ensurdecedor que o fez despertar de seu profundo sono,
talvez o mais profundo de sua vida.
Assustado, ergueu a cabeça, não sabia o que se passava até seus ouvidos
sofrerem com o barulho estarrecedor provocado por batidas desesperadas na
porta do xerifado. Sentiu o coração gelar. Olhou para o relógio.
Dez horas e dois minutos.
As batidas deram uma pausa e foram retomadas mais fortes, era como se o
cavalo do sonho batesse à porta, nenhuma humano teria força para quase
derrubar a porta a fim de chamar a atenção dos presentes e obter socorro.
Estava quase sem movimentos, mas conseguiu pegar o rifle pendurado à parede.
O rifle continha seis balas, suficientes para abater um cavalo negro como o do
sonho.
As batidas retomaram. Gritou assustado:
― Quem está aí?
Não obteve resposta. As batidas cessaram e o silêncio dominou o ambiente.
Acalmou-se e aproximou-se da porta quando as batidas voltaram mais fortes do
que nunca. Era como se um urso ou um gorila desesperado quisesse entrar para
se abrigar da tempestade arrasadora.
Seus sentidos estavam lentos, nem mesmo conseguia refletir sobre como agir, o
remédio do xerife o tinha abatido surpreendentemente.
Pensou em dar um tiro na porta para afugentar o provável animal de porte. Como
explicaria um furo de tiro na porta do xerifado para o seu superior?
Porém, de fato, precisava resolver o problema. Novamente experimentou indagar:
― Quem está aí?
Não houve resposta, precisava agir. A situação se tornava insustentável. Mirou o
rifle no meio da porta, estava com pouco reflexo, era questão de experiência e um
pouco de coração, ou sorte. Atirou.
As batidas cessaram, seja o que quer que fosse, foi afugentado ou abatido. Correu
até a porta, destrancou-a e abriu-a. Foi recebido pelo mundo exterior com a

188
luminosidade de um raio, mas não havia qualquer sinal do que esperava
encontrar, afugentara a coisa, contudo, ela poderia voltar.
Sentiu ansiedade de saber com o que estava lidando. Girou a cabeça para estudar
a rua principal, era possível distinguir pouca coisa, a chuva formava uma
verdadeira barreira, impedindo a visão da floresta que se transformara em uma
massa negra e disforme.
Sentiu desconforto ao lembrar-se das cenas de filmes em que o monstro, na
maioria das vezes lobisomem, pegava sua presa desprevenida e indefesa. Tornou
para o xerifado e trancou a porta sem mais demora.
Precisava dormir, o efeito do calmante ainda era forte e estava no seu começo.
Pendurou o rifle no seu devido lugar. A sensação de desconforto continuava lhe
dominando.
Pensou em pegar o rifle e deixar ao lado de seu leito, como proteção, e assim
poderia reagir. Não sabia ao certo se de fato estava acordado ou no meio de um
mero pesadelo. Lembrou-se de que o rifle contava com uma bala a menos que
poderia fazer falta, carregou-o completamente com uma bala das que estavam na
gaveta do xerife. Teria uma bela história para contar no dia seguinte e sabia que o
homem da lei iria acreditar, mas não saberia explicar quem era o visitante
indesejado e misterioso.
Apenas o som da tempestade banhava o ambiente. As batidas retornaram, olhou
para a porta com o coração na boca, que tipo de brincadeira era aquela? E que
humano conseguiria enfrentar uma tempestade daquelas para pregar peças?
Decidiu enfrentar a situação de frente, como bravo homem que era. Correu em
direção à porta como um soldado no campo de batalha, enxergou pelo buraco da
bala e viu apenas algo marrom, esboçou até um grito de ataque, destrancou a
porta e a abriu, preparado para qualquer coisa. Foi quando tomou o maior susto
da noite, ninguém. Como poderia alguém se dissipar no ar em questão de menos
de segundo, sendo que sua ação fora rápida. Seu desafiador poderia estar obtuso
e encoberto no dilúvio, apenas o espreitando. Firmou os olhos em direção à
floresta, girava a cabeça de um lado para o outro, mas não constatou qualquer
movimento suspeito. Deveria mesmo estar no meio de um pesadelo.
Quem poderia explicar o que se passava ali? Diriam no mínimo que ele tomara um
pouco a mais do que o normal e estava tendo alucinações.
Uma questão que poderia ser verdadeira, uma vez que tomara três copos de
uísque e mais um comprimido tranquilizante de dosagem extrema. Queria gritar,
sair atirando. Não esperava passar por tal situação naquela noite que deveria ser
tranquila, não bastasse a tempestade para lhe atrapalhar os planos.
Sentiu que o perigo novamente se aproximava e se trancou no xerifado, naquele
momento, seu bunker de guerra. Quem dera ter um porão para se trancar até o

189
dia seguinte e levantar a bandeira da vitória pela desistência de um inimigo que
cansasse de tanto investir e não conseguisse romper a barreira de seu rival.
Estava agitado, poderia deixar a porta aberta e meter um balaço na cabeça de
quem quisesse investir contra o seu bunker em modo de invasão. Mas a chuva
estava do lado do inimigo e inundaria seu abrigo.
Precisava acalmar-se, deveria haver uma solução, pois não conseguiria resistir às
investidas do inimigo por muito tempo, dormiria em pé. Ainda acreditava que o
cavalo negro de seu inexistente sonho fora transportado para o seu real pesadelo.
Sentiu vontade de gargalhar de sua situação, reconhecia que estava embriagado,
mas não pelo uísque, e sim pelo santo comprimido do xerife.
Surgiu a luz no fim do túnel. Lembrou-se do outro comprimido, bastava tomá-lo e
esperar cinco minutos, assim não teria o desprazer de ser acordado pelas batidas
na porta. Se fosse pego dormindo seria esfolado pelo ser desconhecido e seria um
caso de covardia, talvez melhor assim, não conseguia pensar que aquela seria a
sua última noite, mas sentia o perigo real que o visitante inesperado inspirava.
Correu até a gaveta e seus olhos brilhavam ao contemplar o irmão gêmeo do
objeto vermelho que lhe embriagara até então. Sua cabeça lhe dizia para dormir
em plena batalha e deixar que algum exército salvador viesse no encalço do
inimigo mortal, abriu a garrafa de uísque e se serviu de meio copo, colocou o
comprimido, o último na boca e tomou o conteúdo do copo.
Estava feito, bastava esperar. O inimigo ainda não tornara a bater exigindo
combate.
Sentou-se na cadeira do xerife e se pôs de tocaia, olhava fixamente para a porta,
esperando, talvez, o momento da ação.
Passaram-se três minutos, a última visão que teve ciência foi da porta do xerifado
e os últimos sons que ouvira alguns segundos depois não foram os da
tempestade, mas os de batidas cada vez mais insistentes da madeira grossa da
porta.
Definitivamente não soube se o cavalo conseguiu invadir o castelo ou não.
George Conway dormia profundamente.

***

Os últimos acontecimentos não foram suficientes para desanimar Norman Legrand


de participar dos planos que combinara com Joseph Forbes.
Mas o que lhe incomodava era que o amigo ainda não batera à porta, dando o
sinal do início da execução do plano.
Já havia tomado um banho, fumado dois cigarros e nada do esperado aparecer.

190
Tirou seu par de tênis e ficou apenas com as meias para poder subir à cama.
Engatinhou por sobre a cama até chegar à sua cabeceira, a fim de poder fitar a
rua principal.
O vidro da janela do quarto estava muito embaçado e recebia investida de pingos
da chuva, vez ou outra soava o estrondo de um trovão e o clarão de um raio, mas
era possível distinguir pouca coisa do que se passava fora do hotel.
Não poderia ficar impaciente com a demora do amigo que já passava a ser um
atraso do homem mais pontual que já conhecera até então. Poderia ir
pessoalmente chamá-lo e saber o que acontecera, mas colocaria o plano por água
abaixo. Sem contar que o amigo sabia o que fazer nas horas mais calamitosas. A
menos que estivesse em perigo.
Perguntas surgiram em suas reflexões. Forbes poderia ter sido pego pelo velho ou
caído em alguma armadilha? Preocupava-se com a integridade do outro que era
sua única mão amiga, seu único alcançável refúgio.
Tornou a colocar o par de tênis e foi tatear o closet, quem sabe não encontrasse
algo interessante, e ainda por cima, queria ter certeza de que o quadro da criança
morta continuava no mesmo lugar onde havia sido depositado por si.
Primeiro tateou o canto de onde deveria estar o quadro, sentiu a borda de madeira
do objeto e se contentou. Vasculhou o outro canto da divisão superior do closet,
sentiu uma espécie de pacote, pôde ouvir o barulho do plástico sendo
pressionado. Agarrou o embrulho e puxou para fora.
Não esperava encontrar aquilo, um pacote com quatro velas grossas e brancas, o
pavio parecia ser feito de uma espécie de papelão mole.
― Estranho. Velas caseiras.
Percebeu que as velas pareciam ter sido feitas em qualquer lugar, menos numa
fábrica especializada.
As cheirou, nenhum cheiro fora do normal. Cheirou o pavio, sentiu um forte aroma
que parecia ser de sândalo. Seriam velas aromatizantes para deixar o ambiente
agradável? Não sabia explicar, tudo era muito estranho e anormal no hotel.
Foi interrompido por batidas na porta, conhecia e tinha certeza ser o amigo que
tanto esperava.
Lançou a vela no seu lugar de origem e foi atender o que chegava com prontidão.
Joseph Forbes estava com um casaco marrom e segurava um charuto apagado,
deu um sorriso para o amigo e entrou no quarto. Norman estudou o corredor
escuro e trancou a porta.
O recém-chegado acendeu seu charuto e começou a tragá-lo:
― Isto é um exemplo de tudo o que você não deve fazer.
Norman estava feliz com a presença de Forbes, sempre carismático.

191
― Você me diz para não fumar charuto, fumando-os na minha frente. Muito
irônico.
― Mudando de assunto, trouxe o teu revólver? ― emendou Norman.
Joseph Forbes estava sentado na cama, fumando, apalpou por dentro do casaco
com a mão direita e retirou sua arma, desfilando-a em modo de exibição.
Norman se contentou, queria contar as últimas novidades.
Forbes tornou a guardar a arma e baforou uma rajada de fumaça no quarto.
― Apenas o calor deste charuto para aquecer minha face nas noites frias como
esta que estamos presenciando.
― Muito estranho é que já faz duas horas que a tempestade começou e ainda não
deu um momento de trégua. ― Norman cortou o assunto do charuto.
Forbes arregalou os olhos e seguiu o assunto:
― O mais estranho é o que o Kingston nos disse sobre a irmã dele adivinhar
quando se aproxima uma tormenta. Lembro-me das palavras ditas por ele até
agora, minha irmã tem o hábito de acertar seus palpites meteorológicos. Ora, não
dava impressão de que iria chover, o tempo virou cento e oitenta graus.
― Tudo isso somado aos cookies quase em estado de carvão resulta em um
comportamento muito estranho por parte dos dois. ― disse Norman.
― Eu quero te dizer que ao me ver, Oliver Kingston estava a esconder algo hoje
de manhã. Tudo bem que ele deixou de ser cortês em momento algum, mas algo
lhe incomodava.
― É simples. Em minha opinião ele quer esconder a sua irmã.
Forbes ficou estupefato, era uma reflexão que já tivera pela manhã e gostou de
saber que seu amigo compartilhava do mesmo raciocínio.
― Você pode estar coberto de razão. Se ele a encobre, será por ciúmes?
Norman estava com a resposta na ponta da língua:
― Provavelmente, ele não é casado, os dois não têm pais e ele se sente no lugar
de pai por ser o irmão mais velho. É normal rolar ciúme de irmão em casos assim.
― Pensaste muito bem homem! Mas como sabe que ele é mais velho?
― Você me disse de manhã.
― Eu disse? Cruzes!
― Mas se o caso for este, não pode ser considerado algo relevante. ― emendou
Forbes.
― De pleno acordo, se tivermos que citar algo de relevante em relação aos dois
seria as previsões corretas dela.
Forbes olhou para os lados e colocou as duas mãos em volta da boca formando
um espécie de concha para confidenciar:

192
― Mas ainda há algo que cheira mal nessa história toda e eu vou saber o que é.
Apesar de nossa preocupação no momento se basear única e exclusivamente no
que virá esta noite.
Norman sentiu apreensão. Como seria o desfecho daquela noite para os dois?
― Espero que esta noite acabe bem. ― desejou Norman.
Forbes baforou o charuto que já chegava ao seu fim e tornou a dizer:
― Acredito que terminará bem, sinceramente.
Estendeu a mão para o amigo como quem deseja receber um aperto de mãos
para trocar coragem. Forbes firmou suas palavras:
― Eu não sei com o que estamos lidando e não sei do que aquele velho é capaz,
mas eu te prometo que tudo terminará a nosso favor.
Norman sentia um fio de esperança surgir após as palavras do amigo que deveras
possuía algo positivo. Seu rosto, porém, esboçava preocupação:
― Tenho algo a te contar, Forbes.
― Estou de ouvidos abertos para o meu bom amigo.
― É difícil explicar como, mas eu entrei no quarto da frente, o que parece com um
reservatório.
Antes que Norman terminasse de contar sua novidade, Forbes já estava de olhos
arregalados:
― Você o quê?
― Eu entrei no reservatório, mas não me pergunte como eu consegui, pois nem
mesmo eu sei.
Forbes deu um tapa na testa:
― Você ficou maluco? Sabia que o velho já deve estar ciente de tudo isso?
Norman se sentiu embaraçado com a atitude do amigo, não queria que o plano
dos dois fosse por água abaixo por sua causa, pensou em uma justificativa:
― Eu não tenho medo daquele velho.
Forbes abaixou o tom de voz, não queria surtar:
― Ora, eu também não o tenho, mas já não sabemos o que é real e irreal por
aqui. Eu não duvido se a qualquer momento avistarmos um candelabro flutuando
pelo hotel.
Norman se sentia amedrontado com as palavras do outro, o homem que tanto lhe
inspirava valentia, acabava de confessar que acreditava no impossível.
― Sendo assim o que vamos fazer? Dar o fora do hotel e de toda Pitfall? ―
questionou Norman.
― Seria o prudente, mas algo me atrai como um imã por aqui, eu confesso que
sempre gostei de mistérios e considerar o improvável. Por exemplo, estamos
sendo ouvidos ou espreitados pelo velho Bobster?

193
― Como ele poderia estar nos escutando ou olhando se está no saguão do hotel?
― Ele pode ter os meios dele, nada prova que ele não esteja com um copo no
ouvido encostado à porta deste quarto. ― Forbes apontou com o indicador para a
porta.
― Nesse caso basta abrir e verificar.
Forbes fez um sinal de reprovação para Norman:
― Esqueça. Conte-me o que viu no outro cômodo.
Existe diferença entre lembrar-se de uma cena e recordá-la fantasiando algo,
Norman não queria compartilhar de suas imaginações, mas poderia descrever o
aposento em seu modo físico e as sensações que tivera ao visitá-lo. Como
poderia explicar que ouvira os pingos de uma torneira ou goteira que cessaram
após sua invasão e aproximação?
Pensando melhor, a situação com o amigo era diferente, os dois haviam se
tornado tão confidentes ultimamente que pareciam irmãos que se davam bem em
suas relações.
― E então, não vai dizer? Mas diga em tom baixo.
Os pensamentos de Norman vagaram até momentos anteriores, queria contar
passo a passo o que vivera desde quando seu amigo se recolhera até o momento
que conseguira tornar ao seu quarto sem levantar suspeitas.
― Esperei que você entrasse, me surpreendi que fosse tão rápido e que nem
esperasse eu entrar em meu aposento.
Forbes o cortou:
― Eu estava com uma tremenda dor de barriga, continue.
― Então, quando você se trancou no teu quarto eu me lembrei do reservatório e
fui constatar se a porta estava trancada ou não. Com calma abri a porta, meu
coração gelou, porém a porta emperrou em certo ponto...
Soou um estrondo ensurdecedor, caíra um raio na floresta a poucos metros do
hotel. O clarão possibilitou que Norman enxergasse o mundo exterior pela vidraça
como um gigante arco voltaíco e seu clarão ao redor, chegava a ser uma visão
excitante. Forbes não deu atenção, Norman prosseguiu:
― Eu consegui passar pela fresta que se abriu e adentrei o aposento mergulhado
no breu. Andei alguns passos e inalei um forte cheiro de mofo, a claridade de um
raio me possibilitou a visão de móveis cobertos com lençóis brancos assim como
vemos em casas abandonadas. Ouvia pingos contínuos, mas nada de saber sua
fonte. Foi quando me incomodei e decidi tornar ao meu quarto, consegui sem
levantar suspeitas, estava enfim no meu aposento.
Forbes estava confuso com a declaração do outro:

194
― Nada prova que o velho não estivesse espreitando os teus movimentos no
corredor escuro. É complicado saber, admita que você nos expôs e ao plano
quase deu um fim.
― Eu acredito que ele me advertiria. ― disse Norman com firmeza.
Forbes bufou como se o amigo estivesse com atitude de ignorante, mas não
queria subestimar a percepção do mesmo.
― Isso não vem ao caso, já passou e qualquer equívoco não poderá ser
consertado.
Norman queria dar um jeito de remediar a situação, precisava de uma ideia que
provasse para o outro que não cometera uma imprudência.
Forbes deu a última baforada no seu mini charuto, parecia refletir. Norman chegou
a uma conclusão:
― Poderíamos verificar se a porta do reservatório continua destrancada.
― Uma ótima ideia, assim poderemos saber se o velho a trancou neste meio
tempo. ― Forbes aprovou a ideia de prontidão.
Norman sentia que naquele momento começaria uma noite de preocupações
quanto à integridade dos dois, não sabia se era o momento definitivo de se estar a
milhas daquele vilarejo. O amigo parecia farejar aventura como um cão bem
treinado. Bastaria um deslize para botar por rio abaixo a intenção dos dois. Forbes
tomou a iniciativa:
― Eu proponho que eu vá e você me dê cobertura.
Norman concordou e o amigo se levantou da cama apalpando a arma para se
certificar que esta estivesse bem guardada. Encaminharam-se para a porta.
Forbes deu uma estudada no corredor, o saguão estava mergulhado na escuridão,
provavelmente o velho apagara a lareira e fora dormir.
A claridade dos relâmpagos não era suficiente para permitir uma visão completa
do corredor, a forte chuva continuava a banhar a floresta e o vilarejo.
Forbes fez sinal de silêncio para Norman e lentamente se encaminhou rente à
porta do reservatório. Norman estava na porta de seu quarto dando cobertura.
O homem armado não hesitou em abraçar a maçaneta com a mão direita e a girar,
soou o barulho de madeira sendo empurrada, porém a porta não se abriu, estava
trancada.
Norman estava estupefato com o que presenciava, o outro lhe fez um sinal de
negação e tornou para sua presença. Os dois se trancaram no quarto.
― Ele esteve por aqui! ― exclamou Norman.
― Correto, eu posso garantir que a porta estava trancada a chave.

195
Os caminhos se mostravam estreitos. O que era capaz de causar tanto receio nos
dois homens que não tomavam coragem de desobedecer a ordem insignificante
do velho e descerem ao saguão?
O que poderia ser mais forte do que os disparos de uma arma como a de Forbes?
Forbes pousou a mão no ombro do outro, tinha algo a dizer:
― Sente-se na cama.
Norman o obedeceu em silêncio e escutou a pergunta:
― O quadro da criança morta continua por aqui?
― No closet, está no mesmo lugar em que coloquei na primeira noite.
Forbes fez uma expressão de dúvida e abriu a porta do closet, apalpou a parte
superior e puxou o quadro. Rapidamente fitou a foto retratada no quadro, a parte
traseira estava virada para Norman de modo que este não poderia ter a visão
indesejada novamente, Forbes parecia querer poupá-lo:
― Eu também coloquei o quadro que estava no meu quarto bem guardado na
gaveta superior da cômoda.
Forbes fez menção de exibir a foto do quadro para o outro que tapou os olhos no
mesmo instante.
― Não quero ver isso outra vez.
― Tenha força, será uma experiência interessante.
Norman permanecia com a vista encoberta. Forbes mantinha o toco do charuto já
findado na boca e continuou sua colocação:
― Eu tenho a novidade da noite...
― Eu já vi muito por hoje. ― Norman continuava firme em cerrar sua vista.
― Errado, o show apenas começou. Contemple o quadro que eu estou
segurando, pois é o quadro que deveria estar na minha cômoda.
Repentinamente Norman tirou a mão de frente dos olhos e fitou o quadro que o
amigo segurava. Estava assustado, mais perdido que uma barata tonta.
― Não pode ser!
Forbes deu um sorriso de quem acabava de ganhar uma aposta na mesa de jogos
e continuou:
― O quadro da criança morta está no lugar deste, no meu quarto.
Aquilo conseguiu chocar Norman que teimava em não reconhecer que tudo era
possível naquele hotel e em toda Pitfall.
Norman contemplava o quadro à sua frente que exibia um casal sentado num
sofá. Estavam com os olhos fechados e arroxeados, com certeza estavam mortos.
Era um costume antigo, como se fosse um atestado de óbito.
― Quem são esses dois? ― foram as únicas palavras que Norman conseguiu
dizer.

196
Forbes continuava com um olhar altivo de quem triunfa:
― Não sei, mas ainda vou descobrir. Talvez sejam os pais do velho Bobster. O
quadro data de mais de cinquenta anos atrás.
A velha que estava morta, exibida na foto em nada se parecia com a velha caolha
do quadro do saguão. Era o que pensava Norman. Difícil era tecer qualquer teoria
sobre quem eram todas aquelas pessoas que estavam retratadas nos quadros
espalhados por todo o hotel.
Norman não se conformava com a audácia de Bobster, era preciso tirar satisfação
com o velho dono do hotel, porém, os planos e o compromisso com o amigo
vinham em primeiro lugar. Freou a força de seu ímpeto e procurou se contentar
com a situação. Estavam prestes a virar o jogo, trazia certeza disto.
Forbes esperava qualquer outra ação do amigo, Norman levantou-se e começou a
dar voltas no aposento, sempre fitando o chão. Por fim, disse:
― Temos certeza de que o velho possui cópias das chaves de todos os quartos do
hotel, e que ele exige o cumprimento de regras absurdas como manter seus
quadros no devido lugar. Mas enquanto formos hóspedes, temos o direito de ser
os únicos a entrar em nossos aposentos, mesmo que houvesse uma camareira,
não poderia entrar aqui sem minha permissão. É algo que eu não posso admitir.
Forbes depositou o quadro no closet.
― Não te afobes, entenda que tal atitude do velho pode ser de muita valia para
nós. Imagine que ele pense que estamos com medo do hotel e dele, terá certeza
assim de que está no controle.
Forbes olhou para a vidraça no mesmo momento em que soou o estrondo de um
trovão e ocorreu uma forte iluminação de raio.
― Mas ele será surpreendido hoje. Porém falta algo...
As palavras de Forbes ficaram no ar. Seu olhar estava demonstrando o quanto
refletia sobre o assunto.
― Do que está falando? ― Norman o interrogou.
― Da isca. Acreditamos que ele possa ter a valentia de entrar no nosso quarto
durante a noite, mas não existe um motivo concreto para que ele faça tal visita.
Norman pegou o fio da meada:
― Perdemos o motivo hoje, os quadros.
― Exatamente, o peixe levou a isca antes mesmo de lançarmos o molinete no rio.
Os quadros não estão em seus devidos lugares e quartos, ele fez isto para
demonstrar o seu poder sobre nossas atitudes enquanto estivermos no hotel. Ele
deseja deixar bem claro sobre quem manda aqui.
Tudo ficava muito claro para Norman, o desejo do dono do hotel era simplesmente
mantê-los distantes do saguão. Era possível acreditar que o velho possuísse

197
algum tipo de doença que lhe exigisse certo sossego e descanso, talvez
enxergasse nos hóspedes um aborrecimento.
― Ele é mais esperto do que imaginávamos, mas acontecerá como eu havia dito,
ele terá sua surpresa no devido momento. ― disse Forbes com firmeza.
Norman queria dar crédito às palavras do outro, mas ainda sentia um receio que
beirava o medo ao se lembrar de tudo o que a imagem do hotel transmitia.
― Basta afanarmos algo do saguão, trazer para o quarto e fazer o teste. Se o
velho de fato tem ações sobrenaturais, saberá que o objeto está aqui, em nosso
poder e virá buscar durante a madrugada, assim creio eu. ― disse Norman.
― Não é uma ideia de se descartar, mas como poderíamos executá-la hoje? Seria
quase impossível algum de nós descer ao saguão e trazer algo de lá sem que o
velho percebesse.
― Existe um meio melhor? ― indagou Norman.
― Enquanto estivermos voltando de fora do hotel, amanhã, eu dou um jeito de
distrair o velho e você pega algo em oculto. Mas tudo isto, se caso nosso plano
não oferecer resultados por hoje. Julgue você mesmo este momento. Encontramo-
nos trancafiados neste quarto, distantes do saguão e proibidos de lá ir, com um
velho chato que parece saber o que estamos pensando, seria o momento certo de
se arriscar tanto?
Norman refletiu e percebeu que o amigo não gostava de tomar medidas
precipitadas.
― Você tem razão. Então, o que vamos fazer agora?
― Vamos aguardar a suposta hora em que você vai dormir, esperaremos meia
hora e estará de bom tamanho, eu, você já sabe...
Norman entendeu o sigilo em que deveria se manter as futuras ações, precisava
acompanhar o ritmo do raciocínio do outro que parecia trazer o que viria pela
frente desenhado nos pensamentos. Era o momento de mostrar as estranhas
velas para o companheiro.
― Quero te mostrar algo.
Foi até o closet e puxou o pacote com as velas, depositando-o na mão do outro.
Forbes analisou o achado do amigo com discrição, cheirou o pavio e fez uma
careta.
― Cheiro forte, parece ser sândalo, mas misturado com algo que propaga seu
aroma em maior grau.
― Foi o que eu pensei anteriormente também. Como se explica isso? O velho
pensa que velas podem ser de utilidade para seus hóspedes?
― Acho que sim, pense, por exemplo, se ficarmos sem energia elétrica durante
essa tempestade que se recusa a acabar. Uma vela poderia ser boa aliada,
imagine só, você em banho à luz de velas com aroma de sândalo no ar.
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Norman riu da piada do amigo que não demorou em tornar ao semblante de
seriedade.
― Penso que já podemos agir, vai para o teu posto, amigo.
Enquanto Norman encenava o papel de quem iria dormir, Forbes guardava o
pacote de velas no closet e abria o outro lado da porta de seu futuro esconderijo.
Norman apenas tirou o par de tênis e se cobriu. Forbes cerrou a cortina para evitar
claridades mais fortes e apagou a luz, tornou ao closet e entrou pela porta que
abrira anteriormente. Não fechou a porta por completo, deixou uma fresta de modo
que pudesse enxergar a porta do quarto, se caso alguém entrasse seria visto e
estudado por ele. Estava de tocaia.
Passaram se alguns minutos. Não sabia se Norman adormecera ou se estava
encenando perfeitamente o seu papel, talvez a tensão não lhe permitisse dormir,
ou talvez estivesse com medo.
O clarão de um relâmpago iluminou fracamente o quarto, Forbes sentiu certo
incômodo que parecia estranho a seu ver.
Lembrou-se dos tempos de quartel, participara de um dia de treinamento que
ficara marcado em sua memória.
Fora submetido à missão de rastejar sobre a vegetação baixa da floresta junto
com um grupo de aspirantes a soldados.
Naquela época, já demonstrava um corpo pouco avantajado em gordura e tivera
dificuldade para executar a operação imposta pelo sargento, o grupo estava
metros a sua frente, teve o ímpeto de parar e com muito esforço continuou sua
ingrata missão. Seu pesadelo ocorrera quando perdeu o grupo de vista, sentiu ser
envolvido por uma espécie de manta fofa e bem aconchegante, mas ao passear
os olhos em torno de si percebeu que se tratava de uma imensa teia de aranha.
Seu medo era que a astuciosa engenheira daquela manta branca estivesse
zelando pela sua obra e o castigasse pela invasão. Queria gritar, gritou alto, mas
estava só. Criou coragem e saiu em disparada, rumo ao acampamento do quartel.
Fora um pesadelo, mas para sua sorte não havia qualquer sinal da aranha quando
chegou à presença de um coronel de outro estado que visitava o acampamento.
Estava com o rosto vermelho e seus olhos lacrimejavam, uma mistura de medo e
vergonha. Não sabia se a aranha caíra no caminho de sua fuga ou se não existia
qualquer aranha presente na teia no meio momento em que se embrenhou nela.
O resultado foi que o idiota do coronel que parecia ter ido ao acampamento só
para afrontá-lo, o humilhou na frente dos outros futuros soldados. Forbes nunca
mais voltou ao acampamento, não sabia por que razão, mas não fora perseguido
pelo governo do estado para que voltasse a servir seu país. Talvez sofrera bullying
até mesmo do governo que não media esforços para sugar o pescoço dos
cidadãos como verdadeiros vampiros.

199
Este episódio foi decisivo na formação do caráter do recente adulto que adorava
rock e fazer nada na adolescência. Joseph Forbes transformou-se em um homem
de mentalidade de dar inveja após sofrer com medo e humilhação, seus
pensamentos foram forjados. Sabia de tantas histórias de traumas que levavam
pessoas ao suicídio, mas ele reverteu o placar do jogo e deu um chute na lógica
da vida que obedece a regra de consequência através de acontecimentos antigos.
Haveria uma aranha nos cantos internos do closet? A aranha dos tempos de
treinamento militar viera se vingar justamente no momento impróprio?
Afinal, bons vingadores se aproveitavam de momentos oportunos para prejudicar
suas vítimas. Era bom nem cogitar tais pensamentos, nem por brincadeira.
Precisava se certificar de que o closet não era morada de um aracnídeo para
poder continuar a executar seu papel com tranquilidade. Queria acender a luz e
vasculhar cada canto do closet. Como fazia falta uma lanterna naqueles
momentos.
Abriu a porta devagar e foi até a cama do amigo. Norman estava de olhos abertos,
fitando o teto e se assustou com a chegada de Forbes.
― O que aconteceu? Viu alguma coisa?
― Ei, espere, vamos com calma, me ajude a ter certeza de algo.
Forbes foi até o interruptor e acendeu a luz do quarto, Norman estava
sobressaltado em sua posição.
― Levante, você tem um isqueiro?
Norman não respondeu, mas agiu rapidamente, calçou o par de tênis e foi até a
sua mala, vasculhá-la. Um isqueiro apareceu em sua mão como que por mágica.
Forbes o aguardava na porta do closet e tomou o isqueiro da mão do amigo.
Quando se preparou para iluminar cada canto do closet, soou o estrondo de um
trovão e a luz do quarto se apagou. Norman tomou um susto.
O isqueiro apresentava cerca de dez por cento de seu combustível, o que deixou
os dois amigos preocupados com a situação.
― Que droga! ― praguejou Forbes.
― A luz queimou ou estamos sem energia elétrica? ― questionou Norman.
― Eu acredito na hipótese de estarmos sem energia elétrica. Tente acionar o
interruptor novamente. ― disse Forbes em tom de desabafo.
Norman correu até o interruptor e acionou em um movimento de vai e volta três
vezes, mas a luz permaneceu sem vida.
― O meu isqueiro não vai render mais três minutos, é melhor nos orientarmos
pela claridade dos raios.
Forbes estava de acordo, mas se lembrou das velas. Pegou o pacote e retirou
uma, a menor, afinal, não havia simetria alguma entre aquelas velas.

200
Norman aprovou a ideia do outro, era o mais cabível para aquela situação. Forbes
acendeu a vela e devolveu o isqueiro para seu dono.
A luminosidade da vela permitia uma visão ampla do aposento num todo, era o
consolo da noite. Para Joseph Forbes, bastava ter certeza de que o closet estava
em perfeitas condições de abrigo sem a presença de um inseto nocivo.
― O que você está a procurar no closet? ― indagou Norman.
― Preciso saber se existe alguma aranha nos cantos obscuros...
Norman riu-se da preocupação do outro.
― Não sabia que tinha medo de aranhas, mas eu concordo que dependendo da
espécie, a toxina pode ser fatal.
― Tudo é antigo e feito de madeira neste hotel, não custa fazer uma inspeção. ―
complementou Forbes que já terminava sua missão de busca.
O alívio foi grande, poderiam continuar o plano sem empecilhos. A vela aspergia
um aroma agradável e esfumaçava pouco.
― Volte para o teu posto. ― ordenou Forbes e Norman rapidamente obedeceu.
Uma claridade de raio tomou conta do aposento enquanto Norman cobria-se na
cama, Forbes apagou a vela com um sopro, uma névoa gigante de fumaça invadiu
o quarto, o aroma agradável se agravou. Forbes depositou a vela recém-apagada
no compartimento superior do closet e tornou a tomar o seu posto de sentinela.
Sentiu o seu canal nasal se irritar e queria espirrar, o closet deveria estar
dominado pelos pós de muito tempo, talvez anos. Não se conteve, espirrou, ouviu
o amigo seguir seu ato e espirrar. Mas era uma atitude que não cabia no seu
quebra-cabeça, até onde sabia, o bocejar de alguém provoca o bocejar de outrem
e não o espirrar. Talvez fosse a fumaça dissipada pela vela, que parecia caseira e
deveria soltar fragmentos queimados de seu pavio em combustão.
Estava com a visão embaçada. Olhou para a fresta da porta do quarto e enxergou
uma espécie de luminosidade bruxuleante no corredor, o velho deveria estar a
passear pelo hotel com o seu castiçal de velas ou queria advertir os dois sobre a
falta de energia elétrica, ou na pior das hipóteses, queria invadir o quarto de
Norman.
Talvez o velho estivesse dormindo e como ele mesmo havia ameaçado, o castiçal
de velas estivesse flutuando pelo hotel, fazendo sua ronda fantasmagórica e
arrepiante.
Sentiu seus pensamentos fraquejarem, encostou suas costas no fundo do closet.
Surgiu uma sensação de não se ter as pernas, uma sonolência que nunca sentira
antes. Esfregou os dois olhos para desembaçá-los e quando os abriu, enxergou
apenas a escuridão, ouviu o estrondo de um trovão distante, mas não enxergou
sua claridade banhar o quarto. Estaria ficando cego?

201
Forbes não apenas perdeu a visão, mas também todos os sentidos que lhe
mantinham acordado e atento.

202
20

E A TEMPESTADE CONTINUA...

Oliver Kingston girava freneticamente o dial de seu rádio de pilha, mas sabia que
não obteria sinal de qualquer estação. Havia momentos que Pitfall parecia ser um
castigo, uma verdadeira penitenciária, não se podia ouvir sequer uma música, pois
não havia antena de televisão e rádio cujo sinal cobrisse a área do vilarejo.
Queria ter noção da abrangência da tempestade que irrompera repentinamente,
poderia estar acontecendo desastres por todo o estado da Flórida, caso a
intensidade da tempestade fosse a mesma de Pitfall no restante do estado.
Recebia como resposta apenas ruídos de estações sem sintonia, às vezes era
possível compará-los com gemidos inexprimíveis de ectoplasmas. Insistia em
obter um milagre que sabia que não iria acontecer.
Mas se sua irmã de fato fosse tão certeira nos seus palpites sobre o tempo, por
que não indagá-la sobre a tempestade?
Apesar de considerar que ela estava muito ocupada e não se atentaria em
respondê-lo.
Desistiu das investidas no rádio, girou então o dial por completo cerca de seis
vezes, rapidamente, e nenhum sinal de qualquer noticiário. Aquela tempestade era
inédita, o deixara abismado. O mais espetacular era que sua irmã acertara na sua
colocação, não podia acreditar que ela sentira o cheiro de chuva mais de doze
horas antes da tempestade chegar.
Foi até a janela de seu quarto, fitou a rua principal, mas não podia enxergar muita
coisa. Conseguiu apenas discernir o movimento de uma névoa que passeava
sobre a floresta que por sua vez recebia a investida de pingos gelados. A
temperatura baixara muito desde o início da noite. Seria agradável para dormir,
quanto mais sem o auxílio da energia elétrica que permitiria uma escuridão teatral,
intensificando a sensação de sono. Pensou em fazer um café, mas só o fato de
descer até o primeiro andar já era algo deveras desanimador.
A lanterna se encontrava no colchão de sua cama, pegou o útil objeto e rumou
para o quarto de sua irmã.
Iluminou o ambiente. A mulher estava em silêncio, penteando seu cabelo. Fitava
um espelho oval da cômoda e estava sentada em uma cadeira adornada com um
tecido estampado em flores. Provavelmente estava a se distrair, uma vez que
somente a luz de um raio poderia permitir uma visão satisfatória de seu rosto
refletido no espelho. Às vezes, Melissa nem parecia sua irmã, mas sim um ser que
ousava em amedontrá-lo.

203
Ele pegou um lençol branco que estava na cama e cobriu o espelho, mas a mulher
não esboçou qualquer reação e continuou sua tarefa de pentear o cabelo, era
como se ela pudesse enxergar através do lençol, diretamente no espelho.
Ele acreditava que o espelho pudesse atrair raios para dentro de sua casa, como
se a descarga elétrica fosse morrer no vidro do espelho providenciando uma cena
fantasmal.
Kingston não acreditava que fosse obter a atenção da irmã, mas se arriscou a
perguntar:
― Você sabe se a tempestade vai permanecer por muito tempo?
A mulher demorou alguns segundos em responder:
― Não te preocupes, vá dormir. ― disse ela, que mais parecia um robô
programado para dar uma resposta insignificante de acordo com o
reconhecimento da voz da pessoa.
Não foi o suficiente para Kingston:
― Você quer dizer que a tempestade vai durar até o amanhecer?
Novamente a resposta veio algum tempo depois, a mulher permanecia alisando o
cabelo com seu pente. Movimentos aleatórios e repetitivos na vasta cabeleira
demonstravam que seu objetivo não era o de apenas se pentear e sim de fazer
um carinho:
― A tempestade não amainará até que você durma.
Kingston não entendeu, qual era a relação de seu sono com a tempestade? A
verdade era que sua irmã parecia gostar de falar por enigmas. Sempre fora muito
estudiosa, seu grau de timidez chegou a incomodar com a chegada da
adolescência. Foi consultada então por um psicólogo que não demorou em dar o
diagnóstico de catatônica para ela. Mas, no caso dela não era tão grave, era como
se ela ainda conseguisse ser normal, se quisesse.
Ele convivia com a sua irmã catatônica, que às vezes vivia presa em um mundo
distante, no mundo da imaginação. O doutor dissera que ela fazia parte de dois
mundos, o real e o imaginário. Porém, o imaginário iria prevalecer mais e mais
conforme a idade fosse se agravando e por fim, por volta dos sessenta anos de
idade, poderia dominar a sua pobre irmã quase que por completo.
O doutor prometera existir tratamento, mas era demorado e exigia que os dois
irmãos morassem na capital, sem contar nas intensas consultas que durariam
horas a fio, todos os dias e a grana que ele precisaria conseguir para auxiliar no
que o governo não cobria.
A situação ficara insuportável para Oliver Kingston que decidiu levar a irmã para
um lugar tranquilo. Fora parar na pacata e isolada Pitfall. Acreditava que bons ares
fariam bem para os dois.

204
Não sabia como sua irmã tinha ciência de fatos que estavam distantes de sua
compreensão. Oliver Kingston estava muito inquieto com aquela noite de
tempestade, sua irmã deveria saber algo mais sobre o fenômeno da natureza, do
mesmo modo que adivinhara a sua chegada.
Melissa Kingston continuava absorta em sua tarefa narcisista. Alternava as
escovas de cabelo a cada vinte segundos e massageava o couro cabeludo.
― A tempestade castiga todo o estado ou apenas algumas cidades?
A mulher pareceu paralisar com a pergunta e virou o olhar para o irmão, fitando-o
firmemente:
― Tenho quase certeza que só por aqui.
A resposta deu um sobressalto em Kingston, apesar de não ter entendido por
completo:
― Como assim só por aqui? Apenas nas redondezas de Pitfall?
A mulher cerrou a boca e fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Oliver Kingston não compreendia como podia uma tempestade daquelas castigar
apenas um raio de poucas milhas, sua irmã deveria estar mal das ideias. Todavia,
queria extrair mais informações:
― Não é estranho uma tempestade de tamanho nível assolar apenas poucos
quilômetros?
Melissa ganhou uma expressão de temor e parecia sofrer com algum tipo de
inquietação, demonstrava estar incomodada com o seu irmão que mais parecia
um juiz implacável na busca de uma verdade:
― Ela não é normal, não pode ser normal. ― Melissa cobriu o rosto com as duas
mãos.
Como era difícil conseguir decifrar os enigmas impostos pela limitação da
capacidade de comunicação de sua irmã. O preocupado homem se aproximou da
mulher e depositou a mão em seu ombro:
― Como assim? Não é normal? Sobre o que se refere exatamente?
Repentinamente, Melissa se levantou e correu para o corredor escuro, com as
mãos cobrindo o rosto. Exprimia gemidos de quem sofre grande incômodo.
Eu a forcei demais, deveria ter sido mais objetivo. Ele pensou.
Iluminou o corredor com a lanterna e seguiu em busca de sua irmã.
― Volte Melissa, me desculpe, vamos dormir.
Parecia um pai em busca de uma filha assustada. Cruzou toda a extensão do
corredor e nada de sua irmã aparecer. Queria resolver a questão da melhor
maneira possível, odiava pressionar sua irmã, mas ficara impressionado com a
tempestade que parecia ter vindo de outro mundo e sua irmã era a única pessoa
em Pitfall que poderia lhe dar uma explicação.

205
Retomou sua busca nos cômodos superiores, seu quarto, o banheiro e o quarto da
fugitiva. Nenhum sinal.
Desceu a escada que dava acesso ao primeiro andar, continha uma cozinha, uma
pequena sala de estar e sua venda. A claridade de um relâmpago iluminou todo o
ambiente, a primeira coisa que visualizou foi a estátua de madeira, o grande
pirata, a figura que tanto lhe amedrontava na infância. Era estranho como a visão
do armazém banhado na escuridão lhe dava lembranças de quando era criança,
dos calafrios que sentia.
Gostaria de poder ser um pai exemplar como fora o seu. Porém ainda não
encontrara uma pessoa que pudesse amar, tarefa que seria impossível em Pitfall.
Mas não era momento de reflexões dolorosas. Precisava encontrar sua irmã que
não respondia aos seus chamados, ela deveria estar demasiadamente assustada:
― Apareça Melissa. Não vamos mais conversar por hoje. Por onde anda?
Não obteve resposta, apenas o clarão de outro relâmpago.
A chuva não amainou um pouco que fosse.
Cruzou o caminho para a cozinha e vasculhou o cômodo com a lanterna,
nenhuma anormalidade, nada de sua irmã encolhida em um canto a chorar.
― Tudo bem Melissa. Eu só preciso saber se você está bem.
Seu olhar estava atento, começava a se assustar com a atitude de sua irmã. Era
incrível, mas sua mente começou a tratar Melissa como uma mera estranha, que
poderia ser perigosa, obtusa na escuridão.
De repente, pensou nas facas da cozinha, era preciso escondê-las. Mas qual era o
perigo que sua irmã poderia causar? Nunca fora agressiva com alguém, mas
sempre fora dócil até onde sua capacidade permitia.
Sentiu um calafrio, se virou para retornar ao armazém quando ocorreu um lampejo
em sua mente. Melissa poderia estar vagando no meio da tempestade infernal?
Não era uma possibilidade de se duvidar, uma vez que sua irmã fugira
atormentada de sua presença.
Era preciso estar de prontidão, conhecia os perigos da floresta. Foi até o balcão
de atendimento do armazém e retirou uma chave do bolso, destrancou o cadeado
que impedia o acesso aos objetos guardados no balcão e puxou a portinhola com
rapidez.
Iluminou o interior do balcão. Visualizou um pacote de veneno para roedores que
deveria estar abandonado ali por mais de uma década. Sabia o paradeiro de seu
rifle, o pegou e se sentiu mais seguro, foi tomado por uma sensação de
superioridade que só uma bela arma poderia lhe proporcionar.
Segurou a lanterna com a mão esquerda e a base do rifle com a direita, firme e
pronto para ser sacado. Foi até a porta do armazém que dava acesso ao mundo
exterior.

206
Com outra chave do molho, conseguiu com dificuldade destrancar o cadeado. O
cadeado estava como ele deixara, era impossível sua irmã ter ido para a rua, a
não ser que ela descobriu o segredo que só ele sabia. A velha saída secreta do
porão. Sem contar que Melissa poderia estar escondida no próprio porão.
Abriu a porta do armazém, pingos de chuva começaram a invadir o seu comércio.
Esquecera-se do impermeável, o principal artefato para poder permanecer alguns
minutos debalde da tempestade.
Tornou a fechar a porta, mas não a trancou. Foi em busca de seu impermeável
amarelo que já possuía alguns pequenos rasgos pela idade avançada. Iluminou a
cozinha e abriu uma portinhola superior do armário, retirou um pacote. Há muito
tempo não precisava usar capa de chuva em Pitfall.
Estava preocupado com sua irmã ao mesmo tempo em que desencapava o pacote
cheirando a mofo, freneticamente, sentia seu coração aos pulos, graças ao bom
Deus não era um homem hipertenso.
Queria o mais depressa possível estar no mundo exterior. Arriscou chamar sua
irmã outra vez, sabendo que não obteria resposta:
― Já vou para a cama dormir, é melhor aparecer.
Soou com uma voz de calma advertência, o seu chamado de nada valia. Melissa
deveria de fato estar no porão, ela não sairia numa tempestade daquele porte. Os
relâmpagos continuavam a reinar e clarear os ambientes mais obscuros e
escondidos de Pitfall, as casas que careciam de uma fonte de luminosidade,
porém a densidade da chuva escondia o mundo exterior. Era possível prever que
nenhum ser vivo teria a ousadia de passear fora de seu aconchego.
Conseguiu desatar todos os emaranhados de fita adesiva que transformava o
pacote da capa de chuva em uma autêntica múmia, vestiu sua capa e rapidamente
tornou à saída de sua habitação.
O rifle e a lanterna permaneciam firmes em suas mãos, não sabia como explicar,
mas o rifle trazia uma sensação de segurança, apesar de nenhum habitante do
vilarejo se sentir tranquilo em passear pelas extremidades do bosque durante a
noite.
Abriu a porta e meteu a cabeça para fora, o ruído da água se chocando com o
chão de barro era ensurdecedor, os assovios advindos da floresta davam a
sensação de que se iria enlouquecer.
O vento cortando o espaço entre os galhos das árvores e os fazendo dançar
gerava tal som.
Ficou preocupado só de cogitar que sua irmã estivesse perdida no meio da
floresta, mas ela era pouco anormal e não louca e insensata. Precisava encontrá-
la.

207
Girou a cabeça para estudar todos os cantos da rua principal, apesar de não ser
possível enxergar muita coisa. Ouviu sons de batidas em madeira vindos da
direção do xerifado.
Não era possível que o auxiliar do xerife estivesse tentando rachar lenha numa
situação daquelas, sem contar que seria impossível fazer tal tarefa dentro do
xerifado, pior, o som vinha da rua, de fora do xerifado.
Um lampejo de raciocínio inteligente iluminou suas ideias, havia cientistas que
juravam que os seres humanos não faziam uso de mais de dez por cento de sua
capacidade mental, mas que em situações de perigo, em um clímax de horror ou
até mesmo numa vertigem insondável de nosso ser interior, poderíamos chegar a
usar doze por cento da capacidade da mente.
Foi o que o intrigou, era óbvio que alguém batia incessantemente na porta do
xerifado querendo entrar, talvez pedindo socorro. Tinha quase certeza de que o
auxiliar do xerife iria pernoitar por lá, sempre havia algum homem da lei de
plantão.
Esboçou considerar duas possibilidades, ou o homem da lei havia passado mal e
estava desacordado, ou ficara preso na taverna com a vinda da tempestade de
modo que não atendia à solicitação de ajuda. Mas quem poderia estar pedindo
socorro?
Melissa!
Lógico que sim, Melissa quis se refugiar na presença de um representante da lei e
estava desesperada.
Mas o reverso da moeda o dizia que seria impossível sua irmã se comportar
daquela forma inesperada. Ele apenas a interrogara e nada mais. Ele nem mesmo
representou perigo para ela a qualquer momento de sua convivência.
― Melissa volte, já vamos dormir.
Tinha certeza que o barulho da natureza em resposta à tempestade abafara sua
voz, definitivamente gritar não era um recurso plausível.
Tomou uma decisão impensada, fechou a porta do armazém, mas não a trancou,
e foi em direção ao xerifado. Precisava ter certeza se alguém precisava de ajuda,
mesmo não se tratando de Melissa, seu papel era cuidar do povo do vilarejo, pois
ele era uma espécie de prefeito de Pitfall.
Andou cerca de cinco metros. Sentia a força do ímpeto dos fragmentos de água
da tempestade, como meteoritos vindos de outro planeta que atacavam a Terra.
No entanto, aqueles pingos não eram capazes de castigar por completo.
Suas pernas então travaram, seu coração gelou. Ouvia mais nitidamente os sons
das incessantes batidas na porta do xerifado e pela média cultura que possuía, já
podia saber que pela força das batidas, não se tratava de força humana. Meu

208
Deus, mas não acreditava em lobisomem, nem sequer era noite de lua cheia.
Porém, foi a primeira figura que veio à sua mente, um lobisomem.
Não sabia como agir, queria tirar a história a limpo, mas sua noção de perigo
indicava uma ameaça presente. Sua irmã correria perigo se estivesse fora de
casa, assim como ele sabia que corria.
Firmou os olhos em direção ao xerifado e aos poucos foi conseguindo discernir
uma sombra, o que confirmava não se tratar de uma pessoa, com certeza quem
queria entrar de qualquer forma no xerifado possuía mais de dois metros de
comprimento, era quase um ser gigantesco.
Sabia que não se podia esperar menos, o povoado era envolto por floresta e
estava sujeito à visita de animais. Poderia se tratar de um gorila ou de um
lobisomem.
O fato era que estava com medo e não conseguiria encarar a coisa de frente.
Estava preparado para correr e quebrar o gelo de suas pernas. Mirou o rifle para o
alto, precisava agir rápido para impedir que o cano do rifle se umedecesse
internamente.
Atirou!
O som do estampido inundou o vilarejo, mas não se podia saber até qual
distância. O suposto lobisomem deveria estar a trinta metros de distância, não
sabia ao certo.
Estudou a sombra e por um momento se arrependeu de ter dado o tiro no espaço,
ela ouvira o estampido e reagira. Cessara de bater à porta e parecia ter se virado
para sua direção, era possível discernir pouca coisa, mas a coisa começou a
caminhar em sua direção lentamente.
Oliver Kingston vacilou dois segundos, mas não teve dúvidas, saiu em disparada,
rumo ao seu abrigo. Comprara briga com alguma coisa que nem sequer notara
sua presença até o momento do disparo, era preciso encarar as consequências.
Mas sua irmã estaria segura? Quanto mais agora, com aquela coisa a solta e
vindo em sua direção.
Encostou rente à sua porta e virou o olhar em direção ao xerifado, não era
possível ver a sombra, talvez a coisa se movesse lentamente. Era o tempo que
tinha para entrar no seu abrigo e cerrar todas as entradas. Como confiar em uma
arma de fogo quando não se sabe com o que se está lidando?
Entrou e trancou a porta atrás de si. Sua preocupação agora era com Melissa,
raciocinou e correu para o velho porão, cuja entrada ficava no chão da cozinha.
Desceu a escada do porão preocupado, pois a coisa poderia arrebentar sua janela
da cozinha que dava vista para a rua. Precisava em primeiro lugar encontrar
Melissa.
― Estou descendo. Apareça Melissa.

209
Algo o preocupou, havia oferecido cookies queimados aos forasteiros que o
visitaram naquele dia e eles aprovaram a iguaria. Haviam mentido para não
chateá-lo.
Na ocasião, sua irmã estivera no andar superior e os cookies daquele dia estavam
na cozinha. O tolo subira as escadas e pegara os cookies do dia anterior, que
haviam queimado e permaneceram na bandeja da cômoda do quarto da mulher.
Deveria pedir desculpas formalmente aos dois, mas pensando melhor poderia
deixar tudo como estava, tinha algo mais a se preocupar.
Acendeu a luz do porão e se deparou com bugigangas antigas como louças de
cozinha não mais aproveitadas e caixas e mais caixas de tudo o que se pode
imaginar que é de utilidade em um lar.
Mas, nenhum sinal de sua irmã. Não havia muitos lugares para se esconder e a
passagem escondida que dava acesso à rua estava cerrada com tábuas pregadas
assim como ele deixara.
― Melissa.
Estava preocupado muito mais do que anteriormente, tomou o rumo de volta para
a cozinha com duas preocupações, sua irmã e a estranha coisa que passeava
pelo vilarejo.
Começou a subir a escada do porão que dava acesso à cozinha quando seu
coração quase parou de susto, demorou algumas frações de segundos para
perceber o que se passava.
Melissa estava sentada em um degrau da escada com o olhar absorto como se
nada tivesse acontecido.
― Estava doido atrás de ti, mulher! Por onde andou?
A mulher permaneceu em silêncio, apenas se levantou e tomou o rumo da
cozinha. Kingston se lembrou da misteriosa coisa que o perseguira há pouco.
Queria dar proteção para sua amada irmã e a escoltou até o aposento. Melissa foi
direto para a cama e se cobriu, estava exausta.
Kingston acariciou sua testa com a mão em forma de concha e questionou:
― Onde esteve? Procurei-te em todos os lugares que se possa imaginar.
― Não é verdade, você não olhou debaixo da escada do porão.
― Quer dizer que você estava escondida lá? De mim?
Melissa afirmou com um sinal de cabeça, seu olhar era de receio.
― Nunca mais te escondas de mim, eu não vou te machucar e só queria fazer
algumas perguntas.
Oliver Kingston já tinha a resposta que queria, estava acontecendo algo muito
estranho em Pitfall, falavam tanto da luz verde e agora se deparava com uma

210
sombra com mais de dois metros, quase três, talvez, o perseguindo. Em sua
concepção, Pitfall era envolta por fantasmas.
A voz de Melissa interrompeu seu raciocínio:
― Não tenho medo, apenas não gosto de ficar respondendo perguntas. Quando
raciocino muito para falar minha cabeça começa a doer.
― Nunca me disse isso, mas agora é hora de dormir.
Kingston ficou intrigado com a revelação da irmã.
― Me escute bem, se alguém bater na porta, eu não quero que abra, está me
ouvindo?
― Por quê?
Kingston se embaraçou, mas teve uma bela desculpa:
― O xerife é muito folgado e sempre que acaba a energia elétrica, ele solicita que
eu o acompanhe para fazer uma ronda em Pitfall.
Era um fato verdadeiro que Melissa conhecia, por tal motivo encaixou tão bem
como desculpa. Kingston auxiliava o xerife ou seu ajudante em noites que faltava
a energia elétrica, talvez alguém precisasse de ajuda no vilarejo para se
locomover ou algum idoso de socorro e eles estariam lá presentes.
Kingston beijou a testa de sua irmã e lhe desejou boa noite.
― Você vai dormir também?
― Não, primeiro vou fazer café. ― respondeu Kingston já se retirando.
Ao chegar à cozinha com lanterna e rifle a postos, pensava em várias coisas ao
mesmo tempo. Não duvidaria de qualquer coisa que lhe dissessem, não depois
daquela noite.
Depositou a lanterna em cima da mesa de um modo que iluminasse o seu
trabalho, manteve o rifle preso ao ombro com uma alça e começou a separar os
componentes necessários para um bom café.
Ouvidos atentos, quem sabe a coisa não o fizesse uma visita, estava a postos
como um bom e corajoso soldado, protegendo sua casa, sua trincheira. Melissa
era um companheiro de guerra debilitado que precisava de sua vigília. Não
conseguiria dormir naquela noite, sabendo que a qualquer momento a coisa
poderia querer derrubar a porta de entrada de seu armazém como estivera prestes
a derrubar a do xerifado.
Se preocupava com o xerife e seu auxiliar, estariam os dois ou um deles com
medo da coisa e por tal razão não reagiram aos golpes violentos desferidos na
porta do xerifado?
Estava, porém, com os pés e mãos amarrados. Se abandonasse sua casa,
Melissa estaria em perigo, e os homens da lei saberiam se defender da sombra,
assim não careceriam de seu zelo como a irmã. Não tinha como se comunicar

211
com o xerife, mas poderia explicar o que vira na noite da tempestade caso o
xerifado fosse violado pela bruta fera.
O certo era que dobraria os cuidados durante as noites em Pitfall e advertiria o
xerife sobre.
Começou a misturar os componentes para o café e pensou numa louca
possibilidade, sua irmã tinha o dom de dar alguns palpites nanométricos, fugira de
sua presença e retornara somente depois que ele se deparara com a coisa, o
suposto lobisomem.
Era impossível, sua irmã não poderia ser o tal lobisomem. Somente homens é que
se transformavam na maldita criatura. Procurou afastar o pensamento, mas teve
receio, muito receio. Poderia estar dormindo no quarto ao lado de alguém que se
transformava em uma criatura perigosa.
Não queria acreditar na possibilidade. Lobisomens não existiam, acreditava.
Talvez um gorila seria uma explicação muito lógica para o caso.
O que mais o deixou preocupado foi perceber que não era um homem tão
corajoso quanto imaginava.
Pelo menos não quando se falasse de Pitfall.

***

Um alívio e uma satisfação invadiram o lenhador, acabava de tomar um banho


quente após a fuga da taverna. Não poupara esforços para chegar ao seu lar
mesmo com a tempestade assolando o mundo.
Ensopou-se consideravelmente, mas era digna de nota a sua coragem e bravura,
afinal, um homem forte e sadio como ele teria grandes chances de pegar um
resfriado devido à idade. As ruas de Pitfall estavam mergulhadas em um imenso
breu, apenas algumas luzes de velas nas janelas das casas bastavam para dar
um aspecto de vila fantasma. Ele fora para casa se guiando pelo clarão dos
relâmpagos. A sua sorte foi a energia elétrica ter retornado pouco tempo após sua
chegada em casa.
Lembrou-se dos outros jogadores que ainda deveriam estar presos na taverna.
Enquanto eles afirmavam que não iriam para suas casas até que a chuva
cessasse, o lenhador, mentalmente aqueceu suas pernas e saiu em uma carreira
desenfreada como aquelas em que o fugitivo não economiza esforços e meios
para fugir da polícia. Na verdade, tomara dois belos capotes até o caminho de sua
casa, pois o chão se encontrava num estado de lamaçal a céu aberto. Ora, dois
capotes foram poucos se considerarmos o verdadeiro sabão que o chão havia se
tornado.

212
Gostou da alegria com que fora recebido pelo cão que já deveria estar
atormentado pelos estrondos dos trovões e impaciente pelo regresso do admirável
dono.
Afagara o cão no momento da chegada e correra para o demorado e merecido
banho. Suas roupas barrentas foram lançadas em um canto e seriam lavadas dois
dias depois.
O cão bebeu parte da água que sobrou do banho, assistira de camarote o
delicioso banho do dono.
Os cães gostam mesmo é de se enrolar em todo o tipo de lama. Se Winepowder
pudesse compreender o que era a gosma barrenta e escura impregnada na roupa
do lenhador, ficaria com inveja. E acredite, ele entendia, assim como qualquer
exímio farejador.
Não se importava com a urina que o dono tinha costume de despejar enquanto
tomava banho, era um costume que o lenhador não largara desde a infância. A
água levaria tudo embora mesmo, não deixando um pequeno rastro de seu delito
que fosse. Sem contar que devia satisfação a ninguém.
Horace Singer sentia atração por mulheres como qualquer homem comum, mas
não queria abrir mão de seus costumes, e enxergava na presença de outro
humano um empecilho para sua liberdade corriqueira. Sem contar que
Winepowder era um excelente companheiro.
O lenhador terminou de se enxugar, o cão se satisfez com a água do chuveiro. O
animal recebeu um afago do dono.
― Amanhã vamos passear. Você será o guia, ou seja, iremos onde te der na telha.
O cão pareceu entender e abanou o rabo, todo contente. Depois lambeu a mão
que afagava carinhosamente sua cabeça.
O lenhador tomou o rumo do quarto, precisava vestir sua roupa de dormir que nas
noites frias era acompanhada por uma touca marrom de lã. A tempestade persistia
em castigar o vilarejo. A vidraça da janela do quarto estava totalmente embaçada
e recebia uma verdadeira cachoeira de água. O quarto do lenhador era banhado
sequencialmente pelo reluzir dos trovões.
Horace Singer remexeu as roupas desorganizadas no closet buscando a
combinação para aquela noite. Não demorou a encontrar o que desejava, uma
espécie de capa de tecido fino azul claro e a sua touca especial das noites frias.
O cão acompanhava o dono em suas tarefas, assistia entretido aos movimentos
que não tinha a capacidade de exercer como faziam os humanos. Por outro lado,
seus olhos brilhavam com uma espécie de fascínio que os humanos não tinham a
capacidade de entender, mas somente os caninos.
Era como se o cão interrogasse ao dono sobre o que iriam fazer naquele
momento. Um banquete cairia bem, pois o dono, talvez, ainda não houvesse se

213
alimentado na taverna. Ele estava cheirando a álcool e o cão sentia o odor com
uma propagação ainda maior. O cheiro permanecia mesmo após o banho, deveria
estar impregnado na barba do homem.
Assistiu o lenhador se vestir e fazer uma feição de prazer ao colocar a touca de lã,
daquelas em que a pessoa vira o olho fora da órbita.
O seu dono bateu uma palma como quem gostaria de chamar a atenção e disse:
― Vamos ao jantar. Devemos nos deliciar com algo muito quente.
O lenhador tomou a frente e foi seguido pelo feliz cão que devia estar imaginando
o sabor dos bifes que o dono temperava muito bem. Chegava a melar partes do
chão com a sua baba, de quem imagina delícias à mesa.
Desceram a escada. O lenhador rumou à lareira e tornou a alimentá-la com o
combustível, a madeira que ele mesmo fornecia ao povo do vilarejo. Pegou o
atiçador e mexeu habilmente o conteúdo em brasa, misturando com as achas
recém-chegadas. Cerrou o fogo com a grade de proteção, não queria acordar de
manhã e ver churrasquinho do seu querido companheiro, apesar de confiar na
inteligência do mesmo. Sem contar que lareiras sem a grade de proteção
poderiam aspergir fagulhas no ambiente e provocar um incêndio memorável.
O lenhador espreguiçou-se:
― Nada como se estar protegido em seu lar quando o mundo sofre com uma
tempestade assim.
O cão latiu ao ouvir estas palavras, não se sabia se era em concordância ou se
estava a questionar o que fora dito. Mas para o lenhador, o cão estava querendo
garantir o jantar rapidamente. Na verdade, ele ficou com medo de seu dono
cochilar ao lado da lareira.
Horace Singer foi à cozinha sem pestanejar, o cão o seguiu, mas foi direto à
despensa que ficava ao lado da cozinha.
O lenhador percebeu a atitude do cão e estranhou, admoestou da cozinha:
― Se você remexer as terras dessas mudas ficará de castigo por dois dias sem
sair de casa.
Não percebeu qualquer reação no cão obedecendo a sua resposta e tornando à
cozinha, mas se contentou:
― Está avisado.
Foi até a geladeira e retirou quatro fatias grossas de bife já temperado, depositou-
os em uma tábua de madeira, que era usada para cortar carnes e legumes. O cão
adorava comer seus bifes crus, mas permaneceu na despensa que estava
mergulhada na escuridão. O grau de intriga do lenhador se elevou para uma
escala quase insuportável. Não queria que o cão se deparasse com algo
envenenado depositado por outrem, e sabia que o velho Parker seria capaz de
querer pregar qualquer peça, mesmo que custasse a vida de seu amado animal.

214
Retirou a frigideira do armário, sem desviar o olhar da despensa a qualquer
momento, seus ouvidos estavam ligados para captar qualquer ruído que viesse de
lá.
Acendeu uma boca do fogão com um acendedor em formato de bastão de cerca
de vinte centímetros. Colocou a frigideira para esquentar. Gostava de esperar a
frigideira esquentar o óleo e depois, quando a gordura estivesse bem quente, era
a vez de a carne ir para o objeto que a transformaria no estado apto para ser
consumida.
O lenhador não teve certeza, mas ouviu o som de um leve farejar do fiel
escudeiro. Antes que colocasse a carne para fritar, foi até a despensa em busca
do amigo.
Após apalpar a parede e encontrar o interruptor, acionou o mecanismo que
iluminou o ambiente pouco banhado pelas luzes dos raios. Teve um pouco de
surpresa no que pôde ver. O cão estava farejando a terra das mudas de planta,
pequenas montanhas de terra foram parar no chão da despensa. O focinho do cão
estava negro com as terras bem adubadas das mudas.
― Você não deveria ter feito isso. ― admoestou o lenhador.
O cão não lhe deu atenção e continuou farejando uma das mudas, com o nariz
plantado na terra, sua consciência parecia estar a quilômetros de distância, talvez
a milhares de milhas do vilarejo.
O lenhador passou a mão direita nas costas do cão que rosnou como quem quer
defender seu pão de cada dia e não permite a aproximação de quem quer possa
privá-lo deste direito. O forte homem rapidamente retirou sua mão do cão e sentiu
uma espécie de decepção o tomar e isto incomodou.
― O que há com você? ― indagou o triste homem sabendo que não obteria
resposta satisfatória.
É a segunda vez que eu o vejo farejar as terras das mudas e ser tomado por um
comportamento estranho. Meu Deus! O que está acontecendo com ele?
Já ouvira muitas histórias sobre a indiferença dos cães para com os donos na
chegada da velhice, e calculando que os cães envelhecem sete vezes mais rápido
que os humanos, Winepowder estava na flor da virilidade e da juventude.
Definitivamente não era uma explicação para o caso de seu cão que parecia ser
possuído por uma onda de ciúmes quando se aproximava daquelas mudas de
plantas.
E qual era a explicação para o cão farejar apenas aquela remessa de mudas.
Bem, duas vezes por mês, o lenhador preparava uma quantidade de mudas a fim
de poder praticar o reflorestamento, atitude dos homens de bom caráter e que
reconhecem a importância da natureza. Mas, o cão nunca se encucara com as

215
terras das mudas. Poderia aquela terra ter sido a responsável pela decomposição
de alguma matéria orgânica recentemente e por este motivo o cão tanto farejá-la?
Mas, mesmo assim, já se deparara com um alce em avançado estado de
decomposição, o cão o farejara e demonstrara não gostar nada do odor retirando-
se rapidamente. Para o lenhador, a atitude do cão não tinha lógica.
Decidiu fazer um teste, voltou à cozinha. Apagou o fogo que já esquentava a
frigideira e sua gordura de modo voraz. O calor emanado poderia queimar a pele
de quem se aproximasse.
Cortou uma tira do bife suculento de tempero, carne fresca e da típica gordurinha
das bordas, tornou à despensa.
Fitou o cão que permanecia em seu êxtase, indiferente ao dono e lançou a tira do
bife próximo a muda que o cão farejava. Esperou para ver a reação do cão que
lentamente pareceu despertar de sua hipnose mental e abocanhou a tira do bife,
engoliu-a sem mastigar, hábito normal nele, mas tornou a farejar a terra da muda
após engolir a carne.
O lenhador teve a sensação de desânimo e desprezo:
― Tudo bem, hoje eu jantarei sozinho.
Tornou à cozinha e sem vacilar preparou seu jantar. Iria comer quatro bifes,
sozinho, sem dividir com o indiferente cão, mas pensando bem guardaria a parte
do amigo, era o amor que falava mais alto, talvez o amigo estivesse passando por
um momento de distração e logo tornaria a ser o seu velho e bom Winepowder.
Enquanto os bifes fritavam, o lenhador preparava uma omelete com tomate e
cebola. A mistura destes componentes com os ovos batidos estava pronta para
substituir os bifes na gordura quente, a omelete seria frito em menos de dez
segundos. O lenhador poderia ser um bom cozinheiro, desde cedo fora obrigado a
preparar sua própria refeição.
Era raro pensar em se estar ao lado de uma companheira, mas quando Tania
Bombay vinha à sua mente, era acometido pela vontade louca de fazer o bom
papel de um homem, a beleza e educação daquela mulher mexiam com os seus
sentidos. Por tal motivo evitava ter muito contato com ela, mas uma velha quase
inválida com Dix não poderia atendê-lo quando fosse entregar lenha, nem um
menino de cabeça em desenvolvimento como o filho da bela mulher. Era obrigado
a entregar lenha para Tania e ser recebido pessoalmente por ela.
Decidiu não pensar no assunto, sua preocupação era o cão. Deixara a luz da
despensa acesa, nem mesmo se lembrava da voracidade da tempestade que
ainda não amainara.
Retirou os bifes tostados da frigideira e lançou a mistura da omelete, já estava
com a mão munida da concha. A omelete ficou pronta rapidamente. Escorreu a
gordura da massa e depositou-a no prato específico para ovos.

216
Antes de comer deveria deixar uma água fervendo para o café, se lembrou das
malditas formigas que o haviam picado, precisava se lembrar de fechar a garrafa
devidamente antes de dormir e não a deixar melada nas bordas. Assim evitaria
surpresas desagradáveis ao acordar.
Na verdade, as formigas expelem um ácido na pele da vítima, mas não a pica.
Enquanto a água começava a ferver no fogão, o lenhador comia primeiro a
omelete, guardou um pedaço para o cão que ainda deveria estar farejando terra
na despensa. Os bifes do cão estavam guardados também, o lenhador devorou os
seus de direito, um deles era o que retirara a fatia crua para dar ao cão.
O homem de apetite voraz não demorou em findar sua refeição. Bastava terminar
de preparar o café e fazer uma segunda tentativa de ter contato com o cão que
parecia ser um extraterrestre de outro planeta. Misturou o pó de café com a água
fervida e adicionou duas colheres de açúcar, gostava do café amargo, gosto
puxado para a bebida alcoólica.
Foi quando se preparou para pegar a chaleira quente que tomou um grande susto.
O cão estava parado à porta da despensa o fitando e colocando a língua para fora,
ofegante como os cães quando estão com sede. O lenhador chegou a se queimar
na chaleira quente, mas nada que pudesse atormentá-lo, devido sua brutalidade.
O focinho do cão estava todo lambrecado com a terra das mudas, era de um
negrume profundo. Poderia chegar a ser cômica a cena se o cão estivesse
levando tudo na esportiva.
A dúvida permanecia na cabeça do pobre homem, o cão ainda estaria agressivo
ou havia retornado ao seu estado normal?
Nada melhor como um teste para se matar uma dúvida. O lenhador lançou o
pedaço da omelete recém-guardada e o cão sem pestanejar a abocanhou, afinal
era um de seus pratos favoritos. Abanou o rabo, tamanho foi seu contentamento,
parecia estar em seu estado normal.
O lenhador queria ter certeza, parecia estar tomado por uma espécie de receio
que lhe paralisava, sua sensação chegava a se confundir com medo, mas ele não
admitia ser portador deste sentimento. Lançou por fim os dois bifes gosmentos ao
cão. A reação do animal foi mais versátil do que antes, praticamente engoliu os
bifes, logo depois, correu ao encontro do dono, querendo receber um afago. Foi
uma sensação de grande alívio para o homem, não perdera seu cão para
supostos extraterrestres que usassem terra para implantar suas substâncias
narcóticas capazes de arrebatar a mente de seres vivos e escravizá-los.
Horace Singer afagou o cão que ficou contente.
― Basta dar um banho no teu focinho imundo para irmos nos recolher.

217
O lenhador despejou o café na garrafa térmica e apagou a luz da despensa, não
deixou de fitar as mudas que estavam lhe causando um imenso problema,
queriam roubar a amizade oferecida pelo seu fiel escudeiro.
Eu saberei o que está acontecendo aqui, existe algo de diferente nessas mudas.
Pensou.
Poderia colher outras e descartar aquelas.
Talvez fosse algo natural que o estivesse deixando intrigado, algum odor natural
da terra em certos pontos da floresta, fragmentos de árvores ou madeiras em
decomposição. O olfato do cão fora atraído pela terra das mudas e
verdadeiramente deixara o lenhador encafifado.
Foi até a sala e certificou se a porta estava trancada. Deixaria a lareira acesa para
aquecer a casa, mesmo sem fazer sua folga ao lado da chama crepitante. Subiu a
escada, o cão o seguia satisfeito com a refeição.
Singer depositou a garrafa de café em seu lugar costumeiro e conduziu o cão ao
banheiro para que este tomasse uma rajada de água no focinho negro de terra.
Abraçou a cabeça do cão e abriu o chuveiro.
― Vem aqui seu malandrinho.
Deixou a água do chuveiro criar uma poça na sua mão direita e banhou o focinho
do amigo, a água escorreu barrenta no ralo. O lenhador precisou seguir estes
passos de higiene outras três vezes.
― Pronto. Você vai dormir com o focinho molhado, só de castigo.
Horace apagou a luz, correram para o quarto. Dormir com o focinho molhado seria
uma experiência emocionante para o cão, uma vez que em nada atrapalharia seu
sono e poderia assim retrucar à altura para o dono, como quem esbanja vitalidade
ao ser submetido a algum castigo.
A hora mais esperada daquele início de madrugada chegava para o lenhador.
Precisava preparar seu quartel-general, afinal, chegou o momento de fazer sua
rara vigília. Sentia-se como alguém protegido em seu aconchego, apenas
estudando o que se passava na extremidade da floresta.
Era um aventureiro da madrugada.
Não seria possível se ter uma visão do que se passava lá fora, pois a tempestade
estava demorando em dar uma trégua. Talvez duas horas mais tarde, mas não
aguentaria o tédio de querer ter uma visão das árvores e se deparar apenas com
um vidro embaçado. De qualquer forma, começou a organizar o seu quarto.
Arrastou a cama para o rumo do closet, assim poderia depositar sua cadeira de
balanço rente à janela. O cão a tudo assistia. A cadeira de balanço, feita de
madeira estava forrada com um almofadado fofo, aconchegante. O lenhador a
arrastou em seu devido lugar. Bastava pegar sua arma, desligar a luz, acender o
abajur, cerrar a cortina de modo que fosse possível criar apenas uma fresta de

218
visão, trazer sua garrafa de café a uma distância alcançável e por fim, sentar-se
comodamente, cobrindo-se.
O quarto banhado pela luz do abajur e com a cortina aberta cerca de três
centímetros não permitiria que alguém de fora enxergasse o que se passava
dentro da casa. O lenhador e seu cão estariam devidamente camuflados.
Executou suas tarefas rapidamente e não demorou a se acomodar em sua
cadeira.
Winepowder deitou de barriga para baixo na cama e apoiou a cabeça entre as
duas patas, com o olhar em direção à vidraça da janela.
Horace Singer depositou a arma em cima da cama, ao lado do cão e puxou a
coberta mais grossa. A garrafa de café estava ao seu alcance. De cara pegou sua
primeira caneca de café amargo e a saboreou com imenso prazer.
Desviou seu olhar para o cão e perguntou:
― Você deveria provar um bom café, garanto que iria gostar.
Winepowder não desviou seu olhar da vidraça, mas eriçou o ouvido para escutar
as palavras do dono, não as compreendia, mas sabia que deveria dar atenção,
fazer seu papel de companheiro, para não magoar o lenhador como havia feito
anteriormente.
A torrente de água continuava a golpear a vidraça que não permitia visão alguma
de fora. A claridade dos relâmpagos banhava o quarto de minuto a minuto. A
quantidade de trovões diminuira quase que totalmente, mas o pé d’água era o
mesmo do início do dilúvio.
― Pelo visto nossa vigília foi por água abaixo.
O cão eriçou o ouvido novamente, desta vez de modo mais hábil, estava ligado à
situação e longe de dormir. A claridade dos relâmpagos era um espetáculo a parte
para o cão, como se fosse uma apresentação de queima de fogos de artifício para
os humanos.
Eu nunca imaginei que iria presenciar uma tempestade assim em toda a minha
vida. Pensou o lenhador.
O bravo homem estava intrigado, assim como os habitantes do vilarejo. Apesar de
ser o homem mais frio das redondezas não deixava de se sentir maravilhado com
o capricho majestoso da natureza.
Decidiu tomar mais uma caneca de café, quatro delas era a conta, tudo o que
cabia na sua garrafa térmica. Restavam-lhe mais duas. Poderia passar a noite em
claro caso ingerisse uma alta quantidade de cafeína, mas a tempestade frustrara
seus planos e a dopagem não seria necessária. Não tardaria em deitar na sua
amável cama que ficava mais acolhedora no frio e nas tempestades.

219
O lenhador já considerava tomar aquela caneca de café e deitar. O sono o estava
pegando de surpresa, talvez a pesada refeição num horário avantajado da noite e
o banho quente haviam relaxado o seu corpo a ponto de o querer beijando a lona.
Suas vistas estavam embaçando como a vidraça da janela e seus pensamentos
se embaralhavam em cenas desconexas, queria lutar contra a fraqueza, porém
seu cérebro não obedecia aos seus pensamentos já distantes. Sentiu um calafrio
ao pensar que poderia ter sido dopado ou ter ingerido algum tipo de toxina
propositalmente, foi o impulso do calafrio que o despertou, olhou ao redor, fechara
os olhos não sabia dizer a quanto tempo. Questão de segundos ou quem sabe
horas, mas horas não podiam ser, tinha a certeza que acabara de se deitar e
fechar os olhos há pouco tempo. A tempestade era a mesma, consultou o relógio
ao lado do abajur, dormira por dez minutos aproximadamente, o que para ele não
fazia sentido, pois ainda segurava a caneca de café e a apoiava na perna. Se de
fato houvesse dormido, com certeza teria tombado a caneca e derramado café no
chão.
Olhou para o cão que estava atento e estudando o susto repentino do dono. Se o
cão pudesse responder receberia no mínimo duas perguntas.
Eu dormi? E por quanto tempo?
Era difícil explicar sua situação, pois juraria ter fechado os olhos por poucos
segundos e saberia se houvesse perdido a consciência.
Não queria criar caso para se preocupar, a reação do relaxante banho com o
reforçado jantar mexera com seus nervos e o escravizaram ao cansaço.
Colocou a caneca com metade de café no chão e repousou a cabeça novamente
no apoio da cadeira de balanço. O clarão de um relâmpago iluminou o ambiente,
mas o lenhador já estava prestes a perder os sentidos novamente, chegou ao
ponto de não conseguir mais mexer os membros. Sentiu a preocupação de ter
deixado a caneca com café no chão, sendo que o lugar devido do café era a
garrafa térmica. Não queria receber visitas daqueles insetos infernais pela manhã.
Seu corpo estava bloqueado, mas sua mente funcionava perfeitamente bem,
imaginava estar derramando o café de volta à garrafa e a cerrando.
Foi sua última imaginação antes de dormir como uma pedra.

***

Tania Bombay acordou com o som dos gemidos do filho. O menino deveria estar
mergulhado no mundo de mais um de seus pesadelos.
O garoto possuía uma boa imaginação e fantasiava situações imaginárias únicas.
O problema era que talvez sua boa imaginação influenciasse nos seus pesadelos,
os tornando mais irreais e mais tenebrosos, causando pavor.

220
Todas as noites em que ouvia os gritos do filho do taverneiro, o menino na certa
teria mais um de seus pesadelos. Mas a situação mudara naquele momento, a
tempestade sem fim fora a grande influenciadora de sua imaginação fatal.
― Acorde Howard, querido. Mamãe está aqui.
O menino deu um pulo, era sempre grato ao empenho da mãe em lhe acordar.
Tania abraçou o filho que começou a chorar.
― Estou com muito medo.
― Não precisa temer, mamãe está aqui.
― Mas eu tive um pesadelo e mamãe não estava lá para me proteger.
Tania fitou o menino nos olhos com muito esforço, pois o abraço era por demais
apertado, tanto de sua parte como da indefesa criança.
― Vovó já te explicou o que são os pesadelos. Você lembra?
O menino fez um sinal afirmativo com a cabeça e Tania fez um olhar de incentivo
para que o menino descrevesse sobre o que lembrava.
― Ela disse que quando eu tenho pesadelos é sinal de que eu passei o dia
fantasiando coisas ruins.
― Entendeu? Você precisa apenas mudar a cabecinha.
Tania deu uma batida fraca com o punho fechado na testa de Howard, como quem
cobra lembranças.
― Mas eu tenho medo do grito do menino da rua de trás.
― Não precisa temer, ele é apenas uma criança igual a você, digamos que um
pouco diferente e por este motivo faz algo que não te agrada. Mas não significa
que ele seja mau.
O semblante de Howard era de tristeza, por mais que sua mãe explicasse, sentia
um frio na espinha quando ouvia os gritos do menino da rua de trás, era como se
sentisse que alguém estivesse atrás de si, o chamando da maneira mais medonha
no mundo. Tania queria dar um basta no medo do menino e colocá-lo para dormir,
sabia que um ambiente como Pitfall não era propício para a criação de um filho
pequeno, o lugar era encantador, mas as histórias que eram ouvidas ultimamente
poderiam mexer com os nervos de um inocente menino como seu filho.
― Mais uma coisa, se quiser amanhã eu te levo para conhecer o menino da rua
de trás, você verá que ele é um bom menino assim como você.
― Mas por que ele grita tão alto?
― Quando você é picado por uma formiguinha, você não sente dor e grita?
O menino afirmou com um sinal positivo na cabeça.
― Então, ele sente dor e grita. Mas a dor dele é diferente daquela que sentimos
quando somos picados por uma formiguinha. Ele sente a dor de dentro para fora,

221
pois é doente. A vovó tem este tipo de dor também, mas ela é muita vívida e
valente, já sabe como encarar algumas coisas da vida. Compreendeu?
― Sim. Conta uma historinha para eu dormir.
Tania estava na esperança de o filho cair rapidamente no sono. Qual historinha
contar, se somente Dix as conhecia muito bem em seus mínimos detalhes?
― Está bem, você quer que a mamãe conte uma historinha sobre qual assunto?
Sobre como é a escola?
Tania deitou o menino e o cobriu até o pescoço. Estava sentada de pernas
cruzadas na cama.
― Não!
― Então, que tipo de historinha você quer ouvir?
― A do leão valente que a vovó começou me contar outro dia e não terminou.
― Mas, a mamãe não conhece essa historinha. Posso inventar uma do leão
valente?
Howard Bombay deu um sorriso de alegria, queria ouvir uma historinha inventada
como fazia a vovó, mas uma inventada e contada pela mamãe era a primeira vez.
― Vamos ver como você se sai.
Tania riu da brincadeira do filho e deu asas à sua imaginação, tudo para agradar o
pequeno:
“Existia um vale em que vivia um guaxinim muito sábio chamado Curioso e que
sempre dava conselhos para os outros animais.
Certo dia o guaxinim resolveu dormir dentro do tronco oco de uma árvore que
estava caído perto do precipício.
A tardezinha estava chegando. O guaxinim acordou com o som de pisadas que se
aproximavam do tronco.
Curioso, apesar de sua sabedoria, colocou a cabeça para fora a fim de ver quem
se aproximava.
Repentinamente uma rede o apanhou, rendendo-lhe.
A rapidez e a violência da ação do caçador foram tamanhas que o guaxinim
machucou a patinha...”
Tania cortou suas palavras, o garoto dormia, sua história inventada seria
proclamada ao nada caso continuasse, mas estava bem desenhada em sua
cabeça.
Faltou eu contar a parte em que o leão valente resgata o guaxinim. Pensou Tania
contente com o efeito de sua história.
Levantou-se, queria tomar um copo de água. Estava segura de que o menino
dormia profundamente. Estava mais do que provado como algo feito com carinho
pela mãe surtia bom efeito em seus filhos.

222
Orava para que seu filho dormisse até o amanhecer. Estava exausta e precisava
pregar os olhos que mesmo vermelhos e marejados em função da ardência não
ofuscavam sua beleza.
A porta do quarto estava entreaberta, tomou cuidado para não acordar o menino
quando se retirou do quarto.
A escuridão banhava a sala no andar debaixo, a lareira deveria ter se apagado e
Dix poderia estar com frio, visto que em sua idade avançada não poderia sonhar
sequer em ficar constipada.
Tania acelerou o passo, era possível se locomover graças à luz acesa do banheiro
no andar de cima. Desceu com cuidado a escada, não queria acordar Dix também.
Conseguiu enxergar o sofá, a idosa estava bem coberta com dois edredons.
Aproximou-se calmamente da lareira e se preparou para inserir novas achas de
lenha ao bolo de cinzas quando ouviu a voz de Dix:
― Não se preocupe querida, eu mesma tratei de dar um fim no fogo da lareira,
estava fazendo muita luminosidade e somada aos clarões dos raios me causava
dor de cabeça que já passou, fique tranquila.
Tania aproximou-se do sofá onde Dix dormia:
― Desculpe. Não está sentindo frio?
― Não, estou pensando em suprimir um dos edredons. Não estou sentindo tanto
frio assim. E você minha filha, por qual motivo desceu aqui?
― Estou com sede, tomarei um copo de água do filtro.
― Me conhece há tanto tempo e pensa que me engana, você precisou fazer o
menino dormir?
Tania sabia confiar em Dix:
― Precisei, ele teve um pesadelo.
― Coitadinho, sempre imaginando coisas ruins. ― disse Dixie.
Tania aproveitou para conversar com a idosa sobre o que pensara anteriormente.
― Se não for incômodo, gostaria de falar com a senhora.
― Pode dizer querida.
― Não vai perder o sono?
― Fique descansada, quando eu fecho os olhos, durmo rapidamente, basta estar
exausta. Minha idade é assim, você chega lá.
Tania sabia que a idosa poderia estar mentindo considerando que muitos idosos
tinham dificuldade para dormir, mas sabia também que ela não gostava de ser
contrariada.
― Eu tenho me preocupado com a educação do Howard. No ano que vem ele terá
a idade de ingressar em uma escolinha. Mas eu sinto que cuidar dele aqui em
Pitfall é como cometer um suicídio, não temos profissões por aqui, a grande

223
maioria vive de sua aposentadoria e começaram estas ondas de histórias de
fantasmas que têm me incomodado e principalmente ao menino.
Dix acenava com a cabeça como quem compreendia e apoiava as palavras,
porém, precisava ainda elaborar um conselho sábio para o caso. Não queria ver
Tania sofrendo com pensamentos incertos.
Tania ficou inquieta com o silêncio de Dix. Precisava de um conselho para
acalentar seu coração em torvelinho.
― Amanhã terei uma boa solução para a tua preocupação.
Os olhos da bela mulher brilharam com um fio de esperança. Conhecia a
capacidade da sabedoria de Dix e confiava em seus conselhos. Apertou a mão da
idosa como quem quer proporcionar proteção, acariciando:
― Obrigada Dix. Não sei como posso te agradecer.
O pensamento de Tania vagava sobre a importância do conselho de alguém
experiente e de como os idosos inspiravam confiança.
― Pode dormir tranquila, querida. ― disse Dix.
Tania se levantou e deu um beijo na testa da idosa.
― Não quer que eu reacenda a lareira?
Dix deu um sorriso de bondade:
― Eu não vou precisar.
Tania sorriu da forma carinhosa de Dix e subiu ao quarto, precisava dormir.
A sábia mulher de cabelos grisalhos esperou até ter certeza de que Tania
estivesse deitada e contemplou a janela coberta com uma cortina grossa. Assistiu
a forte claridade de um relâmpago e desabafou:
― Pela primeira vez estou preocupada sobre qual conselho vou dar. É difícil
admitir, mas este vilarejo tranquilo pode trazer muitos perigos para a vida de uma
pessoa.

***

Horace Singer despertou num sobressalto, provavelmente tivera um pesadelo,


pois acordou com o coração gelado e suas pernas pareciam estar travadas, sem
movimento. Não as sentia de forma normal, mas se tinha a sensação de
enformigamento, como se um batalhão de insetos ambulantes transitassem em
sua circulação sanguínea.
Dormira de mau jeito e o assento da cadeira fora responsável por bloquear sua
circulação. Movimentou fracamente as pernas de modo que seu fluído vital
pudesse tornar a circular livremente.

224
Tentou se lembrar do pesadelo, mas não sabia dizer ao certo o que acontecera
nele, talvez algo lhe perseguisse incessantemente. As lendas já reais de Pitfall
poderiam estar abalando seus nervos e tomando conta de seu pensamento, mas
era homem suficiente para encarar qualquer adversário de frente, poderia abater a
todos com a sua força.
Parker se julgava forte o suficiente para enfrentar qualquer oponente, mas na
realidade apenas sua ignorância era capaz de derrubar o ânimo de outrem. Parker
era o habitante do vilarejo que o lenhador mais se lembrava nas suas reflexões
solitárias. O fracote insistia em desafiar seus fortes músculos com provocações
psicológicas, no fundo gostava de Parker que era um inocente, agia como criança
imatura.
O lenhador continuava sentindo o pânico do pesadelo. Olhou para a fresta da
cortina, a tempestade estava no seu fim, um fato que o contentou
significativamente. Mas, o medo prevalecia.
Medo do quê? De quem?
Sempre fora elogiado por sua coragem, poderia chamar a atenção das mulheres
que admirassem homens valentes em todos os aspectos.
O medo o incomodava, não tinha sensação semelhante desde sua distante
infância.
Calma, pesadelos apenas mexem com o psicológico. Estou apenas abalado pelo
que vivi em pensamento enquanto dormia. Raciocinou a fim de se acalmar.
Entretanto, o medo perdurava, insistia em querer lhe enfrentar e ser mais forte. O
lenhador fitou a cortina, aquela cortina lhe dava medo, não sabia o motivo de tal
sensação. Não notou quando sua circulação tornou ao normal. A sensação ruim
imperava.
Era como se alguém estivesse se movimentando estrategicamente dentro do seu
aposento às escondidas.
Não sabia o que fazer. O cão continuava dormindo brandamente. Sentia como se
alguém espreitasse. Alguém dentro de sua própria casa. Este pensamento o
constrangeu, deveria tirar a limpo a história.
Teria a anormal terra das mudas algo relacionado ao seu suposto visitante
noturno?
Levantou-se, pegou seu rifle. O cão despertou e o estudou como quem quer saber
o que se passa.
A tempestade cessou por completo, nenhum sinal de relâmpago ou pingo de
chuva. Apenas uma floresta com vegetação umedecida e casas castigadas por um
dilúvio que ficou somente na lembrança de quem o presenciou. Nenhum sinal de
alagamento, ao menos um bom resultado após a tempestade.

225
O lenhador tomou o rumo da escada que dava acesso ao primeiro andar. O cão
pulou da cama para segui-lo e tombou a caneca de café, não percebera o objeto e
abalroou a pata dianteira ao cair em chão firme. O lenhador não notou o desastre
causado pelo animal, pois já descia a escada rumo à sala. A escuridão da
madrugada tomava conta do ambiente.
Quanto mais o lenhador descia, mais a sensação de estar sendo espiado
aumentava. Estava mais incomodado do que quando despertara após o pesadelo.
O cão ainda não assimilara o que preocupava o dono, mas sabia que ele estava
incomodado com algo.
O lenhador chegou à sala, seus olhos tentavam se acostumar com a escuridão,
deixara as luzes do andar superior apagadas por precaução, para se camuflar do
visitante noturno. Mas, perderia a batalha para uma fera que estivesse apta a
atacar na escuridão, omissa aos olhos alheios.
Para tal, seu cão era uma boa arma de defesa, haja vista que possuía a
capacidade de farejar um intruso e delatá-lo.
Quem poderia ter invadido seu lar? Deixara a porta trancada e seria uma tarefa
quase impossível sua casa ser invadida. Apenas um arrombador de portas poderia
ter entrado. Chegou à porta da sala e se certificou se ela estava de fato trancada.
Constatou que sim, a porta estava cerrada como deixara após voltar da taverna. O
pesadelo deveria estar mexendo com sua percepção, de modo que aparentava
estar sendo seguido.
Mas, sua conclusão final foi a de contar apenas com a presença de Winepowder
no interior da casa.
Quando se preparava para retornar ao quarto, desviou sua preocupação para
outro ponto. Não poderia permitir que seu cão voltasse a farejar terra de mudas na
despensa. Acariciou a cabeça do cão, tomando-lhe a atenção e seguiu rumo à
escada. O cão estava entretido com o carinho do lenhador e o seguiu sem vacilar.
Foi um trabalho fácil, retornaram ao quarto. O sono voltou a tomar conta do
brutamonte.
O cão pulou na cama e se acomodou. O lenhador por sua vez percebeu a poça
escura de líquido no chão, ao lado da cama.
― Você é o responsável por esta meleca? Com certeza teremos centenas de
visitas pela manhã. ― falou brandamente.
O cão pareceu compreender o que queria o seu dono, apenas o olhou de lado e
tornou a se concentrar na sua posição de dormir. Horace Singer tomou uma
providência, cobriu a poça com o tapete que recebia quem chegasse ao quarto. O
tapete possuía uma estampa de um pássaro amarelo. O lenhador nem mesmo se
lembrava quem lhe dera de presente o enfeite útil que agora cobria o possível
banquete das formigas.

226
Voltou à cadeira de balanço, o quarto era banhado por uma fraca luz do luar que
passava pela pequena fresta deixada na cortina. Não sabia se dormiria na cama
ou sentado na cadeira, mas suas costas se acomodaram com a aconchegante
cadeira de balanço. O sono queria dominá-lo por completo novamente. Deixou o
rifle equilibrado no pequeno criado-mudo que servia de mesa para a garrafa
térmica do café. Sabia que não faria uso do objeto que cuspia fogo e chumbo
quente naquela noite.
Sua visão embaçou. Girou a cabeça para verificar o estado do cão. Os olhos do
animal já estavam cerrando também. Era como se um sonífero houvesse sido
aspergido no aposento.
Desviou o olhar para a fresta da cortina e podia ver uma pequena fração das
árvores da floresta que fora castigada pela tempestade, alguns galhos foram
quebrados e forravam o chão.
O sono o perseguia, não conseguiria ficar acordado por mais um minuto que
fosse. Contemplava a floresta com a visão tomada por névoas alvas, pois seus
pensamentos estavam embaraçando.
Uma luminosidade foi surgindo do interior da floresta e crescia lentamente. Não
raciocinava direito, o que era aquilo?
Pulou repentinamente da cadeira, chamou a atenção do cão que ficou em guarda.
O lenhador abraçou as duas pontas da cortina e as uniu quase que por completo,
de modo que apenas seu olho esquerdo pudesse enxergar a agora minúscula e
disforme fresta.
Por fim, arregalou os olhos, a luz cruzou a extremidade da última fileira de árvores.
Era a luz verde, e vinha em direção ao vilarejo. Procurou manter a calma. Estudou
o ser recém-chegado, era composto por uma espécie de capa de chuva negra,
talvez como a vestimenta de um monge. Mas o que mais lhe chamava a atenção
era que a estranha figura não possuía cabeça e nem braços, os lugares onde
estes membros de um corpo normal deveriam estar eram apenas uma forte
luminosidade verde. A figura não tinha rosto, o capuz negro envolvia uma forte luz
verde que tomava conta de onde deveria existir uma face de nariz, olhos e outras
coisas mais.
A misteriosa e distante figura parou de se movimentar, avançara três metros após
a floresta, rumo ao vilarejo. O lenhador se preocupou.
O estranho visitante o percebera espiando? Talvez não, deveria continuar a
espreitar, afinal armara seu quarto para tal e não podia acreditar que estava
recebendo a visita de quem esperava. Chegava a hora de desvendar o mistério da
luz verde e ser o herói de toda a história da não mais pacata Pitfall.

227
Continuava vidrado na estranha criatura que surgira da fantasmagórica floresta. A
capa negra tocava o chão e não permitia ao lenhador saber se existiam pernas e
pés ou apenas luminosidades verdes.
O corajoso homem não acreditava no que via, aquele espectro estava inerte como
uma estátua, apenas a luminosidade variava de tom, para mais luminoso e mais
apagado.
Vou pegá-lo. Pensou o lenhador.
Precisava de cautela para não ser descoberto. Levaria um tempo que poderia ser
precioso ao descer à sala e destrancar a porta. Tinha certeza, correria e alcançaria
o estranho visitante.
Sorrateiramente foi se agachando. O cão o estudava, o dono deveria estar louco.
Horace Singer conseguiu se abaixar por completo. Soltou a cortina que fez um
chacoalhar que poderia delatá-lo.
Pegou o rifle e se preparou para a perseguição. Poderia tentar alvejar a figura
misteriosa do seu posto atual, mas não possuía a habilidade de um atirador de
elite e não queria arriscar perder a presa.
Levantou-se. Era possível contemplar as extremidades da floresta. A capa negra
se virara e estava retornando de onde viera. O lenhador não teve dúvidas,
precisava agir com versatilidade. Correu como nunca pensara em correr. Como
um competidor determinado. O medo fora embora e a quantidade de adrenalina
subia.
Desceu os degraus da escada com uma percepção invejável, quase capotou duas
vezes, mas se manteve firme. O cão o seguia latindo como quem perguntava o
que se passava de tão anormal.
O lenhador chegou à sala, girou a chave na maçaneta e escancarou a porta.
Não se preocupou em fechá-la. Fitou a floresta. Era possível distinguir uma
luminosidade distante, a figura se locomovera considerável distância. O cão não
se apercebeu do ocorrido. O lenhador correu rumo à floresta e iniciou uma
perseguição implacável.
Escorregou ao chegar à primeira fileira de árvores. O barro tomou conta de sua
vestimenta de dormir. Era uma visão cômica. Mas ele não desistiu e se recobrou
rapidamente, continuando a perseguição.
O cão estava ao seu lado, arfando, atento a qualquer movimento suspeito. Horace
podia visualizar a luz verde a uma distancia considerável, quase sumindo do
campo de visão. Não sabia dizer a distância, talvez setenta metros floresta
adiante.
Corria sem se cansar. Ficou surpreso ao perceber que o cão avistara a luz verde e
seguia em seu encalço, o animal de quatro patas alcançaria a presa rápido e
facilmente. Bastava ao lenhador dar proteção ao cão, com sua mira.

228
Continuava a correr, mas o cão era o dobro mais veloz, ou o triplo. Avistou a sua
dianteira e não distinguiu mais a luz verde que sumiu por completo. Talvez ela se
escondera em algum buraco ou caíra em um alçapão. O cão paralisou-se em certo
momento e ficou confuso, o lenhador o alcançou em poucos segundos.
Enquanto Winepowder arfava e descansava da perseguição, o lenhador estudava
todos os cantos ao seu redor, a quantidade de árvores era mais intensa naquela
área e a luz do luar não banhava o suficiente para se poder transitar com
tranquilidade. Era preciso saber onde se encontrava o misterioso visitante para ir
ao seu encontro ou retornar à sua casa.
Sentia um ódio que não sabia como poderia desabafá-lo a fim de aliviar-se.
Pensou em chutar o tronco de uma árvore e mandá-la pelos ares:
― Merda! ― gritou a todo fôlego dos pulmões.
― Mas que grande merda!
O cão se acomodara, assentara no barro e melecara sua parte de trás.
― Grande merda. Além de não pegar aquele idiota, eu terei de trocar a roupa e
lavar o teu maldito traseiro!
O homem foi recobrando os sentidos e tornando a raciocinar, pensava em
construir armadilhas para a próxima visita de cortesia da luz verde. Se o intruso
estivesse por perto o cão o teria farejado. Apenas ectoplasmas se desvaneciam no
ar, mas ele não acreditava em criaturas do outro mundo.
Ele vai pagar pelo prejuízo de hoje. Pensou, cerrando os dentes com força e raiva.
Afagou a cabeça do cão e tomou o rumo de volta para casa, sempre atento ao que
se passava ao derredor. O cão era muito útil em situações perigosas, poderia
interceptar uma visita inesperada.
Caminhou tranquilamente e não demorou a avistar sua casa. A porta estava aberta
como deixara, mas fora imprudente. Alguém ou algo poderia ter invadido seu
ambiente pessoal.
Raciocinava enquanto entrava e trancava a porta. Precisaria de uma pá para
cavar e um lençol de galhos trançados para cobrir um enorme buraco e pegar a
luz verde de surpresa.
Em breve saberemos se a luz verde pode voar. Pensou, se referindo ao buraco
fundo que pensava em cavar para servir de armadilha.
Faltavam menos de duas horas para amanhecer. O lenhador precisava lavar a
sujeira de seu cão e trocar a roupa de dormir se quisesse descansar. Um ponto
positivo era o de poder dormir até o horário desejado aos domingos.
Não seria surpresa se a luz verde fosse o velho raquítico do Parker querendo
bancar o brincalhão e taxá-lo como covarde.

229
Subiu a escada. Seu único pensamento era sobre qual seria a próxima estratégia
para capturar o misterioso visitante, mesmo que este último contrariasse suas
crenças e fosse um fantasma, um fantasma que parecia querer algo de Pitfall.

230
21

GRAY NIKOSSON

A aurora estava prestes a mostrar sua beleza que deveria ser ampliada devida
uma noite em que uma tempestade castigou uma floresta.
Os estragos poderiam ser vistos e julgados com clareza graças à luz do
amanhecer. Tudo indicava que a manhã de domingo em Pitfall seria exuberante.
Após uma horrível noite de tormenta, o vilarejo merecia contemplar o espetáculo
que os raios de sol proporcionariam quando misturados com a umidade da
vegetação que por sua vez ficava mais vistosa após um banho de chuva.
Porém, o negrume da madrugada ainda era o responsável por prender os
habitantes em suas casas, todos os habitantes dormiam enquanto um deles
acabava de acordar.
Seus olhos fitaram o teto que estava quase encoberto por completo pela
escuridão. Demorou certo tempo para começar raciocinar com coerência, mas
quando seu cérebro conseguiu atingir a atividade de trabalho normal, questionou
por qual motivo fora desperto.
Um ruído.
Ruído fácil de ser reconhecido. Característico daqueles que não se colocam em
seus lugares quando dormem e sacrificam malditas noites de sono dos pobres
companheiros de cômodo ou de casa em alguns casos mais graves, ou ainda de
vizinhança em casos gravíssimos.
Infratores dignos de reclusão e internação.
Era a porcaria do andarilho o responsável por roncar tão estrondosamente nos
ouvidos do implacável Josias Parker.
Fiz merda ao deixá-lo dormir aqui. Pensou o único habitante desperto no
momento.
Deveria estar sendo castigado por ter assaltado o lenhador no jogo de carteado.
Apesar de julgar sua atitude de deixar o maltrapilho pernoitar por perto como
impensada, ainda sabia ser o andarilho a única pessoa, no mundo, digna de sua
comiseração. Com certeza era uma pessoa que todos gostavam e de quebra
servia como alvo de suas piadas, na falta do lenhador, descarregava suas
chacotas no pobre andarilho, mudo, incapaz de se defender e soltar uma piada
vingativa.
Soou o ronco mais alto até então, foi o estopim, o que obrigou ao velho Parker
confidenciar consigo:
― Todo o tempo que fica calado e não pronuncia sua maldita voz, ele desconta
roncando.

231
Cobriu os olhos com a mão esquerda como quem deseja se afastar de um
pesadelo:
― Queimou a língua com a maldita pinga, deveria ter queimado a garganta.
O andarilho dormia em um colchonete castigado pelo tempo e principalmente por
maus tratos.
O colchonete fora amarfanhado pelo dono da casa que seria capaz de colocá-lo
no chão barrento da floresta somente para ter o prazer de ouvir os pássaros
cantando serenatas em plena luz do dia, deitado e relaxando, assistindo o
lenhador dar duro em seu trabalho.
O súdito, o vassalo fedorento dormia no chão, ao lado da cama de Parker que fora
camarada e abrira uma exceção naquela noite que se acabava:
― Eu deveria tê-lo mandado dormir no banheiro com os ratos. Só faltava ele
começar a bufar e inundar o meu quarto de aroma de pinga de boteco.
Era injusto em seus julgamentos reflexivos e seu olhar ainda não se desviara do
teto. Sabia que precisaria acordar o visitante e intimá-lo a não mais roncar ou
simplesmente fazer o favor de se retirar, dar o fora, como costumava dizer.
Oscilava. Sua decisão de acordar o andarilho se alimentava cada vez mais.
Pensou em acender um charuto, mas queria dormir, seus olhos ardiam de sono.
Ensaiou balançar o corpo do andarilho e despertá-lo.
Tossiu. Sabia que seus pulmões já estavam castigados pelos anos de charutos.
Parecia um zumbi que insistia em não cair na sua devida cova para o eterno sono
da morte.
Fora um erro dividir suas horas de solidão com os charutos. Sabia disto, mas se
julgava forte o suficiente para decidir a melhor hora de bater as botas, apesar de
não saber quando aconteceria.
Não obstante, apesar de seu jeito mesquinho e ignorante com as pessoas, não
era ateu, mas não concordava com os procedimentos da igreja. Poderia ir à missa
e intimidar o padre pela manhã, ganharia o domingo assim e não precisaria sequer
ver a feição de ira estampada na face do lenhador para se contentar. Aquele dia
estaria reservado para o padre que o desafiara.
Gostava de contemplar as grossas veias querendo saltar do pescoço de Horace
Singer, mas o pouparia naquele dia.
Precisava agir em relação ao ronco do visitante, do contrário não dormiria mais.
Apertou o antebraço direito do andarilho e lhe deu um chacoalho violento.
Os ruídos de roncos cessaram, era o sinal de que haviam dois despertos no
vilarejo.
Seja bem-vindo ao mundo dos despertos.
O andarilho o fitou com espanto, parecia nem saber onde estava.

232
― É melhor calar a boca e parar de roncar, caso contrário eu te atiro pela janela.
O andarilho esboçou um sorriso, escondendo os dentes.
― Não vacile comigo. ― continuou a advertir.
Daquela vez, o menos favorecido entendeu a seriedade do que se passava, não
pela advertência, mas caso não parasse de roncar, também não teria um teto para
dormir posteriormente. Nem sequer presenciara a tempestade e nada sabia sobre
o dilúvio que irrompera em Pitfall.
As leves advertências do proprietário da casa foram interrompidas por uma
sequência monumental de tosses. As moléstias particulares de Parker chegaram a
graus tão elevados que seu rosto ficou em estado de vermelhidão. Dava vontade
de gritar em modo de desabafo, mas seus velhos pulmões já deveriam estar
enferrujados com as fagulhas de fumo, riu e tossiu, de forma mesclada ao pensar
na situação de seus pulmões, verdadeiras vítimas do relaxo de um homem.
O andarilho tentou socorrer o pobre velho, deu um tapa em seu peito para
desafogar as moléstias. Parker se levantou para fugir da ajuda do ignorante que
mais parecia querer assassiná-lo. O andarilho se assustou com a fuga alheia.
Josias Parker continuava a tossir incessantemente, mas foi possível distinguir
suas palavras:
― Maldito bêbado de merda. Quer me matar?
O andarilho mostrou uma feição de arrependimento, mas não entendia onde
errara. Não tinha noção da gravidade de seus gestos, definitivamente não estava
bem da cabeça. A bebida alcoólica deveria estar consumindo o seu raciocínio.
Sem contar na ressaca que deveria o estar fazendo se sentir um inútil.
A tosse foi cessando e Parker foi se acalmando, mas seu peito doía tamanha
violência dos surtos de tosse.
Queria esgoelar o hóspede, apesar de já conhecer sua singela e doce inocência.
O andarilho se mantinha alheio e com receio da revanche do dono da casa. A
manhã se aproximava e seria mais difícil dormir com a chegada da claridade.
Josias Parker se recobrou e tornou a ameaçar o hóspede:
― Eu deveria te fazer de saco de pancadas. Mas eu sei que você é burro e não
me golpeou no peito por maldade. Mas advirto, não encoste mais as tuas mãos
podres em mim.
Gargalhou com gosto e tornou a tossir:
― Um charuto cairia bem agora para desobstruir minha garganta. Aceita um?
Estava tirando uma troça com o mudo homem que não gostava nem um pouco do
gosto do fumo. O andarilho negou com a cabeça e bocejou, obrigando o fanático
por fumos a fazer o mesmo:

233
― Pode dormir se quiser. Eu vou fumar um charuto e dar uma andada pela
floresta.
O andarilho se preparou para deitar na cama do anfitrião. O velho rabugento não
acreditava no que presenciava:
― Desencoste. Nem sonhe em deitar na minha cama.
A resposta foi um movimento rápido de corpo do mudo que tornou a deitar no seu
colchão gentilmente cedido pelo terrível carrasco do vilarejo. Ao menos era assim
que Parker se julgava e tentava fazer justiça ao cargo.
Josias Parker foi rente ao colchão onde o andarilho estava deitado e deu seu
ultimato:
― Um dia você será um homem assim como eu.
O pobre homem já estava acostumado com as troças de Parker e adormeceu
como se tivesse ouvido uma história da carochinha para ninar. Parker se retirou do
quarto pronto para preparar seu primeiro de muitos charutos do dia. Foi até o
banheiro e não se importou de escovar os dentes, queria mesmo era fumar e
tossir, e se de quebra houvesse alguma piada para rir, melhor seria, com certeza.
Vestiu seu macacão molhado pela tempestade que já não lavava há mais de um
mês. A tensão tomava conta de seus nervos. Quem sabe o lenhador não houvera
esquecido algum instrumento de trabalho na floresta, assim, Parker poderia pregar
uma peça no freguês.
Ele costuma deixar sua machadinha enfincada em troncos de árvore. Claro, vou
surpreendê-lo e mostrar que sou o melhor. Pensou.
Desceu até a cozinha e abriu seu esconderijo. Pacotes de fumo e papéis
tombaram no chão. Pegou um dos pacotes recém-usados que estava
precariamente fechado e um pedaço grande de papel.
Trabalhou habilmente, demonstrava inteligência e bom raciocínio. Cortava pedaço
do papel com a mão e fazia um caminho de fumo que seria envolvido pelo pedaço
de papel. Fabricou seis charutos e os socou no bolso superior esquerdo do
macacão. Vibrou com sua rapidez de trabalho. Será que o lenhador é mais
versátil? Ao menos, não nas cartas. Parker trapaceava na mesa há tempos e
nunca fora descoberto. Trapacear era para os fortes e os fracos que caíssem em
sua armadilha e aplaudissem sua glória.
Pegou seu isqueiro com o combustível prestes a acabar e o colocou no bolso
superior direito, o oposto ao bolso dos charutos. Sentiu-se como um soldado bem
armado ou como uma criança que possuía uma boa quantidade de opções de
doces para degustar durante um dia inteiro de brincadeiras no parque de
diversões. Poderia fazer seu passeio pela floresta tranquilo, na verdade não iria
passear, mas sim procurar a machadinha do lenhador.

234
Saiu de sua casa e fitou o céu que clareava fracamente o vilarejo. Não tomou
conhecimento do chão de barro escorregadio e tomou o rumo da casa do
lenhador.
O vilarejo dormia, provavelmente ele era o único acordado naquele horário.
Acendeu seu primeiro charuto do dia e o colocou na boca, com imenso prazer.
Entrou na última rua do vilarejo, onde o lenhador morava. Não se espantou com a
quantidade de galhos de árvore que cobriam o chão na entrada da floresta.
Encaminhou-se à casa do lenhador, com semblante sério. Não se precipitaria a
ponto de despertar o homem, pois assim seria mais difícil executar seu plano de
capturar o objeto alvo, a machadinha.
Estacou-se rente à porta de entrada da casa do lenhador. Levantou o olhar até a
janela do quarto no segundo andar, logo acima da porta de entrada. A cortina
cerrava a visão e não se podia ver o teto do quarto.
― Aquele vagabundo deve estar roncando neste momento e terá o que merece!
Tossiu, mas abafou o som que poderia delatar sua presença. O lenhador
costumava afirmar que Parker possuía a tosse de um cachorro louco. Parker daria
o troco naquele dia.
Soltou uma baforada do charuto rumo à janela embaçada pelo orvalho da manhã
que acabava de chegar não deixando qualquer indício da madrugada. Tratava
esta ação como uma espécie de aviso.
Parker calculava no que deveria fazer. Esconder a machadinha não seria um
castigo exemplar. Poderia aprontar uma coisa mais séria para o lado do lenhador.
Virou-se e rumou à floresta. Seguiu o rumo da casa do lenhador, a machadinha
poderia estar por perto. Adentrou a floresta e estudou a seriedade da tempestade.
Galhos quebrados cobriam quase todo o espaço que deveria ser coberto pelo
barro e pela vegetação rasteira. Árvores de tronco mais franzino estavam deitadas
ao chão, pois não aguentaram a fúria do vendaval.
Estudou os arredores e chegou à conclusão de que os galhos quebrados
poderiam estar acobertando a machadinha. Chutou uma leva de galhos com fúria:
― Estão do lado do fracote do Singer? Tomem o que merecem!
Continuou chutando com rapidez e força os inocentes galhos ao chão. Apenas
cedeu sua fúria quando voltou a sentir a forte dor no peito que sentira ao tossir
quando acordou. O andarilho o subestimava e poderia ser o responsável pela sua
dor, tamanho desgosto que poderiam significar os roncos.
Tossiu, o peito doeu de maneira tão intensa que largou o charuto, deixando-o se
acomodar num galho caído.
Olhou para o objeto que tanto lhe causava prazer:
― Impostor! Está contra mim também?

235
Chutou o charuto que apagou sua brasa e foi parar a mais de cinco metros de
distância. Sua mente vagueava na vontade de armar uma para o lenhador, queria
encontrar a machadinha.
Não seria má ideia deixar a floresta se incendiar com a brasa do charuto, mas a
vegetação estava consideravelmente umedecida e pregar tamanha peça no
vilarejo estava fora de seus planos naquela manhã, talvez aplicasse o dito cujo
numa outra ocasião.
O peito continuava a doer, seu tormento aumentava ao tossir, intensificando a dor.
Talvez encontrar a machadinha fosse um consolo, um alívio para sua dor.
Tornou a remexer os galhos caídos, mas sem chutar com violência, apenas
movendo a vegetação caída.
― Ele não cortou lenha por aqui.
Parou sua ação, indignado. Sabia da dificuldade em encontrar um objeto em meio
ao verdadeiro cemitério de galhos que se formara. Precisava usar sua inteligência
malévola e raciocinar sobre o paradeiro do alvo.
Estava cônscio de que o objeto procurado deveria estar enfincado num tronco de
árvore, talvez no da última árvore abatida pelo lenhador, como se fosse o selo de
uma carta, provando sua autenticidade. Olhou ao redor e visualizou uma pequena
montanha de galhos dez metros para frente, rumo ao centro da floresta.
― Você deve estar aí! ― exclamou.
Com um sorriso estampado no rosto, avançava ao monte de galhos:
― Quem sabe você não esteja aí.
Agachou-se e tocou um galho que cobria um grosso tronco cortado de árvore, já
podia visualizar a parte metálica vermelha da machadinha. Começou o dia com o
pé direito. Poderia apostar numa roleta em Las Vegas e sair milionário. Era um
homem de sorte, todos os seus desejos pareciam se realizar. O mundo conspirava
ao seu favor regido pelas leis do universo.
Sentiu um gozo interior como não sentia há muito tempo. Seu medidor de orgulho
atingia o topo e tilintava como um sino sinalizando um objetivo ou uma marca
alcançada.
Levantou-se sem tirar o olhar da machadinha, acendeu outro charuto, o segundo
do dia, fumara apenas metade do primeiro. A dor pareceu sumir de seu peito,
chegou a hora de deleitar-se. Era a recompensa dos justos, o prêmio dos
guerreiros onipotentes. Seus planos aumentaram, não faria apenas o lenhador de
vítima, seu desejo por justiça gritava mais alto e se expandia
incomensuravelmente.
Colocou o charuto aceso na boca, naquela altura já planejava uma maneira de
atrapalhar o padre Alvarez Leone na celebração da missa. Precisava agir de modo
que se sentisse vivo, cheio de vigor.

236
Agachou-se com certa dificuldade e pegou a machadinha, puxá-la foi de
dificuldade maior ainda, o peito doía neste percurso. Olhou para a copa da árvore
ao lado e pensava no seu feito, achara o objeto procurado na base da inteligência,
após abandonar o sacrifício de encontrar na força bruta.
Força bruta, o lenhador entendia bem sobre e ignorava a inteligência do raciocínio.
Baforou, tossiu e riu ao mesmo tempo. Sua face atingiu a vermelhidão, quase no
tom da parte cortante e metálica da machadinha.
A machadinha era o objeto de sua glória e a fumaça da baforada que acabava de
soltar no ar era o sinal de seu triunfo perante os outros homens do vilarejo.
Definitivamente, Josias Parker se sentia inatingível como nunca se sentira
anteriormente.

***

A noite corria a fundo nos arredores da floresta. Uma leve e gelada brisa pairava
sobre o ar, era capaz de congelar rostos desprotegidos e lançados à sorte.
A floresta parecia possuir vida própria e poderia esconder seus mistérios, um deles
era a forma como intensificava a baixa temperatura. A vilã parecia querer controlar
a vida dos moradores de Pitfall, poderia até comprimir o vilarejo em meio à sua
imensidão de vegetação, era raro ver um ser vivo habitando a floresta nos
arredores do vilarejo perdido, tão raro como encontrar a cópia de um livro antigo e
lançado no esquecimento.
Se algum caçador desejasse abater sua caça, precisaria adentrar a floresta, seguir
um caminho distante e depois sim pensar em cumprir sua tarefa de retornar com
um belo pedaço de carne no ombro.
Naquela noite, uma gangue composta por três homens e uma mulher, cortava a
rodovia mais próxima do vilarejo, rumo a não se sabe que destino. Estavam
deveras preocupados com a falta de cidade por mais de quilômetros, não fora
possível avistar sequer um outdoor, comum em beiras de estrada, indicando que
se aproximava de algum posto de gasolina ou loja de conveniências, ou ainda,
quem sabe, uma loja de marca famosa na cidade mais próxima.
A gangue estava com a atenção presa à situação incomum, para onde iriam
naquele fim de mundo?
Um componente guiava à dianteira, seguido por uma linha com o restante dos
membros, três no caso, a mulher ia ao meio da linha traseira.
O que seguia à frente, o aparente líder, fez sinal para que estacionassem, poucos
metros depois o grupo todo encostava suas motos adornadas por crânios de ferro,
réplicas quase perfeitas de membros ósseos humanos, as motos tinham uma roda
na frente e duas atrás, típicas das perigosas gangues de rua.

237
O líder retirou o capacete que cobria apenas a parte superior da cabeça, os
demais repetiram sua ação.
― Estamos a quase uma hora vagando e não vimos um carro de esporte que
fosse ou qualquer cidade.
Fez uma pausa, olhou para a pista que dava a impressão de levar a um caminho
sem fim e depois falou com propriedade:
― Não quero tomar uma decisão premeditada, gostaria de saber se algum de
vocês conhece as redondezas.
O homem mais baixo da gangue deveria medir um metro e setenta, possuía um
pequeno e estiloso moicano loiro empedrado por uma enorme quantidade de gel
capilar. Parecia possuir uma timidez para com o líder. Foi o primeiro a ser intimado
pelo proprietário do grupo:
― Trickman?
O interrogado fez um sinal negativo com a cabeça. O líder se virou para o outro
membro masculino da gangue, o mais alto do bando, de braços fortes e bem
definidos, este trazia um cano de aço em sua mão, pronto para atacar e possuía
cabelos grandes:
― Crackhand?
― Não senhor. Não faço ideia de quantas milhas nos separam da próxima cidade.
Segurou o cano com a mão esquerda e o colidiu na palma da mão direita,
marcando com uma mancha vermelha, era sua espécie de carimbo, sua marca
pessoal.
A mulher era elegante, possuía um corpo escultural e mascava chiclete. Era a de
menor estatura dos quatro, o que fazia suas curvas corporais serem mais
atraentes do que o habitual. Sua boca estava bizarramente borrada por um batom
vermelho com cheiro de chocolate ao morango:
― Luna?
― Também não conheço a região. Mas já ouvi dizer que imensidões de árvores
possuem seus vilarejos perdidos.
O líder estudou o corpo da mulher da cabeça aos pés, era seu modo de elogiá-la.
Ela sempre sorria, colocava as duas mãos em uma das coxas, dava uma curvada
nos glúteos e esboçava uma risada sensual como resposta.
― Alguém faz ideia do que podemos fazer? ― Prosseguiu o líder, de barba
grande pintada de branco e bandana de pirata na cabeça, com o típico desenho
de uma caveira com dois ossos entrelaçados embaixo. A bandana era preta e o
desenho branco. Usava óculos com as lentes escuras.
Ninguém respondeu. O líder já esperava por tal reação:

238
― Muito bem, façamos o mais prudente, seguiremos a pista e veremos onde
parar. Acredito que encontremos um posto de gasolina na beira da estrada, no
mínimo. Maldita hora em que não pensamos em trazer um mapa.
Sua voz era idêntica a de homens viciados em bebida alcoólica que pareciam
possuir um timbre cavernoso. Cada membro da gangue subiu em sua respectiva
moto. O líder abriu um compartimento secreto de sua moto e retirou uma lata de
energético:
― Antes, vou tomar a minha vitamina.
Abriu a lata e a virou rumo à garganta, bebeu dez por cento do líquido, o restante
banhou sua barba e entrou pela gola de sua camisa negra, sentiu o líquido gelado
banhar seu umbigo, depois o colhão imerso em um matagal fedorento e pré-
histórico.
A gangue esperava o líder subir à moto. O mentor do bando, de braços gordos e
fortes, possuía uma barriguinha a mais, era o único que estava fora do peso, um
pouco apenas se fosse comparar sua brutalidade com seu direito de ganhar quilos
a mais.
Ele gritou alto. O som ecoou e cortou o mundo ao redor. Parecia demonstrar seu
desprezo pelo local em que se meteram, uma maldita enrascada. Subiu à moto e
deu partida, os demais o seguiram. O líder tentou empinar a pesada moto, devia
ter quase uma tonelada, sem exageros, devido ao crânio de ferro da dianteira e
um enorme bloco de aço na traseira.
Avançaram em silêncio por mais uma milha, quando o líder avistou uma trilha na
floresta, ao lado da pista. A trilha mais parecia uma entrada, uma vez que era
possível que um carro a cruzasse com folga. Ele brecou a moto. Todos o imitaram.
Luna quase colidiu sua moto com a do chefe que apontou a entrada:
― Vamos por ali. Talvez encontremos algo interessante. Luna, venha ao meu lado,
vamos fazer duas linhas de dois.
Tomaram a entrada da floresta com velocidade reduzida ao mínimo, não tinham
certeza do que encontrariam e deveriam ser prudentes. Seguiram cerca de um
minuto lentamente e pegaram um declive, foi possível então avistar um vilarejo,
sem qualquer resquício de iluminação, apenas uma casa distante aparentava ter
uma janela que dava para um cômodo iluminado. O líder novamente fez o bando
parar. Não desceu da moto e nem tirou seu capacete, apenas informou:
― Vamos seguir com a velocidade reduzida e estudar o que temos aqui. Não
quero que nos percebam. Entendido?
Todos eram obedientes, o líder nem precisaria interrogar para saber se seria
obedecido ou não.
O vilarejo a frente causava certa retração no bando, embora madrugada, o
sossego do local parecia ser um pouco anormal.

239
O líder deu partida, andava na velocidade de um pedestre.
Cortavam a rua principal.
O bando estudava as habitações conforme cruzavam a rua, o hotel os chamou a
atenção, todas as cortinas estavam cerradas, era como se a construção estivesse
abandonada há muitos anos.
A taverna parecia emanar luminosidade de vela em uma das janelas do andar
superior, talvez um casal gostasse de fazer amor à luz de velas, ou ainda, uma
criança indefesa tivesse medo da escuridão e precisasse de certa claridade para
poder adormecer tranquilamente. O ambiente era de dar medo.
Cruzaram a metade da rua principal e estacionaram em frente à antiga forca. Uma
das casas próximas apresentava um aposento iluminado por luz elétrica.
Futuramente poderia ser o cômodo do habitante responsável por delatá-los. O
líder do bando, chamado de Bonecrusher não tinha medo de ser interpelado por
qualquer habitante que fosse. Sua valentia e seu tamanho poderiam dar medo em
qualquer ignorante que morasse no vilarejo. Ignorância era o que aparentava, pois
só alguém mau das ideias poderia querer morar em um lugar como aqueles.
Bonecrusher apontou a floresta. Era possível penetrar a vegetação mesmo com as
motos, pois o espaço entre uma árvore e outra era grande na entrada da floresta.
Todos, em silêncio deram partida na moto e seguiram o líder. Estacionaram após
entrar cerca de quarenta metros à floresta.
― Que lugarzinho mais sinistro fomos nos meter. ― murmurou Crackhand.
― Por acaso está com medo? ― interrogou o líder.
Crackhand ficou em silêncio, não queria responder e nem dar abertura para
gozações. Todos desceram e tiraram seus capacetes, os prendendo nos guidões
de suas devidas motos. O integrante que fora questionado pelo líder anteriormente
colidiu seu cano de aço com sua mão, desta vez, como uma espécie de castigo
pela observação infeliz que fizera.
Luna retirou uma lixa de unha do bolso e se pôs a corrigir a extremidade das
unhas dos dedos da mão, esbanjando uma espécie de charme. Cuidar da beleza
era seu passatempo favorito, principalmente quando o chato do Bonecrusher
decidia explorar paisagens desertas, um tédio.
― Vamos posar ao relento ou dar o fora daqui? ― indagou Trickman, o mais
tímido e o cérebro da gangue.
― Preciso tirar a água dos joelhos. Enquanto me alivio pensarei no melhor a fazer.
― respondeu o líder já se retirando para trás das árvores a alguns metros.
Ele não pensou em vir com o trailer, preferiu vir com as motos, é um tremendo
idiota, eu bem que o avisei. Trickman pensava, quase falando e confessando sua
indignação, sabia que o líder trazia certa inveja de sua inteligência.

240
― Trickman, se você fosse mais homem eu o desafiara para o mijo ao alvo. ―
disse o líder em voz alta, ainda encoberto por árvores.
O líder gargalhou e começou a cantarolar em tom de zombaria:
― Trickman ainda está na fase do xixi e curte bons cereais matinais...
Era possível ouvir o cantor sem enxergar sua figura obtusa na escuridão e nas
árvores.
O rosto do subalterno ficou rosado de vergonha. Luna o fitava com um sorriso
irônico no rosto. Crackhand, por sua vez, ainda estava indignado com o pouco
caso do superior que era digno de respeito, mas às vezes gostava de tirar uma
troça com seus súditos.
Bonecrusher parou de cantarolar e a floresta voltou ao silêncio costumeiro.
Trickman torcia para que os monstros predadores das florestas como os dos
filmes pegassem o líder pelas costas e o levasse para as mais remotas cavernas,
a fim de devorá-lo, seria um belo banquete, devido à quantidade e qualidade de
presunto disponível.
Passou-se dois minutos e nada do líder retornar, o que deu inquietação no bando.
― Bon. ― Luna chamou estranhando.
Não houve resposta, somente o silêncio sepulcral da floresta e do vilarejo
adormecido. Luna olhou para os outros membros com feição de preocupação.
Seria mais uma das piadinhas do chefão?
Crackhand compartilhava da preocupação enquanto que o último humilhado
demonstrava estar tranquilo.
Luna olhou para Crackhand e disse:
― E então, esta esperando o quê?
O interrogado fez menção de dúvida:
― Como assim esperando?
― Ora, esperando para verificar o que aconteceu.
― Sem problemas.
O membro do bando seguiu o caminho do chefe, o cano de aço de prontidão para
golpear a cabeça de algum animal devorador, cruzou uma árvore e sumiu de vista.
Ouviu-se um grito, era a voz do líder, logo depois uma gargalhada. Os dois
apareceram, voltando para junto do bando.
― Mas que belo susto!
― Coisa de criança, Bon. Não vi graça. ― disse a vítima da gozação.
― Você está precisando dormir e descansar os teus neurônios fervidos. ―
emendou.
Se fosse comigo, eu daria um belo murro nele. Pensou Trickman, mesmo sabendo
da influência do líder.

241
― Calma Crackhand, leve na esportiva. ― disse Bonecrusher colocando a mão no
ombro do amigo.
Os dois começaram a dar risadas, como quem faz as pazes novamente. O
semblante do líder se tornou sério.
― Venham ver o que eu encontrei aqui.
Seguiram em fila. Trickman, o último da fila, continuava a bombardear o chefe em
pensamento.
Ele deve estar preparando mais uma daquelas!
Todos pararam e fitaram o que Bon havia encontrado. Um homem dormia
profundamente, com o rosto molhado.
― Ele deve estar bêbado, urinei no rosto dele para que despertasse e nada dele
acordar.
― Você o quê? ― perguntou Crackhand.
― Ouviu muito bem. Eu mijei na cara dele e ele ainda deve estar sonhando que
tomou a rajada de água quentinha de um chuveiro no rosto.
― É inacreditável. Ele deveria acordar com o cheiro forte, ao menos deveria estar
lhe queimando as narinas. ― disse Trickman.
O líder abaixou-se e deu um tapinha no rosto do homem adormecido. Assim, ele
acordou.
― Que bom, eu estava a pensar que se tratava da bela adormecida, só esperando
um beijo meu para o despertar do amor. ― brincou o líder.
― Só se for o beijo do dragão da morte. ― disse Trickman.
Bonecrusher fez pouco caso da gozação do outro, queria interrogar o homem que
por sua vez, olhava os quatro, assustado.
― Você mora aqui?
O homem parecia estar alcoolizado, mas entendia muito bem o que se passava.
Fez que sim com a cabeça.
― Digo, no vilarejo. ― disse o juiz, apontando para frente, rumo ao vilarejo.
O homem estava com medo, e ainda fazia que sim com a cabeça.
― Deixe ele, Bon, até que ele é bonitinho. ― disse Luna.
O interrogado esboçou um sorriso, normal quando se é elogiado por uma mulher
com uma beleza daquelas, mas ficou sério após ser queimado pelo olhar fatal de
ciúmes do implacável juiz.
― Vamos conversar mais sério agora. Você está com medo de mim? Pode sentir
o drama de estar sendo interrogado por mim?
Bonecrusher agachou-se e ficou cara a cara com o ébrio. O opressor parecia estar
mais dominado pelo álcool do que a própria vítima indefesa.

242
Como eu gostaria que ele se transformasse em uma criatura devoradora e
pegasse Bon de jeito, eu daria o fora após assistir o ataque. Pensou Trickman se
referindo ao bêbado.
O chefe olhava muito feio para o homem, parecia querer matá-lo, estava passando
dos limites, nunca agira assim. Era uma gangue baderneira que gostava de fazer
artes como quebrar vidros de galpões abandonados, mas do bem, zelava pela
paz. Deveriam ter colocado droga alucinógena na bebida energética de
Bonecrusher que se transformara após o pequeno gole ingerido na rodovia perto
do vilarejo.
― Você não respondeu a minha pergunta. Eu te inspiro temor ou não?
― Não. Eu não tenho medo de você e nem dos ratos que te acompanham.
A resposta surpreendeu o bando. Bonecrusher acertou um soco no nariz do
coitado homem. Uma cachoeira de sangue brotou e deixou sua face rubra.
― Ficou mais bonito assim? ― Bon interrogou Luna.
Todos estavam de boca aberta ao assistirem a brutalidade do opressor. Luna
respondeu com voz de medo e quase não foi possível ouvir o que ela dizia:
― É melhor deixá-lo ir embora.
Bonecrusher aproximou a mão ao rosto da mulher e fez sinal negativo com o dedo
indicador.
― Nem pensar. O teu namoradinho vai aprender a responder minhas perguntas.
Hoje, vocês me conhecerão de verdade.
As palavras do líder inspiraram medo e respeito ainda maiores no restante da
gangue. Ele atravessara os limites, com certeza.
Bonecrusher voltou a pegar o homem pela gola da camisa e tornou a interrogá-lo:
― Adoro ver a cara de medo dos outros homens, eu sou o mais forte, você tem
medo de mim?
A resposta não veio, o homem da cara pintada de sangue estava quieto, talvez
pela dor ou por sentir seu sangue escorrendo como um cano que rachasse, difícil
de ser remendado, na parte mais remota de uma casa.
Luna pensou que a atitude de Bon poderia ser justificada por ciúmes quando ela
elogiou o bêbado.
― Me solte, seu imprestável, teu bafo fede mais do que cachorro molhado. Eu não
tenho medo de você.
Bonecrusher arregalou os olhos que pareceram sair da órbita de tanta raiva que
sentia. Virou-se para Trickman:
― Me dê o teu canivete suíço.
O outro pegou o objeto cortante sem pestanejar, mas contestou gaguejando:
― Sim, mas o que você vai fazer...

243
― Você vai ver. ― respondeu Bon pegando o canivete da mão do outro com
movimento ríspido.
Os músculos braçais do carrasco se expandiram ao agarrar o pescoço do já
rendido homem e apertá-lo, obrigando-o a abrir a boca e colocar parte da língua
para fora.
― Vou te ensinar a não me dizer coisas feias. Isto aqui vai doer!
Foi um movimento repentino e hábil, demonstrando que Bon sabia manejar muito
bem um objeto como aqueles. Foi incrível como ele conseguiu fazer aquela
façanha com um golpe no ar, sem pressionar o alvo. Um pedaço de meio
centímetro da língua do homem jazia no chão da floresta. Luna quase vomitou ao
ver a terrível cena e contraiu o corpo. Todos estavam paralisados com a crueldade
do chefe.
Bonecrusher largou o homem que parecia estar desmaiado e pegou o pedaço da
língua do chão. Ergueu-o como troféu em direção ao bando.
― Quem abrir a boca para me contrariar será o próximo.
É o momento de nos juntarmos e dar uma lição nesse idiota. Pensou Trickman,
mas ainda estava estático. Nada poderia justificar tamanha sevícia.
Bon se levantou e lançou o canivete na mão do proprietário que quase deixou o
objeto cair devido estar com os músculos em choque. Depois fez sinal para que o
seguissem.
Chegaram onde as motos estavam estacionadas quando se ouviu um estampido,
a bala deveria ter colidido com uma das árvores mais próximas. Todos se
agacharam em movimento de rendição. Crackhand olhou ao redor, no chão e viu a
bala que teve o poder de recuá-los:
― É chumbo quente! Vamos dar um jeito de cair fora daqui.
Bonecrusher fez sinal para que ficassem quietos e cochichou:
― Quem quer tenha atirado, ouviu nossa bagunça, mas não nos viu. Ou seja, não
sabe onde estamos.
Trickman usou seu bom raciocínio e deu uma opinião:
― Deve ser o habitante daquela casa que estava com a luz acesa. Talvez ele já
estivesse acordado.
― Mas, não fizemos barulhos tão altos assim. ― contestou Luna.
― Ela tem razão, eu vou engatinhar e chegar o mais próximo possível da entrada
da floresta e ver o que se passa. ― Bon ofereceu-se, pois julgava-se o único
capaz para realizar tal tarefa.
Arrastou-se, como um soldado apto a sobreviver no mato e com rapidez chegou a
um local propício para uma boa visão, corria perigo, pois o atacante poderia estar
na floresta, esperando o momento de dar o bote mortal. Bon estava a quinze
metros do grupo.
244
Estudou. O que viu foi motivo de preocupação, mas o suficiente para tentar traçar
uma estratégia de fuga. Afinal, nem haviam pensado em trazer suas armas de
fogo. Estava se sentindo como um verdadeiro índio com sua machadinha de
madeira a mercê do homem branco de arma de fogo.
Retornou ao bando e deu a notícia:
― Existe um homem parado com uma imensa arma na mão, fitando a floresta. Eu
acho que ele ouviu barulhos estranhos, talvez nossas vozes e está assustado
também. Provavelmente, atirou para ver alguém se manifestar em rendição.
― Droga. ― praguejou Trickman.
O líder parecia querer proteger o bando, passara de malévolo para benevolente,
continuou sua reflexão:
― Temos dois caminhos a tomar, esperar até que ele canse e se retire ou distraí-
lo e realizar a fuga.
Naquele momento, foi possível ouvir um grito vindo da entrada da floresta,
chamava por alguém:
― Nikosson, é você quem está aí?
Todos pareceram entender ao mesmo tempo a situação. O homem chamava pela
vítima de maus tratos de Bon. Estavam preocupados e precisavam reagir, do
contrário o homem subjugado e maltratado seria descoberto e motivo de levá-los à
forca.
― Se não reagirmos, vamos parar naquela velha forca. ― confidenciou
Crackhand.
Levantaram-se imediatamente, sem fazer ruídos. A madrugada atingia o auge de
sua temperatura baixa.
Esconderam-se atrás de uma leva de árvores amontoadas, onde as raízes
deveriam ter se tornado um aglomerado só.
O homem armado entrava na floresta, pois foi possível ouvir sua voz outra vez:
― Nikosson.
Um gemido soou alto e gelou a espinha dos presentes, mas não foi exprimido por
um animal, parecia humano. Talvez fosse o castigado homem pedindo socorro.
O homem tornou a chamar, parecia estar a poucos metros, mas com certeza já
atravessara a área das motos. Poderia estar fingindo não ter visto o estranho
batalhão de motos, ou ainda, ter atravessado ao lado, impossibilitado de percebê-
las, cobertas pelas árvores.
― Meu Deus, Nikosson, o que aconteceu com você?
Era o clímax de uma das maiores aventuras vívidas pela gangue. Chegara o
momento de dar o fora sem ser alvejado por um chumbo quente. Era o momento

245
de distração do homem armado que deveria ter agachado para socorrer o
subjugado.
Bonecrusher exibiu três dedos e começou uma contagem regressiva. O homem
armado deveria estar dando assistência ao ferido e daria abertura para uma fuga.
Zerou-se a contagem, todos correram e montaram em suas motos, deram partida,
os motores fizeram um estrondo ensurdecedor. Fugiam, sem colocar o capacete.
Bonecrusher gritou como se estivesse atacando em uma guerra. Estavam quase
saindo da floresta quando soou um disparo cuja bala se colidiu com o pesado
bloco de ferro da parte traseira da moto do líder.
Aceleraram significativamente e arrancaram para a saída do vilarejo. Bonecrusher
olhou para Trickman e disse gritando a plenos pulmões, sua intenção era alarmar
a saída da gangue:
― Você me perguntou se iríamos posar ao relento ou dar o fora. Vamos dar o fora
e fugir da polícia se for preciso.
Luzes das casas se acendiam conforme a gangue cortava a rua principal. Em
pouco tempo, conseguiram atingir a pista, no sentido de volta de onde vieram.
O homem que socorreu o ferido retornou à tarefa de ajudá-lo:
― Vou buscar ajuda, me aguarde um momento.
A floresta poderia ter sido a responsável por intensificar o volume das vozes dos
bandoleiros e alarmar o perigo de vida que Gray Nikosson corria. Possuía a partir
daquele momento um sentimento de gratidão para com a floresta e também para
com o homem que o salvara, Oliver Kingston.
Gray Nikosson, o andarilho, acordou assustado com o pesadelo que tivera. A luz
do sol da manhã batia em seu rosto o cegando. Vivera em pesadelo a realidade
que presenciara quatro anos atrás, e que desde então, a perda de um pedaço da
língua o impossibilitara de falar. Era grato por Kingston e pela provável ação
auxiliadora da floresta.
Acordou a salvo para viver mais um dia fatídico na pacata Pitfall.

246
22

MANHÃ DE DOMINGO

A igreja estava pronta para receber os fieis para a missa dominical. A precaução
de deixar toda a igreja organizada no dia anterior surtira efeito, pois, o homem da
fé não acordou com o despertador naquela manhã, sofreu do mal da famosa
soneca, os cinco minutinhos a mais. Assim, foi acordar uma hora após o horário
previsto, quase não daria tempo de executar seus afazeres matinais.
Já pensou em um padre rezando uma missa trajando ceroulas de dormir?
Estava com o coração a plenos batimentos, olheiras profundas tomavam conta de
sua face. Era um castigo tocar o sino à meia-noite nas noites às vésperas das
missas dominicais.
Terminava de colocar a batina preta com enfeites de cálices e cachos de uvas
dourados e brilhantes. Corrigiu a curvatura da gola da batina, quase perdeu o
fôlego da vida neste movimento episcopal, sendo enforcado pelo incorreto
dobramento do culto colarinho.
Seria uma boa ideia almoçar após a missa, tocar o sino e depois dormir até a
chegada da noite.
Ficara até mais tarde na noite anterior, pois o livro herege o prendera, apesar das
baboseiras e carapuças que lhe couberam muito bem, é, sinceramente, lhe
couberam bem.
Lionel Harter era um bom exemplo de velhinho explorado pelo padre que se
pudesse, mandaria o idoso o carregar nas costas.
O padre não era mal de caráter, era sim um homem de fé, porém, seu segredo
estava o corrompendo aos poucos, não exatamente o corrompendo, mas o
deixando preocupado, queria proteger seu achado com unhas e dentes. Ninguém
poderia compartilhar de seu segredo, seu objeto amado.
Pegou sua escova de dente e borrifou erroneamente uma enorme quantidade de
dentifrício, melando uma parte do chão. Não se preocupou, não daria tempo de
passar um cafezinho sequer. Não queria também pagar o carão de não abrir a
porta da igreja e ter de escutar fiéis baterem em modo de protesto à pesada porta
de madeira pensando que ele estivesse dormindo.
Correu para a igreja e fechou a porta que dava acesso aos cômodos do fundo,
complementares da igreja.
Destrancou a porta de entrada da igreja e a escancarou, para seu alívio nenhum
fiel chegara, mas, Lionel Harter, sempre ele, estava a caminho. Harter não contava
como indicador e acusador de atrasos paroquiais, pois às vezes queria pernoitar
na igreja e passar a imagem de um bom fiel, entretanto, mesmo assim não

247
possuía um coração malicioso que pudesse delatar as irresponsabilidades do
padre.
― Como vai senhor Harter? ― o padre fez as saudações da igreja.
― Não consegui sequer dormir, estava ansioso para a chegada da missa.
― Ei, santíssimo, desculpe, mas você está com profundas olheiras. ― emendou o
fiel.
― Precisei tocar o sino ontem, talvez você não tenha escutado devido à força da
tempestade.
Ele repara até nisto, pode ter razão, preciso ser exemplo de alguém que cuida
bem da saúde dormindo cedo e precavido com a quantidade de gordura na
comida. Pensou o padre, divido entre a seriedade e a chacota.
― E que tempestade! Tive receio pelo meu netinho, ele tem uma boa imaginação.
O padre seguiu rumo ao altar, o outro seguia atrás. O homem da fé retirou uma
caixa de fósforos que estava dentro de uma urna de ferro em cima do altar e
acendeu as duas enormes velas alaranjadas.
― Sabe, eu gostaria de fazer uma pergunta para o senhor que possuí um vasto
entendimento de coisas não carnais.
― Pode falar, estou aqui para auxiliar a comunidade.
― Ontem, no jantar na casa de minha filha...
― Desculpe interrompê-lo, mas ela cozinha muito bem, estava divinal.
― Obrigado.
― Prossiga homem.
― Acredita em fantasmas?
O padre tomou um susto com a questão do fiel, outra asneira se aproximava.
― Não acredito, eles não existem, segundo a bíblia sagrada. O que existem são
demônios que se passam por pessoas mortas para contrariar a verdade de Deus e
enganar as pessoas. É simples, não há muito que falar sobre isto. Por qual razão
me pergunta sobre fantasmas?
― Pensei ter visto um ontem.
― Em tua casa? ― o padre perguntou despreocupado com a conversa.
― Não, na casa de minha filha, quer dizer, estávamos lá e eu olhei a floresta. Vi
uma sombra entre as árvores que parecia ter muito mais de dois metros de altura.
― Um gorila talvez. ― sugeriu o padre.
Harter riu da colocação do outro, com vergonha de sua pergunta:
― É, talvez eu esteja caducando.
― Não, foi apenas uma ilusão de ótica ou você confundiu a sombra de algo com
fantasmas.

248
O padre retirou da urna um pano e um tubo de pasta a base de álcool, um
componente anti-germes.
Umedeceu o pano com a pasta e passou sobre o púlpito, onde repousava uma
bíblia sagrada e a urna de ferro.
― Minhas pernas estão me matando, vou me sentar, precisa de algum auxílio?
― Não, obrigado, o senhor foi de muita valia ontem ao limpar a igreja. Sinta-se à
vontade.
O padre sentiu remorso, não pediria mais favores astronômicos ao fiel, a leitura do
livro herege mexera com seu ego e o fizera se tocar um pouco sobre os perigos de
pedir favores a um fiel idoso.
Lionel Harter foi acomodar-se no banco mais próximo ao altar. Gostava de sentar-
se o mais próximo possível, em todos os lugares em que se reunia. Para alguns,
sinal de pontualidade e compromisso, para outros, de puxa-saquismo sênior.
Tudo estava pronto, faltavam dez minutos para o início da celebração. Os fiéis não
demoraram em começar a chegar. Apenas seis pessoas participariam da missa.
Harter e sua mulher, Brenda e seu filho, e os irmãos Blume, os velhos
semelhantes em aparência que jogavam cartas na taverna, juntamente com o
lenhador e Parker. Ninguém duvidaria que fossem irmãos de sangue.
O padre estava pronto para começar a missa. Uma tosse alta cortou o silêncio do
ambiente.
Alguém parou à porta de entrada, tampando a agradável luz do sol que banhava o
piso da igreja e a maior parte dos assentos. O padre olhou o recém-chegado, os
fieis viraram a cabeça para ver quem chegava.
Tratava-se de Parker!
Hoje vamos ter. Pensou o padre com sincera preocupação.
― Obrigado pelo convite. ― disse o indesejado visitante baforando seu charuto.
― Por favor, tenha a bondade de se sentar. ― pediu o padre.
― Não. Prefiro ficar de pé, minhas hemorróidas estão me atazanando.
Todos os presentes riram. Parker esboçou o sorriso mais alto de todos, tossia ao
mesmo tempo. É lógico que estava tirando uma troça do padre, não era portador
da doença que afirmara ter.
― Como queira, sinta-se à vontade. ― o padre entregou-se.
― Sinta-se à vontade para tentar extorquir o meu dinheiro, mas, aviso que não
sou trouxa como os teus fieis e não vou cair nos teus golpes.
O padre decidiu engolir os sapos impostos pelo visitante, era necessário, se
quisesse viver em paz e levar a celebração da missa a um desfecho louvável e
agradável aos ouvidos da santa igreja.

249
Após sua ida à floresta, Parker retornara à sua casa e preparara um de seus
charutos especiais. Era justamente o que ele fumava naquele momento, a mágica
aconteceria somente quando o charuto chegasse à sua metade.
Afinal, todo o coelho tem seu momento exato para sair da cartola e surpreender os
telespectadores.
― Eu só pediria que vossa senhoria tivesse a imensa bondade de não fumar
dentro de um lugar santo que é a igreja. ― solicitou o padre, tentando chegar a
um acordo.
O charuto chegava à metade. Parker o colocou na boca, mostrou o dedo indicador
e balançou de um lado para o outro e fez que não para o padre.
Sonny Malone começou a tossir devido a fumaceira, os presentes reclamavam em
bulício.
Lionel Harter tomou as dores do neto e levantou-se de seu lugar:
― Suma daqui, seu velho asqueroso.
A mágica começou, conforme o charuto era baforado, expelia mais fumaça do que
um fogaréu bem alimentado com combustível de primeira. A voz de Parker soou,
mas a fumaça o encobria:
― Esta fumaça serve para purificar o ambiente.
Harter se encaminhou para a porta e gritou:
― Ora, eu vou chamar o xerife para colocar esse velho bandido no xadrez.
Mas Parker havia sumido em meio à fumaça como nos truques dos ninjas. Harter
ficou boquiaberto, o padre e os fiéis esperavam a ação do homem que bancava o
herói e se incumbia de espantar o intruso.
Harter saiu para a rua e estudou as redondezas, nenhum sinal do homem louco.
Não percebera que o procurado estava escondido por trás de uma das colunas da
casa da frente e dava gargalhada da situação. Pois é, o homem louco era mestre
em se esconder por detrás de objetos finos devido sua magreza raquítica.
― Pode vir Harter, ele não voltará, vou começar a missa. ― disse o padre.
Harter atendeu o chamado do líder religioso. Ao sentar, viu que sua mulher estava
preocupada:
― Você não pode se estressar, não é qualquer mocinho para dar uma de herói.
Harter entendia que a mulher se preocupava e falava sério, não querendo cutucá-
lo.
A fumaça ainda estava por se dissipar, mas a tosse de Sonny cessara.
― Muito bem, silêncio.
A missa transcorreu bem e sem qualquer interferência, pois o padre conseguira de
sua posição, perceber a presença de Parker atrás da coluna da casa à frente,

250
este, por sua vez, também percebera que o padre o estava a estudar os
movimentos e dera o fora.
No final, a família de Harter foi saudar o padre:
― Obrigado por abençoar nossas vidas, vamos almoçar em casa? ― agradeceu
Audrey.
― Não, hoje eu tenho um compromisso, muito obrigado. ― respondeu o padre.
Harter deixou o padre sem jeito ao interrogá-lo:
― Que compromisso pode ser mais importante do que jantar lá em casa?
O padre respondeu o mais cordialmente possível:
― Ora, senhor Harter, não são todos os dias que eu posso fazer visitas familiares,
principalmente quando um familiar não se dá muito bem com o outro.
Foi a vez de o padre cutucar. Harter percebeu logo de cara que ele se referia às
suas desavenças com o genro. Depois, o homem da fé questionou Brenda:
― Falando em família. Cadê o teu marido?
― Ele estava com muito sono e não quis vir.
Na minha idade, acordo cedo sem dormir à noite e aquele imprestável tem
preguiça de levantar com o sol rachando o mundo. Pensou Harter com sentimento
de inconformismo.
O padre entendeu a colocação de Brenda, o marido da mesma não viera por livre
e espontânea vontade.
― Vamos nos sentar e conversar. Precisam de algum conselho? ― indagou o
padre.
Todos foram aos assentos, o menino subiu ao altar e começou a pular como se
estivesse em um palco, assistido por milhões de espectadores. Houve uma
repreensão de sua mãe:
― Desça já menino, não está vendo que é um lugar sagrado?
― Não precisa se preocupar, ele está apenas brincando. ― o padre a acalmou.
― O esquilibrizinho é um menino e tanto. Nem parece que é filho daquele
caçador. Com certeza ele puxou para o lado de Brenda na genética. ― disse
Harter.
Brenda o olhou com surpresa. Cometera um erro, pensara alto demais. Deveria ter
vedado a boca com esparadrapo. O padre esboçou uma feição de quem não
conseguira evitar algo inevitável e colocou a mão na testa, desiludido.
Um silêncio tomou conta dos presentes por alguns segundos, podia se ouvir
apenas o som do menino dando pulinhos em cima do altar. Audrey estava
cabisbaixa, com vergonha do que poderia pensar o padre acerca de seu esposo.

251
― Não precisava ter dito. Eu já sei que o senhor não vai com a cara de meu
marido, mas, na posição de sua filha, deveria respeitar minha escolha. Eu quero
que o senhor saiba que eu amo o Ronald e ele é um excelente pai.
Brenda fez voz chorosa e duas pequenas lágrimas banharam os cantos de cada
um de seus olhos. Queria correr e abraçar seu amado, demonstrar seu amor e
proteger-se nos braços de seu homem.
A consciência de Harter pesava de uma forma que nunca sentira anteriormente.
Era capaz de derrubar um edifício com o peso de sua preocupação como aquelas
bolas metálicas de guindastes.
― Me desculpe, eu não queria dizer...
Brenda levantou-se rasgando o ar e cortou as palavras de seu velho pai,
locomoveu-se rapidamente até o altar e pegou seu filho pelo braço. O menino não
contestou, apenas obedeceu e seguiu os passos apressados da mãe. Como um
passe de mágica, ambos sumiram de vista, o padre e os Harter estavam
boquiabertos com a atitude de Brenda.
Eles haviam ido embora!
Audrey olhou o marido nos olhos:
― Viu só do que você é capaz?
Harter estava com a cara no chão, tamanha vergonha, principalmente do que
deveria estar pensando o padre que por sua vez estava mudo de perplexidade.
― Eu não queria dizer aquilo. ― Harter tentava se justificar.
― Como não? Nunca ficamos perto de nossa filha por causa da tua ignorância.
Será que você não escuta os conselhos do padre?
― Não deixe a nossa idade transparecer que somos dois pais rabugentos que
pegam nos pés de nossa filha, já com idade suficiente para constituir uma família
e ser independente. ― emendou Audrey.
Foi a vez de Harter se manter em silêncio. Audrey se virou para o padre e
questionou sobre o que o mesmo pensava da atitude mesquinha de Harter.
― Eu estou abismado!
― Qualquer um ficaria abismado com uma situação semelhante. ― concordou
Audrey.
― Errado, eu afirmo estar abismado pela frieza e espontaneidade de Harter. Ele
foi muito sincero. É claro, devemos lutar contra os sentimentos de intolerância,
mas não podemos fingir uma afinidade que não temos para com outrem.
Audrey estranhou as palavras do padre, ele mesmo dissera que não podemos ser
hipócritas, mas também dissera para não deixar transparecer nossa sinceridade
nos casos semelhantes que envolviam família e afinidades. Era de fato muito
estranho o padre dizer aquilo, era como se estivesse fora de aliança com os
ensinamentos da igreja, os mesmos que pregava.
252
― Fico triste de ouvir essas palavras da boca do senhor. Totalmente ao contrário
do que ensina.
― Não estou aqui para defender o Harter. Mas calcule comigo, ele precisa de fato
gostar do genro, caso contrário sempre acontecerá momentos em que vai pensar
alto e soltar os pensamentos mais odiosos, magoando assim a todos, sacudindo
os alicerces da família.
Harter se sentia como um animal amarrado, cujo destino estava sendo julgado por
dois caçadores, um querendo devorá-lo até mesmo em forma bruta e líquida, sem
assar a carne, e o outro por sua vez, querendo esconder a fome voraz que sentia
e deixar o sentimento de comiseração falar mais alto. O padre talvez possuísse
uma carta na manga, capaz de saldar a dívida do julgado e deixá-lo dormir em paz
na noite que viria.
― Falando a verdade, ele não me cheira bem. ― Harter disse sobre o genro.
Audrey se levantou indignada e encarou o marido nos olhos, querendo intimidá-lo:
― Você não pensa que pode magoar nossa filha? A preocupação com o futuro do
menino deve estar na frente de suas rixas injustificáveis.
― Eu não sou obrigado a aprovar o casamento de minha filha. ― Harter levantou
a cabeça e a encarou.
― Talvez ela pense como você que nunca foi tão prudente assim. ― emendou ele.
Audrey deu um tapa no rosto do marido devido a ironia.
― Ora, não vamos brigar dentro da igreja. ― o padre ficou indignado com a cena
presenciada.
― Quer saber, você não está a ponto de magoar Brenda, você já a magoou, e a
mim também.
Harter adotou feição de indiferença. O padre não estava gostando do rumo que o
diálogo estava tomando. Os participantes da missa dominical, que deveriam sair
da igreja com uma auréola radiante de exemplos bons pregada à fronte, estavam
na verdade dando um show de intolerância e impaciência.
Por sorte, os irmãos Blume haviam ido embora após a missa e não
testemunhavam o desastre.
― Vamos fazer o seguinte. Estamos na casa do bom ensinamento. Quero que
vocês se acertem antes de irem embora. Não quero passar o resto de meu
domingo sabendo que os únicos fiéis, cujo eu sou o responsável por pastoreá-los,
estão se degradando em sentimentos contrários ao bom conselho dado aqui.
Audrey analisou a possibilidade de dar mais uma chance para o marido. Todas as
atitudes boas de Ronald não entravam na mente do velho, ele não gostava do
genro e insistia em não abrir nova possibilidade, ou ainda, não queria ver novos
horizontes que se expandiam. Brenda alegava que o marido era bom e provedor,
então, Harter deveria dar crédito ou engolir se preciso.

253
― Audrey? ― perguntou o padre.
― Eu concordo, mas ele deve se comportar como gente e não agredir a imagem
de Ronald na frente de Brenda. Ele não é obrigado a aprovar, mas não pode
reprovar abertamente.
O padre sorriu satisfeito.
― E você, Harter?
― Apesar do tapa desferido injustamente, eu aceito tentar não elogiar o genro dela
na presença de quem quer que seja.
O coração de Harter trazia mais indignação com o genro do que antes da missa,
era como se julgasse que o inocente homem fosse o responsável pelo papelão
que fizera.
Audrey prosseguiu:
― Eu proponho que ele fale mal do marido de minha filha o quanto quiser, mas
que seja em casa, entre quatro paredes e que as palavras sejam direcionadas a
mim. Não quero ver minha filha chorar de tristeza outra vez por causa de
besteirinhas de criança.
Harter foi levantar a voz, mas se conteve. O padre queria dar o caso por
encerrado:
― Eu os levo até a porta de suas casas. Vamos conversar coisas boas durante o
caminho.
Harter se levantou. O padre se postou entre os dois e os abraçou, um com cada
braço. Foram caminhando até a casa dos Harter, os três formavam uma corrente
humana, cujo elo central era o padre. O homem da fé dizia palavras boas e de
incentivo.
Era possível deixar a igreja com a porta escancarada sem se preocupar em ter
bens minados ou com a invasão de alguém mal-intencionado, porém, Pitfall estava
mudando e passando outra impressão para seus moradores. A nova imagem de
Pitfall era a de não ser um vilarejo tão tranquilo quanto sempre aparentou, talvez,
o padre houvera cometido um grave erro ao não trancar a pesada porta da igreja,
até mesmo na mais calma das manhãs de domingo.

254
23

TEMORES DA NOITE PASSADA

Norman Legrand despertou de seu profundo e tranquilo sono. Não conseguiu


assimilar logo de cara o que se passava ao redor. Olhou para o closet, cuja porta
direita estava entreaberta questão de poucos centímetros e recapitulou o fio da
meada.
Colocou a mão esquerda à cabeça e se martirizou por ter adormecido em plena
ação de vigília. Apesar de o companheiro o ter incitado a dormir para demonstrar
uma cena mais real ao possível visitante noturno.
Mas, Forbes já se recolhera para seu quarto, sem antes acordar seu companheiro
e dizer as boas novas?
Levantou-se e foi até o closet, escancarando sua porta. Com surpresa assistiu a
figura estacada do amigo, babando e dormindo como uma criança após uma longa
maratona de brincadeiras no parque.
Muito provavelmente, seu companheiro pegara no sono durante a empreitada
corajosa.
Cutucou o outro com um sacolejar corporal. Forbes despertou assustado e
questionando:
― Ele entrou aqui?
Forbes fitou o companheiro e se localizou, amanhecera o dia, melhor dizendo, o
dia parecia ter chegado à sua metade.
Norman pegou firme no braço do outro e o ajudou a se levantar.
― Minhas costas. Parece que uma manada de búfalos me atropelou.
― Pois é claro, você dormiu de forma tão desconfortável.
Forbes coçou a cabeça:
― Fato que muito me intriga.
― Como assim?
― Eu não consigo dormir se minhas costas não estiverem bem estiradas no
colchão. Faço a manutenção de meu sono trocando meu colchão a cada seis
meses, por tal motivo.
― Mas você dormiu e babando como uma criança.
― Insisto em dizer que há algo de errado nisso tudo.
― Comece a me explicar, eu senti uma sonolência profunda antes de adormecer,
mas eu estava aconchegado à cama e fazia parte do número.

255
― Insisto novamente, como eu havia dito, eu até te incentivei a dormir, pois seria
uma longa madrugada de espera. Mas, eu senti sonolência como se estivesse
desfrutando de um bom leito. Como se explica isto?
Os dois foram até o centro do quarto.
― Sinceramente não faço ideia, você deveria estar exausto, talvez seja algo
relacionado aos nervos, digo, as tensões do dia anterior. Sem contar que o som de
uma tempestade pode caracterizar um bom relaxante.
Forbes ergueu o indicador e negou com um gesto de vai e vem no dedo:
― Negativo. Eu me conheço muito bem e sei que não poderia ter adormecido de
tal forma e em tais circunstâncias.
― Sendo assim, você é quem deve uma boa explicação.
Forbes fez uma careta de quem raciocinava e tentava encontrar uma jogada para
o xeque-mate.
― Vou escovar os dentes, assim, você terá determinado tempo para pensar. ―
Norman se retirou.
Era a primeira vez que Forbes sentia-se pressionado pelo amigo, mas
pressionado com razão, pois colocara a vida dos dois em perigo ao dormir.
Julgava-se imprudente como um motorista que dorme ao volante, colocando em
risco a sua vida e a de um garoto dormindo no banco de trás. Não havia do que se
explicar, apenas narrar o ocorrido.
Norman retornou. Forbes disse em tom de confidência:
― Eu estava em meu posto, quando avistei uma luminosidade na soleira da porta,
era provavelmente alguém caminhando no corredor com uma vela na mão. Juro
que adormeci em menos de segundos.
Não era normal o amigo adormecer daquele jeito, tão rapidamente. Pensava
Norman e julgava que o outro não trazia personalidade para ficar se desculpando,
usufruindo de mentiras.
Forbes foi até a janela e estudou o movimento da rua principal. Pôde visualizar o
dono do hotel juntando galhos em um monte, usava um ancinho aparentemente
enferrujado.
― Ele não cuida do hotel, mas possui um zelo enorme para com a rua, em frente
ao hotel.
Norman não entendeu o que o amigo dizia e foi até a janela ver o que se passava.
― Deveras, quem vê a rua limpa como ele está a deixando, pensa que o hotel é o
melhor lugar do mundo.
Bobster virou a cabeça e fitou a janela do quarto, tão rapidamente que pegou os
dois desprevenidos. Seus corações quase pararam, o velho do hotel estava com
os olhos arroxeados, de forma mais profunda do que na noite anterior.

256
Norman foi ao centro do quarto e saiu da vista do velho, mas Forbes continuou
encarando o velho do hotel que por sua vez não esboçava reação.
Parecia um combate entre dois homens que desejavam intimidar o outro. Jim
Bobster foi o primeiro a ceder e tornou à sua tarefa.
Forbes foi ao encontro do amigo que estava com um semblante de preocupação,
este exclamou:
― Ele nos viu!
― Não é motivo de preocupação, se ele representasse perigo já teria mostrado
sua face verdadeira de terror. Para dizer a verdade, estou me sentindo em um
brinquedo assombrado de parque de diversões, em que o velho do hotel é apenas
um palhaço se fazendo de assombração e que tira o disfarce antes de ir para a
casa.
― Mas, por qual motivo ele faria esse teatro todo?
― Sinceramente eu não sei, talvez ele não bata bem das ideias.
― Mas, existe algo de estranho por aqui, como por exemplo, o tal fantasma que
tanto evitam falar sobre. ― contestou Norman.
― Nisso eu tenho a obrigação de concordar, confesso que sinto um perigo à
espreita, mas já tenho minhas dúvidas se estamos lidando com esse velho e seu
hotel.
― O que você quer dizer?
― Raciocine comigo, um fantasma de luz verde que tanto evitam comentar não
está dentro do hotel, mas o que diz o relato do lenhador?
― Não compreendi.
― Ele afirma que o tal fantasma vem de dentro da floresta. Já percebeu que
durante o dia é difícil ver algum habitante perambulando pelas ruas? Quanto mais
à noite.
Norman não pensara na possibilidade, tudo no vilarejo inspirava perigo, mas o
hotel era apenas estranho e sinistro, e não acontecera qualquer coisa de outro
mundo até então.
― Você tem razão, já sabemos que eles têm medo de algo, do tal fantasma talvez.
Forbes já se virara e fora saber se o velho ainda estava a limpar a frente do hotel.
Constatou que o velho estava entretido em sua tarefa, talvez com olhos na calva,
apenas estudando os movimentos do hóspede.
Voltou a se reunir com o amigo no centro do quarto.
― Tenho um plano, talvez melhor do que o de ontem. ― disse Forbes.
Norman exprimiu feição de indagação. Forbes prosseguiu:
― Hoje, não vamos ficar em posição de defesa e sim atacar.
― O que pensa em fazer?

257
― Combinamos ontem de pegar algum pertence do velho e trazer para o quarto.
Pensei melhor e acho que temos condições de conseguir um molho de chaves
que nos dê acesso aos outros aposentos do hotel, falta vasculhar três quartos.
Norman pensou na ousadia que trazia seu amigo:
― Como vamos distraí-lo para executar esse plano?
― O melhor momento é agora. Eu aproveito que o velho está lá fora e o distraio.
Você vai atrás do objeto que tanto desejamos, de preferência, o primeiro molho de
chaves que encontrar.
― Mas ele vai perceber quando procurar suas chaves.
― Talvez não, o molho original está atado à cintura da calça dele, neste momento.
Percebeu?
― Não havia percebido, mas mesmo assim estamos numa ação perigosa, ele
deve conferir todos os seus pertences sempre.
― Eu concordo, mas muito provavelmente ele faz sua verificação durante a noite.
Norman compreendeu a lógica do amigo, embora não fosse efetiva em todos os
casos.
― Um molho de chaves? É muito volume, ele vai notar a diferença.
― Não, se você conseguir retirar uma das chaves, a história muda.
― Como vou saber que a chave que vou retirar não é do meu quarto ou do teu?
Ou ainda da porta de entrada do hotel? Sem contar, que dois molhos de chaves
provam que ele tem no mínimo duas cópias das chaves de nossos quartos e pode
adentrar, não, invadir quando bem entender.
― Você está certo. Talvez elas possuam alguma identificação, os números dos
quartos gravados em suas hastes.
― Apesar de respeitar a tua inteligência, imagino que estamos ousando demais.
― O máximo que pode acontecer é o velho descobrir, queixar-se ao xerife e
sermos expulsos do vilarejo por omissão de bens materiais.
Forbes deu gargalhada de sua colocação.
― Você quer dizer, chutados como cães do vilarejo. ― Norman entrou na piada.
Na realidade, ambos estavam otimistas, sabiam do perigo, mas era o momento de
agir.
― Nem sequer farei minha higiene matinal, vamos agir agora. ― disse Forbes.
Saíram do quarto. Norman trancou a porta. Forbes estava com sua arma de
prontidão.
O corredor estava à meia luz. Era possível enxergar tudo ao redor. Norman foi até
a porta do reservatório e tentou abri-la, estava trancada.

258
Foram até o começo da escada, estavam em um dia de sorte, a porta do saguão
estava entreaberta e não escancarada, ou seja, seria mais fácil enganar o velho.
Caso ele fosse deste mundo.
Desceram, procurando não fazer ruídos, tarefa quase impossível, os degraus de
madeira aparentavam úmidos e tomados por levas inomináveis de cupins.
Chegaram ao saguão, apenas a lareira alumiava o ambiente. Forbes olhou o
quadro de pendurar chaves, não havia qualquer indício de chave ou molho de
chaves. Cochichou então:
― Vá procurar no quarto do velho.
Norman entendia que o amigo se referia à sala com duas espadas de esgrima
entrecruzadas, penduradas à porta.
Forbes apontou para a sala e fez uma careta indicando para que agissem rápido.
Enquanto Forbes se encaminhava à porta de entrada do saguão, Norman fitou o
quadro da velha caolha, ela parecia possuir vida e querer saltar a fim de devorá-lo,
castigando-o pela ousadia e desrespeito para com os pertences alheios. Sentiu
medo e quis chamar pelo amigo, porém raciocinou e chegou à conclusão que
deveria ser seu psicológico abalado pregando-lhe peças. Mas a impressão de que
a velha estava viva era perturbadora, era como se ela fosse piscar o seu olho
normal e exprimir algo.
Forbes havia saído, Norman foi até a sala misteriosa. Não podia imaginar qual
argumento o amigo estaria usando para ludibriar o velho, mas precisava executar
sua tarefa com rapidez e perfeição.
A sala misteriosa mais parecia um quarto com várias cômodas, algumas possuíam
vasos com flores artificiais. No canto esquerdo do quarto, um colchão estava
sustentado ao alto por uma espécie de mesa de mármore, cerca de um metro de
altura. A mesa de mármore chamou a atenção de Norman, pois parecia aquelas
usadas em necrotérios para se estudar melhor os corpos.
Não sabia por qual motivo, mas aquele aposento era o que mais lhe inspirava
medo, de todo o hotel. Trazia vontade imensa de olhar para trás, para todos os
lados, e interceptar a chegada de alguém indesejado.
O centro do aposento possuía um enorme tapete de lã, cujo estava retratado um
castelo.
Norman girou o olhar em todo o aposento e sorriu de satisfação, havia um molho
de chaves meio que encoberto por um dos vasos de flores artificiais, disposto em
uma cômoda baixa.
Correu e pegou o molho de chaves. Ficou chateado ao constatar que apenas uma
delas possuía uma letra gravada, era um H que deveria estar indicando ser a
chave do saguão. Pensou em um modo de desatar alguma do molho, pois o anel

259
que as atava era de ferro grosso e as chaves eram rústicas, parecidas como as de
castelo antigo e não ajudavam em nada sua tarefa.
Abraçou o anel de sustentação do molho dos dois lados, com as duas mãos e fez
o máximo de força que pôde. Estava com sorte. As faces cortadas do anel de ferro
pareciam ser atraídas por um imã, bastava puxar uma das chaves que desejava e
soltar o pesado anel. Escolheu uma na sorte, que a sorte os ajudasse e estivesse
de seus lados. Procurou deixar o molho do modo que havia encontrado e estudou
a chave, nenhum número gravado, nem mesmo minúsculo que fosse.
Preocupou-se com sua possível demora, não saberia por quanto tempo mais o
amigo seria capaz de distrair o velho.
Não havia mais tempo para estudar o estranho aposento. Chegando ao saguão,
pôde ouvir a voz do amigo, parecia estar questionando algo.
Subiu a escada rumo ao seu quarto, não sem antes fitar o quadro da velha caolha
e sentir a mesma sensação de anteriormente, a de uma efígie querendo saltar da
estrutura que a prendia.
O despertar de um sonho eterno.
Quando estava prestes a cruzar o corredor teve uma ideia, usaria o tempo que lhe
restava para tentar descobrir a qual quarto pertencia a chave temporariamente
furtada.
Ficou rente à porta do quarto número um e suspirou, colocou a chave na
maçaneta. Com cautela tentou girar a chave, mas a maçaneta não acompanhou
sua tentativa de movimentar a chave que não era, então, a que daria acesso
àquele quarto.
Foi até o número dois e colocou a chave na maçaneta, sofreu grande dificuldade
em colocá-la no buraco, tentou girar, a madeira ao redor da maçaneta parecia
estar mole, talvez apodrecida pelo vasto tempo de desuso. Retirou a chave com a
mesma dificuldade que teve para colocá-la. Alguns fiapos de madeira umedecida
caíram no chão, ele chutou os fiapos para baixo da porta, a fim de escondê-las
dentro do inacessível aposento. Não seria prudente tentar arrombar a porta.
Contava com a perspicácia de Forbes que provavelmente não deixaria o velho
entrar no hotel até que Norman executasse sua tarefa ou tentasse, ao menos.
Restava uma alternativa, o quarto número três, uma vez que já entrara no
reservatório e os outros dois quartos já eram bem conhecidos por seus hóspedes.
Estava torcendo para que estivesse com a chave do próximo quarto, o que ficava
de frente para o de Forbes.
Ao chegar à porta do quarto número três, olhou para o quadro que estava entre a
parede do terceiro e do primeiro quarto, era o quadro em que alguma sombra
espreitava uma mesa com um imenso banquete, não era possível discernir
qualquer parte do estranho visitante retratado além dos olhos na escuridão, talvez

260
fosse uma criança querendo devorar o conteúdo alimentar de qualidade disposto
na mesa.
Desviou o olhar para a porta do terceiro aposento e colocou a chave à maçaneta.
Girou e ouviu um clique de aceitação. Sua investida teve algum fruto, o amigo
ficaria orgulhoso dele.
Matutou se deveria entrar ou não e obteve a resposta rapidamente, Forbes estava
retornando ao hotel, conversando com alguém que parecia ser o velho, que por
sua vez deveria estar retornando ao seu edifício, como uma mãe que protege a
cria com unhas e dentes.
Pôde distinguir o que dizia o amigo:
― Ele está um pouco resfriado devido à tempestade de ontem e dificilmente
poderá sair da cama, apesar de o clima estar propício para o passeio de um
doente de resfriado.
Percebeu que Forbes estava justificando sua ausência perante o velho. Ficou
pasmo com a resposta do dono do hotel:
― Ele não tem forças para se levantar e fica me espiando pela janela.
Ouviu o ancinho rastejar no chão do saguão, temeu pela vida do amigo, um golpe
com os dentes do ancinho seriam fatais.
― Preciso de um termômetro. ― ouviu Forbes solicitar.
― Não temos tais regalias por aqui. ― disse o velho com frieza.
Norman percebeu que Forbes estava a subir a escada, trancou a porta do terceiro
quarto e correu ao seu aposento, talvez o velho viesse verificar seu estado, o que
obrigaria ele fazer seu papel naquele teatro imaginário, disfarçando.
Deitou-se à cama. Forbes entrou apressado logo em seguida, estava com o rosto
banhado de suor.
Forbes trancou a porta e correu sentar à cama:
― E então, conseguiu surrupiar algo?
Norman estava coberto, tirou a chave furtada do bolso e exibiu ao amigo que
exclamou:
― Muito bom. Foste sobremaneira esperto. Sabe do que se trata?
― Enquanto você o distraía, eu a testei nas portas do andar de cima e adivinhe de
onde ela é...
― Não faça casos homem, desembuche.
Norman mostrou três dedos da mão direita para o amigo.
― Perfeito, podemos entrar em um aposento desconhecido e que deve estar
abandonado há séculos.

261
Ouviram passos no corredor, o que causou-lhes preocupação. O velho chamaria à
porta ou usaria uma de suas chaves para invadir o quarto e certificar-se do estado
de Norman?
Ruídos vinham do corredor, alguém se aproximava e vinha em direção ao quarto
de Norman ou do reservatório.
Forbes levantou-se e encostou as costas à janela, colocou a mão dentro do
casaco, pronto para acionar sua arma de fogo.
― Se o velho invadir o quarto, vai tomar um belo susto. Quem sabe assim ele não
ande nos trilhos. ― disse Forbes.
― Você não vai atirar nele, é claro. ― contestou Norman.
― Lógico que não, mas vou apontar-lhe a arma e questionar acerca de sua
invasão.
Era possível distinguir através da soleira, uma sombra que estacara rente à porta
de Norman. Os ruídos cessaram. Consequentemente o velho do hotel deveria ter
parado de andar.
Forbes estava pronto para sacar a arma, esperava apenas alguma ação de
Bobster, ou de colocar a chave na maçaneta, ou de bater à porta.
Ouviram o ruído de chave entrando no buraco da maçaneta, Forbes espirrou,
virando o rosto para a janela em direção à rua, pôde inclusive contemplar a cena
do mundo exterior, obrigou o vidro a embaçar um pouco com a umidade do
espirro. Norman fitou o amigo.
Forbes tornou à sua posição normal com o semblante de seriedade e olhar
pasmo. Norman percebeu e questionou o amigo:
― O que aconteceu? Você ficou assustado de uma hora para outra.
― Ouviu a chave ser inserida na maçaneta? ― questionou Forbes em voz baixa.
― Ouvi.
― Quem quer que esteja no corredor não atende pelo nome de Jim Bobster.
Norman ficou sério, assustado e perguntou:
― Por qual motivo diz essa asneira? O nome dele mudou por acaso?
Forbes estava com o corpo paralisado, olhando para a porta e com a mão dentro
do casaco:
― Não é asneira. Acredite em mim, Jim Bobster está fora do hotel, e neste exato
momento...

***

― Pancadas?
― Exatamente, pancadas fortes, parecia ser alguma espécie de touro bípede.

262
O xerife coçou o queixo, intrigado, estava com alguns fiapos grossos de barba por
fazer. O relato de seu ajudante era estarrecedor.
― Algum animal?
George Conway estava sentado na cadeira em que adormecera na noite anterior,
o xerife o havia desperto para interrogar acerca da pesada porta de madeira que
quase fora arrombada.
― Não sei, mas quem quer que tenha sido, posso garantir que possuía uma força
acima do natural.
O xerife estava abismado com as palavras do ajudante.
― Você não bebeu algumas doses a mais?
― Eu bebi da bebida que me destes de presente, mas juro não ter excedido
alguns goles apenas.
― Pode dar uma olhada nas dobradiças de cobre da porta e ver que foram
forçadas além da conta. ― emendou o auxiliar.
O xerife estudou a situação das dobradiças, suas suspeitas de o amigo ter bebido
demais estavam indo por água abaixo, deveras, apenas uma força descomunal
poderia ter causado aquele estrago. O homem da lei ficou convencido e deu o
braço a torcer:
― Sempre fui transparente com você e acredito que tenha razão. Mas, a força da
ventania não teria cometido tamanho delito, de modo que estamos falando de
alguém muito forte.
― Eu não disse? Eu presenciei tudo e sei que um homem comum como nós não
teria tal capacidade. A não ser que, fosse alguém sustentando um grosso tronco
de árvore com os braços e o colidindo com a porta.
― Acredita mesmo nisso? Podemos discernir que tipo de material é colidido com a
porta baseado no barulho. Parecia ser o quê?
― Um punho fechado e com muito poder.
O olhar do xerife mudou, era um caso que deveria apurar.
― Pois bem, se Horace houvesse bebido a mais e quisesse um abrigo para a
tempestade, ele seria capaz ou teria a força com que estamos lidando? ―
questionou o xerife.
― Isso eu não sei responder, mas acredito que não. Tire a dúvida, veja se os
punhos dele estão marcados com lesões avermelhadas. Seria impossível alguém
dar tantas pancadas na madeira da porta, uma centena talvez e continuar com as
mãos em perfeito estado.
― É um homem muito esperto, acredito que eu devo interrogar o nosso lenhador.
George Conway ficou satisfeito com a decisão do xerife, queria acreditar que o
que presenciara na noite passada houvera sido provocado por um ser humano.

263
― Escute aqui homem. Você não pensou em pegar seu rifle e perseguir o infrator?
Apenas atirou na porta?
― Não. Atirei na porta e a abri para assistir algum animal em fuga. Mas, nada vi,
cheguei a espiar pelo buraco da bala e vi algo marrom.
― Foi prudente, poderiam ser vários bandidos e o correto seria simular não estar
presente. Mas, convenho que um tiro na porta foi uma atitude prudente. Agora,
algo marrom, pêlos de animal?
― Não sei. Não dava para distinguir o que era, mas havia algo que não se tratava
da escuridão da noite, algo a mais.
Frank Silver sentiu necessidade de agir, era o momento de sair em busca de
informações, embora apenas o lenhador fosse sua suspeita, apesar de ter a
impressão que estavam a lidar com algo mais sério, como a de o infrator ser
algum animal ou ainda algo que nem gostaria de mencionar. Precisava apurar.
George Conway levantou-se e foi preparar um café. Foi interrompido pelo chefe:
― Hoje é o teu dia de folga. Deve ser muito ruim dormir pendurado em uma
cadeira à mesa. Eu tomo as rédeas a partir de agora, quero te dar uma resposta
satisfatório quando nos encontramos novamente. Creio que encontrarei o infrator.
O auxiliar olhou para o xerife com ar de intriga:
― Tem certeza?
― Sinceramente, não. O vilarejo tem se tornado um lugar muito misterioso, espero
que não represente perigo para seus habitantes.
― Não será o caso de interrogar os dois forasteiros também? ― indagou o
auxiliar.
― Sobre as investidas contra a porta?
― Também. Dois homens poderiam segurar um tronco de árvore e colidi-lo com a
porta.
O xerife não acreditava que os dois forasteiros fossem imprudentes, inspiraram
muita honestidade, apesar de saber que talvez a maioria dos bandidos
profissionais aparecesse através de uma imagem de terno e gravata e com uma
recheada conta bancária.
― Não acredito que eles sejam capazes. Antes mesmo de eles darem as caras
por aqui, uma onda de mistérios já pairava sobre o ar do vilarejo.
O auxiliar compreendia o xerife, com certeza os hóspedes do hotel seriam os
últimos suspeitos do delito.
Naquele momento, alguém entrou no xerifado, se tratava de Oliver Kingston.
― Com licença xerife, gostaria de falar. Em primeiro lugar, bom dia.
Os dois homens da lei corresponderam à saudação. Kingston já estava a estudar
a situação da porta quase arrombada.

264
― Não te espantes, foi a força da ventania. ― o xerife o queria tranquilizar e
despistar.
― Não tente me enganar xerife, confia tanto em mim. É justamente sobre a
situação desta porta a que vim conversar convosco.
Os dois homens da lei arregalaram os olhos de espanto. Kingston saberia quem
fora o delinquente?
― Garanto que foi a força da ventania, senhor Kingston. ― prosseguiu o xerife.
Oliver Kingston riu-se da má tentativa do xerife de despistar o ocorrido:
― Eu sou quem garante que ambos estão com a pulga atrás da orelha. Algum de
vocês pernoitou no xerifado ontem?
Frank Silver se virou para fitar seu auxiliar e fez uma feição de quem deveria
aceitar dialogar, puxou a cadeira e solicitou que o visitante sentasse.
― O que gostaria de nos dizer acerca da porta quase arrombada? O que sabe
sobre?
O xerife sentou-se, seu auxiliar prosseguia congelado em sua posição e torcia
para que o visitante soubesse algo sobre o caso.
Kingston esfregou as duas mãos como quem deseja esquentar as ideias.
― Temi pela minha irmã ontem, supus que ela estivesse em meio à tempestade...
O xerife o cortou:
― E por qual motivo ela estaria em meio à tempestade?
― Por favor, com todo o respeito, o assunto não vem ao caso. Ouça o que eu
tenho a dizer.
O xerife aceitou de bom grado a imposição de Kingston.
― Coloquei minha capa protetora e meu rifle, então, saí e chamei por minha irmã.
Mas, chegou o momento em que ouvi o barulho de pancadas, a propósito, fortes
pancadas. Sons estes, porém abafados pela tempestade. Estudei a situação e
notei que os barulhos de golpes vinham da direção do xerifado...
― Prossiga.
― Não sabia do que se tratava, temi por vocês dois, caso estivessem em apuros e
como estava armado resolvi tomar uma posição que depois julguei corajosa, digo,
depois do que vi.
O xerife se levantou intrigado e encarou o visitante:
― E o que foi que você viu?
― Havia uma sombra, o ímpeto da tempestade não me permitia distinguir o que
era. Eu estava com a visão embaçada em virtude do tempo frio.
Conway tomou a rédea da interrogação:
― Sombra? Que tamanho? Tratava-se de alguém corpulento por acaso?

265
― Não sei dizer se era corpulento, mas possuía uma altura acima da média,
talvez mais de dois metros e pouco. Eu não duvidaria se chegasse a medir três
metros.
Os homens da lei se entreolharam assombrados com o que dizia o visitante. O
xerife queria extrair mais informações:
― Poderíamos estar falando de Horace Singer, o lenhador?
― É difícil dizer, mas o lenhador a meu ver não teria estatura suficiente para fazer
parte de minhas cogitações. Quase não dormi à noite, era difícil acreditar no que
eu vi.
― Atirei ao alto para que a criatura misteriosa parasse de dar pancadas na porta
do xerifado e ela ouviu, veio em minha direção. Eu corri para dentro de casa e de
nada mais soube. ― o visitante prosseguiu.
O xerife se levantou e andou para lá e para cá, estava a raciocinar:
― Alguém do vilarejo possui uma altura considerável? Quem é a pessoa mais alta
do vilarejo? ― perguntou o xerife.
― Tenho a resposta na ponta da língua, Christopher Blume com quase dois
metros de altura. ― disse Kingston.
O xerife acatou a colocação e interrogou o seu auxiliar:
― Ele está certo?
― Certo, pelo menos até ontem à noite.
― Como assim? O que quer dizer com pelo menos até ontem à noite?
― Na possibilidade de se tratar de alguém de fora do vilarejo.
― É aceitável, mas improvável. É difícil chegar visita por aqui. Mesmo se alguém
quisesse abrigo por aqui, teria que passar em frente ao hotel e veria que lá era o
melhor lugar.
― Talvez o visitante chamou sem receber resposta no hotel, vocês conhecem bem
os métodos de Jim Bobster. ― disse Kingston.
― Também é aceitável tal possibilidade, mas por onde anda o misterioso visitante,
na floresta?
― Ele pode estar em qualquer lugar, na residência de qualquer um. ― disse
Kingston.
― Vocês estão falando sobre um visitante que porventura desejasse abrigo, mas
se esqueceram que na ocasião eu perguntei sobre quem batia e cheguei a abrir a
porta. Garanto que parecia uma brincadeira de criança, alguém querendo me
assustar. Quem quer que fosse queria tudo menos abrigo, quem se arriscaria a
perambular pela tempestade? Considerem a baixa temperatura do vento e dos
pingos da chuva.

266
― Peças em você? Pelo que explicaste faz sentido e a pergunta sobre quem
perambularia pela tempestade gelada também faz sentido. São justamente tais
questões que me deixam mais intrigado. ― disse o xerife.
― E então? ― Kingston perguntou encarando o auxiliar do xerife.
― Acredito que possamos estar lidando com fantasmas.
― Ora, eu já te disse que as drogas de fantasmas não existem. ― protestou o
xerife.
George Conway não deixou por menos:
― Mas, nos últimos meses temos presenciado os habitantes com medo, medo de
quê ou de quem?
― O povo daqui sempre foi muito caseiro, coloque belas dançarinas vestidas de
lingerie na taverna e verá que os homens de Pitfall não sairão mais de lá. ―
contestou o xerife.
Conway prosseguiu em suas teses:
― A luz verde, o que me diz sobre a luz verde?
― Trata-se de algum animal faminto que passeia por aqui costumeiramente. ―
respondeu o xerife secamente, fazendo pouco caso.
Kingston assistia o duelo de ideias, sabia que a sombra que o assustara na noite
passada, assustara também o auxiliar do xerife e botava dúvidas na cabeça do
terceiro. Conway disse:
― Você sabe que não temos animais rondando as cercanias do vilarejo, desde
que as histórias de fantasmas começaram a rondar a mente do povo, nenhum
lobo sequer foi visto outra vez por aqui.
― Sabe por que, xerife? Talvez, por que os animas sejam mais perceptivos e mais
humildes que nós mesmos. ― emendou em tom de desabafo.
A cara do xerife foi ao chão, seu auxiliar afirmava que um animal era mais esperto
que um homem da lei, especificamente ele próprio. Sabia que a colocação não
fora por mal, sempre fora um homem muito seguro de si, precisava dar o braço a
torcer.
― Não acredito que sejam fantasmas, da mesma forma que não acredito que um
lupino seja mais inteligente do que eu. ― balbuciou como uma criança triste.
― Não falei por mal. Mas um lobo seria capaz de colocar uma capa negra e
emanar luminosidade verde de seus membros corporais? ― perguntou Conway.
― Não é capaz, tens razão.
― Ficamos em um impasse. ― disse Kingston.
O xerife interrogou Kingston:
― Você conhece bem os dois forasteiros?
― Já conversamos, tomaram café em minha casa, diga-se de passagem.

267
― Julga-os suspeitos?
― De maneira alguma. Nenhum dos dois poderia ser a sombra de ontem.
― Não deixarei barato o ocorrido aqui, quem quer que tenha feito o estrago da
porta, se esteve sóbrio, sofrerá a pena. Tenho algumas pessoas a interrogar.
― Quem? ― indagou Conway.
― Estou a pensar, mas de qualquer maneira não será necessário que fique no
xerifado, de forma que pode ir embora descansar.
― Eu posso ficar um tempo aqui. ― sugeriu Kingston.
― Seria muito gentil de tua parte, faça como quiser, mas não há necessidade. ―
respondeu o xerife.
― É um prazer, não se esqueçam que eu também sou responsável pelo bem estar
dos habitantes.
Os homens da lei agradeceram novamente, Conway foi até a sala contigua pegar
sua bolsa de trabalho e se preparou para ir embora.
Kingston levantou-se e chamou a atenção dos outros dois:
― Para terminar. Xerife, espero que encontre o responsável pelo vandalismo aqui
ocorrido.
Deu uma pausa e prosseguiu:
― Espero em primeiro lugar que esse alguém seja um ser humano.
O xerife estranhou:
― Também acredita em fantasmas?
― Não disse isso. Mas tenho visto e ouvido os relatos das atividades estranhas
que estão se passando no vilarejo.
― Bem, não quero retornar ao assunto, terei um dia longo pela frente e espero
poder ter uma resposta para ambos.
Kingston olhou o homem da lei nos olhos e disse em tom sério:
― Também espero que seja assim.
Conway tornou à presença dos outros dois, era possível notar que estava com os
sentimentos em turbilhão, algo que também crescia em Kingston. Para preocupar
o xerife que percebia tudo, ele próprio sentia uma raiz de receio crescendo dentro
de si. Poderia estar a algumas horas do limiar de acreditar que os estranhos
visitantes de Pitfall, a enorme sombra e a luz verde, não fossem seres humanos.
Sim, estava preocupado e tal atitude só traria prejuízo para os habitantes do
vilarejo.
Em alguns momentos, o homem da lei se perguntava se Pitfall havia se tornado
um lugar perigoso e impróprio para se viver. Respostas que poderiam ser
recebidas em breve, talvez no fim do dia, após as suas investigações.

268
Pitfall possuía poucos habitantes, poderia ser uma aldeia no meio da floresta em
que fosse possível saber sobre a vida de todos, em suas atitudes e decisões.
Mas, falar sobre algum fantasma que perambulava pelos arredores da floresta e
do vilarejo passava dos limites quando se refere a algum lugar em que sempre a
paz reinou.
Frank Silver precisava averiguar. Colocar as cartas na mesa e trabalhar com os
argumentos cabíveis.
Precisaria fazer algumas visitas em pleno domingo, mas ficava entristecido por
não serem de cortesia, e sim para interrogar.
Não gostava de ser tratado como um juiz, apesar de saber se portar de maneira
amistosa com seus raros interrogados, sentia que naquele dia precisaria ir mais
além para extrair algo mais.
Talvez garimpar para encontrar um tesouro que sabia que por ali estava, mas sem
ter em mente o local exato de seu paradeiro. Não acreditava que o lenhador fosse
a tal sombra da noite anterior, mesmo considerando as atitudes tomadas pelos
homens que bebem além da conta, não foi o caso de seu auxiliar, pois outra
testemunha ocular sóbria aparecera em momento oportuno.
Verdadeiramente, fora um alívio ter a presença de Kingston no caso. Sentia o
auxiliar com os nervos abalados depois da noite anterior e poderia contar com
mais uma mão amiga.
Kingston sempre fora útil e presente em todos os problemas de Pitfall.
Não seria diferente daquela vez que com certeza se tratava do problema mais
sério de sua carreira, e desejava se sair bem no final da história, mesmo que
tivesse que comprar briga com algo desconhecido, aprenderia a lutar bravamente
como sempre lutara.
Chegara o momento de agir, precisava afinar a coragem e cerrar os punhos que
poderiam resolver um problema humano, mas a coragem poderia ser sua virtude e
entrar em ação caso o problema fosse mais complexo, como um fantasma talvez.
Um fantasma que ousava querer impor sua lei em Pitfall. Frank Silver jurava que
não deixaria isto acontecer, afinal ele era o xerife de Pitfall, naquele momento, um
corajoso, obstinado e decidido homem da lei.

269
24

O XERIFE INVESTIGA

O aroma do vapor expelido pelo café ajudava o lenhador espairecer a mente.


Acordara com a sensação de ter vivido um pesadelo na madrugada que passara,
mas percebera em tempo que fora uma situação muito real. Algo que não gostaria
de comentar alguns dias atrás.
Winepowder fazia o seu papel, assistindo todos os movimentos do dono.
― Coma a tua ração, não vamos almoçar agora.
O lenhador percebia que seu cão ganhara um pouco de peso nos últimos tempos,
precisava reeducar a alimentação do companheiro. Na verdade, o cão já comera
sua ração de todas as manhãs, antes mesmo de o dono acordar. A refeição
matinal do cão poderia ser comparada com uma dieta e seu relógio indicando o
horário exato de se comer e o que ingerir. O animal parecia possuir um
cronômetro na cabeça que o informava o momento exato de se alimentar, mas
somente nas manhãs.
Toda esta peripécia ocorria no mesmo horário. Considerando horas e minutos
exatos!
O lenhador terminou de preparar o café e serviu-se de um sorvo. Talvez o gosto da
cafeína e seus efeitos o ajudassem a despertar melhor depois de uma noite mal
dormida.
Precisava sair um pouco e espairecer as ideias, respirar o ar do mundo exterior
que deveria cheirar bem após a abundante chuva que ocorrera e umedecera as
vastas vegetações.
Terminou de beber seu gole e foi até a porta da sala, seu cão ficaria feliz em
passear naquele brando sol de domingo.
Pegou a chave e destrancou a porta, abraçou a maçaneta e tentou abrir a porta
que ofereceu resistência anormal. Certificou-se que a porta estava mesmo
destrancada e intrigou-se consideravelmente. Aquilo tudo poderia ser explicado
caso a porta abrisse para fora, o lenhador teria a certeza de que algo pesado
estivesse barrando sua abertura.
No entanto, a porta abria para o lado de dentro e apenas ele e seu animal estavam
do lado referido, sem manterem resistência à abertura da porta.
Coçou a cabeça:
― Não estou entendendo.
Tentou abrir a porta novamente com toda a força e não conseguiu. Talvez a
maçaneta estivesse danificada e não fosse possível movimentar o trinco.

270
Tentou pela terceira vez, inconformado com a situação. Não conseguiu, olhou para
a soleira da porta e praguejou:
― Mas que diabos!
Havia algum objeto vermelho emperrando a porta, estava fincado na fresta inferior.
Abaixou-se e percebeu que se tratava da lâmina de ferro da sua machadinha. Não
conseguia ligar as ideias e entender como aquilo havia parado ali, estaria preso
em sua própria casa caso não existissem janelas.
Somente alguém com dois pés e duas mãos poderia ter feito aquela arte
monumental, a saber, Parker.
O lenhador não conseguiu movimentar o objeto que machucava a madeira da
porta, provavelmente quando tentou abri-la, a machadinha prensou-se entre a
porta e o chão e fez uma espécie de tranca, impedindo a movimentação da porta,
a julgar, Parker não era tão burro assim.
O lenhador tomou a decisão de pular a janela e do outro lado da porta, retirar a
machadinha.
Alguém bateu interrompendo seu pensamento e o deixou parado por algum
momento, logo depois viu a machadinha ser retirada com algum esforço e
percebeu que sua porta fora danificada. Quem quer que havia batido à porta, já
havia feito um grande favor.
O lenhador abriu a porta e deu de cara com ninguém menos que o xerife, que por
sua vez, fazia uma feição de complacência e segurava a machadinha.
― Posso entrar?
O lenhador indicou o interior da casa com a mão, o xerife entrou na frente.
― Pelo visto, andaram pregando peças em você também.
O lenhador fechou a porta e a trancou, não entendia o que se passava naquele
domingo, primeiro a machadinha enfincada à porta e depois a visita inesperada do
xerife.
― Deseja um café?
― Sim. Posso me assentar? ― perguntou o xerife.
O lenhador indicou a cadeira:
― Por favor.
Enquanto Horace buscava o café, o xerife analisava cada canto da casa como que
por costume.
O anfitrião voltou com o café em uma xícara, o líquido fumegava. O xerife fez um
estranho gesto de satisfação com o rosto.
Entregou o café ao visitante que agradeceu. O anfitrião por sua vez puxou a outra
cadeira da sala e sentou-se de frente para o xerife.
O homem da lei degustou de um bom gole e perguntou:

271
― Como vai, senhor Singer?
― Estou muito bem, a que devo a visita?
― Percebo que você gosta de ir direto ao assunto, pois bem, achou engraçada a
pegadinha da machadinha?
― Faz ideia de quem possa ter te pregado a peça? ― emendou o xerife, tomando
outro gole de café.
O lenhador pareceu fazer um esforço para pensar, mas demonstrava estar com
um pé atrás sobre o que dizer:
― O idiota do Parker costuma brincar com a minha cara de tal maneira, mas não
posso afirmar, apesar de quase ter certeza.
O xerife coçou a barba hirsuta:
― Eu conheço a peça, é muito indolente.
― Chego a sentir pena dele. Seus atos são impensados. ― disse o lenhador.
― Sim, mas ele estragou a tua porta, pensa em deixar barato? Ele deveria no
mínimo pagar pelo prejuízo, tirando do bolso, talvez assim, sinta o peso de se
cometer um crime.
― Tem razão, mas não há o que fazer. Quando alguém o cutuca, pode esperar
atitudes mais graves na revanche. É um caso perdido.
O xerife raciocinou e pelo muito que conhecia a personalidade do infrator, sabia
que o lenhador agia de modo sábio em suas palavras sobre evitar revanchismo.
― Sem contar que não temos provas e neste momento eu tenho um caso muito
mais cabeludo para resolver. ― disse o xerife.
O lenhador ficou intrigado e perguntou:
― A conversa comigo é sobre o caso cabeludo?
― Sim e não.
O xerife depositou a xícara vazia na mesinha ao lado de sua cadeira e prosseguiu:
― Por onde andava ontem, por volta das dez da noite?
O lenhador ficou preocupado com a pergunta do xerife:
― Eu estava em casa.
― Tem certeza? Foi à taverna? Tomou algumas doses a mais?
O lenhador estava em choque de nervos e quase demonstrou sua indignação,
atitude rara em si:
― Que batelada de perguntas! Aconteceu algo grave com alguém por aqui?
― Vai com calma, homem. Estou apenas fazendo algumas perguntas. Prometo
que em menos de dois minutos irei embora, desde que me responda.
O lenhador respirou mais calmo:
― Me desculpe.

272
― Tudo bem. Por favor, responda.
Horace Singer respeitava a idoneidade do homem da lei de Pitfall, era raro
encontrar representantes honestos como o xerife.
― Fui à taverna, mas tomei no máximo dois copos de vodca.
― Estava lúcido após as doses?
― Com certeza, escorreguei duas vezes no barro ao correr à minha casa antes
que a tempestade viesse com sua força descomunal, mas estava sóbrio.
― Quer dizer que antes de a tempestade começar de fato, você já estava em
casa? Não saiu depois?
O lenhador lembrou-se de sua terrível perseguição na madrugada, mas sabia que
não poderia falar sobre para evitar uma conversa mais extensa. Sentia que era
melhor esperar o desenrolar das perguntas para depois abrir-se com o xerife.
― A tempestade começou de fato algum tempo depois de eu chegar em casa e
não saí depois.
O xerife pareceu satisfeito com as respostas obtidas, o mistério perdurava até o
momento.
― Não me disse por qual motivo está me interrogando.
― Vou te dizer. Mas ainda tenho três perguntas.
― Christopher Blume frequentou a taverna enquanto você esteve lá? ― o xerife
indagou.
― Sim, jogamos cartas junto, ontem, como quase todos os dias.
― Você o viu ir embora?
― Não, como eu havia dito, saí correndo para chegar à minha casa antes da
verdadeira tormenta.
― Ele ficou por lá então?
― Exatamente.
― Ele bebeu além do normal ontem?
― Não bebeu, uma das coisas mais difíceis de se ver é Christhoper Blume ingerir
bebida alcoólica, principalmente enquanto joga cartas.
― Mais uma pergunta. Ele se torna agressivo ou fica agitado após tomar umas a
mais?
― Como eu havia dito, nunca o vi ébrio.
O xerife pensou ter terminado as perguntas, o lenhador estava fora de suspeitas
antes mesmo de ser interrogado. Christopher Blume parecia seguir o mesmo
caminho de redenção. O homem da lei sentiu uma preocupação lhe incomodar,
não queria sonhar que estava correndo atrás de um ser de outro mundo ou um
fantasma. Não possuía cara de caça-fantasmas e nem gostaria de ser taxado
como um.

273
O lenhador assistiu o xerife levantar-se com o rosto modificado.
― Posso saber do que se trata?
― Você é alguém admirado por todos os habitantes do vilarejo pela sua
honestidade e acredito que possa saber.
O xerife deu uma pausa e cortou o silêncio do lenhador:
― Já deve ter ouvido falar de casos de carreiras que acabaram do dia para a
noite. Carreiras promissoras.
― Está preocupado com o teu cargo? O vilarejo é um lugar esquecido no mundo e
ninguém é apto a tomar o teu posto. Você é como um rei intocável.
― Não me referia a isso, foi só para exemplificar. Eu queria dizer que o nosso
pensamento e conceito podem mudar em um piscar de olhos quando algo
acontece.
O xerife começou a andar de um lado para o outro, o lenhador levantou-se e o
encarou. O homem da lei prosseguiu:
― Ontem foi o dia de meu auxiliar pernoitar no xerifado e durante a noite alguém
muito forte começou a dar pancadas na porta do estabelecimento.
Frank Silver pigarreou e prosseguiu:
― Pancadas tão fortes que quase foram capazes de arrombar a porta,
comprometendo as dobradiças de sustentação. Houve outra testemunha que
afirmou ter visto uma sombra de porte muito alto desferir os estrondosos golpes.
Sabe o que isto significa?
― Não. ― o lenhador respondeu secamente.
― Significa que eu cheguei à conclusão que o homem mais corpulento do vilarejo
é você e o mais alto é Chris Blume. Meus primeiros suspeitos, mas a única
possibilidade de os dois estarem envolvidos é a ingestão de goles a mais, o que
não foi o caso. Engraçado, também andaram pregando peças com a porta do
xerifado.
― É um fato muito estranho mesmo.
― Tem certeza que quem fincou a machadinha à tua porta foi mesmo Josias
Parker?
O lenhador estava boquiaberto:
― Acredito que sim.
― Nesse caso, é mais um a ser investigado. Na possibilidade de eu constatar que
ele não foi o responsável pelo delito, entra a suspeita de enorme sombra ser a
autora pelo prejuízo da porta do teu lar, também.
― Percebo em que lugar deseja chegar.
O xerife lembrou-se de algo e rapidamente foi até o lenhador.
― Mostre-me tuas mãos.

274
O lenhador não hesitou e exibiu suas mãos para o xerife, estavam perfeitamente
normais.
― Agradecido, era o que eu gostaria de saber.
― Qual o problema com minhas mãos?
― As pancadas desferidas foram tão fortes que com certeza o delinquente herdou
uns bons hematomas. Mas, não vou tomar mais o teu precioso tempo, tenha um
bom domingo.
Frank Silver surpreendeu o lenhador se voltando novamente e comentou:
― A propósito, está com os olhos avermelhados.
― Não dormi muito bem devido os fortes estrondos dos trovões. ― foi uma
desculpa inconsciente para não relatar a perseguição à luz verde.
O xerife decidiu não prorrogar o assunto e estendeu a mão para saudar o anfitrião
que logo correspondeu. Horace Singer foi acometido por incontrolável ímpeto de
relatar sua experiência com a luz verde na madrugada passada, mas as palavras
ficaram presas à sua garganta, como se um sábio pigmeu, habitante de sua
garganta o houvesse calado.
O xerife aguardou que o anfitrião abrisse a porta como cortesia e não demorou em
tomar seu próximo destino, a casa dos Blume, que ficava na rua atrás à do
lenhador, a mesma do poço abandonado.
Aproveitou o tempo gasto na caminhada até seu destino para refletir sobre a
situação, uma carta acabara de sair do jogo e colocava o mesmo próximo ao seu
desfecho. Desfecho que poderia ser satisfatório ou frustrar as mais lógicas
opiniões formadas.
Virou a rua do antigo poço e logo se aproximou à porta do futuro anfitrião. Bateu
três vezes e foi logo atendido pelo próprio Christopher Blume.
O homem apresentava uma calva na parte superior da cabeça e possuía cabelos
nas laterais, com certeza era uma figura que inspirava muito respeito.
― A que devo a visita? ― perguntou Blume, estranhando.
― Posso entrar?
― Lógico que sim.
O anfitrião fez a devida recepção e permitiu que o xerife se sentasse em um sofá
confortável, pois possuía um estofado que parecia obedecer às medidas padrões
para um corpo adulto.
O homem da lei logo constatou que precisaria obter um daqueles tanto para seu
lar como para o xerifado.
Chris Blume era um excelente marceneiro, e seu irmão, Cecil Blume, um exímio
tapeceiro. As profissões se casavam e formava uma dupla em harmonia, ambos
eram aposentados e raramente faziam trabalhos por conta.

275
― Mas que sofá confortável! Não me digam que foram vocês que fizeram.
Cecil Blume estava em uma mesa no canto do aposento, parecia pintar alguma
chapa de madeira com tinta branca e virou sua atenção para responder:
― Fomos nós que fizemos. Meu irmão não gosta muito de expor suas habilidades,
mas esse sofá possui uma estrutura de madeira diferenciada, inventada por ele, o
segredo não está na carne do sofá, mas sim em seu osso.
O xerife fitou seriamente o rosto de Chris Blume:
― Você poderia ganhar um bom dinheiro com a ideia, nunca vi algo parecido, já
ouviu falar em patente?
O interrogado afirmou com a cabeça, mas parecia estar em dúvida.
― Você poderia patentear a ideia e colocá-la no mercado, assim ganharia dinheiro
sem precisar trabalhar.
― Para isso eu teria que sair de Pitfall. ― disse Chris.
― A ideia de dar o fora de Pitfall é má?
― Sim, não troco a tranquilidade daqui por lugar algum no mundo.
Cecil Blume estava assistindo a conversa e parecia estar orgulhoso das palavras
do irmão. O xerife por sua vez, decidiu jogar um verde para colher um maduro:
― Você considera Pitfall um lugar tranquilo, de fato?
― Sim, tem alguma dúvida?
O xerife precisou despistar suas intenções:
― Não, é que o vilarejo anda conturbado ultimamente.
Cecil aparentava ser o mais esperto dos dois e captou o fio da meada:
― Em que lugar quer chegar senhor xerife? Fizemos algo sério?
O xerife espantou-se com as palavras ouvidas:
― Não fizeram algo sério, mas vou direto ao assunto. Estamos presenciando um
movimento anormal no vilarejo, digo isto, nos últimos tempos. Vocês estão sempre
na taverna bebendo e jogando cartas noite afora, assim, estão mais suscetíveis a
se depararem com a coisa conhecida como luz verde. Já ouviram sobre a história?
― Ora, o assunto já não é mais novidade e nem tabu por aqui. ― contestou Cecil.
O xerife incomodou-se com a frieza das palavras de Cecil. O outro Blume estava
assistindo o debate boquiaberto, como um bobo babando em frente à televisão de
um quarto de manicômio.
O homem da lei levantou-se e ficou de frente para Cecil:
― É uma pena ter de abandonar o vosso confortável sofá, mas meu trabalho
exige abrir mão de algumas regalias. Estou aqui como representante da lei e não
como amigo. Portanto, exijo que respondam o que eu perguntar, como bons
cidadões.

276
Frank Silver cruzou os braços esperando uma reação de Cecil que contestou
valentemente:
― Desculpe-me, mas o assunto apresentado provoca comichões em mim.
― Pois eu prometo que se responderem as minhas perguntas, logo darei o fora e
desejarei um bom domingo.
― Para começar, vim interrogar apenas o teu irmão, mas acredito que deverei
estender algumas perguntas a você também.
Chris Blume continuava parado em sua posição, como quem espera a reação de
defesa do irmão, o cérebro malicioso dos dois.
― Meu irmão cometeu algum deslize pessoal? ― indagou Cecil.
― Vamos com calma, desejo apenas fazer algumas perguntas.
O xerife executou seu costume de andar de um lado para o outro enquanto refletia
sobre o que iria perguntar. Quem assistisse a cena julgaria ser o caso de um
carrasco decidindo como iria dar um fim em seus dois condenados.
― Primeiramente, vocês viram a luz verde?
Ambos negaram.
― Certo, se qualquer dia quando estiverem na taverna ou lá indo e se depararem
com um ser de impermeável negro e emanando luminosidade verde, por favor, me
chamar no mesmo momento. Posso contar com vocês? ― o xerife perguntou de
modo irônico, pois sabia que os interrogados conheciam muito bem a figura em
questão e pessoalmente.
Ambos afirmaram.
― A minha segunda pergunta é para Chris. Bebeu goles a mais, ontem à noite?
― Meu irmão não bebe. ― Cecil tomou a frente.
― Desculpe, primeiramente gostaria de ouvir as palavras do teu irmão, acredito
que ele tenha vontade e língua própria. Você parece um marido ciumento que não
deixa a esposa sequer abrir a boca.
O xerife foi duro como deveria, mas o humor de Cecil não se alterou, afinal sua
intenção era a das melhores. Chris respondeu:
― Não bebi, acredito que tomo um copo de uísque, uma vez ao ano.
― Você bebeu, Cecil?
― Não o suficiente para me embriagar.
― Quanto?
― Dois copos de vodca.
― Tudo bem, é certo que dormiu lúcido. Responda-me Chris, estava na taverna
por volta das dez da noite, ontem?
― Não. Tomamos um banho exemplar ao encarar a tempestade e vir para casa,
de modo que estive em casa às dez da noite.

277
― Confirma Cecil?
― Sim, viemos juntos com Josias.
― Alguém ficou na taverna?
― Não, fomos os últimos a sair. Singer foi o mais esperto e o primeiro a dar o fora.
― respondeu Cecil.
― Obrigado pela informação extra. Posso ver as mãos dos dois?
Cecil foi o primeiro a mostrar as mãos, estavam manchadas de tinta branca, mas
era possível perceber estarem intactas. As mãos de Christopher estavam em
perfeito estado também.
― Muito bem, eu agradeço a prestatividade dos dois.
― Podemos saber o que aconteceu? ― indagou Cecil.
O xerife ficou cabreiro com a pergunta, feita no mesmo momento em que o
lenhador a fizera, quando terminava o interrogatório.
― Pois bem, tive um problema no xerifado. Quase arrombaram a porta na base da
porrada ontem à noite, por volta das dez horas. Uma testemunha afirmou que o
atacante possuía uma estatura considerável e como Chris Blume é o homem mais
alto do vilarejo, tornou-se um fácil e provável suspeito.
― Mas, pensou que fossemos capazes duma desordem desse nível? ― indagou
Cecil irônico.
― Não se sintam ofendidos, quando bebemos e ficamos ébrios, não respondemos
pelos nossos atos. Por tal motivo indaguei se haviam bebido além da conta.
Apesar de apenas Chris possuir uma altura elevada entre vocês dois, mas é
preciso apurar.
― Farei outra visita para tratar de negócios, gostaria de obter dois sofás especiais.
Obrigado pela cordialidade.
Cecil decidiu prorrogar a conversa:
― Gostaria de dizer algo sobre a luz verde.
O xerife virou-se atento para o homem que acabara de falar:
― Sabe alguma coisa sobre a luz verde?
― Na verdade, queria dizer que na sexta-feira, a noite em que o segundo
forasteiro apareceu no vilarejo, estávamos jogando cartas na taverna, o mesmo
grupo de mesa de sempre.
Cecil respirou fundo e continuou:
― O andarilho entrou assustado indicando a aproximação de um perigo,
passaram-se poucos segundos e a luz verde transitou ao lado da porta da taverna,
assustando os presentes. Tentaram acertar a luz verde com tiros, mas sem êxito.
― Quem tentou acertar a luz verde?

278
― Horace Singer, que eu me lembre. Mas tudo aconteceu muito rápido, como
naqueles pesadelos que você tenta correr, mas desloca-se poucos milímetros por
hora. Tivemos a sensação de indefesa e sujeição.
Cecil conseguiu prender a atenção do xerife, fazendo o homem da lei parecer
vivenciar o episódio.
― Era uma sensação mais complexa que o medo, como se a luz verde dissesse
que veio fazer algo e mandasse que aguardassem terminar sua tarefa para que
depois tornassem a raciocinar de modo normal. Como um sentimento de se estar
deitado no chão rendido por um assalto ou ainda estar esperando uma manada de
búfalos passar correndo ao lado para não ser esmagado.
― Eu não soube desse acontecimento, ninguém me falou. ― protestou o xerife.
― Talvez estivessem com receio de comentar sobre ou pensar que você não
acreditaria em histórias de fantasmas.
― Mesmo eu sendo um exímio contestador, precisaria saber dos fatos. O meu
dever é proteger o vilarejo dos invasores e mesmo se fantasmas existirem, o que
duvido muito, trago a obrigação de saber dos fatos.
O xerife ganhava mais uma carta no jogo. O fato narrado por Cecil poderia tornar
as investigações mais demoradas, mas por outro lado, poderia ser a chave para a
solução. O homem da lei tinha vontade de correr e passar longas férias em
alguma ilha paradisíaca. Pitfall passara de lugar tranquilo para uma tremenda dor
de cabeça.
Era preciso raciocinar e alimentar o ânimo, sem querer colocar os burros na frente
da carroça.
Esperar o momento certo de regozijar-se com uma solução que se mostrava
complexa, afinal, não era todos os dias que homens da lei se deparavam com
problemas envolvendo mistérios aparentemente insolúveis.
Naquele exato momento, o xerife não sabia o que fazer ou como agir. Considerava
somente a possibilidade de interrogar Josias Parker acerca da porta da casa do
lenhador, e era o que iria fazer.
Despediu-se cordialmente e solicitou que ambos fizessem uma visita ao xerifado
antes do anoitecer para trocarem as dobradiças da porta quase arrombada. Os
irmãos Blume consentiram em fazer o serviço.
O xerife foi assistido pelos dois irmãos enquanto saía e se encaminhava para a
próxima rua, a que ficava atrás da rua principal. Seu destino era a casa de Josias
Parker, torcia para não precisar fazer uso de sua arma de fogo. Parker poderia
transtornar o psicológico de qualquer pessoa.
A caminhada até a casa de Parker provou ao xerife como Pitfall se tornara um
vilarejo abandonado. As pessoas pareciam evitar sair nas ruas.

279
Chegou até o seu destino e bateu várias vezes seguidas à porta, o futuro anfitrião
demorou a atender, mas quando a porta se abriu, o xerife teve uma surpresa.
Parker abriu a porta com uma mão, fumava um charuto e a outra mão estava
colada ao peito, era como se estivesse fazendo uma série de massagens para
aliviar alguma dor.
― Por favor. ― disse Parker com semblante sério indicando para que o homem da
lei entrasse, porém deveria estar maquinando mais uma das suas.
Quando o xerife ia entrar, Parker empurrou a porta com repentina violência e
quase a colidiu com o rosto do xerife que fez força e empurrou a porta de volta,
invadindo a casa.
Parker gargalhou e tornou a ser cordial. O xerife não adotou revanchismo em
relação à porta assassina que quase o arrebentara a cara.
A sala da casa de Parker possuía no mínimo uma dúzia de aves empalhadas,
trabalho feito pelo próprio anfitrião que fora um excelente taxidermista.
Diziam que Parker ficara mau das ideias após trabalhar com incontáveis defuntos
de animais.
Mas, na verdade houve um episódio que ninguém soube. Uma família de alto
poder aquisitivo de Jacksonville, onde Parker vivera a maior parte de sua vida,
solicitara que o taxidermista tentasse empalhar o corpo de uma anciã matriarca da
família. Parker conseguira com quase um mês de trabalho, mas nunca mais
raciocinou da mesma forma, parecia ter aderido ao movimento que defendia
aproveitar o restante de seu tempo na vida para aproveitar e dar boas risadas. De
fato, a condição de trabalho aceita por uma considerável quantia de dólares
mexera com o psicológico de Parker que trazia certo nojo de comer carnes até
então.
Na ocasião, poderia ter protestado e dito que não tinha cara de agente funerário e
trabalhava com taxidermia.
Parker fazia seu papel de homem e demonstrava coragem em todos os casos,
mas perdera a conta de quantas vezes sonhara que a anciã empalhada o
perseguia, cobrando o motivo de ter feito tamanha modificação em seu corpo. A
família em questão passara a conviver com uma múmia dentro de casa e calara a
boca dos médicos com dinheiro. A saber, boca do médico responsável por
comunicar o IML sobre o corpo, o episódio caiu no esquecimento e nunca chegou
a ser comentado externamente.
― Deveria ir ao médico, é notória a tua dor no peito. Precisa de ajuda?
Parker tossiu e esfumaçou seu charuto.
― Que tal parar de fumar essa droga? ― indagou o xerife.
O anfitrião deu uma sonora gargalhada ao escutar a indignação expressada nas
palavras do xerife.

280
― Você é quem deveria experimentar, é danado de bom.
― Eu tenho amor à minha saúde e cuido de minha vida.
― Meus peitos doem, mas fumar me alivia um lado.
― Você vai morrer rapidamente fumando assim. ― protestou o xerife.
Parker soltou outra gargalhada das palavras do xerife e sentiu a dor se intensificar,
mesmo assim encontrou forças para dizer:
― Eu não tenho medo da morte. Você tem? Acredita que uma senhora de capa
negra e de foice na mão virá ceifá-lo em tempo oportuno?
― Conversa de quem não tem o que fazer. Não me fale mais em fantasmas. Para
mim basta os fantasmas do vilarejo, como alguns velhos rabugentos. Será que
não dá para conversar com você sem que expila fumaça nas minhas narinas?
Parker não respondeu e continuou fumando com olhar de orgulho.
― Dá para apagar essa maldita merda?
Parker negou com um gesto de cabeça.
― Eu sou a lei por aqui, me ouça. ― contestou o xerife.
― E eu sou o fora-da-lei. Mocinho e bandido frente a frente, como nas boas
histórias de faroeste. Resultará em um duelo fatal?
O xerife levantou-se e encarou o anfitrião:
― Está me desafiando?
― Lógico que não, odeia matar pessoas.
O homem da lei percebeu que era impossível dialogar de modo sério com o
anfitrião que não possuía desconfiança dos limites que deveria respeitar. Era
preciso então, ir direto ao assunto:
― Minha pergunta é simples.
― Já sei a que veio. ― respondeu Parker secamente.
― Então diga. A que vim?
― Veio me perguntar acerca do responsável por castigar Horace Singer em seu
maldito e decrépito lar. Apoteose denominada de “O castigo florestal da
machadinha do justo carrasco”.
― Você se acha muito esperto, não é mesmo Josias Parker?
― Não acho que sou esperto.
O anfitrião calou-se e obrigou o xerife a questionar:
― Não julga ser esperto?
― Não julgo, tenho certeza.
Parker baforou o charuto no rosto do xerife e gargalhou com vontade.
― Acredita que você está fazendo minha dor no peito passar? Era o que
poderíamos denominar de ausência de boas risadas.

281
― Eu poderia te colocar no xadrez por desacato à autoridade, sabia?
― Sim. Mas garanto que eu me livraria do cárcere tão rápido como você pensou
em lá me colocar.
― Como assim?
― Tenho meus truques, sou perito em desbancar estratagemas.
O xerife percebeu que estava envolvido na brincadeira de uma criança que insistia
em não dar-lhe tréguas e insistia mais ainda em barrá-lo sem qualquer modo em
que pudesse se desvencilhar.
― Quer dizer que foi você que fez aquela arte na porta da casa do lenhador?
― Positivo.
― Você vai pagar o prejuízo, é um modo de fazer o grande favor de não me
obrigar a te deixar em cana.
Parker com o olhar mais orgulhoso do dia, disse:
― Como diz o ditado, dinheiro não é problema, mas sim a solução. Eu não
temeria dormir em cárcere, como eu havia dito, sairia em poucos minutos e você,
ainda por cima, não tem coragem de matar uma mosca, seu saco de merda.
O xerife levantou-se e quase desferiu um forte soco no rosto do anfitrião.
― Tem a sorte de eu ser um xerife, digamos bonzinho, caso contrário você já seria
um cadáver em estado de putrefação.
O anfitrião desafiou:
― Experimente me encostar o dedo e conhecerá minha força e valentia.
― Como eu havia dito, você é um homem de muita sorte, sorte que te permite
poder fazer suas gozações e não ser punido. Espero que caia em alguma lei a
qualquer momento e implore para que eu o liberte.
― Sou perito em fugas, seu monte de lixo.
O xerife não tinha saída, se ficasse rente a Parker mais alguns segundos seria
capaz de matá-lo e tal atitude não era boa.
― Chega de falação. Vou-me embora, ainda terei o prazer de colocá-lo no xadrez
e veremos com quantos paus se faz uma canoa.
― Ou ainda, quantos grampos de cabelo são necessários para destrancar um
cadeado de cadeia de fundo de quintal e fugir, seu monte de bosta. ― Parker
retrucou, não deixando por menos.
O xerife envolvia-se cada vez mais no jogo do anfitrião:
― Grampos de cabelos? Mas você nem sequer tem cabelos.
Parker gargalhou e baforou o charuto que chegava ao seu fim, tossiu fortemente e
colocou a mão no peito, o xerife aproveitou-se da situação para ironizar:
― A dor voltou? Não aguentou minhas gozações?

282
O anfitrião continuava a tossir, seu rosto avermelhou-se mostrando tamanha falta
de fôlego. O xerife inclinou-se e colou o rosto no de Parker, falava como um
professor lidando com um aluno que acabava de cometer uma arte:
― Viu como é bom pagar na mesma moeda?
― Que nojo! Vou tirar o meu rosto de perto do teu. Não aguento mais tamanho
fedor de fumo queimado. ― emendou o xerife.
O xerife se preparou para sair, Parker recobrou-se e começou a gargalhar com
gosto:
― Suma da minha casa, seu traste!
― Um dia você será homem como eu. ― emendou o anfitrião.
Frank Silver se preparava para abrir a porta quando se virou para o outro e deu o
golpe final:
― Para tal, resta-me ficar careca e colocar um charuto fedorento na boca.
Parker não aguentou e soltou outra gargalhada, alta o suficiente para alarmar a
vizinhança. O xerife se retirou e deixou a porta aberta. O homem da lei segurava-
se para não sair do controle e demonstrar sua personalidade incomum, o
interrogado sabia modificar o humor de qualquer pessoa, com certeza seria um
bom jogador de beisebol, usufruindo de truques de desconcentração.
O xerife afastou-se alguns metros da casa de Parker e ainda podia ouvir as
gargalhadas, ouviu o homem louco murmurar algo que não foi possível decifrar.
Chegou ao xerifado. Oliver Kingston estava sentado com os pés sobre a mesa,
como um xerife de faroeste desfrutando de sua folga e corrupção total.
― Temos algum gole de café por aqui? Que vilarejo difícil de lidar!
Kingston colocou-se em posição decente, de pé e respondeu:
― Acabei de fazer um pouco.
― Por favor.
Kingston não se contentou e indagou:
― Encontrou alguma pista da sombra?
― Da sombra nada, mas acabei de me deparar com um autêntico demônio!
Kingston sorriu do rosto de indignação do xerife e de como suas palavras cortaram
o ambiente do xerifado, sabia que o homem da lei poderia estar referindo-se
unicamente a Josias Parker, o malévolo e justiceiro carrasco de Pitfall.

283
25

O TERCEIRO APOSENTO

Receio é diferente de medo ou uma espécie de medo mascarado e atenuado?


Em situações semelhantes ao antigo hotel de Pitfall poderíamos dizer que os
ímpetos barrados significavam um medo intenso do desconhecido.
Desconhecido que ainda não fora descoberto ou sequer mencionado.
Como explicar uma porta antes trancada sendo aberta logicamente por ninguém?
Os dois forasteiros estavam sentados à cama paralisados de medo, ou receio que
fosse.
Uma arma de fogo não era capaz de passar segurança e dar forças para enfrentar
o desconhecido?
Até o momento, a resposta era não para os dois hóspedes do único hotel em um
raio de vários quilômetros, abandonado e esquecido pelo mundo. A considerar, a
mesma situação do vilarejo.
Os dois hóspedes do misterioso hotel de Jim Bobster estavam refletindo sobre o
que haviam presenciado.
O velho do hotel esteva a melhorar o visual do estabelecimento do lado de fora,
trabalhando incessantemente com o seu ancinho enferrujado. No momento em
que alguém destrancou a porta e a abriu em uma pequena fresta, permitindo que
a mesma rangesse e incomodasse os presentes. Foi uma armadilha intencional?
Os dois hóspedes demoraram quase cinco minutos para reagir. Forbes encorajou-
se e pegou sua arma, pronta para disparar, Norman o seguiu.
Chegaram rente à porta em passos lentos e criaram coragem para abri-la, quando
isto fizeram, ficaram pasmos, pois o corredor estava totalmente deserto. Mas o
estranho enigma não terminou naquele momento de desolação, outro som, o de
uma porta sendo fechada foi ouvido. Conseguiram visualizar a porta do aposento
número três do hotel ser fechada e trancada à chave.
Mas como era possível, se o dono do hotel estava na rua e era o único a habitar o
estabelecimento além dos hóspedes?
Uma explicação que ficaria pairando pelo ar, intensificando o medo ou receio dos
hóspedes que possuíam a chave do quarto recém-adentrado por um suposto
visitante.
Tomaram a decisão de retornar ao quarto de Norman e sentaram à cama a
pensar, a porta foi trancada, como prudência.
Qual atitude tomar? Como agir em meio a um mistério inexplicável?

284
Forbes gostaria de ter as respostas, sem tomar uma medida extrema e
precipitada, levando-os à perdição. Norman queria dar o fora o quanto antes e
esquecer de uma vez por todas que esteve em Pitfall.
― Vamos entrar naquele quarto como homens que honram suas calças. ― Forbes
disse secamente.
Norman parecia não reagir e não concordar com a decisão, mas ainda confiava no
amigo.
― O velho já entrou no hotel ou teremos que despistá-lo novamente?
Forbes levantou-se reagindo à pergunta do outro e foi até a janela certificar-se.
Jim Bobster continuava do lado de fora do hotel a limpar sossegadamente as
folhas dispersas na tempestade.
Norman logo compreendeu o sinal positivo dado pelo amigo com o gesto teatral
como quem diz: “ei, pode ir, seu idiota”, e ambos encaminharam-se rapidamente
ao corredor.
Tinham o receio do que iriam encontrar, ou talvez, medo.
Pararam de frente à porta do quarto inexplorado. Norman sempre prudente em
seus pensamentos perguntou:
― Ambos entramos ou alguém fica de fora para dar cobertura?
― Vamos entrar e ficar com a porta aberta, assim, poderemos voltar rapidamente
sem deixar pistas, caso não houver alguém aí dentro, capaz de nos delatar, é
lógico.
Norman discordou da decisão, mas o companheiro ainda possuía o posto de
homem de confiança, como o guia de um acampamento ou o cara do parque de
diversões que falava e tudo ficava legal, a palavra de confiança dos
desamparados.
Norman colocou a chave à porta com cuidado e girou-a. Ouviram um clique de
aceitação, a porta estava destrancada. Forbes cochichou no ouvido do amigo:
― Espere, eu tomo a dianteira.
Pegou sua arma e tirou-a de dentro do casaco que a acobertava até então. Estava
pronto para qualquer tipo de surpresa. Girou a maçaneta e empurrou a porta que
por sua vez emanou um pequeno rugido. Os dois entraram. Forbes acionou o
interruptor.
O aposento possuía a estrutura normal do hotel e estava bem arrumado, mas
aparentava estar inabitado. Nenhuma mala ao chão, a cama estendida
normalmente e a janela cerrada à cortina. Forbes aproveitou a oportunidade para
estudar a visão oferecida pela janela, uma vez que não fazia frente à rua principal.
Havia apenas um vão de menos de um metro entre o hotel e a casa da rua de
trás, o vão estava recheado com vegetação, impedindo que o hóspede dormisse
com a janela aberta, pelo motivo de animais indesejados e que foram criados para

285
habitar em meio às árvores poderem entrar no aposento. O vão que dividia o hotel
da casa poderia ser comparado a uma célula da floresta.
Ninguém poderia ter fugido pela janela, havia ninguém no banheiro.
Ambos estavam estupefatos. A pior notícia que poderiam ter recebido era a de o
aposento estar totalmente inabitado. Mas, no meio tempo em que estiveram
trancafiados no quarto de Norman, o suposto hóspede daquele quarto poderia ter
se mandado para nunca mais voltar e se tornado um eterno mistério.
As duas mentes raciocinavam em torvelinho, esqueceram-se que Jim Bobster
existia e que poderia retornar ao seu estabelecimento a qualquer momento. O que
mais intrigava era que a certeza que o ser que entrara no terceiro aposento
possuía também a chave do quarto de Norman, portanto, não se tratava de um
hóspede comum, mas sim um que possuía toda sorte de regalias, tão individuais
que eram proibidas aos dois.
Cada segundo no hotel e em Pitfall acarretava mais um cálculo complexo para a
solução de um mistério.
Naquele momento, ambos já se aperceberam do quadro que embelezava o quarto
e o fitavam. Um homem aparentando ter mais de cinquenta anos cortava lenha
dando um golpe em um tronco grosso de árvore. Vestia um macacão jeans e
usava uma bota marrom, trazia um olhar malévolo e uma espécie de sorriso
irônico, fitava a câmera que o fotografou. Os quadros do hotel com certeza haviam
sido feitos para espantar futuros hóspedes.
O receio virou medo na pessoa de Norman Legrand e Joseph Forbes. Sentiam a
tremenda necessidade de fugir o quanto antes, correndo desenfreadamente se
preciso e deixando seus automóveis para trás, sem ousar olhar à retaguarda como
havia feito a infeliz mulher de Ló.
― Com o que estamos lidando? Quem entrou aqui e saiu sem deixar rastros? ―
perguntou Forbes quase sem voz.
Norman era o menos tenso no momento.
― Talvez o hóspede deu o fora enquanto estivemos em meu quarto.
Forbes conseguiu apenas virar o rosto para o amigo em estilo câmera lenta,
estava boquiaberto e afirmou com a cabeça. Começou então a coçar a cabeça,
pois as palavras lhe faltavam.
― É no mínimo estranho. ― disse Norman.
― O que é estranho?
― O velho nunca deixou que andássemos livremente pelo hotel, o que hoje se
tornou a tarefa mais fácil do mundo, é como se...
― Se ele não estivesse preocupando-se conosco, digo, como se estivéssemos
sendo monitorados por outrem. ― Norman emendou as palavras e conectou as
ideias.

286
Forbes ainda estava boquiaberto e com a garganta seca, parecia um beduíno
cruzando o deserto e carecendo de água.
― Faz sentido.
Norman complementou:
― Varrer folhas dispersas pelas árvores não seria uma tarefa importante ontem
para Bobster, de modo que nos deixasse em paz para explorar o hotel.
Forbes cortou o amigo:
― O closet, vamos ver o closet.
Correu abrir a porta do closet e vasculhou. Dois cobertores azuis dobrados;
nenhum pacote de velas; nenhuma teia de aranha, mas por Deus, um quadro.
Forbes o pegou e colocou à visão dos dois.
Uma réplica do quadro da parede, com a foto do misterioso lenhador.
― Os quadros deste hotel fogem dos padrões, a minha vontade é de descer a
escada e dar um pontapé no traseiro de Bobster. ― disse Norman.
― Não se esqueça que você não teria o direito, estamos no hotel por livre e
espontânea vontade. ― retrucou Forbes.
Norman engoliu a seco. Forbes colocou o quadro de volta à sua posição e fechou
o closet, depois se voltou para encarar o companheiro:
― Sabia que às vezes eu tenho a mesma vontade, de desobedecer todas as
regras e mostrar quem é que manda, na base da força?
― Vamos dar mais uma procurada. ― disse Norman.
Norman foi até a porta e procurou escutar o que se passava no saguão, era
preciso manter o velho à distância. Forbes aproveitava para vasculhar outros
lugares no quarto e desafiou ao outro:
― É melhor você ficar de olho no saguão, talvez a audição não seja suficiente
para evitar uma desagradável surpresa.
Norman consentiu com a ideia, a propósito, as ideias do amigo pareciam surgir
nos momentos mais oportunos e para aquela situação, a mente de Forbes
contribuiria para encontrar algo estranho e muito bem escondido até então.
Aconteceu quando Norman foi até o topo da escada visualizar o saguão e Forbes
teve um lampejo de levantar o colchão da cama.
Forbes assistia intrigado o que encontrou, pegou o conteúdo e colocou o colchão
de volta em seu lugar. Não precisou procurar por outra coisa, foi o suficiente para
chamar seu amigo e querer voltar ao quarto cujo acesso era autorizado e dentro
da lei, o de Norman.
A ação de trancar a porta do terceiro aposento e verificar se estava do modo como
o haviam encontrado não demorou tanto. A única coisa que fora subtraída do

287
terceiro aposento estava nas mãos de Forbes. Ele escondeu o achado, a saber,
um envelope misterioso por dentro do casaco e disse:
― Acho melhor tentarmos devolver a chave ao seu molho.
Norman achou a ideia absurda, mas acabou consentindo. Forbes desceu ao
saguão e foi até a rua distrair a atenção do velho do hotel. Sabia muito bem qual
truque usar, perguntaria se existia algum médico no vilarejo para consultar seu
debilitado amigo.
Norman comportou-se como um exímio soldado de guerra e devolveu a chave ao
seu molho rapidamente, afinal, conhecia o caminho e os meios de chegar ao alvo.
Agiu como um rato que decora uma trilha para retornar outro dia no seu tão
esperado rango.
Retornou rapidamente ao segundo andar, não sem antes estudar o quadro da
velha caolha que parecia criar vida própria ao ambiente mal-iluminado do saguão.
Se Norman fosse contar alguma história de horror algum dia, com certeza o
quadro da velha e o sombrio saguão do hotel estariam no meio.
Não demorou para que Forbes retornasse, mas vinha com movimentos
apressados e bufava.
― Vamos ao teu quarto. Ele parece estar desconfiando dos nossos movimentos.
Norman correu à frente e destrancou sua porta. Os dois entraram sem problemas
e o doente fictício foi até seu leito fingir a moléstia descrita pelo amigo.
Novamente, preocupavam-se no caso de Bobster vir ao encalço dos dois e querer
alguma satisfação pelo muito transitar de Forbes que foi até a janela certificar-se e
constatou que o dono do hotel continuava em seu calmo trabalho com o ancinho
enferrujado em mãos.
― Ele ainda está fora do hotel. Nunca pensei que seria tão fácil poder andar pelo
hotel sem que ele estivesse nos ouvindo e fazendo ameaças de caráter
sobrenaturais. ― disse Forbes cerrando a cortina e voltando para o centro do
quarto.
― O problema é ele entrar aqui e constatar que eu não tenho qualquer sintoma de
febre, vai desconfiar. ― retrucou Norman.
― Seria um problema, mas não vamos o deixar entrar aqui nem que seja na base
da força. Ele até conversou normal comigo, respondeu que existe um médico no
vilarejo, mas não informou como ter contato com o camarada.
― Ei, eu não entendi o motivo pelo qual você regressou afobado do saguão.
― Três motivos. Primeiro, percebi que você havia subido novamente e pensei que
a chave já deveria estar em seu devido lugar, segundo, o quadro da velha no
saguão me dá calafrios, e terceiro, tenho algo interessante para te mostrar.
Forbes tirou o envelope de dentro do casaco e mostrou a Norman.
― O que é?

288
― Vamos descobrir. Encontrei no aposento invadido por nós.
Forbes preparou-se para abrir o envelope quando estacou apurando os ouvidos e
virou o olhar rumo à porta:
― Escute.
Norman procurou captar algum som vindo da porta, mas achava que o amigo
estava tenso e imaginando coisas.
― Escutar o quê?
― No corredor, ruídos no corredor.
Norman apurou os ouvidos, mas continuava sem entrar na situação, deixando o
outro desolado.
― Tenho a nítida impressão de que alguém anda pelo corredor, escuto o chão
ranger brandamente e soa uma espécie de ruído, como se algum animal estivesse
deliciando-se com uma carne suculenta.
― Não consigo escutar. ― contestou Norman.
― Eu vou verificar.
― Acalme-se. Pode ser perigoso. ― Norman tentou barrar o amigo, mas Forbes já
havia deslocado a cortina da janela e olhava para fora do hotel.
A ação de Forbes foi rápida, virou-se e pareceu gesticular que Bobster continuava
fora do hotel, correu até a porta seguido por Norman que acompanhou seus
movimentos e destrancou a porta sem se preocupar em fazer barulho.
― Vamos surpreender. ― disse Forbes agitado.
Abriram a porta e saíram ao corredor, estudando-o em cada canto.
Queriam surpreender quem quer que estivesse perambulando pelo corredor que
por sua vez, estava vazio, mas foram eles os surpreendidos, pois alguém acabava
de trancar a porta do terceiro aposento pelo lado de dentro, mas daquela vez, eles
não possuíam a chave, haviam perdido aquela batalha e não poderiam ir ao
encalço do misterioso visitante.
― Vamos arrombar a porta. ― disse Forbes, mas foi impedido por Norman: ―
Não cometa tamanha imprudência, estamos progredindo.
― Você ainda não percebeu que estamos na verdade correndo perigo de vida. O
que foi que entrou naquele maldito quarto?
― Acalme-se. ― disse Norman puxando o amigo de volta para o quarto que se
tornara o bunker de guerra de ambos.
Forbes acalmou-se e sentou-se à cama. Norman estava de pé, parecia querer
fazer alguma espécie de paredão para impedir que o amigo fizesse alguma ação
premeditada.
― Podemos estar correndo perigo de vida. Ouvi o ruído de algum animal
mastigando um prato suculento, provavelmente uma carne e foi nítido.

289
― Pode ser impressão, coisa da tua cabeça. Talvez fosse algum som das casas
de trás.
― Já ouviu falar de canibais? Verdadeiros animais em forma de homem que
mastigam carne humana e são capazes de roer os seus ossos, ou ainda enfeitar a
porta de suas casas com o escalpo seco de uma pobre vítima?
Norman entendeu a colocação do outro e lembrou-se de um filme sobre canibais
que havia assistido há pouco tempo, mas não encontraram qualquer vestígio de
restos mortais de humanos no hotel e nem no vilarejo. Continuava a julgar que a
mente do outro estava perturbada, não podia permitir que o amigo perdesse os
sentidos naquele momento, caso acontecesse, ele próprio estaria em maus
lençóis.
Forbes recobrou a consciência natural e pegou o envelope já amarelado pelo
tempo.
― Espero que não esteja vazio. ― disse Norman.
― E eu espero que tenha uma boa quantia em dólares. ― retrucou Forbes em
tom de zombaria.
― Mesmo assim, nenhum dinheiro do mundo me tira deste vilarejo, agora eu vou
até o fim. ― emendou.
― Penso o contrário, eu pagaria para ir embora, mas algo parece me prender
aqui. ― Norman contrariou.
― Entendo. Uma espécie de desvendar o desconhecido.
― É mais complexo do que isso, cheguei a pensar na possibilidade de querer dar
partida no meu carro e ele recusar-se a andar, como se tivesse vontade própria e
estivesse do lado de Pitfall.
Forbes abriu o envelope e cortou a conversa, puxou três folhas de papeis que
demonstravam ser um manuscrito.
― Parecer ser interessante. Você lê. ― disse Forbes entregando os papeis ao
amigo.
― Eu ler?
― Sim, você como escritor tem aptidões para as letras, mais do que eu.
Norman sentiu-se lisonjeado e retrucou o elogio:
― E eu nunca vi alguém que raciocine como você.
― Não faça casos e leia.
O clima estava amistoso antes de Norman ler o manuscrito. Haviam até se
esquecido do aposento misterioso em que alguém havia entrado por duas vezes.
Norman leu em voz baixa:
“2 de março de 1978, quinta-feira.
Algo me persegue.

290
Não consigo explicar o que há com este maldito hotel.
Antes houvesse aceitado o convite de meu irmão para pescar trutas no final de
semana.
Tudo começou ontem, quando estava em meu carro cruzando uma rodovia da
Flórida, estranhei não ter visto uma cidade em aproximadamente vinte milhas. O
problema maior era a não existência de qualquer posto de gasolina no percurso.
Precisava de informações, pois não sabia se meu combustível seria suficiente até
encontrar uma cidade ou um posto de beira de estrada. O céu estava indicando
que uma chuva se aproximava, talvez uma tempestade, pois a ventania batia no
vidro dianteiro de meu carro, dando a impressão que um tornado desejava tocar
trombetas indicando sua futura chegada.
O fim de tarde era o meu maior motivo de preocupação. Não gostaria de ficar
parado no meio de uma rodovia desconhecida no meio da noite, sempre fui
alguém que temeu os bandidos de estrada, as gangues responsáveis por matar
pessoas queimadas vivas, uma moda do momento, das gangues cruéis.
Um relâmpago cruzou a imensidão do céu já enegrecido e apertou meu anseio
para encontrar outra alma viva e sentir o calor humano que parecia ter existido em
eras de milhões de anos atrás, mas que foi extinto. Sentia-me como um homem
que é lançado e esquecido em outro planeta.
Meu coração deu um pulo de alegria quando avistei uma placa e uma entrada no
meio das árvores.
VOCÊ ESTÁ CHEGANDO A PITFALL, O VILAREJO DAS FÉRIAS
INESQUECÍVEIS.
Talvez estivesse me aproximando de um balneário ou alguma cidade turística do
estado da Flórida. O céu escuro já estava ofuscando a visão completa do mundo
quando peguei a entrada para o desconhecido vilarejo.
Quando avistei as casas do local lembrei-me das histórias de faroeste que ouvia,
das casas de madeira com pilares sustentando uma cobertura na varanda. A
primeira casa do vilarejo era ampla em relação às outras que pude perceber à
distância. Na verdade fiquei contente em perceber que se tratava de um hotel.
Estacionei meu carro com o coração aos pulos, esperando encontrar alguma alma
viva. Entrei no hotel que estava com a porta semi-aberta e mergulhei em um
saguão iluminado parcamente pelo chamejar da lareira em ação.
Passeei meu olhar ao redor, nenhuma pessoa para atender. Havia um livro aberto
em cima do balcão que parecia o de recepção. Espantei-me com um candelabro
de sete velas ao lado do livro.
O momento seguinte foi o responsável por eu sentir um medo de caráter primitivo,
como não sentia desde a esquecida infância. Um quadro enfeitava o ambiente
chamando a atenção, uma velha caolha usando um xale na cabeça. Esbocei um

291
sorriso em pensar que o dono do hotel era maluco e tinha a estranha e decrépita
modelo como mulher dos sonhos. Mas o meu medo se caracterizou quando tive a
sensação de que ela espreitava de algum lugar e iria saltar a qualquer momento e
pegar sua presa, no caso eu.
Com um nó na garganta consegui dizer apenas um boa noite inaudível, mas
ninguém apareceu. Estaria eu só naquele resto de mundo? Tive a sensação que o
restante das pessoas haviam sido abduzidas do mundo e uma solidão hercúlea
me possuiu.
Pensei em gritar a plenos pulmões e desabafar uma opressão que me martirizava
quando fui surpreendido pela chegada de alguém que vinha de fora. Um velho
vestia um impermeável amarelo e trazia uma machadinha na mão direita e três
tocos finos de lenha na outra mão. Ele me encarou como se eu acabasse de ter
cometido algum delito impagável, perguntou o que eu desejava e me advertiu para
dar o fora do vilarejo o quanto antes.
Intrigado e sem ação, eu me atrevi a pedir informação sobre as redondezas e
expliquei minha situação, pois estava quase sem gasolina. A resposta não foi
convincente, ele me afirmou que se eu possuísse um litro de combustível no carro
que fosse, conseguiria chegar ao posto mais próximo. Eu possuía quatro vezes
mais, ou seja, quatro litros e pouco, mas como as palavras daquele velho não me
convenceram, não concordei e pedi se poderia passar a noite no hotel.
Louca ideia a minha. Maldita momento em que me deixei levar pelo impulso de
resolver a situação tomando um bom e quente banho, relaxando em uma cama
aconchegante. Tive alguns minutos para me decidir antes da chegada da forte
chuva, e quando ela chegou perdi todas as possibilidades de fugir do vilarejo.
Ouvi um grito desesperado ao longe e senti minhas espinhas congelarem de tanto
pavor.
Perguntei o que significava aquele grito e o velho respondeu que eram os seres
malvados da floresta que estavam se aproximando do vilarejo para procurar carne
humana. Não conseguia sequer esboçar um raciocínio sólido sem que o famoso
medo primitivo me dominasse.
O velho afirmou-me que ele era a única pessoa a habitar o vilarejo abandonado e
que o restante da população já havia sido consumada pelos malvados da floresta,
e disse algo que foi o limite do meu medo, afirmou quase jurando que ele era o
próximo e estava apenas esperando sua hora chegar. Por tal motivo, justificou
minha necessidade de ir embora o quanto antes.
Até pensei em chamá-lo para fugir comigo, mas a forte chuva não permitiria tal
ação.
Eu contestei e disse para que ele trancasse a pesada porta e se protegesse dos
agressores, ele me respondeu que os malvados poderiam escalar paredes com

292
facilidade devido seus magros braços de dois metros, aquilo foi demais para mim,
estava vivenciando um pesadelo e queria acordar.
O grito voltou a soar, mas era um grito tão humano que senti a necessidade de
resgatar o ser que esgoelava, os malvados se aproximavam segundo o velho que
correu trancar a pesada porta do hotel, depois fez o sinal-da-cruz e colocou os
pedaços de lenha que acabara de trazer na lareira. Pegou o atiçador e mexeu as
brasas vivas que crepitaram emanando lascas de fogo no ambiente.”
Norman interrompeu a leitura e olhou para o rosto do amigo, ambos estavam
preocupados.
― Não posso continuar, preciso ir embora daqui e sair deste pesadelo o quanto
antes.
― Acalme-se e continue, pode ser a chave para desvendarmos o que acontece de
anormal por aqui.
― E se a história dos malvados for verdadeira?
― Pode ser, mas a parte em que o velho diz que os malvados disseminaram toda
Pitfall é mentira, concorda?
― Ele inventou toda a história para que o homem fugisse daqui, assim como foi
oferecida resistência para que nos hospedássemos também. ― emendou Forbes
e disse ao amigo que continuasse a leitura do até então terrível manuscrito.
“Solicitou-me então que se eu desejasse pernoitar no hotel bastaria puxar a
segunda chave do quadro de chaves e me encaminhar ao quarto número três, o
que seria o meu aposento na estadia.
Obedeci a voz do velho mais por medo dos malvados do que por vontade própria.
Estava com os nervos à flor da pele. Entendi por qual motivo ele me dera a chave
do terceiro aposento, pois não tinha vista para a rua e dificultaria a ação dos
malvados de quebrar minha janela e devorar-me vivo. Senti um calafrio ao colocar
a chave na maçaneta do meu futuro aposento. Ouvi o clique que me dizia para
entrar, pois a porta estava destrancada. Um calafrio percorreu a minha espinha ao
lembrar-me da voz do velho me dizer sobre os malvados e que ele era o último
remanescente do vilarejo, o derradeiro banquete de criaturas que eu não podia
imaginar escalando as paredes do hotel ou tentando arrombar sua pesada porta
de carvalho. A propósito, sou biólogo e tenho vasto conhecimento sobre árvores,
por tal motivo pude identificar que a porta era de carvalho.
Entrei então no meu aposento e logo fechei a porta atrás de mim e a tranquei. Não
tive tempo de estudar o ambiente, pois a tensão me permitiu somente sentar-se à
cama e ficar vários minutos refletindo sobre o possível fim da minha vida. Nunca
sentira um medo tão intenso.
Pensei em tomar um banho, mas a crise de nervos não permitiu. Comecei a
tremer como se estivesse exposto a um frio avassalador.

293
Naquele momento decidi apurar meus ouvidos e perceber o que se passava do
lado de fora do meu quarto, mas o que me dava mais medo era o silêncio, o
silêncio de um vilarejo devastado por criaturas misteriosas.
Seria uma noite longa, não conseguiria dormir. Eu nunca fora adepto de tomar
calmantes e não os possuía, até cheguei a cogitar em pedir ao proprietário do
hotel, mas o receio de sair do meu abrigo falava mais alto, a todo o momento.
Uma ideia passou pela minha cabeça, fui até a janela estudar o que era possível
ver do lado de fora do hotel. Consegui distinguir vegetações e o teto da casa de
trás. A escuridão era uma inimiga naquele momento tão tenebroso. Naquele
momento, estava apenas chuviscando.
Eu estava somente com as minhas roupas do corpo e a chave de meu carro para
poder fugir, havia esquecido minha carteira e meu dinheiro no carro. Senti que
sairia vivo daquela situação somente por um milagre. Havia saído de casa apenas
para cair em um vilarejo desconhecido e ser devorado vivo, não era justa a minha
situação.
Um homem que sempre prezou buscar o conhecimento e manter as boas
maneiras para com os outros cair em uma armadilha do mundo não passava pela
minha mente como algo natural.
Precisava fazer algo que pudesse permitir sentir-se ainda vivo, fui até o banheiro
contíguo, retirei minha roupa e deixei-me deitar na banheira vazia enquanto esta
enchia. A água descia quentinha e me permitiu distrair por um momento. Estava
com meus olhos fechados procurando imaginar um modo de sair daquela situação
quando escutei um uivo distante, com certeza de lobo, mas temi ser o uivo dos
malvados aproximando-se do vilarejo.
Resolvi não me alarmar e procurei relaxar novamente. Não entendia o que
significavam os gritos humanos que havia escutado do saguão, não fazia sentido,
pois o proprietário do hotel me afirmara ser o último da lista e único sobrevivente
no vilarejo. Seria o caso de os malvados estarem vasculhando as outras casas
antes de invadirem o hotel e terem encontrado alguém escondido em algum
insignificante armário de cozinha?
A água quente atingiu o topo da banheira, fechei então a torneira. Deitei-me
apoiando a cabeça na borda da banheira e fechei meus olhos novamente. Estava
exausto e precisava me manter desperto.
Passaram-se dez minutos sem que eu fosse interrompido em minhas reflexões e o
ambiente permanecia mergulhado no mais sepulcral silêncio. Sentia-me perdido
como no meio de um cemitério, esperando ouvir alguma vez interpeladora vinda
de algum túmulo.
Um pensamento me paralisou. Temia abrir os olhos e encarar algo anormal dentro
do meu aposento, apenas em estudando. Fui criando coragem aos poucos e

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tornei a abrir os olhos e visualizar o ambiente que aparentava manter sua
normalidade, decidi ser o momento de abandonar a banheira aconchegante e
deitar-se para dormir, ou tentar dormir talvez para minha perdição.
Era incrível como minha vida mudou de norte tão rapidamente, estava me
sentindo um condenado esperando sua hora mais do que anteriormente.
Saí da banheira, me enxuguei com uma toalha velha que havia no banheiro e me
vesti. Deixei a banheira cheia de água, fui até a cama e deitei a fim de relaxar.
Meus pensamentos continuaram vagando por mundos distantes de possibilidades
aterradoras, temia o fato de a energia elétrica faltar e me ver mergulhado em um
mundo de escuridão.
Naquele momento pareceu soar um ruído vindo do lado de fora do quarto. A
situação não me dava outra possibilidade senão esconder-me no closet ou estudar
o que se passava fora do aposento. Fui até a porta e encostei o ouvido
procurando captar algum som que pudesse me permitir identificar o que se
passava no corredor que deveria estar mergulhado no breu.
Demorou cerca de dois minutos até que eu ouvisse o primeiro ruído, parecia vir do
corredor e de frente para a minha porta, o que me fez pensar na possibilidade de a
provável criatura arrombar a porta com violência e me esmagar vivo, estava muito
pessimista, pois o ruído não passava de estalos provavelmente em madeira, algo
normal quando se falava do fenômeno da dilatação térmica.
Entretanto o ruído se agravou. Alguém desferia batidas em alguma porta do andar
superior, fiquei alegre por constatar não ser a minha porta. Tomei coragem e
destranquei a porta, coloquei a cabeça para fora rapidamente. Foi possível
distinguir pouca coisa, mas o que pude assistir foi a porta do quinto aposento
sendo fechada e trancada por dentro.
Surgiu uma ideia de louco em minha mente. Corri até o topo da escada que dava
acesso ao andar térreo e estudei o saguão, o dono do hotel segurava um rifle e
parecia atento a qualquer movimento, de modo que me escondi de seu campo de
visão para que este não me alvejasse em um possível susto e o adverti:
― Alguém entrou em um dos quartos aqui de cima.
Percebi ele virar-se para me fitar, quase atirou. Nunca vou me esquecer das
palavras dele:
― É melhor você subir e se trancar no quarto, os malvados estão chegando.
Ele estava com os arredores dos olhos muito arroxeados, mais do que o normal e
isto me chamou a atenção por demais. Pensei em oferecer-me para ajudá-lo,
perguntar se havia alguma outra arma e mesmo eu não sabendo atirar, uma ajuda
seria bem vinda naquela ocasião. Minha única experiência com pontaria era
disparar dardos tranquilizantes em animais. Eu tornei a dizer:
― Alguém entrou no quinto aposento e trancou a porta.

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Ele respondeu prontamente:
― É um filhote dos malvados que tenho abrigado desde ontem, ele não herdou
aptidões canibais e não consegue viver com seu bando no meio do bosque.
Minhas pernas fraquejaram ao ouvir aquelas palavras, temia pela minha
integridade física, pois a emocional já se encontrava a milhões de milhas de
distância.
Não sabia o que fazer, mas a única coisa que cogitei no momento foi encarar o
mundo exterior e entrar no meu carro, podendo assim, usar o restante de
combustível que me sobrara e tentar manter o máximo de distância daquele hotel
e da maldita floresta.
Corri de volta ao meu quarto e não tardei em rezar, lembrei da minha religião de
infância, a católica, imposta pelos meus pais. Mas, estava contrariando minha
conduta, pois ao me formar aderi ao movimento dos ateus devido às evidências da
evolução das espécies.
Depois da reza prorrompi em lágrimas, chorava como uma criança indefesa.
ELES ESTAVAM CHEGANDO.
Sabia que eles se aproximavam e eu seria o segundo banquete da noite. Torcia
para que uma tropa do exército armada até os dentes caísse do céu e topasse
com os malvados.
Levantei-me e tive tempo de escutar um grito antes de cair desmaiado na cama,
tamanha minha tensão, meus nervos pareceram sucumbir e todos os meus sinais
vitais caíram por terra.
Recobrei meus sentidos e consultei o relógio de pulso, havia ficado desmaiado por
duas horas. Deveria ter entrado em sono profundo após recobrar-me do desmaio.
Os malvados, eles se aproximavam. Já teriam devorado o proprietário do hotel?
O ambiente estava mergulhado em um gigantesco e pavoroso silêncio. Precisava
deixar a defensiva e sair de meu aposento estudar as possibilidades de salvação.
Com muito sangue frio, abri a porta sem procurar saber o que se passava no
corredor, a passos lentos me aproximei do topo da escada do andar superior e
estudei o saguão que estava mergulhado na escuridão e era iluminado apenas
pela lareira em seus suspiros derradeiros.
Comecei a descer a escada. O proprietário do hotel apareceu em meu campo de
visão repentinamente, me assustando. Ele estava no pé da escada, ao lado do
balcão de recepção.
― Pode subir e dormir tranquilo. Consegui espantar os malvados com o rifle. ―
informou-me.
Fiquei confuso com aquela colocação. Ainda me preocupava com o terrível filhote
de malvado que habitava o hotel.

296
― Eles podem querer voltar para buscar sua cria. É melhor darmos um fim no
monstro. ― eu sugeri.
A ironia consistia em se tratar de uma espécie desconhecida e elas me
fascinavam, de modo que deveria estudá-la ao invés de matá-la, isto sempre foi
pregado pela minha área científica.
Ele demonstrou nervosismo, como se eu estivesse falando de um filho seu:
― Nem pense em tal possibilidade, eu disse para subir e dormir. Será melhor para
você.
― Desculpe-me. Escute, podemos subir no meu carro e dar o fora daqui o quanto
antes.
Ele gargalhou com vontade e logo retrucou:
― Acho melhor ir para o quarto. Eu menti quando disse que o filhote de malvado
não se alimenta de carne humana. Eu tenho o tratado com carne de búfalo, por tal
motivo ele me respeita e evita ter contato comigo. Mas se ele te ver, a história será
muito diferente, com certeza mais trágica para você.
Senti como se uma pedra barrasse minha garganta e obedeci a voz do velho com
um rosto de vergonha. Estava com medo de uma criatura que eu não sabia definir
suas características. Quando estava prestes a entrar em meu aposento e
destrancar a porta, escutei a porta do quinto aposento ser destrancada por dentro
e corri para o meu quarto em busca de proteção. O filhote de malvado poderia ter
ouvido a conversa e percebido que alguém além do seu curador estava no hotel.
Um banquete extra para aquela noite tenebrosa.
Tranquei-me e fiquei algum tempo escutando qualquer movimento no corredor, de
fato alguém caminhava rumo à minha porta, parou e começou a farejar. Era
notório o som de seu farejar.
Eu estava encurralado. No fim de meu caminho. Precisava lutar com algo
desconhecido, mas que deveria ter um metro e meio de braço e dois metros de
estatura.
Ouvi uma voz. Parecia vir do começo do andar superior, alguém que acabava de
vir do saguão. Era a voz do proprietário do hotel e falava com alguém, o filhote de
malvado, ele chamava a criatura de filhote de malvado. Eu estava com medo, mas
mais curioso do que nunca.
― Pode dormir, não há outra pessoa por aqui. ― disse o proprietário.
― Está faminto? Vou trazer dois quilos daquela carne que você mais gosta.
Dois quilos? A criatura era capaz de ingerir dois quilos em apenas uma refeição?
Seria alguma espécie de ruminante com um grupo de estômagos privilegiados?
Queria eu poder ir a uma churrascaria e comer aquela quantidade de carne.
O proprietário continuava a falar:

297
― Amanhã eu prometo conseguir uma pessoa inteira para você comer, de oitenta
quilos mais ou menos.
Escutei o ruído de satisfação que fazia a criatura com seu timbre vocal e a
imaginei babando e com os olhos fora de órbita. Mas espere, a pessoa de oitenta
quilos poderia ser eu, era quase o meu peso exato e o dono do hotel poderia ter
uma noção do quanto eu pesava. Sim, ele estava falando de mim. Parei meu
raciocínio para ouvir mais palavras do dono do hotel:
― Se eu tivesse a garantia que não seria devorado. Cuidaria de todo o teu bando,
comida falta por aqui, mas eu poderia atrair inúmeras pessoas para o vilarejo.
Vocês só dariam o bote à noite e no momento propício.
Ele gargalhou e continuou:
― Mas não estou preocupado, minha carne é de segunda e não agrada o teu
paladar. Vamos descer.
Eles aparentavam estar indo ao saguão e eu estava mais preso do que antes.
Precisava voltar a rezar, pensei em prometer me tornar padre se conseguisse sair
com vida do vilarejo. A mente humana quando submetida a medos incomuns pode
tomar decisões improváveis.
Eles desciam a escada. Eu nem cogitava a possibilidade de deixar meu aposento.
O proprietário do hotel prometera um banquete com as minhas descrições para a
criatura. Eu não tinha outra escolha senão fugir.
Surgiu uma ideia. Eu tentaria pular a janela e dar a volta na rua de trás correndo
até o meu carro, fugindo de surpresa. Era a minha única chance, apesar do mal
que me assolava, o escasso combustível.
Pensei ser melhor enfrentar uma gangue de rua do que monstros indescritíveis,
aberrações desconhecidas.
Fui até a janela que ofereceu certa resistência, pois estava um pouco emperrada e
a abri.
Era possível pular de uma altura de mais de sete metros e cair intacto na
vegetação?
NÃO.
Era a resposta que vinha à minha mente. Raciocinei e percebi que o velho me
colocara em um quarto sem vista para a rua principal não para me proteger, mas
sim para evitar que eu fugisse. Pular daquela altura, do modo como a vegetação
tomava o solo debaixo era uma tarefa difícil até para um exímio boina-verde, quem
diria para mim, um homem graduado, mas sem preparo físico algum. Poderia me
esborrachar lá embaixo e virar presa fácil, mais fácil do que já era até então.
Desisti de meu plano e me contentei a novamente escutar o movimento do
corredor. Comecei a sentir fome, talvez a tensão puxasse o restante das energias
oferecidas pelo meu distante almoço. O futuro banquete estava faminto, como

298
queria fazer pelo menos minha última refeição. Lembrei-me da caixa de bombons
que havia ganhado de uma colega de profissão, a caixa estava no carro e deveria
conter pouco mais de meia dúzia de bombons que poderiam me oferecer energia
suficiente até o amanhecer.
Pensei na estranha possibilidade de pedir ao proprietário do hotel que me
deixasse fazer meu último banquete antes de ser entregue à faminta e estranha
criatura. Estava desesperado.
Repentinamente escutei batidas que pareciam vir da madeira da pesada porta de
carvalho do saguão do hotel. Seriam os malvados em busca de sua cria?
As batidas agravaram-se, estavam mais violentas. Pareciam golpes desferidos por
mais de uma criatura. Pensei na possibilidade de estar desfrutando dos meus
últimos suspiros.
Alguém subiu a escada e corria pelo corredor do hotel, ouvi a voz do dono do hotel
dizendo para o filhote de malvado:
― Diga para irem embora e que não existe carne por aqui.
Os estrondos das batidas insistiam em castigar o ouvido dos presentes. Consegui
distinguir que alguém descia as escadas, deveria ser a criatura e o proprietário
deveria estar no corredor, mas já se tornara meu inimigo. As batidas cessaram e
em um milionésimo de segundo a luz do meu quarto apagou-se.
Poderia ter acontecido o que eu tanto temia, a falta de energia elétrica ou a minha
luz ter queimado.
A luz emitida pelo visor de meu relógio de pulso era parca, mas me permitia
enxergar ao redor de modo que fui vasculhar o closet. Remexi a partição superior
e pensei estar com a sorte do meu lado, pois havia três velas dentro de um pacote
e uma caixa de fósforos com todas as devidas unidades, indubitavelmente.
Deveria acender uma das velas e manter o controle da situação dentro de meu
aposento. Sem permitir que o inimigo atingisse minha bandeira como nos jogos de
combate de tabuleiro, a bandeira no caso, poderia ser comparada à minha vida.
Acendi uma das velas e deixei que uma quantidade considerável de cera derretida
formasse uma poça no chão, coloquei a vela de pé em cima da poça e deixei
secar, assim minha vela ficou em pé e firme no chão. Eu não poderia transitar
perto de meu acessório para que a chama não se apagasse com a ventarola
produzida pelo meu caminhar.
Fiquei de frente para a porta, escutando o que se passava. O silêncio sepulcral
voltava a reinar.
A vela estava emitindo uma fumaça muito densa e emanava um aroma agradável,
mas forte.
Escutei o proprietário do hotel falar:
― Eles se foram? Não vão voltar?

299
Era possível perceber sombras transitando no corredor através da soleira da porta,
graças à luz de vela.
As batidas retornaram violentamente, meu coração deu um pulo e quase saiu pela
boca. O proprietário do hotel disse algo que eu não consegui distinguir
perfeitamente, mas parecia ter chamado o filhote de malvado de impostor.
Ocorreu-me a impressão que o filhote de malvado se rebelou contra velho e que
ele também poderia ser um excelente banquete.
Minha visão estava ficando turva, mas não sabia por qual motivo, talvez o susto
que havia tomado.
Minhas pernas fraquejaram e a última coisa que me lembro daquela terrível noite
foi de não conseguir mais me manter em pé e estar desabando.
Acordei pela manhã do dia seguinte com a cabeça doendo, era como se tivesse
tomado alguma droga alucinógena e muito nociva. Situei meus pensamentos na
situação e a julguei grave, muita coisa poderia ter ocorrido após meu adormecer
repentino.
Admirei da sorte que tive em sobreviver. Uma voz soou em pensamentos, o velho
do hotel prometera uma pessoa como banquete ao filhote de malvado e naquele
momento eu corria perigo. O proprietário do hotel possuía as réplicas das chaves
dos aposentos e lançaria o malvado sobre mim com facilidade, caso o velho não
tivesse sido devorado.
Levantei-me sentindo tontura e olhei para a vela que se apagara na metade. Eu
havia esquecido a janela aberta e alguma rajada de vento poderia a ter apagado.
Vasculhei a gaveta direita da cômoda e encontrei alguns papeis em branco mais
uma caneta. Antes de encarar a realidade, decidi escrever o que sofri e deixar
debaixo do colchão como uma espécie de carta que poderia ser útil a algum futuro
hóspede.
Debaixo de colchões de hotéis antigos é possível encontrar os mais inimagináveis
apetrechos. Provavelmente o próximo hóspede subiria o colchão para verificar a
existência de insetos peçonhentos, algo comum em hotéis mal-administrados e
tratados como covil de porcos, assim como este e encontrará por fim a carta que
comecei a escrever na base da coragem que já não sabia existir.
Não sabia o que se passava do lado de fora do meu quarto. Torcia para que os
malvados houvessem devorado o dono do hotel e levado o filhote de malvado
para muito longe. Assim, eu seria o único sobrevivente em todo aquele vilarejo e
poderia fugir com tranquilidade.
Retirei um envelope que trazia no bolso e uni o útil ao agradável. Comecei
escrever minha carta e a depositei no envelope após o término. Sua última
morada seria debaixo do colchão, caso ninguém a encontrasse.

300
Como fui tolo ontem quando era ateu, hoje escrevo está carta e penso em correr o
risco necessário para fugir daqui.
Sairei correndo para fora de meu aposento, cruzarei o saguão sem olhar para o
quadro da velha caolha e torcerei para que a porta de carvalho esteja destrancada
e de preferência aberta, acreditando que meu carro esteja intacto, sem pneus
furados ou coisas parecidas, arrancarei com o meu carro em meus míseros quatro
litros de combustível e que seja feita a vontade de Deus. Amém.”
Norman terminou a leitura da misteriosa carta e olhou para o rosto do amigo, este
por sua vez trazia preocupação e logo disse:
― A maioria do relato indica que o velho é um grande mentiroso, não concorda?
― Concordo. Mas não exclui a possibilidade da existência do tal filhote de
malvado.
― Ora, sabemos que existe uma quarta pessoa ou criatura no hotel e que
consegue trancar e destrancar portas. Ou seja, sabe manejar bem uma chave.
Norman parecia confuso, dobrou os papeis e guardou no envelope que estava
sobre a cama:
― Eu estou com medo de sair do quarto. Não sabemos com o que estamos
lidando.
― Mas vamos descobrir. ― garantiu Forbes.
― A luz verde teria alguma relação com os malvados? Seria ela o malvado da
floresta?
― Não. Bobster afirma que os malvados possuem dois metros de braços. Ora,
isso me cheira história de extraterrestre muito bem inventada e capaz de ludibriar
os mais suscetíveis.
― Quer dizer que não somos suscetíveis como o antigo hóspede?
― Não. A situação o deixou maleável, sabe, propenso a ser enganado e
controlado psicologicamente. Imagine você caindo em um vilarejo remoto como
Pitfall, sem possibilidades de sair, e foi como aconteceu conosco, mas não da
forma como nosso amigo biólogo. Ele estava escravo da situação, e fica ainda
outra pergunta...
― Qual?
― Ele conseguiu fugir ou foi supostamente devorado pelo talvez existente filhote
de malvado?
― Existe um meio de saber. Se ele foi devorado, alguém escondeu seu carro no
meio da floresta. Tenho quase certeza.
― Sim, ou pode ter vendido o carro, ou ainda deram outro tipo de sumiço.
Norman ficou mais confuso do que antes, Forbes prosseguiu:

301
― Pelo relato do manuscrito. O biólogo não teve contato com algum outro
habitante do vilarejo, ele acreditava piamente na não existência de outro ser
humano por aqui, exceto pelos gritos que escutou. Conclui-se que ninguém em
Pitfall soube da chegada do biólogo e nem de sua saída, trágica ou feliz.
― Ele foi o último hóspede antes de nós e já se foram seis anos. ― informou
Norman.
― Como sabe? ― perguntou Forbes intrigado.
― Quando cheguei aqui, estudei o livro de cadastros de Bobster e o último
registro era de exatamente seis anos atrás, tratava-se de um homem, mas não me
lembro do nome.
― Sabia que meu nome não está no livro? ― retrucou Forbes.
― Faz sentido, você chegou antes de mim.
― Eu simplesmente paguei três dias antecipados e disse para que ele não
colocasse meu nome no registro de hóspedes.
Norman estranhou o pedido que o amigo fizera. O que tinha de errado em ter o
nome registrado no livro de hóspedes?
― Certo, então exclui a verdade de que o biólogo foi o último hóspede?
― Sim, outros poderiam ter tido a minha atitude, mas acho improvável. Ficamos
com noventa e cinco por cento de certeza de que o biólogo foi o último hóspede.
― Esta carta me deixou faminto. Um pouco de carne assada cairia bem no
almoço.
― Está com sintomas dos malvados? ― brincou Forbes.
― Vamos à taverna. ― prosseguiu Forbes.
Norman achou graça da brincadeira do outro, mas estava preocupado o suficiente
para não levar qualquer piada no gracejo.
― Ao menos você tem a arma.
― Suficiente para estourar miolos de malvados e velhos de hotel.
― Se caso não estivermos lidando com fantasmas. ― contestou Norman.
― Fantasmas não existem, vá por mim. ― disse Forbes dando um tapinha nas
costas do amigo.
A carta fora lida como uma ficção que os deixara babando, como as crianças de
frente para uma televisão assistindo seu primeiro filme de terror tarde da noite.
Os dois saíram para o corredor, andavam com calma, nem sequer lembraram-se
de verificar se Bobster estava do lado de fora do hotel limpando as folhas caídas.
Olharam para a porta do terceiro aposento. Na carta, o quarto de Norman era o
possível refúgio do malvado. A situação daquele momento demonstrava que o
filhote de malvado entrava e saia do terceiro aposento, o inverso da época do
manuscrito.

302
Os dois consideravam a possibilidade de a criatura possuir chaves de quartos não
hospedados, ou seja, exceto o quatro e o cinco na ocasião. Também não excluíam
a possibilidade de algum hóspede novo estar no hotel, mas que sumira quando
entraram em seu aposento, o terceiro, e não trazia qualquer bagagem, uma
possibilidade improvável para viajantes.
Forbes barrou o amigo colocando a mão em seu peito e disse:
― O velho do hotel deve estar lá fora. Vamos fazer o seguinte, quando estivermos
transitando ao lado dele, você me dá um piparote no ouvido e eu farei o resto. Não
me pergunte o que farei, aja naturalmente. Dê-me o piparote como um menino na
escola brincando de mau gosto com seu colega.
Norman não retrucou, seguiram o caminho da porta do saguão. Ambos não
deixaram de fitar o quadro da velha caolha.
Bobster parecia estar terminando seu trabalho e pronto para retornar ao hotel.
Seus olhos estavam arroxeados, mais do que o natural. O dono do hotel assistiu a
cena teatral feita pelos dois. Norman deu o piparote e sorriu, Forbes protestou
colocando a mão no ouvido:
― Pare com isso, seu filhote de malvado.
Norman sentiu seu coração acelerar aos trancos e como que por impulso
respondeu algo que não estava no script, mas que caiu como uma luva na cena:
― Sempre castigo malvados da floresta como você.
Como eles sabiam sobre os malvados e o filhote?
Continuaram seguindo o caminho da taverna, chegou então, a parte mais difícil do
teatro, ter sangue frio e não encarar Bobster que poderia enterrar o ancinho afiado
em seus crânios.
O caminho até a taverna deu um gelo em suas pernas. Quando chegaram à porta
da taverna olharam para o hotel.
Bobster estava estacado, os fitando seriamente, fora atingido na veia pelo plano
de Forbes. Mas, o olhar do dono do hotel não só estava sério, chegava a inspirar
medo, o mesmo medo que sentiram ao viverem a situação do biólogo no
manuscrito, um medo primitivo.
Bobster parecia dizer com letras claras que o encontro dos dois forasteiros com os
malvados iria chegar rápido e o fim seria trágico, tão trágico como fora para o
hóspede de seis anos atrás.

303
26

TOMADO PELA FÚRIA

Josias Parker entrou em sua casa, acabava de chegar de seu passeio pelo
vilarejo.
Após ser interrogado pelo xerife, fora submetido a uma inquietação de puxar os
cabelos e havia saído para espairecer a mente.
Estava satisfeito com o resultado de suas brincadeiras, suas vinganças pessoais.
Primeiro, o lenhador teve o que mereceu, segundo, o padre cometera o grave
delito de convidá-lo para participar de suas missas de merda e pagou pela
ousadia. Os trouxas que ficassem na barra da batina do padre, assim pensava o
herói que acabava de chegar ao seu lar. Ele odiava as pessoas com aptidões
natas de puxa-saquismo.
Em seu passeio, foi verificar o resultado de sua vingança contra o lenhador, a
machadinha havia sido removida do local indevido, a porta, restou o consolo de
ela estar castigada exemplarmente.
Quem provocar minha pessoa pagará muito caro, pensou e começou a gargalhar.
Já estava em seu terceiro charuto do dia, lançara o especial, responsável por
tumultuar a missa no meio da floresta. Não queria que a vegetação se
incendiasse, mas caso isto ocorresse, qual seria o problema?
Afinal, um movimento de desespero por todo vilarejo naquele começo de tarde de
domingo cairia como um bom programa de humor para ele, melhor até do que as
paródias que assistia muitos anos atrás. Gostava particularmente dos três patetas,
ele poderia muito bem ser o quarto e o mentor do grupo, mas suas brincadeiras
não seriam recomendadas para crianças como o público dos três chocarrões e
sim para homens de verdade, capazes de demonstrar um sangue-frio do além
túmulo.
Não estava preocupado com o xerife, caso fosse parar na cadeia, armaria sua
vingança em poucos minutos e o homem da lei pediria clemência ao herói do
vilarejo, o justiceiro que agia em prol da retidão. Nada seria capaz de barrá-lo, tão
menos um xerife que não conseguia honrar sequer as calças que vestia.
Entrou na cozinha e estudou as condições de sua geladeira, havia uma enorme
peça de carne de boi que adquirira do mercadinho meia-boca de Kingston. A sua
única virtude do bem era a de não dever em momento algum, era um exímio
cliente, o bom e velho pagador de confiança. Aquele cliente que os vendedores
gostariam que voltasse sempre.
A destruição feita na porta do lenhador seria quitada de modo financeiro
posteriormente, apesar de julgar que a vítima merecera tamanha punição. Julgava

304
ser a lei do vilarejo, e o xerife um aspirante a profissional, apenas mais um
aprendiz de feiticeiro na vasta fila da seleção natural. Um micróbio na multidão.
Pegou uma faca e com perfeição fatiou três grandes bifes, era proteína para a
semana toda. Não gostava de miséria, mas teria que dividir seu banquete
restaurador com o bosta do andarilho.
Jogou as fatias em cima de uma tábua de madeira para picar carnes e legumes e
desferiu golpes nos bifes com uma faca bem afiada. A carne já aparentava ser
macia, mas os golpes permitiriam uma melhor penetração do tempero. Pimenta
era seu condimento favorito.
Terminou sua tarefa de amaciar a carne e foi até o armário buscar seus vidros de
tempero. Depositou-os em cima da tábua de madeira e abriu o contêiner da
pimenta.
Pegou uma pequena colher e elevou uma quantia considerável de pimenta com
molho até sua vista:
― Essa é da boa.
Começou a espalhar o molho sobre as fatias de carne e roçou a pimenta nos bifes
em movimentos firmes de vai e vem até suas mãos dizerem chega.
― Esse preparado vai ficar do jeito que o papai gosta.
Restava lançar algumas pitadas de sal e castigar a carne na frigideira quente.
Acendeu uma boca do fogão e colocou sua frigideira preferida que comportaria um
porco inteiro em seu interior caso necessário.
Enquanto o bife era frito, ele foi salgando a gosto. O andarilho que era
acostumado a matar a fome com cachaça, iria degustar de um manjar dos céus,
pensava Parker.
O bife ficou no ponto. Parker apagou a boca do fogão. Havia retirado um pedaço
mal-passado de carne, um pedaço em tal estado era o seu agravador de apetite.
Sentir o sangue da carne entrando em seu organismo fazia com que se sentisse
tomado por uma onda de energia vital.
Colocou uma das fatias em um prato separado do seu, seria o destinado ao pobre
andarilho.
Levou o prato do visitante até seu quarto no andar superior. Ficou louco da vida ao
constatar que Gray Nikosson ainda dormia profundamente, era o momento de
despertá-lo.
― Acorde, seu vagabundo. ― disse, chutando o pé da cama que tremeu.
Sentiu a dor lancinante tomar conta de seus dedos recém-colididos com o pé da
cama, mas era homem o suficiente para ignorá-la. Cerrou os dentes, pois a dor se
agravou, não havia problemas em gritar de dor. Deveria estar com a unha do
dedão encravada, como sempre.

305
O andarilho permanecia em sono profundo mesmo após a forte concussão de
dedos do pé raquítico com a firme madeira do pé da cama.
Parker pensou em fazer uma brincadeira. Encostou o prato com o bife cheiroso
expelindo fumaça quentinha no nariz do andarilho. O aroma agradável pareceu
penetrar nos sonhos do coitado, pois seu nariz deu uma dançadinha como se
estivesse procurando a direção da fonte do maná antes proibido, mas que naquele
momento era oferecido.
Parker sentiu-se ofendido pelo fato de o andarilho não despertar, queria assistir o
rosto de surpresa do outro ao acordar e dar de cara com um bife daquele porte.
Ele se comportaria como um pobre cãozinho assistindo a uma leva de frangos
girando nos roletes dos fornos como de postos de beira de estrada.
Encostou a mão livre no peito do visitante e começou a balançá-lo como uma mãe
desvairada balançando o berço de seu bebê a todo o gás disponível, como se
quisesse recuperar o fôlego da criança a definhar:
― Acorde, seu trapo humano.
Gray Nikosson despertou assustado. Sempre se assustava quando lhe acordavam
desde a violência sofrida pela gangue de Bonecrusher.
― Calma, usei de misericórdia e trouxe um bife para você. Já passamos do meio-
dia e você ainda está aí coçando fronha. A propósito, você gosta de fronha?
O andarilho não acreditava no bife oferecido pelo anfitrião, deveria ser algum tipo
de gozação.
― Não me respondeu, gosta de fronha? Primeiro responda, depois ganha um bife.
Nikosson afirmou com a cabeça, sua fome era enorme, pois no dia anterior
ingerira apenas bebida alcoólica e algumas bolachinhas michurucas.
― Bom saber que você gosta de fronha. Se você demorar a se levantar e ir à
mesa comer como gente, eu farei com que morda a fronha ao invés de coçá-la.
O andarilho compreendeu o teor da gozação e levantou-se rapidamente. Parker
seguia à frente com o prato emanando o aroma agradável na mão e o andarilho o
seguia como um cachorrinho pronto para devorar a refeição que o seu dono
insistia em demorar a entregar.
Parker gargalhou ao entrar na cozinha e visualizar a mesa bem arrumada,
imaginava como seria o estado de sua mesa após a refeição de Nikosson que
deveria comer como um animal.
Ambos sentaram-se à mesa. O prato de Parker possuía o dobro de carne em
relação ao outro que percebeu e ficou fitando o repasto alheio.
― Não cobiçaras o prato alheio, seu morto de fome.
Nikosson tornou sua atenção ao devido prato e começou a devorar a carne
usando garfo e faca, cortava o bife com precisão milimétrica o que provava que já
estava bom dos reflexos e livre da ressaca da bebida.
306
― Basta comportar-se como um bom menino e ganhará mais uma lasca de carne,
inútil.
O andarilho percebeu como eram boas as suas possibilidades e procurou manter
a postura. Terminou de devorar seu bife rapidamente, em um minuto
aproximadamente e fitou o rosto orgulhoso do anfitrião que disparou mais uma das
suas:
― Mortos de fome como você me obrigam a usar de misericórdia.
Cortou metade de um dos seus bifes e depositou no prato do visitante que fez
menção de atacar o banquete e foi advertido:
― Tenha educação e me espere. Vamos comer juntos.
Nikosson esboçou um sorriso de vergonha que fez Parker cair na gargalhada e
começar a tossir.
― Um maldito charuto me faz falta.
Nikosson estava ansioso para começar a devorar sua outra parte e dançarolou as
pernas por debaixo da mesa, impaciente. Não demorou a esbarrar no pé direito do
anfitrião.
― Virou mocinha? Por acaso está me paquerando por debaixo dos panos?
O andarilho paralisou suas pernas que antes estavam em movimento frenético e
manteve a seriedade.
― Gostaria de morder a fronha?
Nikosson negou com a cabeça. Parker não gostava de comidas frias e decidiu dar
início à refeição.
― Vamos comer agora. Eu dou a primeira mordida, depois você... você morde a
fronha.
Gargalhou com vontade. Era capaz de achar graça em brincadeiras que nem
mesmo uma criança de oito anos acharia. Demorou meio minuto para perder a
vontade de rir e pegou o bife mal-passado com a mão, começando a devorá-lo
freneticamente, como um louco varrido. Falou com a boca cheia de carne pouco
mastigada:
― Você quer ver quem come mais rápido, seu faminto? Pois eu digo que até nisto
eu sou melhor do que você, seu nojo.
Nikosson aproveitou a carreira iniciada pelo desvairado anfitrião e vorazmente
pegou seu bife com a mão, mastigando-o, competindo. Ao menos em algo tão
insignificante como uma aposta daquele nível, ele deveria ser melhor.
Parecia um duelo de animais devoradores.
Sabia estar mais preparado, os dentes de Parker-cachorro-louco não tinham a
firmeza dos seus, deveria até ser uma dentadura de segunda. Apesar da bebida e

307
da rara escovação de dentes, os seus poucos dentes ainda demonstravam serem
sólidos e bem torneados.
Parker terminou de engolir o pedaço de carne mal-passada e pegou o bife frito. O
oponente já se aproximava do fim, de fato, devia reconhecer que para comer, o
outro era mais rápido e melhor do que ele próprio, que não aceitaria perder de
maneira alguma.
Nikosson terminou de engolir seu bife. Parker estava com a boca cheia e faltava
mais da metade do seu. O desafiado esboçou um sorriso de felicidade por haver
vencido e provocou a ira do perdedor que por sua vez cuspiu o bolo alimentar
presente em sua boca na mesa.
― Eu tinha mais carne que você, não fique alegre.
Nikosson começou a rir da indignação do outro que sentia o seu próprio veneno
entrar em sua corrente sanguínea. Parker percebia na pele do que era capaz para
com os outros e não gostou nada, nada. Levantou-se e encarou o vencedor cara a
cara:
― Está rindo de quê, seu verme? Se quer saber, eu tenho mais de dez quilos
desta carne na geladeira e você não tem por onde cair morto.
Gray Nikosson fechou o rosto, não pelas palavras de humilhação desferidas, mas
sim para evitar agravar a fúria de Parker-cachorro-louco, que era capaz de
cometer terríveis atrocidades aos que lhe provocassem e ele estava em um de
seus dias de inspiração, de modo que a vingança pra cima do que o derrotara
poderia ser exemplar, épica, melhor dizendo.
― É bom obedecer. ― disse Parker acalmando-se e tornando a se sentar.
O silêncio reinou por algum tempo até ser quebrado pelo anfitrião que estava com
a cara no chão de vergonha pela humilhação de perder:
― Deu sorte. Eu perdi a fome, pode comer o restante do meu bife.
Tossiu timidamente, ao mesmo tempo o andarilho apanhou o bife com a mão e
começou a comer.
― Coma de garfo e faca. ― advertiu Parker.
Nikosson obedeceu e tornou o bife em seu prato, apanhou os utensílios essenciais
para comer civilizadamente e mandou bala na fatia de carne.
Quando terminou, ouviu Parker dizer dando tapinhas em seu ombro:
― Está bem alimentado? Embora não mereça, gosto de você.
Nikosson afirmou com a cabeça, alegremente. Parker levantou-se para ir ao
banheiro urinar quando irrompeu em si uma tempestade de fortes tosses. O
andarilho assistia ao tormento alheio com preocupação.
O peito de Parker começou a doer fortemente, mais do que pela manhã. Talvez
fosse o castigo pelas suas travessuras ousadas, tratadas como atos de justiça.

308
Deu alguns golpes com o punho fechado em seu peito e conseguiu chamar a
atenção do andarilho com muito custo:
― Me ajude aqui, seu palerma imprestável.
O andarilho correu até perto do homem que estava em tormentos e ficou confuso,
não sabia o que fazer ou como agir.
― Abra aquele armário do canto e tente encontrar um frasco de comprimidos
brancos.
Nikosson demorou a raciocinar o sentido do pedido do outro e ficou um tempo
considerável com a cabeça nas nuvens e sem ação, parado.
― Rápido, seu merda. Você é veloz para comer, mas para obedecer é uma
tremenda negação.
O andarilho correu até o armário do canto da cozinha e começou a mexer
freneticamente em seu conteúdo. O chão recebeu um pacote de guardanapos,
uma leva de pães mofados e outro tanto de teia de aranha, o que deixou o
visitante com medo de continuar a remexer o armário e banhar sua mão em uma
vasilha repleta de aranhas venenosas.
Parker continuou tossindo, mas percebeu o medo paralisar a ação do outro,
gargalhou com vontade, deixando sua face em tremenda vermelhidão:
― Não estou conseguindo respirar.
Continuou a rir e tossir. Raciocinou e percebeu que não poderia esperar algo de
bom do ignorante amigo. Tomou uma atitude impensada, o único médico de Pitfall
morava de frente para a sua casa, junto com sua namorada, ou esposa que fosse.
Na cabeça de Parker, a mulher mais bonita do vilarejo e a mesma que recebia
seus gracejos quando o amor não estava perto, presente e pronto a dar um basta
na situação constrangedora.
Correu rumo à rua, destrancou a porta com certa dificuldade. O andarilho estava
no centro da cozinha, assistindo a saída do anfitrião.
Caminhava se arrastando até a casa do médico, por sorte, em frente à sua.
Tossia, sentindo fortes dores no peito.
Bateu à porta e foi recebido por ela, de cabelo escuro longo e muito bem
distribuído no ombro, ficava mais linda quando usava aquele brinco, o de pena de
índio.
Ela se apercebeu da situação triste do inconveniente homem e o mandou entrar:
― Entre, por favor, vou chamar o John.
Parker sentou em uma poltrona marrom, à frente estava a mesinha que o médico
costumava usar para ouvir as murmurações de seus pacientes, era o divino divã
da cura.
O velho não perdeu a oportunidade de fitar o corpo escultural da mulher que
trajava calça jeans apertada, saía de vista e entrava em outro aposento. Aquela
309
era a mulher de seus sonhos e morava de frente para sua casa, sentia-se como
um adolescente fascinado pela sua primeira paixão.
Bastava saber demonstrar seus encantos e provar que era melhor do que o
médico, apesar de ser difícil superar um diploma de medicina, ainda mais quando
se falasse de mulheres interesseiras. Este, julgava ele, ser o caso da mulher que o
recebera e que tanto o encantava.
Cometia o delito de cobiçar a mulher alheia, mas em sua mente, tudo era normal.
O médico entrou à sala, com o olhar preocupado. Usava óculos e demonstrava ter
uma musculatura avantajada, adquirida provavelmente nas academias de fundo
das universidades da vida.
Mas, pensando bem, o médico não era páreo para o magro Parker, que por sua
vez, era capaz de dominar o lenhador que possuía dez vezes mais músculos do
que o médico. Logo, seria uma presa fácil para Parker que parecia ter se
esquecido de sua dor no peito.
Era preciso agir naturalmente, afinal sua saúde era motivo de preocupação
naquele momento. O médico se aproximou e Parker tossiu bruscamente.
John Parkhurst o advertiu:
― É melhor parar de tragar os teus charutos, ou perderá tua saúde por completo.
Parker respondeu com uma gargalhada e disse:
― Fumar não vem ao caso, vamos à consulta.
John colocou uma cadeira ao lado do paciente e sentou-se. Parker disse antes de
gargalhar:
― Não vá passar a mão em mim, sou macho pra valer!
O paciente fitou a mulher que estava parada à porta que dava acesso ao restante
da casa. Queria ter a satisfação de ver um brilho no olhar dela que em sua cabeça
deveria admirar sua atitude de homem. Como se ele dissesse: eu estou aqui, olhe
para mim.
Mas, a mulher fazia apenas uma feição de desconforto, pensava que o pobre
paciente deveria estar armando seus gracejos para desferi-los em frente ao
marido. A situação ficaria nebulosa.
― Não penso em passar a mão em você. Agora, me diga a que veio?
Parker massageou o peito e ficou sério, reservava o melhor para depois:
― Sinto forte dor no peito, principalmente quando tenho crises de tosse.
― O que é normal para um fumante do teu nível. Mas, quando começou a dor?
Parker esboçou um sorriso e lembrou-se da manhã de vingança que
proporcionara:
― Desde quando acordei.
― Após se levantar ou quando estava na cama?

310
― Após me levantar. Estava passeando pelo vilarejo.
― Vou colocar o estetoscópio e verificar teus batimentos cardíacos.
Prontamente, o médico puxou o apetrecho que estava envolvendo seu pescoço
como uma cobra e se pôs a examinar o paciente.
Parker sentia o a ponta do estetoscópio gelada a roçar seu peito, dos dois lados.
O médico não demorou em dar um veredicto:
― Os teus batimentos cardíacos estão normais. Um milagre em vista do teu vício
ao fumo!
Parker sentiu um gozo, como se tivesse acabado de ganhar na loteria e gargalhou
com vontade.
O médico continuou:
― Mas não te animes totalmente, os teus pulmões devem estar uma porcaria só.
O paciente não cessou em rir e começou a tossir, a dor o dominou novamente:
― Então, qual é o motivo da minha dor? Você tem competência suficiente para dar
um diagnóstico preciso?
Neste momento, Parker tornou a encarar a mulher. O médico começava a se
incomodar com a atitude libertina do paciente.
― Tenho conhecimento médico suficiente para mapear todas as células do teu
corpo apodrecido. Desculpe o insulto, mas o senhor não me respeita como
deveria.
Parker ficou sério, calculava alguma resposta a altura que o fizesse continuar
sentindo-se superior, no topo da escada, de onde nunca deveria ter saído.
― Você teria medo de se deparar com um cadáver no qual trabalhei depenando-o,
seu inútil. Eu sou perito em embalsamar e empalhar animais e se continuar a me
insultar vou embalsamar tua boca com um murro certeiro!
O médico apesar de prudente decidiu não ficar por baixo do paciente:
― Meu diagnóstico está dado, se não for teu maldito pulmão apodrecido, teu
problema são gases presos, o que combina muito bem com cachaceiros como
você. Já ouviu falar de prisão de ventre?
Parker aderiu feição de desconforto e se levantou, encarando o médico face a
face, o paciente deveria medir vinte centímetros a menos e levava desvantagem
na musculatura corporal. A mulher se preocupou com a situação e ameaçou:
― Vou chamar o xerife, caso o senhor não for embora agora mesmo.
― Fique tranquila, Claire. Ele não passa de um verme indefeso.
Clarence Freebody não gostou da resposta do marido e se retirou para outro
aposento. Ficaram apenas os dois homens se encarando frente a frente, como um
gesto pré-luta.
― Posso até ser um verme indefeso, mas meto medo em você.

311
O médico sabia dominar seus sentimentos, mas alguém como Parker parecia ter o
dom de mexer com os nervos do mais calmo sábio da montanha. O cúmulo foi
quando o paciente disse:
― A delicinha da tua esposa não merece alguém tão desqualificado como você!
John Parkhurst sentiu o apontador de paciência chegar ao seu limite e deu um
empurrão no paciente que foi parar no chão:
― Pode colocar em xeque minha capacidade, mas não insulte minha esposa,
ouviu bem?
Parker levantou-se lentamente com o ódio estampado nos olhos, encarando o
médico.
Bateu uma mão na outra como quem tira a poeira acumulada e aproximou-se
lentamente do médico, respondendo com um empurrão que não foi suficiente para
derrubar o médico, mas apenas fazê-lo deslocar-se alguns centímetros.
― Digo mais, ela deveria saber como escolher melhor os seus machos. É loucura
da parte dela escolher alguém com o teu baixo nível intelectual para ficar e não
reparar em um homem notável como eu.
John desferiu um forte soco no rosto de Parker que foi ao chão com sangue
brotando no meio de alguns dentes.
O homem louco sentiu colossal vergonha de sua inferioridade, por sorte, Claire
não estava assistindo aquela cena humilhante, mas saberia pela boca do marido
ou de outros habitantes do vilarejo. Os malditos fofoqueiros do vilarejo, todos eram
como nada para Parker.
Parker levantou-se com a mão banhada a sangue tampando a boca. O médico
estava de braços cruzados, firme em sua posição e seguro de sua superioridade
física, em sua mente, era como um leão na flor da idade sendo insultado por uma
zebra franzina e com os dias contados.
― Acalme-se homem, você não pode comigo.
Parker sentiu sua raiva aflorar os mais profundos de seus sentimentos e ficou na
dúvida se tentaria revidar o golpe ou tramar uma vingança notável.
Optou por uma vingança que ainda iria elaborar, assim, ao invés de tirar sangue
do médico, poderia trazer consequências mais graves.
― Não vou revidar o fraco soco que recebi. Machuquei-me de propósito na queda
para você sentir-se o máximo.
Parker gargalhou e mesmo perdendo a batalha, sentia-se como vencedor da
guerra. O médico por sua vez, tratava o paciente como um doente mental que
mesmo com suas fraquezas, não sabia admiti-las e para não sentir-se inferior
julgava-se o dono do mundo.
― Retire-se de minha casa, por favor. Quando precisar de um médico, pode me
consultar, estarei à disposição e pronto para atendê-lo.

312
Parker encaminhou-se para a porta como um cachorrinho com o rabo entre as
pernas e tornou a encarar o médico aos berros:
― Minha vingança será mortal!
O médico destrancou a porta e a abriu, deu um leve e educado empurrão no
visitante para que saísse:
― Adeus. Gostaria de um curativo na boca ou você mesmo é capaz de
embalsamá-la para que não apodreça após meu golpe fatal?
John Parkhurst gargalhou com vontade, do mesmo modo que Parker costumava
fazer, este por sua vez, foi se retirando humilhado, mas sabendo que não deixaria
o insulto por menos.
Quando Parker estava a alguns metros da casa do médico, este advertiu:
― Escute Parker, para resolver o problema da dor no peito basta você diminuir a
dose de fumo e peidar um pouco mais.
Parker estava tomado pela aviltação e não sabia o que responder, sua resposta
viria de forma exemplar, não com palavras, mas com atitudes impensadas. O
médico deliciava-se com uma boa gargalhada.
O humilhado voltou a seguir seu caminho de volta para casa, sua primeira atitude
quando entrou em seu lar foi o de procurar algum medicamento que pudesse
sanar sua dor. Foi até o banheiro e não demorou em ter um comprimido em mãos.
Desceu à cozinha, a fim de tomar o medicamento com um copo de uísque e
percebeu que o andarilho estava em um canto o observando assustado, como
aqueles espectadores de luta que sentem pena do pugilista perdedor. O grito de
ódio foi inevitável:
― Está olhando o quê? Seu monte de lixo.
Parker abriu a geladeira e pegou uma garrafa que possuía vinte por cento de sua
capacidade de armazenamento de uísque. Colocou o comprimido na boca e o
engoliu, empurrado por uma golada monstruosa da bebida. O vazamento de
sangue estava cessando, mas sua boca estava muito manchada externamente de
vermelho gosto de ferro.
Foi até o banheiro no segundo andar, seguido pelo andarilho. Enxaguou a boca e
lavou-a por fora com água e sabão. Depois bochechou uma golada de água e
cuspiu líquido vermelho. O gosto de ferro invadiu seu paladar. Desabafou
referindo-se ao andarilho:
― Eu bem que merecia mais um bom pedaço de bife para repor o sangue. Mas,
esse cachorro faminto e nojento não sai da minha cola.
Poderia descontar sua raiva no indefeso visitante, dando-lhe uma leva de
pancadas no rosto, mas sua intenção era ver a cara de arrependimento do
médico. O rumo da história mudara, julgava-se como um cavaleiro que tramava
um plano para salvar a princesa Clarence das garras do dragão da caverna John.

313
No fim, seria recompensado com o amor da princesa, precisava abrir os olhos da
bela cativa e fazê-la perceber que seu príncipe John não passava de um mero
dragão em pele de realeza.
Foi até uma porta que ficava debaixo da escada que dava acesso do primeiro
andar ao segundo e vice-versa e a abriu. O andarilho seguia em sua cola, como
um filho dependente e bastardo.
Acionou um interruptor e o porão se iluminou parcamente. Desceu as escadas
precárias e decrépitas. Pensava em como poderia se vingar do médico. Estudava
todo o conteúdo do porão.
Papeis velhos e apodrecidos, caixas lacradas que deveriam conter roupas
esquecidas pelo tempo, dois baús com seus instrumentos de profissão
abandonada e outras duas prateleiras enfeitadas com potes de parafinas, graxas e
outras coisas mais.
Seu raciocínio ligou várias ideias e esboçou um plano em menos de dois
segundos quando visualizou um objeto ao canto do porão. A mente de psicopata
acabava de provar sua eficiência.
Parker tinha um plano de vingança tramado, desenhado e aprovado. Naquela
mesma noite, o incompetente médico John Parkhurst teria o que merecia, o
castigo exemplar imposto pelo carrasco justiceiro de Pitfall.
O forte, implacável e indomável Josias Parker.

314
27

ALGO OU ALGUÉM?

O sol que se exibia à Pitfall naquela manhã de domingo não foi suficiente para
espantar as marcas do inverno que chegara. Apesar de a temperatura ter
oferecido lugares aconchegantes pelo início da manhã.
O domingo passava de sua metade e o frio começava a exibir sua verdadeira face,
indicando que a noite que viria também seria gelada e sombria.
Alguns habitantes acostumados com o badalar do sino nas metades do dia
estavam estranhando o fato de o padre não ter tocado o pesado instrumento. Um
deles era o taverneiro, Bradley Fillman, que preparava a bandeja com os pratos
pedidos pelos dois forasteiros, os únicos a frequentarem sua taverna naquele
momento, aquele começo de tarde.
Ficou na dúvida se comentaria com alguém a sua preocupação. A justificativa de o
padre ter adormecido após uma noite conturbada, sem dormir, devido à
tempestade era viável, mas o que o preocupava era o fato de ter ocorrido algo
mais sério, de âmbito mais dramático, como o falecimento do homem da igreja.
O vilarejo andava perturbado nos últimos dois meses e era difícil raciocinar
positivamente, mas era fácil fazer conjeturas negativas e perturbantes.
Não sabia se deveria pedir licença após servir os forasteiros e ir avante, averiguar,
ou ainda mandar sua esposa tomar seu lugar por algum tempo.
Chegou até a mesa dos clientes com a bandeja na mão, contendo dois pratos,
dois copos vazios e uma jarra de suco de laranja.
O prato de Norman exibia um montinho de arroz, algumas fatias de legumes e
dois filés de frango. O prato de Forbes era mais corajoso, além do arroz, exibia
quatro filés de frango e um molho de tomate volumoso que parecia conter
picadinho de carne, talvez de boi.
Quando a bandeja foi depositada, Forbes indagou o taverneiro:
― Estamos estranhando algo, o padre costuma deixar de tocar o sino ao meio-
dia?
Fillman ficou surpreso com o assunto, parecia ter seu pensamento lido pelos
forasteiros.
― Ele deixou de tocar o sino apenas uma vez em anos, foi à meia-noite, em um
dia que estava fortemente gripado e tomou uma pancada de remédios que o
desmaiaram, praticamente.
Norman pegou a jarra de suco e encheu seu copo até quase transbordar. Forbes
prosseguiu:

315
― Não é estranho o comportamento do padre? Tenho a impressão de que algo
aconteceu.
― Compartilho da mesma opinião, pensei até em pedir licença aos amigos e dar
uma averiguada.
― Tem o nosso total respaldo. ― disse Forbes.
― Se caso alguém vier e perguntar sobre mim, alguém de vocês pode ir até o pé
da escada e chamar pela minha esposa, rapidamente ela virá.
Norman assentiu com a cabeça e disse cordialmente:
― Eu me encarrego dessa responsabilidade. O meu amigo aqui possui alguns
quilinhos a mais e com certeza vai bufar muito até chegar à escada, quanto mais
gritando para chamar sua esposa.
Fillman deu um sorriso de satisfação e perguntou:
― Desejam mais alguma coisa?
Ambos os forasteiros negaram com a cabeça.
― Sabe, seria normal uma pessoa dormir profundamente até um horário
avançado após uma provável noite de sono perturbado pela tempestade, mas o
padre sempre arcou com as suas responsabilidades em primeiro lugar.
― Compreendemos, conheço pessoas responsáveis que seriam capazes de dar a
vida pelos seus trabalhos. ― disse Norman.
Forbes encarou o amigo como quem estranhava, o outro se justificou:
― Digo isto sem exageros. Alguns habitantes de certas cidades da Flórida são
verdadeiros malucos.
― Você está certo, algumas pessoas abandonam o direito de viver por um simples
trocado a mais no bolso. ― disse Fillman, sempre sério.
― Estamos falando de japoneses? ― indagou Forbes abocanhando um pedaço
de filé de frango.
Os três se colocaram a rir das palavras de Forbes que esperou a graça passar
para oferecer:
― Gostaria que meu amigo e eu fossemos à igreja? Assim, você não precisaria
deixar a taverna.
― Não é necessário, faz três dias que eu não respiro o ar de fora e o padre pode
estar precisando de ajuda imediata, de modo que será melhor vocês comerem
tranquilos, eu me encarrego da visita inesperada.
― No caso de socorro, é melhor que alguém vá rapidamente à igreja. ― disse
Norman.
― Acredito que alguém já tenha ido. Alguns habitantes de Pitfall consideram o
badalar do sino como suas músicas particulares de inspiração, acreditam que
alguém já usou o momento do badalar para entregar uma carta de amor?

316
Os clientes gargalharam do taverneiro.
― Quem é essa pessoa? ― perguntou Forbes.
― Vocês não o conhecem, mas se verem um doido perambulando com uma
peruca branca de juiz pelo vilarejo...
― Nós já vimos esse homem. ― disse Norman, olhando para Forbes e sabendo
que o amigo lembrava muito bem do homem em questão.
― Ele preparou um bilhete amoroso e entregou a uma viúva no momento do
badalar do sino.
Ele se referia à Tania Bombay.
― E ela correspondeu? ― perguntou Forbes na expectativa de dar mais uma
gargalhada.
― Bateu a porta na cara do coitado que ficou a ver navios.
Todos voltaram a rir.
― Antes de ir embora, prometo que vou ensiná-lo a conquistar uma mulher. ―
emendou Norman.
O som da risada do trio foi mais alto do que anteriormente, parecia uma espécie
de coral em perfeita sincronia.
― Pois bem, não vou ficar a conversar senão a comida dos senhores vai esfriar e
a minha visita ao padre vai ficar para outro dia.
― Tudo bem. Em outra ocasião teremos a oportunidade de saber mais
acontecidos do vilarejo. ― disse Forbes, começando a misturar o molho de tomate
no monte de arroz.
Norman havia tomado quase um copo inteiro de suco de laranja e começou a
comer o arroz puro. O taverneiro cruzava a porta de vai e vem, indo para a rua e
ainda ria da conversa.
― Ele é uma excelente pessoa! ― exclamou Forbes.
― Tão diferente de Bobster. ― reforçou Norman.
― Mas, agora vou aproveitar que estamos a sós e dizer algo grave. ― disse
Forbes assustando o outro devido seu tom de voz sério.
― Grave? O que pode ser grave? Você percebeu algo de diferente no taverneiro?
Sabe algo sobre o padre e sua falta de responsabilidade?
― Não. É sobre termos adormecido facilmente ontem e principalmente pelo meu
estranho dormir repentino e sem justificativa cabível.
― E então?
Forbes terminou de engolir o que estava mastigando e esfregou uma mão na
outra.

317
― Você percebeu algo de semelhante no momento em que adormecemos em
relação à mesma situação descrita no manuscrito do biólogo? Digo, quando ele
desmaiou.
― Nós dormimos e ele desmaiou de medo, qual pode ser a relação? ― interrogou
Norman constrangido.
― Errado. Ele assim como nós, foi induzido a dormir.
Norman ficou tão espantado que acabou se esquecendo do prato de comida.
Forbes estava seguro de si e começou seu assombroso relato:
― Ontem à noite, adormecemos rapidamente após acender aquela estranha vela.
O mesmo que ocorreu com o biólogo.
Norman compreendeu num passe de mágica a situação, não era a primeira vez
que soube de casos como aquele:
― Você quer dizer que... as velas do hotel aspergem alguma espécie de sonífero
capaz de sedar um elefante?
― Exatamente. É muito engenhoso da parte de Bobster, ele é um homem muito
inteligente, perceba que quando a vela é consumida, a fumaça do pavio
mergulhado em sonífero banha o ambiente, sendo assim capaz de sossegar um
urso.
Norman estava pasmo, se não fosse a cabeça do amigo, talvez demorasse anos
para perceber a gritante situação.
Haviam sido forçados a dormir!
Norman levantou-se e deu um murro na mesa, quase provocando uma lambança
de comida ao ar, naquele momento foi a vez de Forbes ficar assustado:
― Acalme-se homem, estamos progredindo. Apesar de eu julgar ser o momento
de ir embora, não por acovardamento, mas por ter pena de Bobster.
Norman sentou-se, calmo e interrogou o amigo com um olhar firme:
― Pena dele?
― Sim, ele pensa estar lutando contra algo que na realidade não existe, algum
tipo de inimigo. Acredito que será mais prudente irmos embora e contatar um
manicômio capaz de abrigá-lo.
― Qual você pensa ter sido a reação dele ao nos ouvir falando dos malvados, dos
filhotes dos malvados e outras loucuras mais?
― Vou dizer a verdade, não excluo a possibilidade de aquela carta ser enganosa,
digo, ter sido escrita por ele apenas para deixar a imagem do hotel mais parecida
com a de um hotel-fantasma. Como você explica o fato de ele nem se preocupar
que seus hóspedes o paguem em dia? É muito estranho.
― Ele não depende do hotel, com certeza.

318
― E por que ele não fecha o hotel ou o vende? Ele poderia viver em uma casa
como aquelas abandonadas que vimos na rua do lenhador e adorná-la com
quadros de outro mundo sem permitir que outras pessoas se assustem. Ele
precisa de privacidade para fazer suas loucuras.
Norman esboçou feição de descontentamento:
― Acontece que todos os malucos como ele desejam assustar outras pessoas e
não viverem em um mundo secreto de maluquices. Ora, o assunto está me dando
nojo de comer, só de lembrar-me daquele hotel cheirando a mofo minha fome vai
morrendo aos muitos.
Forbes gargalhou da indignação do outro e decidiu dar cabo da conversa
enquanto comiam:
― Fique tranquilo e desfrute de tua refeição. Minha arma está de prontidão para
dar fim a qualquer malvado que aparecer.
Norman não conseguiu manter-se sério após as palavras do outro, permitiu que a
vontade de rir o invadisse e fizesse seu trabalho, afinal, rir em momentos como
aquele era um inegável remédio, bom para espantar males, pelo menos por alguns
segundos.

***

Não foi preciso bater à porta da igreja, ela estava destrancada.


Brad Fillman entrou no ambiente sagrado e estudou cada canto antes de fechar a
porta atrás de si.
Tudo parecia emanar sua normalidade corriqueira. Os bancos estavam postos em
retidão milimétrica. O altar parecia ter sido organizado e limpo por uma empresa
especializada na coisa.
Quando começou a avançar rumo à porta que dava acesso ao escuro corredor
suas pernas travaram, proporcionando cinco por cento de sua capacidade de
movimento. Não era medroso, mas o fundo escuro do corredor parecia querer
propor um enigma, um enigma que obrigasse ao desafiado caminhar até o
estranho destino, o fundo escuro do corredor.
Era como se o desafiado, ao chegar à divisa do mundo visível em relação ao
invisível, se esbarraria com uma surpresa que o assustaria, talvez um boneco de
pano do tamanho de uma pessoa pularia no colo do desafiado, querendo ser
abraçado, aterrorizante.
Mas, a sensação de querer manter distância do temido corredor era mais forte do
que qualquer espécie de cogitação. O taverneiro sentia as mesmas sensações
que Harter sentira no dia anterior.

319
Parou a cinco metros do altar e bateu palmas procurando saber se o padre estava
acordado ou presente. Contudo, não obteve resposta, aumentando assim o
incômodo causado por sua pulga atrás da orelha.
Criou coragem e decidiu se portar como o homem forte que era e encaminhou-se
rapidamente para a porta que dava acesso ao corredor escuro.
Não tirava aquele avental de servo de taverna por nada no mundo, simplesmente
pelo motivo de odiar repetir o nó que somente sua esposa fazia de modo
exemplar.
O primeiro cômodo que pôde visualizar era a biblioteca e o padre estava lá,
sentado em uma poltrona virada para o outro lado, mas sem fazer movimentos,
vivo ou morto.
Era difícil perceber a situação do padre, pois o homem da fé sentara de costas
para a porta e de frente para uma cômoda que estava devidamente encostada à
parede.
Brad Fillman decidiu não chamar o padre, talvez para não assustá-lo, ou quem
sabe, não ser ele mesmo o assustado, se deparando com um morto de rosto
horripilante.
Entrou como uma sombra e sem fazer qualquer ruído. Estava a poucos metros da
poltrona onde repousava o padre. Conseguiu apenas ver parte do rosto do homem
da fé que estava de perfil. Era possível distinguir que seu olho estava cerrado.
Dormia ou estava em seu descanso eterno?
A dúvida o perturbava, não desejava ser o responsável por encontrar o corpo do
padre. Tinha seus problemas em casa e não seria agradável ter de dar satisfação
a meio mundo em um interrogatório sem fim.
Chegou mais perto da poltrona, ficou a poucos centímetros do padre e conseguiu
visualizá-lo quase que por completo. Percebeu que o homem da fé estava
mergulhado em uma palidez que o fazia parecer possuir a pele de um
extraterrestre ou parecido com alguém recém-mergulhado em uma banheira de
alguma solução capaz de tingir a pele em um tom amarelo. Como ácido tânico,
talvez.
Mas espere. Que alívio!
Ele estava respirando e em uma frequência normal de quem dormia. Morto ele
não estava, mas o tom amarelado de sua pele era algo fora do normal, talvez
estivesse passando mal.
Poderia ser a idade chegando, a palidez poderia estar anunciando que rugas mais
grossas de velhice estavam se aproximando.
Fillman decidiu deixar a situação como se encontrava. Ao menos o padre estava
vivo, porém mergulhado em um sono pesado.

320
Estava preparando-se para dar meia-volta e ir embora aos afazeres quando
percebeu que a cômoda estava entreaberta e uma curiosidade o dominou. Queria
estudar o conteúdo do interior da cômoda.
Olhou para o quadro ao lado da cômoda, retratava a Santa Ceia. Teve a nítida
impressão de que um dos assentados à mesa apontava para a cômoda do padre
como quem dizia para se ter cuidado e pensar muito bem em qual decisão tomar.
Não sabia definir qual discípulo era o homem retratado em questão, mas sua
feição era de preocupação.
Estudando mais a fundo os detalhes da pintura percebeu com alívio que a cômoda
não tinha qualquer coisa haver com o quadro, a figura masculina em questão
apontava para uma jarra dourada que estava bambeando à mesa, prestes a cair.
Uma dúvida perdurou em seus pensamentos, quem poderia ter esbarrado na jarra
a ponto de fazê-la ficar na corda bamba?
Mas era apenas uma expressão sentimental do artista para representar uma
movimentação fora do normal na mesa da Ceia, como se todos quisessem ser o
primeiro a comer dos Santos Elementos.
Tais perguntas idiotas não poderiam dominá-lo, impedindo-o de agir, bastava ir até
a cômoda e procurar espreitar pela fresta oferecida, como um gigante de uma
terra distante se encurvando para espreitar um castelo medieval pelas janelas
mais altas.
Fitou novamente o padre que ainda dormia como uma pedra, talvez a palidez
fosse causada por remédios ingeridos, como da outra vez em que o padre não
tocara o sino.
Foi até a cômoda e estava pronto para se encurvar e espreitar quando ouviu um
murmúrio do homem da fé. O taverneiro alarmou-se e como que por impulso
levantou-se e fitou o padre. Por sorte este ainda dormia, mas movimentava-se
demonstrando estar no meio de um sonho.
Não seria agradável ser pego em flagrante, não era fiel da igreja e poderia ser
taxado como ladrão. Tomou o caminho de volta para a igreja, andando
calmamente para não acordar o homem da fé.
Conseguiu chegar ao corredor, sentiu um calafrio ao lembrar-se da parte escura
do corredor que estava às suas costas e apertou os passos chegando
rapidamente à porta principal da igreja. Conseguiu não olhar para trás, saiu da
igreja.
Estudou a rua para certificar-se do caso de alguém o estar olhando. Por sorte,
Pitfall às vezes era aliada, ninguém estava o assistindo, exceto talvez, alguém
olhando pela janela de alguma casa, neste caso não conseguiria saber.
Fechou a porta e tomou o caminho da taverna como se nada houvesse
acontecido.

321
Enquanto o taverneiro ia embora, o padre despertou assustado, mas logo foi
tomado por um alívio.
Estivera sonhando, ou melhor, tendo o pesadelo de que o autor do livro que
contava seus casos quando desmascarara charlatões estava o perseguindo.
Não sabia como, mas no sonho, o carrasco dos charlatães estava com uma
espécie de alicate na mão e o padre estava amarrado à poltrona. O carrasco se
preparava para arrancar seus dentes em meio a um massacre punitivo.
Mas, o homem da fé acordou quando o carrasco encarou a cômoda com o olhar e
disse:
“Vamos ver o que temos aqui.”
O padre se preocupou, pois o carrasco iria desmascarar mais uma incorreção de
um homem que deveria ser exemplo.
Bufava de alívio. Levantou-se e correu saber se a menina dos seus olhos ainda
estava na cômoda que deixara aberta, ficou completamente satisfeito quando
percebeu que sua amada estava em seu devido lugar e trancou rapidamente a
cômoda após puxar a chave do bolso da batina.
Nunca mais deveria esquecer a porta da cômoda aberta, caso contrário poderia
ser castigado pelo carrasco que roubaria seu objeto de vergonha, sua fiel
companheira e o desmascararia em público.
O Judas de Pitfall.
O medo de perder a preciosa companheira o fez se certificar se a porta principal
estava trancada. Foi até seu destino e tentou abrir a porta que para seu espanto
obedeceu o comando, abrindo.
Trazia dentro de si a certeza de que trancara a porta após entrar pela última vez e
era perturbador confessar que somente ele próprio possuía a chave capaz de abrir
a porta principal da igreja.
Como poderia aquilo estar acontecendo, alguém conseguira uma cópia de sua
chave ou fora capaz de destrancar a porta com algum outro recurso? Estava
confuso, eram perguntas que não conseguiria responder, mas seria capaz de
colocar a mão no fogo jurando que trancara a porta ao entrar após acompanhar os
Harter, depois da missa.
Temia apenas por pensar na possibilidade de ter recebido a visita do carrasco do
livro que lera. Carrasco que existia de fato e deveria o estar perseguindo. Sim,
temia por ter chegado o seu momento de ser desmascarado e punido por cometer
um delito que a seu ver era mesquinho e sem importância, incapaz de prejudicar
algum semelhante.
Não tinha do que reclamar. Pois nos últimos tempos Pitfall demonstrava estar
tratando mal seus habitantes, era como se o vilarejo quisesse vomitar todas as

322
pessoas que ali moravam, os expulsando para sempre, e o padre temia ser o
próximo da lista.

***

Brad Fillman entrou rapidamente na taverna empurrando a porta de vai e vem,


inquieto, pegando os presentes de surpresa. Foi até a mesa dos seus dois únicos
clientes e perguntou de modo cordial:
― Como está a comida? Aprovada?
― Primeiramente, cuidado para não tropeçar. ― disse Forbes.
O taverneiro fez uma expressão facial de vergonha e disse:
― Desculpem-me, não queria ter atrapalhado o apetite dos senhores.
― Descanse, a comida está excelente, em minha opinião. ― disse Forbes
olhando para Norman.
― Na minha humilde opinião a comida está mais do que excelente. Não precisa
desculpar-se, a nossa preocupação é com a tua integridade física, nosso apetite
sempre voltará conforme a fome vier, mas se caso você cair e esborrachar a cara
do chão, quem nos servirá? ― indagou Norman de modo alarmador querendo ser
sensacionalista com o taverneiro.
Fillman ficou contente com a satisfação dos clientes e foi logo interpelado por
Norman:
― E então, encontrou o padre?
O interrogado sentiu como se uma trava de ferro entupisse sua garganta,
impedindo-o de falar. Não tinha uma resposta na ponta da língua, precisava ser o
mais discreto possível:
― Encontrei sim, mas dormia como uma criança.
― Você acordou-o? ― indagou Forbes.
― Não tive coragem...
Os dois clientes se entreolharam e fizeram feição de quem estranhava. O
taverneiro prosseguiu:
― Não tive coragem de acordá-lo e receber uma repreensão, certas pessoas
odeiam que a despertem.
― Isso é verdade, meu irmão odiava tal atitude de minha parte, bastava acordá-lo
para encarar a fera. ― disse Forbes não engolindo as últimas palavras do
taverneiro que parecia estar escondendo algo mais grave.
Os pensamentos de Norman refletiam sobre a realidade que era Pitfall. A realidade
em que os mínimos detalhes pareciam esconder um mistério que deveria estar
muito bem guardado.

323
― Desejam algo mais? ― foi a última pergunta do taverneiro antes de abandonar
a conversa que tanto lhe desagradava.
― Estou satisfeito! ― exclamou Norman.
― Eu estou precisando de um fechamento de corpo, ando comendo demais. O
picadinho de carne ao molho estava uma delícia, talvez eu o repita no jantar. ―
disse Forbes.
Fillman sorriu pela satisfação dos clientes que voltariam no jantar.
― Podem voltar para o jantar, estarei à disposição. Solicitarei que minha esposa
prepare um cardápio especial.
― Prepare. Mas guarde um pouco do picadinho para mim. ― disse Forbes com os
olhos fora de órbita, envolvendo a barriga com as duas mãos como fazem as
mulheres grávidas ao querer acariciar o feto.
Todos os presentes riram com gosto. Brad Fillman foi até o balcão, ainda rindo.
Forbes tomou o restante de suco de laranja de seu copo e levantou-se.
― Esqueci de pedir a conta.
Norman colocou a mão por dentro do bolso esquerdo de sua calça jeans, mas
interrompeu sua ação ao ser advertido pelo outro:
― Hoje é por minha conta.
― Agradeço. Você deve ganhar melhor do que eu. ― disse Norman irônico.
Forbes deu um tapinha na mesa como que deseja encerrar o assunto, mas
sempre sorrindo e foi até o balcão.
― Quanto devemos?
― Apenas onze dólares. ― respondeu o taverneiro repentinamente, mas sem
levantar o olhar do bloco de anotação em que escrevia algo.
Forbes jogou onze notas de um dólar no balcão e se virou dizendo:
― Passar bem. Tenha uma ótima tarde.
― O mesmo. ― retrucou Fillman sem olhar para o cliente.
Forbes aproximou-se da mesa onde estava o amigo que já o aguardava de pé.
― Ele deve estar programando o cardápio da noite. ― disse a Norman.
Os dois se retiraram da taverna sem olhar para trás, sem se preocuparem se o
taverneiro os estava encarando pelas costas, como um psicopata em pele de
taverneiro, o faminto lobo em pele de cordeiro pronto para atacar sua vítima na
base da covardia.
Olharam ao mesmo tempo em direção ao hotel. Bobster não se encontrava do
lado de fora, deveria estar se aquecendo na lareira, lendo seu jornal
desatualizado, tosquenejando e babando.

324
Norman imaginou que o velho do hotel talvez dormisse de olhos abertos como os
peixes e suas reflexões o perturbaram. Tudo vindo daquele estranho hoteleiro
parecia emanar um ar de pavor.
A leve brisa da tarde era capaz de gelar o rosto dos ambulantes, o frio deveria ser
rigoroso naquela noite, os raios solares estavam mais tímidos.
― Siga-me. ― murmurou Forbes.
Norman não questionou, apenas fitava a floresta ao lado que parecia estar
dominada por uma neblina histórica, acobertando os passos de um lobisomem da
era das cavernas. Não podiam voltar ao hotel antes do necessário, pois
precisavam evitar ao máximo se esbarrarem com o temido Bobster e seu não
menos temido “imaginário” filhote de malvado.
Forbes estava como guia após sua solicitação para que Norman o seguisse.
Chegaram ao começo da ruela que dava acesso às outras ruas do vilarejo, não
viram qualquer habitante do lado de fora das casas.
Seguiram pela ruela. Norman indagou:
― Onde estamos indo?
― Acredito que você, assim como eu, não engoliu a história contada pelo
taverneiro de que o padre apenas dormia. Existe algo mais, vamos fazer uma
visitinha ao religioso.
― Qual será nossa justificativa por visitá-lo em um domingo, fora da hora missa?
― Padres não dão conselhos? Pois então, vamos pedir sua benção, afinal
estamos carecendo se quisermos sair intactos daqui.
― Basta pegar o carro e dar o fora. ― contestou Norman.
― Será? Acredito que fugir daqui possa ser uma tarefa muito mais difícil do que
pensamos, mas quando eu disse sobre pedir a benção, estava apenas
descrevendo a boa justificativa que podemos adotar ao visitar o religioso.
Viraram o lado direito da segunda rua e seguiram rumo à igreja. As chaminés das
casas trabalhavam a todo vapor, era um sinal inegável de que os habitantes
estavam se aquecendo ao lado da lareira.
Era em momentos como aqueles que os dois forasteiros percebiam o motivo de o
lenhador ser tão forte, afinal trabalhar para alimentar a lareira de uma cidade toda
não era tarefa para qualquer um. As noites no vilarejo eram frias devido à floresta
com sua imensidão de diversificada vegetação, mesmo em épocas de não
inverno.
Norman ficou sem rebater as palavras do prudente amigo. Chegaram de frente
para a igreja.
Forbes pensou antes de bater. Norman foi logo tentando abrir a porta que estava
trancada.
― Não sei se devemos. ― admoestou Norman.
325
― Vamos entrar sim, precisamos de uma distração que nos tire do tédio e
precisamos inclusive de um lugar para se aquecer. ― retrucou Forbes.
Forbes deu três socos na pesada porta da igreja e ficou encarando Norman. Após
meio minuto escutaram uma voz sonolenta vinda do interior:
― Quem é?
― Viemos pedir a benção. ― disse Forbes quase prorrompendo em risos.
Escutaram o som da chave rodando na maçaneta e o trinco se movimentando. A
porta foi aberta. O homem da fé encarou os desconhecidos recém-chegados:
― Não os conheço, mas entrem.
O padre não se lembrou que os havia visto na taverna, os dois estranharam as
palavras do padre sobre não os conhecer.
A preocupação do padre era a possibilidade de algum deles ser o temido carrasco
herege do livro “O mal do século”, que porventura viera o desmascarar
definitivamente, acompanhado por um agente capaz de lhe dar voz de prisão.
Contudo, precisava ser discreto e cordial, caso contrário a menina de seus olhos
poderia ser descoberta e devidamente encaminhada para seu verdadeiro senhor,
seu curador, digno de recebê-la. Sua vergonha seria capaz de derrubar um prédio
como um guindaste munido de uma bola negra de ferro, abalroando-se contra o
mais firme e alto edifício do planeta.
Não sabia como agir, após fechar a porta e a trancar encaminhou os estranhos
visitantes para o banco da igreja. Forbes bufou antes de se sentar e reclamou:
― Como faz frio nesse lugar!
― Vocês vieram de muito longe? ― indagou o padre com ar de preocupação.
― Somos turistas natos, cada hora estamos em um lugar diferente. ― respondeu
Norman.
O padre enxergou o sorriso do carrasco estampado no rosto do último homem que
falava.
Desejou perguntar se o visitante, Norman, já esteve na Romênia em outra
ocasião, mais precisamente no castelo do Drácula, mas seria uma tremenda falta
de sabedoria, entregaria o ouro.
AQUI JAZ UM MISTÉRIO.
― Desejam uma xícara de café ou uma água? Não tomo bebidas alcoólicas e por
tal motivo, oferecê-las não se encontra ao meu alcance.
― Entendemos, nós também não somos adeptos a bebidas. Acabamos de
almoçar e um café não cairia muito bem. ― disse Forbes.
O padre se mantinha em pé, de frente para os dois visitantes, como quem
desejava proteger a porta de trás, como um soldado impedindo que o inimigo
atravessasse suas linhas, suas fronteiras de guerra.

326
― O que desejam? Precisam de auxílio?
― Sim, somos católicos fervorosos e em toda a cidade que chegamos,
costumamos pedir a benção ao padre local. ― disse Forbes inteligentemente,
Norman quase riu do tamanho da cara-de-pau do amigo, entregando suas
verdadeiras intenções.
Padres no geral não gostavam de crianças que se passavam por homens sérios e
após algum tempo fingindo-se de interessados se transformavam em uns
verdadeiros palhaços após uma risada antes escondida e muito bem guardada. O
padre colocou a mão esquerda na cabeça de Forbes e a direita na cabeça de
Norman.
― Com prazer. Dou-lhes a benção e que vossa estadia por aqui seja em paz.
Se conseguirem sair vivos, é claro. Pensou o religioso retirando as mãos das
cabeças dos indigestos visitantes.
― Já que são católicos, podem participar da missa na quarta-feira se estiverem
por aqui.
― Acho difícil, estamos de partida amanhã, no mais tardar depois de amanhã.
Mas, caso aconteça um milagre de ficarmos por aqui, viremos com certeza. Pitfall
é um lugar muito atraente. ― disse Norman, foi a vez de Forbes se segurar para
não rir na cara do padre que estava com um semblante muito sério e preocupado.
A conversa parecia desenhar o movimento de um carrossel, partia, mas voltava ao
mesmo ponto. A falta de assunto por parte do padre poderia desmascarar suas
preocupações. Era preciso se manter discreto, e foi o que ele fez com bestial
genialidade:
― Não gostariam de visitar a biblioteca? Porventura, gostam de livros religiosos?
― Já li alguns. ― disse Norman, preocupado caso o padre o questionasse quais,
mas poderia alegar que se esquecera dos nomes dos livros que jamais lera.
― Meu irmão aqui é um profundo interessado em livros religiosos. ― mentiu
Forbes.
― Eu percebi que você deve ser leigo no assunto. ― disse o padre para Forbes.
Disse mais:
― Mas o teu amigo que leu alguns exemplares deve ter a mente mais instruída
para as questões do mundo.
― Deveras, meu amigo manda muito bem quando falamos do assunto igreja. ―
alegou Forbes, quase explodindo em risadas.
― Que bom. Quais livros você leu? ― indagou o padre, encarando Norman.
Norman contorceu a feição demonstrando estar tentando lembrar-se de títulos de
livros.
― Sou um péssimo recordador de autor e título.

327
Sentiu o ventre gelar, se o padre perguntasse o enredo de algum livro, seria
descoberto mentindo. Neste meio tempo, Forbes conseguiu encaixar a peça do
quebra-cabeça, conseguiu dar a voz de xeque-mate no momento mais oportuno:
― Tive uma ideia melhor, vamos à biblioteca como o senhor havia sugerido, assim
meu amigo aqui pode lembrar quais livros leu pelas capas. Sabe, algumas
pessoas possuem uma memória mais elástica quando enxergam gravuras.
O padre quase engasgou, mas abriu um sorriso. Perguntara acerca dos livros
religiosos para desinteressar os visitantes a conhecerem a biblioteca, mas não
teve remédio. O homem da igreja se virou e começou a tomar seu caminho,
chamando:
― Vamos indo. É por aqui.
Os dois forasteiros não hesitaram em segui-lo. Norman estava cada vez mais
pasmo com a simplicidade e facilidade com que Forbes encaixava as peças em
seus devidos lugares. De fato, fora uma jogada de gênio, o modo como
conseguiram se infiltrar nos outros aposentos da igreja. O padre parecia oferecer
restrição no começo, mas suas intenções caíram por terra.
Ao entrarem na biblioteca, o padre se portou de frente para uma enorme estante,
recheada de livros e um pouco de poeira. Os dois visitantes ficaram próximos ao
padre. Forbes passeou o olhar no ambiente. O que lhe chamou a atenção foi o
quadro em que um dos homens à mesa farta de banquete estava com o olhar de
assustado, apontando para um jarro dourado que parecia bambear.
Forbes não sabia explicar, mas aquele quadro o intrigava assim como os do hotel
intrigavam seu amigo Norman.
O padre apontou a legião de livros como se estivesse desafiando Norman e logo
questionou:
― E então, quais destas maravilhas abençoadas você conhece?
Norman pareceu engolir uma azeitona, mas não deixou transparecer sua aflição.
Por fim, aceitou o desafio e decidiu ler os títulos dos livros e calcular qual deles o
padre teria a menor possibilidade de ter lido.
― Eu conheço aquele de capa azul e com letras douradas. ― apontou Norman
para “O mal do século”.
O padre pareceu hesitar chamando a atenção de Forbes.
― Qual deles? ― foram as únicas palavras que o homem da igreja conseguiu
soltar.
Forbes estranhando a situação e com seu faro aguçado indagou:
― Como qual deles? Com todo o respeito, existe apenas um livro com as
descrições feitas pelo meu companheiro e você nos pergunta qual, francamente.
As muralhas do homem da fé foram derrubadas, seu futuro estava perdido e
comprometido, pois tinha a certeza, aqueles dois homens estavam lá para dar um

328
fim em seu segredo. Um deles deveria ser o malévolo carrasco de “O mal do
século”. Suas pernas fraquejaram e uma palidez grotesca transformou sua face
em uma terrível máscara de monstro.
― Me desculpem, eu estou com tonturas. Não me sinto muito bem no dia de hoje.
― Percebemos. Já sabemos, por exemplo, que vossa santidade deixa de tocar o
sino apenas quando está com o estado de saúde comprometido. ― disse Forbes
secamente, procurando intimidar mais ainda o padre que fitava o chão como se
estivesse com vergonha.
Norman julgava que seu amigo estava pegando pesado com o pobre homem da fé
e segurou o exímio farejador pelo antebraço:
― É hora de irmos embora, estamos atrapalhando o padre que deve estar
precisando de um bom repouso.
Forbes pareceu refletir e encarou o amigo com o canto dos olhos:
― Você tem razão. A nossa visita deve estar exigindo um grande esforço do nosso
amigo de fé.
Norman permanecia puxando o amigo para que ele se tocasse.
Eu sou uma pessoa tão regrada e boa, isto não deveria estar acontecendo
justamente comigo, fui capturado prematuramente. Pensava o padre em martírios.
Forbes se virou para ir embora, seguido pelo apavorado Norman. O padre gostaria
de questionar sobre seus nomes para certificar-se se algum deles não era quem
mais temia, mas sua voz estava dispersa em outra dimensão da compreensão
humana.
Forbes parou quando estava cruzando a porta da biblioteca rumo à igreja
propriamente dita e encarou o padre, que temia ser desafiado a provar sua
inocência.
― Esquecemos de pedir tua benção. ― Forbes jogou estas palavras para testar o
estado de nervos do homem da fé, se caso ele demonstrasse não se lembrar de
ter dado a benção anteriormente, significava que seus nervos estavam
anormalmente abalados. Ele havia se esquecido dos dois, é mais fácil se lembrar
da fisionomia de um estranho do que de alguém conhecido e o padre deveria
lembrar no mínimo que havia topado com os dois na taverna, no dia anterior.
Nervos abalados por qual motivo?
O padre com os nervos trêmulos fez o sinal da cruz com o braço direito rumo aos
visitantes e desejou:
― Sejam abençoados.
E caso não forem quem estou pensando, que consigam sair vivos daqui.
Prosseguiu sua prece em pensamento.
Sobrevivência. Era uma palavra que os habitantes de Pitfall começaram a
considerar ultimamente, mas ninguém poderia explicar o motivo.
329
Os dois visitantes tornaram ao rumo da igreja e o padre os seguiu meio que de
longe.
Quando o padre trancou a pesada porta, deitou de pé nela, praticamente, com as
costas encostadas na porta e os dois braços alongados nas duas extremidades
difusas, direita e esquerda. Parecia um mártir formando uma cruz com o corpo que
acabava de ouvir o veredicto de que sua punição foi adiada para tempos depois,
dando-lhe assim algum tempo de vida, mas que deveria desfrutar o máximo.
Norman esperou as justificativas de Forbes, este não demorou em responder ao
amigo que tanto o encarava:
― Ora, por qual motivo me olha? Não acredita mais nos meus dotes de farejar?
― E o que foi que você farejou?
― Quando você mencionou aquele livro, o humor do padre se alterou.
― Qual é o problema, ele poderia estar de fato passando mal, talvez necessitasse
vomitar ou estava com dor de barriga.
Forbes refletiu nas conclusões de Norman:
― Você pode estar certo, mas eu farejei algo estranho no ar. Ele passou a respirar
ares de tormento em um piscar de olhos.
― E o que é normal por aqui? Qual habitante não inspirou mistério, ainda? ―
contestou Norman.
Os dois estavam parados de frente para a igreja.
― Ele pode estar nos ouvindo. ― advertiu Forbes.
― Quem? O padre?
― Sim, inclusive aquele menino que vimos na janela com os soldados de
brinquedo também.
Norman olhou a janela que o amigo estava a fitar e o menino misterioso dos
soldados em miniatura estava os assistindo com semblante de medo.
― Sabe, gostaria de indagá-lo sobre o que pensa de nós. ― disse Forbes.
― Não invente de visitar aquela casa também. ― advertiu Norman.
― Acalma-te. Não seria errado ir pedir um copo de água, mas você está certo, não
quero assustar aquela criança, ele deve estar imaginando que somos bichos-
papões de carteirinha e papel passado.
O menino permanecia os fitando, estava com muito medo. No começo imaginara
que aqueles homens estranhos fossem soldados do mais alto preparo e agora não
sabia definir se eram amistosos ou não. Mas espere, ele sabia o que fazer,
chamar sua mãe. Foi até o corredor e gritou por sua mãe que estava por perto,
limpando o vaso sanitário.
― É por aqui, na minha janela.

330
Tania seguiu o filho com rapidez e fitou a rua, ninguém estava lá fora. Nenhum
homem mal encarando seu filho ou querendo o seduzir com um belo docinho. Ela
se virou para o menino e disse:
― Fique tranquilo, ninguém virá te pegar.
Acariciou o rostinho da criança injustiçada e voltou ao trabalho. Howard tornou a
fitar a rua e sua mãe tinha razão, os homens haviam evaporado como que por
encanto. Apesar de tudo, o menino tinha a certeza de que não tivera uma ilusão
nas duas vezes em que vira os estranhos homens.
Temia muito, eles poderiam ter pulado a janela e estarem dentro de sua casa,
prontos para atacar e fazer mal à sua mãe e sua pobre vovozinha, e depois a ele
próprio. Somente o forte lenhador poderia dar conta dos estranhos, este era o
ingênuo pensamento do menino carente de um pai.
Naquele instante, Norman e Forbes cruzavam a ruela que conduzia à rua principal
e conversavam. Norman permanecia abismado com a pena sentida pelo amigo
em relação a Bobster, alegando que este último sofria de retardo mental.
― Que tal uma voltinha à floresta? ― indagou Forbes.
Norman arregalou os olhos, mas não ficou surpreso, pois esperava por aquilo
mais cedo ou mais tarde. Trazia consigo, porém, a dúvida se a floresta que
envolvia o vilarejo era um local seguro e aconselhável.
― Não é uma má ideia. ― respondeu Norman esbanjando otimismo.
Chegaram à rua principal e tomaram o rumo da floresta, não deixaram de passear
o olhar pelas redondezas do hotel e do xerifado. Era incrível, mas o vilarejo
parecia ir se tornando um local inóspito conforme a noite se aproximava.
Na extremidade do bosque, as árvores pareciam formar um portal que oferecia
espaço suficiente para quem adentrasse. Mas, olhando mais a frente era possível
notar que a vegetação se tornava mais cerrada conforme se avançava.
Forbes e Norman estavam em silêncio e avançando rumo ao coração da floresta,
tinham a sensação de terem mergulhado em outro mundo. Fato este que poderia
ser a raiz do não comestível fruto chamado medo.
Forbes demonstrava coragem, tinha ciência do poderio que representava sua
arma oculta.
Sinceramente, sabia que o movimento de Pitfall e do hotel era muito estranho,
mas não acreditava em fantasma de luz verde.
Norman seguia lado a lado com o amigo que parou de andar a certo ponto. Não
estavam muito longe do vilarejo, avançaram floresta adentro apenas dois minutos.
Forbes encarou o amigo e perguntou:
― Percebe como não existe qualquer som de trinado?
Norman não respondeu com sua quase ausente voz, apenas afirmou com a
cabeça.

331
― É como se a floresta, digo, os animais houvessem fugido e as árvores
estivessem com medo de movimentar seus galhos. ― prosseguiu Forbes.
Tudo que Forbes afirmava se encaixava com os sentimentos de Norman. A
floresta parecia estar dominada por uma lei decretada por algum influente rei que
ordenava se evitar ao máximo qualquer ruído ou movimento por mais sorrateiro
que fosse.
― Sabe Joseph, sinto que não devemos prosseguir.
― Explique-se, estou armado com um profícuo revólver e com uma coragem de
besta-fera.
― Não é momento de filosofias. Estou falando sério, sinto que algo vem do interior
da floresta em nossa direção, como se estivesse a nossa espera.
― Algo ou alguém?
― Não sei explicar, mas sinto muito medo.
Os pêlos da nuca de Forbes se eriçaram e seu couro cabeludo pareceu endurecer.
O companheiro estava demonstrando uma seriedade que o provocava no íntimo.
― Bem, nesse caso é melhor voltarmos. ― disse Forbes gaguejando, em choque.
Forbes pegou o revólver e teve tempo apenas de perceber a ação de Norman que
saía em disparada rumo ao vilarejo, correndo. Forbes o imitou, mas ficou em
profunda desvantagem devido seu peso avantajado. Quando chegou à
extremidade da floresta sentiu ardência no braço direito que provavelmente fora
arranhado por algum galho espinhento. Norman o aguardava, Forbes o advertiu:
― Você deveria ter me esperado, se eu ficasse em apuros teria de gritar por
socorro como uma mocinha indefesa.
― Desculpe-me, mas agi com prudência, se eu não saísse em disparada, talvez
você não aceitasse minha ideia de abandonar a floresta. ― disse Norman
apontando o revólver com o dedo. Forbes compreendeu o sentido da advertência
e escondeu a arma para que ninguém a visse.
― Não concordo, devemos estar juntos em todas as situações. Uma mão lava a
outra.
Os dois prosseguiram rumo ao vilarejo, caminhando calmamente, não parecia que
haviam fugido de algo ou alguém. Forbes ainda recuperava o fôlego, mas disse:
― Devemos estar sempre juntos. Imagine como seria se eu deixasse você
retornar sozinho ao hotel hoje à noite?
Norman continuava quieto, ouvindo a merecida repreensão recebida, bastava
aguardar o sermão.
― Quero que entenda que juntos estamos correndo perigo, imagine agindo
individualmente.

332
― Você está coberto de razão. Reconheço que meu medo falou mais alto. ―
Norman tentou amenizar a situação.
Pararam ao lado da forca abandonada. Forbes deu dois tapas no ombro do amigo
e disse:
― Tudo bem. Vamos continuar com a nossa visita ao vilarejo. Para onde vamos?
Norman sabia que o amigo não ficara feliz com sua atitude impensada, mas tinha
consciência também que tudo já passara e fora resolvido.
― Esqueçamos a floresta. Adianto que não gostaria de comer cookies queimados
da irmã de Kingston. ― disse Norman.
Forbes sorriu da brincadeira. Norman repetiu a risada e tornou o clima o mais
amistoso possível.
― Poderíamos conversar com o xerife, talvez ele seja mais aberto a confidências
em relação aos mistérios que assolam Pitfall. ― disse Forbes.
― Não é má ideia.
― Pensando melhor. Sugiro irmos à taverna e ficarmos estudando o movimento
do vilarejo, como se estivéssemos alheios aos possíveis movimentos dos
habitantes.
Norman não contestou, apenas caminhou junto ao amigo rumo à aconchegante
taverna.
A decisão na cabeça de ambos era unânime, ficar na taverna até a chegada da
gelada noite que viria apenas para assolar o vilarejo e obrigar os forasteiros a
ocupar seus lugares no hotel.
Melhor explicando, o frio seria o responsável por encurralar o gado e obrigá-lo a
seguir para seu derradeiro destino, o matadouro gerenciado por Jim Bobster.

333
28

MAIS UMA NOITE GELADA SE APROXIMA

Sentado na cama e reflexivo, este era o comportamento de Howard na última hora


que passou. Não sabia explicar se os homens que vira na rua eram novos
moradores ou se queriam capturá-lo.
A possibilidade de se tratar de soldados já não passava em sua cabeça, apesar do
capturar também ser uma tarefa de soldado. Dos treinados para maniatar o
inimigo e locomovê-lo até um campo de concentração ou uma área oculta.
Não conseguia entender como era possível sua mãe se manter tranquila com a
presença dos dois estranhos, entretanto, ele já tinha juízo suficiente para saber
que ela não era obrigada a acreditar nas suas historinhas de criança, uma vez que
ela não vira os homens perambulando pelas redondezas.
Eram em tais situações que sentia falta de seu amado pai, seu protetor e
acalentador para todos os momentos, em todos os seus medos. Sua mãe não
deixava a desejar quando o assunto era protegê-lo, mas os braços de seu
saudoso pai pareciam mais fortes do que os de sua mãe.
Seus temores estariam completos quando chegasse a noite e novamente soasse
os gritos do menino da rua de trás. Menino este que nunca vira, mas bastavam
seus temíveis gritos para que ele gelasse as perninhas.
Percebeu apenas pela sombra que sua mãe cruzou o corredor. Chegou a pensar
que não fosse ela ou que a mesma corresse perigo. Sua voz soou baixa e
espremida:
― Mamãe.
Não obteve resposta, se fosse sua mãe, ela deveria estar distante, mas se fosse
alguém desconhecido, estaria de prontidão para invadir seu quarto.
Olhou para seu índio em miniatura que apontava uma flecha incendiária, naquele
momento, rumo à janela.
Se ele pudesse me defender, pensou.
Refletiu mais a fundo sobre sua situação e tomou a coragem que deveria possuir
aquele índio guerreiro, correu rumo à porta e espreitou o corredor que estava
vazio. Nem sinal de sua mãe ou de alguém.
Avistou uma sombra subindo a escada, deveria ser sua mãe.
Vem logo mamãe, pensou.
Ficou feliz quando pôde avistar os cabelos de sua mãe. Ora, soldados não se
camuflam com perucas grandes e sim com jorradas de barro e galhos antes
secretos, logo era mesmo sua mãe.
Apareceu o rosto de quem subia, já o fitando com um sorriso estampado.

334
Howard correu o mais rápido que pôde e foi recebido nos braços da mulher no
topo da escada. Um abraço que espantou seus medos, os gritos do menino da rua
de trás que ficassem para depois.
Tania beijou seu filho no rosto e o agradou:
― Vou preparar uma coisa gostosa para você comer.
― Só para mim?
― Sim querido, só para você.
― Puxa! Eu sou o máximo.
Neste momento passou um filme na cabeça de Tania, quando sua mãe a advertira
com os cuidados de se exagerar nos mimos que poderiam ser a perdição da
criança no futuro, impedindo da “inocente vítima” ter oportunidade de conhecer a
palavra independência em sua essência mais profunda.
― Eu quero mousse de morango. ― solicitou Howard todo feliz.
Tania franziu o cenho como quem taxava o menino de malandrinho que leva
vantagem nas coisas.
― O teu desejo é uma ordem, quer me ajudar a separar os ingredientes?
― Sim. ― o menino ficou mais contente do que nunca.
Tania pegou o filho pelo braço e o puxou querendo descer as escadas com ele
bem pertinho, mas o menino ofereceu resistência e ficou com o semblante sério.
Tania logo estranhou e se agachou para ficar cara a cara com a criança.
― O que você tem?
― Mãe, preciso conversar com você. ― desta vez foi ele quem pegou a mãe pelo
braço e a puxou para o seu quarto.
Sentaram-se na cama, a mãe cuidadosa estava preocupada com o tom de
seriedade do filho. Ela esfregou as bochechas do menino com as mãos,
acariciando-o:
― O que está acontecendo? Parece tão tristonho.
Howard maquinou em quais palavras desferir, mas com propriedade venceu o
receio do que pensaria a mãe:
― Sinto falta do meu pai.
Tania fitou o seu querido firmemente e seus olhos começaram a lacrimejar
demonstrando sua fraqueza no momento em que deveria ser firme e forte nas
suas emoções:
― Eu também sinto falta do teu pai. Dói-me o coração todos os dias, às vezes eu
acho que a vida insiste em ser injusta conosco. Não sei se você tem idade
suficiente para me entender ou ficar engolindo um monte de baboseiras.
― Mãe, eu entendo você. ― o menino disse demonstrando uma tristeza
crescente, mas não chorava, abraçou sua mãe que chorou com mais intensidade.

335
Os olhos de Tania pareciam uma cachoeira voraz que castigava um rio com suas
investidas de água sem fim. O menino passara de vítima para consolador, desatou
o abraço e tornou a encarar sua mãe que chorava com os olhos fechados, como
se estivessem doendo.
― Eu tenho uma ideia, mas não sei se vai gostar. ― disse o menino esperançoso
agindo como uma fortaleza.
Tania apenas afirmou com a cabeça, lentamente, como quem permite que as
palavras sejam ditas, mas continuava de olhos fechados e com as bordas
avermelhadas.
― Acho que eu poderia ter outro pai.
O coração da triste mulher paralisou por um momento e tornou a trabalhar
normalmente, a opinião de seu filho tinha importância, mas existia a dificuldade
em esquecer-se de Stace. A voz chorosa de Tania deu a resposta:
― Não conseguiria conviver com outro homem senão teu pai.
Ela não tinha tanta certeza do que dizia, afinal, momentos felizes foram feitos para
serem vividos e amenizar certas dores e traumas do passado. As mãos do menino
foram envolvidas pelas dela que falou francamente, agora com os olhos abertos o
encarando com um olhar de tristeza e amor:
― Querido, pense bem. Eu sei que sente falta do teu pai, mas, me responda quem
no mundo inteiro pode tomar o lugar dele?
Howard ficou sem resposta, ela prosseguiu:
― Você conhece tão pouco do mundo, estamos em um vilarejo que com certeza
deve ser esquecido pelo restante das pessoas. A mamãe não tem outra alternativa
senão dizer que sou tua mãe e o teu pai, ao menos quero que me imagine e me
enxergue assim.
O garoto sabia que sua mãe tinha razão, ela lhe perguntara sobre quem poderia
fazer um papel de bom pai e ele tinha a impressão de ter a resposta na ponta da
língua, mas não conseguia definir qual era sua dificuldade de assimilar a imagem
de um homem estranho que entraria na sua vida repentinamente. Pensava se
caso algum dos dois estranhos que vira anteriormente fosse seu novo pai, a ideia
não era boa, pois o novo pai poderia querer maltratar sua mãe e bater nele
próprio, Howard Bombay. Quem sabe até fazer mal para a vovózinha. O famoso
lobo que chega na pele de cordeiro e revela seu apetite voraz no momento mais
inesperado.
Chegou à conclusão que alguém somente contribuiria para agravar o sofrimento
de sua mãe.
Tania parecia ler os pensamentos dele e deu um basta no triste assunto:
― Chega de drama, combinado? Vamos fazer o mousse?

336
O menino entendeu a mensagem e saiu em disparada rumo à cozinha, Tania
levantou-se e assistiu com um sorriso estampado e os olhos marejados de
lágrimas a saída da criança.
Não era uma ideia má de toda a presença de um novo pai, mas ela se sentia
como um coelho encurralado por predadores que procura desesperadamente um
norte, uma opção de fuga, mas não encontra, encontra apenas uma barreira de
impedimento capaz de afastar qualquer esperança de se manter vivo ou alheio à
desconfortável situação.

***

― Nada, nenhum vestígio de quem possa ser a misteriosa sombra ou de suas


pegadas. ― dizia o xerife com o semblante de desolado.
Kingston havia ido embora pouco antes do almoço e retornado ao xerifado para ter
uma conversa com o xerife.
Kingston o escutava com as ideias prontas para funcionarem em prol do caso,
dando assistencialismo para o desanimado xerife.
Estavam sentados frente a frente, na mesa do xerifado. Kingston procurava um
meio de reanimar o homem da lei máxima de Pitfall:
― Não fique assim. Em breve teremos pistas acerca do ocorrido.
Frank Silver com semblante caído olhou seu auxiliar temporário:
― Compreenda, é como seu eu fosse o pai de todos os habitantes daqui. Se caso
um pai sentisse um perigo se aproximando de seus filhos, se preocuparia e
tomaria uma postura de combate.
― Você está sendo valente, isso é o que importa. Por acaso, interrogou qual
habitante além do demônio chamado Josias Parker que tanto insiste em pregar
peças nos habitantes?
O xerife tomou um gole do café já esfriado pelo tempo e demora de consumo e
respondeu:
― Aquele velho é um balde de água fria nas costas de qualquer um. Interroguei o
lenhador, os irmãos Blume e o próprio demônio.
― Tem certeza de que nenhum deles aparentou ser suspeito?
― Tenho, e você conhece o meu faro e sabe como é certeiro.
― Sim, talvez o teu faro nunca se deparou com uma situação tão complexa, digo
isto com todo o respeito do mundo.
― Eu sei. Compreendi que não foi à toa que ainda não obtive uma pista do que se
passa por aqui, percebo que eu deveria aposentar minha estrela.
― Não pense assim, para tudo há uma solução.

337
O xerife ficou satisfeito, pois Kingston chegou onde deveria ter chegado, o xerife
rebateu:
― Que bom que pensa assim. Entendo que você possui um entendimento mais
instruído do que meu auxiliar ou até eu mesmo, de modo que gostaria de
questioná-lo sobre como eu deveria agir daqui para frente. Existe alguma medida
que eu possa tomar por mais drástica que seja?
Kingston ficou encabulado com as palavras do xerife e se pôs a raciocinar. Sabia
que não era possuidor de uma instrução superior ao xerife.
― Longe de mim querer estar acima de você, mas se eu pensar em algo não
hesitarei em dizer.
― Fico muito grato e me sentiria feliz por ter uma opinião advinda de ti o quanto
antes.
Kingston se serviu de mais um gole de café e sorriu para o homem da lei:
― Espero que não esteja acreditando em fantasmas.
A réplica do xerife foi rápida e certeira:
― Não sei mais no que acreditar, sinceramente, desejo apenas ter o problema
resolvido. A chave da solução em minhas mãos.
― Não escondo que o vilarejo tem se tornado estranho ultimamente. Faz muito
tempo que não vejo um lobo à noite passeando pela extremidade da floresta.
― Pois é, até nossos amigos uivantes sumiram de vista. ― disse o xerife ainda
desanimado.
Kingston estava sentado na cadeira do xerife e este na cadeira reservada para os
interrogados. O auxiliar provisório fitou a parte da floresta possível de se ver pelo
seu ângulo e começou a raciocinar intensamente, chamando assim a atenção do
xerife que se virou para fitar na mesma direção:
― Não me diga que viu algo.
― Não, estive apenas pensando que estamos envolvidos por imensidões de
árvores e percebo o quanto somos frágeis, sujeitos à natureza.
O xerife não gostava das filosofias do outro e se virou para encará-lo:
― Não estou preocupado com a floresta.
Kingston tornou a olhar o xerife, retomou ao ambiente xerifado:
― Imagine se as árvores possuíssem vida própria, digo, eu sei que elas possuem,
mas imagine se elas pudessem falar ou andar.
― Ora, essa conversa está me cheirando a medo.
Kingston engasgou com as palavras do xerife que percebeu seu exagero e tentou
remediar a situação:
― Desculpe-me, expressei-me mal, não queria destratar você. A culpa não é tua
dos pepinos que eu ainda tenho que resolver.

338
― Não te preocupes, eu também estou abatido com os problemas de Pitfall.
O xerife respirou fundo e pegou sua caneta de estimação começando a chocar
sua ponta seguidamente contra a mesa.
― Pelo visto teremos uma noite fria pela frente. Não gostaria, mas terei de tomar
um dos meus calmantes.
― Vai pernoitar no xerifado?
― Sim, não posso dormir cedo, mas nunca fui de ficar rondando o vilarejo,
principalmente em noite fria e quem sabe chuvosa.
― Se precisar de mim não hesite em falar. Estarei com meu rifle de prontidão para
vir abater qualquer sombra que se engraçar pela porta do xerifado.
O xerife sorriu pela primeira vez depois de muitas horas e disse:
― Não te preocupes, não acho que será preciso. A propósito, os irmãos Blume
estão demorando em chegar, ficaram de trocar a dobradiça da porta, fazem
tarefas semelhantes com a velocidade da luz.
― Mas, caso se sentiram ofendidos pela tua visita intimadora, podem estar
tramando não vir aqui.
― Tem razão, mas acredito que pelo caráter do nome Blume, sim, eles virão.
― Pois bem, xerife. Vou indo, mas se caso precisar de mim não hesite em
chamar. Não digo que poderei pernoitar no xerifado, pois o senhor sabe muito bem
como é minha irmã, dependente às vezes.
― Não será preciso, pode dormir tranquilo que eu asseguro minha estrela do
peito.
Kingston deu um aperto de mão no xerife e se retirou.
Frank Silver mergulhou-se em possibilidades. Dissera que assegurava sua estrela
dourada, mas julgava se encontrar numa situação que exigia mais do que
coragem, uma arma e uma cabeça inteligente. Exigia sim, cautela por não saber
com o que se estava lidando, raciocínio para se considerar as alternativas mais
improváveis e muita perspicácia para afastar os rumores negativos.
Cada um esboçava sua opinião, uns acreditavam em fantasmas, bobagem, ele
não acreditava em fantasmas muito menos esboçava sua opinião, apenas queria
poder colocar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilo. Mergulhar em um sono
que há muito tempo não sentia ou sonhava existir, um sono que fora espantado
desde quando as queixas sobre a luz verde começaram a rolar entre os
habitantes. Agora, existia um novo problema, a gigantesca sombra, sombra que
ele não sabia definir se era capaz de abraçar o xerifado a fim de esmagá-lo com
quem quer que esteja dentro.
Afinal, sua estrela dourada precisava reluzir glória e brilhar o esplendor dos
grandes heróis que não existiam e que com certeza nunca haveriam de existir.

339
***

A noite se aproximava. O frio castigava as madeiras das casas, seria possível ficar
grudado ao tocar as paredes das habitações do lado de fora de tão gelada que se
encontrava suas estruturas.
As chaminés trabalhavam a todo o vapor, dissipando as fumaças das lareiras que
eram verdadeiros vulcões em erupção, repletos de brasas vivas.
Um lar abençoado. Assim poderia ser descrito o lar dos Harter após os conselhos
do padre.
A bofetada que Lionel Harter tomara de sua mulher no rosto não fora suficiente
para mexer com seus sentimentos, magoando-o.
Ela preparava um jantar caprichado, como se estivesse querendo se reconciliar.
Tudo melhorara na vida dos Harter, exceto a raiva que Lionel trazia de seu genro,
esta somente se agravara após a fatídica missa daquela manhã.
Na cabeça de Harter, todos os males de sua vida eram causados pela presença
do genro, um verdadeiro responsável por atrair maldições.
Tudo porque ele não tinha a capacidade de instruir o pobre menino, Sonny
Malone, a um futuro digno dos descendentes do patriarca responsável Lionel
Harter.
Audrey estava batendo uma massa vistosa na mesa de tábua da cozinha, afirmara
se tratar de uma surpresa, talvez um pão recheado com carne que Lionel amava
degustar ao lado da lareira quentinha. Ela gostaria de ter convidado o padre, mas
naquela ocasião julgou ser melhor apenas um jantar à luz de velas entre ela e o
marido.
Audrey praticamente obrigara o marido a tomar um banho e não ir à cozinha
enquanto a comida estivesse sendo preparada. Ele, não deixou por menos e após
o banho foi até a sala acender a lareira.
Sentia um montante de dores na coluna, não sabia se era herança dos puxados
trabalhos do dia anterior na igreja ou se aquele mal fosse causado por uma praga
bem desferida e certeira do genro.
Audrey não conseguia compreender o motivo de a raiva do marido não se dissipar
como uma fumaça, por mais indelével que fosse. Ela passara por um apuro
enquanto o marido tomava banho, o gás do botijão acabou enquanto cozinhava
um molho e como não queria estragar a surpresa “fajuta” foi preciso arregaçar as
mangas e trocar o botijão vazio pelo cheio com as próprias mãos, atitude que não
tomava há muitos anos, pois a tarefa era de responsabilidade do marido. Ela ficara
surpresa ao conseguir trocar o botijão, julgava nem lembrar como fazê-lo.

340
Sua surpresa era “fajuta”, pois o molho tradicional de carne que preparava para o
recheio do pão expelia um odor notório que revelava o segredo. Mas tudo bem,
valia pelo espírito esportivo, pelo fair-play da reconciliação.
Infelizmente, o seu velho e ela mesma não pensavam tanto em relação sexual,
uma criança de colo teria a capacidade de contar nos dedos os raros hormônios
sexuais do casal.
Lionel percebeu que após acender a lareira, as lentes de seus óculos começaram
a embaçar, era o ar quente expelido pela lareira em contato com o ar gelado do
restante do mundo.
Retirou os óculos e pegou um lenço do bolso da calça, lenço compadre de todas
as horas que poderia ser usado inclusive para escarrar.
Usou-o para desembaçar as lentes, tornou-o no bolso e colocou os óculos
novamente.
Afastou-se três metros da lareira que em pouco tempo deixaria todo o ambiente
aconchegante.
Não era necessário ficar muito próximo das chamas, poderia ser perigoso para um
velho de sua idade que poderia sofrer desmaios, normais desmaios.
Foi até uma violeta que estava plantada em um vaso ao lado da porta que dava
acesso à rua e cheirou seu aroma.
A casa era perfumada, devido à grande quantidade de plantas do andar de baixo.
Ele prosseguia refletindo, e o cheiro bom da violeta estimulava seus pensamentos.
Não gostava de magoar sua única filha, mas o asco em relação ao genro falava
mais alto e ele precisava estar em constante ataque para demonstrar que com ele
não se brincava.
A culpa de Brenda ter se casado com um homem inútil fora única e
exclusivamente de Harter, afinal, qual homem poderia ser exemplo naquela merda
de vilarejo?
A ideia de se mudar para Pitfall foi dele próprio.
Existia um homem digno do amor de Brenda, sim, existia. Este homem era o
padre Alvarez Leone, mas ele não podia se casar e contrariar as leis da mãe
igreja.
Harter preferia morrer à espada a contrariar as leis de sua fé, sua firme convicção.
Uma voz idosa soou da cozinha, era a Audrey:
― Querido, falta assar a surpresa.
― Não vejo a hora de comer, estou faminto. ― sua resposta deveria ter
estampado um sorriso no rosto da mulher.
Harter não via a hora de poder desabar em sua cama e ter uma longa noite de
sono. Seus pensamentos o fizeram bocejar e esticar o tronco com preguiça.

341
A cama tanto lhe dava conforto, bastava deitar na cama e Audrey apagar a luz
para ele desmaiar dormido, ela que fizesse suas rezas e as dele também, por que
não?
Estava tudo bem até o momento em que ele lembrou-se da noite passada quando
esteve na casa de sua filha e fitando a floresta. Não tinha certeza, mas vira algo
que não gostava de comentar, uma luz verde entre as árvores parecia flutuar bem
distante. Houvera mentido quando afirmou ter visto uma grande sombra, para
evitar questionamento sobre a temida de todos.
Considerava-se um homem medroso, não podia ver algo fora do lugar que seria
um sério motivo para deixá-lo assustado como na manhã do dia anterior quando
fora arrebatado pelas estranhas sensações nos fundos escuros da igreja.
O padre bem que poderia colocar uma luz naquele corredor dos fundos da igreja.
Estava ficando impaciente com os minutos que não passavam, precisava mesmo
comer para cair em seu leito conjugal, seu berço esplêndido.
Sentia inclusive o medo se agravando com o passar do tempo, não gostaria de
morar na rua da casa de sua filha que tinha vista para a floresta. Morar na rua
atrás da principal e sem vista para a floresta era motivo de fazê-lo sentir-se
protegido, como se estivesse em uma guerra, em um batalhão de soldados, mas
envolvido por vários deles.
Aproximou-se da lareira no auge de sua impaciência e começou a esfregar as
mãos para se aquecer melhor. Novamente soou a voz de sua mulher:
― Querido, fiz a massa da surpresa fina para que asse rápido e jantemos o
quanto antes.
Música para seus ouvidos, ao menos algo de bom naquela ingrata espera.
― Não se preocupe, estou tão quentinho que nem penso em comer depressa.
― Você não estava com fome? ― a voz soou estranhando.
― Afirmo que estou com fome, mas o cheiro bom do forno a está saciando e
espantando.
Não sabia qual foi a reação de Audrey após sua engenhosa colocação, mas
gostaria de poder detonar seu prato favorito o quanto antes.
Foi até a janela e estudou a rua, havia anoitecido e a neblina começava a passear
pelo vilarejo.
Puxou uma cadeira para perto da lareira e sentou-se confortavelmente de frente
para o fogaréu. Estava exaurido, começou a gozar do prazer de descansar que
sentia apenas em sua cama, no quarto escuro.
Seus pensamentos foram passeando em um ritmo mais lento. Sabia que o jantar
não tardaria, mas não havia problema em dar uma cochilada, afinal, não tinha o
que fazer.
Apenas esperar e esperar o jantar.
342
A porta da frente estava destrancada, dormiu sem se preocupar caso alguém
fosse entrar, estava com a razão, pois o vilarejo deveria oferecer sua tranquilidade
corriqueira, como sempre fora.
Considerável tranquilidade que sua preocupação era apenas em como atacar o
genro com palavras.
Seria desperto pela sua mulher, que o chamaria para o jantar, mas enquanto
dormia estava omisso ao mundo e não percebeu que alguém espreitava através
da fresta oferecida pela cortina da janela.

343
29

SURGE UMA LUZ

Brad Fillman terminava de anotar o pedido de Norman e Forbes quando três


homens empurraram a porta de vai e vem da taverna. Os irmãos Blume e Parker
acabavam de chegar para a jogatina da noite.
A primeira reação de Parker foi empurrar a mesa de jogos para mais perto da
lareira.
A mesa exibia círculos desenhados justamente para servirem como marcadores
de pontos em jogos. Bastava ter um giz e pintar a quantidade de círculos
desejados.
Parker não conseguia trapacear pintando círculos, pois seria impossível de os
presentes não perceberem e se esquecerem da quantidade verdadeira de círculos
antes marcados.
Os três se acomodaram à mesa, faltava o lenhador.
Norman e Forbes não deixavam de assistir os idosos viciados em jogos, era uma
situação cômica ver aqueles homens a ponto de se matarem por um tento a mais.
Mas, a segunda figura participante das rixas estava ausente e talvez a noite para
os jogadores fosse de tédio.
― Que bom que teremos show hoje à noite. ― disse Forbes portando um sorriso
alegre.
Norman julgava que as cenas dos jogos muito bem discutidos eram os únicos
fatos não obscuros de Pitfall.
Ora, ao menos um momento para relaxar.
― Eles me divertem, mas, cadê o lenhador? ― indagou Norman.
― Lá está ele. ― apontou Forbes no mesmo momento em que o corpulento
adentrava a área da taverna.
― A diversão está garantida. ― disse Norman, sorrindo.
Parker fitou o homem que chegava e percebeu que o mesmo carregava um
semblante muito sério, não conseguiu se segurar e prorrompeu em risos. O
lenhador parecia estar em um momento de ira contida e se segurava como podia,
fazendo o possível e o impossível para não atacar o gozador indigesto.
Horace puxou uma cadeira e sentou-se na posição de frente para Parker e de
costas para a porta. Forbes cutucou Norman:
― Percebeu algo de diferente no tal do Parker?
Norman respondeu de prontidão:
― Não está fumando um daqueles charutos.

344
― Confesso que não havia notado, mas não me referia a isso, ele é o único que
não se encontra devidamente agasalhado, está vestido com o macacão de
sempre.
― Ele não deve maquinar bem das ideias. ― disse Norman sorrindo.
Forbes fitou Parker e acenou, aumentando seu tom de voz:
― Psiu.
A atitude de Forbes chamou a atenção dos quatro jogadores, Parker embaralhava
as cartas e fitou Forbes que perguntou:
― Você não sente frio ou não sabe onde pode comprar algum casaco?
Parker pareceu levar na esportiva, respondeu de modo meio amistoso, mas com
uma pontada de fúria:
― Vou retirar o teu couro daqui a pouco e fazer uma bela coleção de casacos.
Seu chupeta de baleia! Dá até para imaginar o nome da minha marca, “JParker’s
extreme fat collection”.
Houve um momento de silêncio. Forbes começou a rir sem graça e olhou para
Norman a fim de ver sua reação, o amigo o acompanhou na risada para não
deixar o clima pesado. Na outra mesa, todos riam, exceto o lenhador que
mantinha o semblante de guerra e não tirava os olhos de Parker, que por sua vez,
não deixava se intimidar e prosseguia em embaralhar as cartas fingindo não notar
a fúria do brutamonte.
Forbes rebateu a cômica ameaça:
― Olha que para retirar meu couro é preciso ser um homem muito forte.
Norman decidiu admoestar o companheiro antes que a resposta de Parker viesse:
― Não arrume confusão, finja que não estamos aqui.
― Não gasto saliva com energúmenos. ― Parker rebatia sem tirar os olhos das
cartas, ao mesmo tempo em que Norman dava conselhos ao amigo.
Forbes consentiu à opinião do amigo e decidiu se concentrar apenas no jantar que
deveria estar chegando, pois metade do corpo do taverneiro surgiu na escada, ele
vinha do segundo andar trazendo uma bandeja.
― Ele não aceita ficar por baixo. ― balbuciou Forbes.
― Não se meta em confusão, ele parece ser mais perturbado do que o próprio
Bobster.
― Tem razão, eu não deveria ter puxado assunto com ele.
― Agora está tudo bem, ele está namorando as cartas.
Fillman chegou com a bandeja e serviu os dois pratos. Os clientes não pediram
sucos devido ao frio, mas solicitaram um café para depois do jantar.
O prato de Forbes trazia o que pedira no almoço, um pouco do picadinho de
carne. O prato especial da noite que o taverneiro prometera era um macarrão com

345
molho de atum, o peixe preferido de Norman que solicitou apenas deste macarrão,
mas em grande quantidade. Soou a primeira gritaria na mesa de jogos. Parker
levantou-se e jogou uma carta do baralho à mesa, bem em frente ao lenhador que
olhava a cena boquiaberto, à beira de um ataque apoplético.
― Não vou vistoriar o teu macacão fedido, mas tenho certeza que você traz
sempre uma cartinha escondida na manga.
Parker tornou a sentar-se e gargalhou das palavras do lenhador, os irmãos Blume
também se divertiam com a cara de indignado do perdedor.
― Você deveria ser mais humilde e aceitar perder. ― retrucou Parker.
― Não vou arrebentar a tua cara, pois percebo que alguém já fez isto hoje, a tua
dentadura parece estar fora do lugar.
Parker levantou-se e gritou a plenos pulmões dando um forte soco na mesa:
― Eu não uso dentadura, seu maldito!
O taverneiro que subira para ir colocando o café na vasilha adequada, desceu
para ver o que acontecia. Bastaria que o lenhador se mantivesse calmo para evitar
uma briga.
― Você parece mais estressado do que nos dias normais. O que foi que
aconteceu?
― Foi traído pelo namorado? ― emendou o lenhador.
Parker deu outro soco na mesa que não quebrou por ser feita de madeira grossa e
gritou com mais raiva:
― Você nunca se casou com uma mulher e deve ser o garoto viadinho dos
tempos de escola!
― Acalma-te Parker, não vou mandar você pagar o estrago que fez na minha
porta hoje pela manhã, e também não pretendo trucidar a tua dentadura com um
dos meus socos mais leves.
Parker pareceu perceber que não seria bom sair na mão com o lenhador e decidiu
sentar, estava mais calmo. Ao menos uma vez na vida raciocinou e permitiu que a
razão falasse mais alto.
― Não tenho medo de você. Já recebeu o castigo pela manhã e ficou bem
avisado do que eu sou capaz.
Horace Singer abaixou a cabeça e fitou o chão, inconformado com o senso de
justiça que o outro julgava possuir. Era preciso desvencilhar a conversa, pois
Josias Parker não aceitava que os outros dessem a última palavra, nem mesmo se
estivesse com a guilhotina pronta para decapitá-lo.
― Você ganhou, parabéns. Embaralhe as cartas e vamos à próxima rodada. ―
disse o lenhador irônico, tornando a fitar o implacável justiceiro aos seus próprios
olhos.

346
Parker obedeceu não por um momento de submissão, mas porque desejava
ganhar a próxima rodada e calar a boca do adversário. Distribuiu as cartas e deu
uma gargalhada quando viu as suas, era incrível, mas mesmo sem trapacear por
baixo dos panos tinha sorte de dar inveja nos jogos.
O taverneiro percebeu que os ânimos se acalmaram e retornou ao segundo andar.
Norman e Forbes continuavam saboreando o talento das mãos da desconhecida
mulher do taverneiro.
― Afinal, o que você viu ou sentiu quando fomos à floresta? ― indagou Forbes
não engolindo a afirmação que o outro fizera na floresta sobre ter estranhas
sensações.
Para ele, Norman queria apenas se retirar da floresta por medo de fato, ou tinha
pressa em retornar ao vilarejo devido uma espécie de claustrofobia.
― Acredito que quando você era criança e estave sozinho em casa, já teve a
sensação de alguém estar se aproximando. Alguém vindo de fora ou alguém que
houvesse retornado para casa e você não sabia até então, é como se fosse um
sentido que avisa a presença de outrem por perto. Foi exatamente esta sensação
que me acometeu.
Forbes sabia que deveria dar crédito às palavras do amigo, afinal tudo que
estivesse relacionado com aquele vilarejo poderia emanar uma sensação
desconfortável.
Existia a explicação lógica de dizer que a impressão deixada pelo hotel, o local
onde os dois conheceram em primeiro lugar no vilarejo houvesse contagiado o
restante do mundo ao redor, deixando a temível certeza de que tudo era como o
hotel e todas as pessoas parecidas com o seu velho dono.
O taverneiro desceu e se encaminhou para a mesa dos dois, trazia uma garrafa de
café que parecia estar cheia.
― Assim eu não durmo à noite, temos café suficiente para um batalhão inteiro. ―
reclamou Forbes, brincando com o anfitrião.
― Acontece meus amigos, que não existe a palavra miséria em meu dicionário. ―
retrucou Fillman, sempre com o olhar altivo, no bom sentido da conversa.
― Faz bem, e a noite está tão gelada que uma dose gigante de café quentinho
será boa. ― disse Norman com sinceridade.
Fillman sorriu de satisfação e foi interferido por uma voz da outra mesa, se tratava
do lenhador feliz por ter ganhado a rodada que findou:
― Por favor, traga uma garrafa de vodca, cheia e lacrada. Vou embebedar o
merda do Parker.
― Eu sempre disse que você gostava de mim. ― disse Parker gargalhando e
começando a tossir.

347
O taverneiro se retirou satisfeito buscar o pedido, afinal uma garrafa de vodca
vendida lhe trazia alguns lucros significativos.
― Você nunca perdeu ou perderá como hoje, Parker. ― disse o lenhador tentando
intimidar o outro amistosamente.
Os irmãos Blume permaneciam sem abrir a boca, abriam apenas para rir. Foram
educados em um orfanato que prezava o descansar da alma em eternas tardes
silenciosas e o costume pegara, para eles, falar impedia que dores de cabeça se
manifestassem.
Forbes bebia moderadamente do café, Norman ao contrário, bebia vorazmente.
― E então, será necessário mantermos vigília na estadia de hoje no hotel? ―
indagou Forbes como quem já sabia a resposta que receberia.
― Sim, principalmente se for verdade que existe uma criatura vivendo no hotel.
Apenas não invente de levar a garrafa de café e tomar a noite toda para se manter
desperto.
Forbes achou graça da colocação do amigo.
― Você está certo, mas duvido que um quilo inteiro de cafeína na corrente
sanguínea possa desbancar o efeito voraz de um sonífero disperso por pavios de
velas em combustão.
― Nada de velas hoje. ― disse Norman.
― Algo ainda me preocupa, hoje ficou provado que existe a possibilidade de
habitar alguém no hotel, além de Bobster.
Norman chegou a uma conclusão que o amigo ainda não chegara ou não queria
comentar:
― Mas, se caso existe outra pessoa ou criatura no hotel, alguém deve saber de
algo.
― Perfeito raciocínio, vamos indagar o taverneiro no momento de acertar a conta.
Mas, se prepare para a resposta, pois caso for que não existe outra pessoa no
hotel além de Bobster, estamos lidando com um mistério mais amplo do que se
possa imaginar e eu começarei a acreditar que o tal filhote de malvado existe de
verdade. E tem mais...
Forbes fez uma pausa para tossir e prosseguiu:
― Se o filhote de malvado existe, fica provado que existem malvados pela floresta
e que o assunto trata de um ser vivo que não conhecíamos antes e que nunca
sonhamos ou tivemos o prazeroso pesadelo de conhecer.
Norman percebeu um arrepio na espinha, estavam tão descontraídos na taverna
que havia se esquecido da real situação que enfrentavam. Sentia como se fosse
filho de um pai que insistia em querer castigá-lo e persegui-lo por nada e que
fosse necessário voltar para casa todas as noites independentemente do caráter
do pai, enfrentando-o cara a cara, frente a frente.

348
O taverneiro terminou de servir a vodca e Forbes o chamou com um aceno de
mão, ele logo se aproximou e não hesitou em atender o cliente:
― Desejam algo mais?
― A conta. ― respondeu Forbes, formulando a pergunta que interessava.
― Vamos ver. ― o taverneiro apalpou um bolso do avental em busca dos pedidos
dos clientes.
― São dez dólares.
Norman já estava com a nota na mão, estendida para Fillman que a abraçou e
guardou no bolso:
― Obrigado, se caso mudarem de ideia e desejarem degustar um pedaço de
sobremesa basta chamar.
O taverneiro ia se virando rumo ao balcão, Forbes o fez se voltar:
― Desejo algo mais. Por favor.
Fillman se aproximou:
― Sobremesa?
― Meu amigo demonstrou tanta perspicácia em te pagar que não foi possível
entrar no assunto. ― disse Forbes como se estivesse criticando Norman.
Brad Fillman estranhou as palavras ouvidas, estava ali apenas para atender os
clientes, qual assunto seria?
Precisou improvisar para mostrar cortesia:
― A comida, havia algo de errado com a comida ou meus serviços?
― Não, ainda estou surpreso com a nobre atitude de meu companheiro de hotel
em pagar minha conta sem consentimento, mas vamos ao que interessa. Tenha a
bondade de me responder, mora mais alguém no hotel além de Jim Bobster?
Fillman não demonstrou surpresa:
― Por qual motivo me pergunta, viu mais alguém no hotel?
― Vimos sim. ― Forbes improvisou uma mentira.
― Deve ser algum forasteiro recém-chegado, indiquem para ele a minha taverna,
caso contrário morrerá de fome comendo besteiras como biscoitos de pacote
comprados em postos de conveniência. Nada como uma comida fresquinha e
nutritiva.
Forbes já estudava o comportamento de Norman que também estranhou a
resposta.
― O forasteiro deve estar com fome após uma longa peripécia pelas estradas
desertas dos arredores de Pitfall.― prosseguiu Fillman.
― Como assim? Eu havia perguntado se mora mais alguém no hotel e você diz
que pode ser um forasteiro como eu, o que você quer dizer com isso?
― Quero dizer que se viram alguém no hotel, esse alguém é um forasteiro.

349
― Compreendi, então...
― Sim, Bobster é o único morador do hotel, ele e seus hóspedes temporários.
Forbes e Norman se entreolharam.
― Desejam mais alguma coisa?
― Foi só, gratos pela generosidade e benevolência. ― respondeu Forbes.
Fillman se retirou. Forbes logo disse:
― Ouvimos as palavras de um homem que eu acredito que minta apenas em
situações embaraçosas.
― Estamos em uma situação embaraçosa, ele pode estar mentindo. ― contestou
Norman.
― Mas tomemos suas palavras como verdade e analisemos a situação, tivemos
vestígio da presença de outrem além de Bobster no hotel. Então, continuamos
sem saber com o que estamos lidando, precisaremos da minha arma pronta para
disparar.
Ambos estavam pasmos, com uma pontada de medo. Antes tinham um pouco de
receio do estranho comportamento do velho do hotel, naquele momento a
sensação era de medo, de se estar indefeso caso a criatura que possivelmente
existisse os encontrasse.
Naquele momento, Forbes entendia e não duvidava mais da sinceridade do amigo
quando este dissera sentir alguém se aproximando pelo chão barrento da floresta
e sua vegetação úmida, poderia se tratar de um dos malvados.
Uma solução para o mistério se desenhava em sua cabeça, Bobster mantinha o
filhote de malvado cativo e os malvados vinham à noite a procura de seu membro,
seu filhote, no intuito de resgatá-lo. Outra situação se encaixava, o velho do hotel
exigia que seus hóspedes não saíssem de seus quartos à meia-noite a fim de não
descobrirem sua criatura de estimação e o hotel deveria ser trancado para evitar a
invasão dos malvados.
Mas, o que a luz verde tinha em relação aos malvados?
A competição e os gritos continuavam na mesa de jogos, os irmãos Blume
estavam mais à vontade e passaram a falar, talvez fosse o efeito da vodca.
Havia um ponto positivo caso fossem para seus aposentos do hotel naquele
momento, poderiam flagrar uma cena aterrorizante. Forbes estava cônscio de que
a ideia não era má, bastava convencer o amigo, não haveria tempo para
descrever suas reflexões.
Norman parecia estar pensativo também, Forbes interrompeu seus pensamentos:
― Depois eu te explico, vamos regressar rapidamente ao hotel.
Norman ficou assustado, estaria acontecendo algo de ruim na taverna para que o
amigo desejasse fugir? Mas, não houve como reagir, Forbes havia se levantado e

350
já puxava o braço de Norman que não conseguiu oferecer resistência e seguiu o
outro.
Rapidamente estavam na rua, rumo ao hotel, andavam depressa. A névoa
escondia a visão da floresta quase que cem por cento.
― O que foi que te deu? ― indagou Norman estranhando.
Forbes, genial a todos os momentos respondeu:
― Você não teve a sensação de que alguém se aproximava na floresta? Então,
senti o mesmo na taverna, quando estivermos em nossos aposentos eu te explico
melhor. Apenas se mantenha discreto no hotel, finja que somos os hóspedes
bonzinhos que estão apenas regressando.
Chegaram de frente para o hotel, a porta principal estava entreaberta, mas era
possível notar que a única luminosidade era a da lareira. Forbes apalpou a arma e
puxou a pesada porta a fim de abri-la.
Entraram.
Bobster estava sentado em sua cadeira de balanço, perto do quadro da velha
caolha, assistia a lareira que crepitava intensamente. Voltou seu olhar para os que
chegavam, estava com um semblante altivo, de orgulho e trazia uma risadinha
irônica:
― Ele está esperando. ― disse Bobster.
As pernas de Norman estavam quase paralisadas, apesar de ele não
compreender o que o anfitrião quis dizer. Forbes sentia apenas medo.
― Ele escutou quando vocês o mencionaram. ― Bobster dizia com uma voz
parecida com a dos pais que se cansaram de dar uma lição sobre algo aos seus
filhos, mas que a teimosia prevaleceu.
Os dois hóspedes começaram a tomar o rumo da escada que levava aos quartos,
não tiravam os olhos da fantasmagórica cena que era Bobster em sua cadeira de
balanço, seus olhos estavam com as bordas um pouco arroxeadas, como se ele
não houvesse dormido nas últimas noites ou estivesse simplesmente... morto.
― Ele odeia que façam isso, ele odeia que o mencionem!
Os hóspedes paralisaram de vez.
― Subam, ele espera por vocês no aposento número cinco, ele fez questão de
pedir que a porta ficasse destrancada para que vocês não tivessem dificuldades
em entrar no quarto ou pensassem duas vezes antes fugir. Apesar de que com
pernas congeladas e mãos trêmulas vocês não conseguiriam manusear uma
chave e destrancar a porta, ele é muito esperto mesmo, sabe muito bem o que é o
medo, pois ele mete medo!
Segundo as palavras de Bobster, o filhote de malvado estava no quarto de
Norman!

351
Os dois hóspedes criaram coragem para prosseguir, Forbes ia à frente com a
arma abraçada pela mão oculta em seu casaco, sentia medo, mas apesar de tudo
deveria estar pronto para atirar e estraçalhar crânios inumanos.
Estavam subindo, Forbes olhava à frente, nos degraus e Norman não tirava os
olhos do velho do hotel que assistia a subida dos pobres hóspedes. Pareciam dois
policiais dando cobertura um para o outro, cada um responsável por guardar uma
direção.
― Vocês não deveriam ter mencionado ele. ― a face de Bobster exibia o
sentimento de desprezo, asco.
Chegaram ao topo da escada, o foco era o corredor escuro. Bobster já não
significava preocupação naquele momento, era apenas um porta-voz da ameaça,
o som de uma trombeta indicando uma chegada.
Prosseguiram lentamente, pois o corredor estava mergulhado na escuridão, mas
haviam demorado a perceber que existia uma luminosidade quase no fim do
corredor.
A luminosidade vinha do quarto de Norman, a porta estava entreaberta com
apenas uma pequena fresta. Eles continuavam avançando lentamente, lado a
lado. Forbes pronto para retirar a arma e disparar.
O mais espantoso era que a luminosidade bruxuleava e dava um aspecto de terror
à cena.
Era o momento de maior tensão e medo para os forasteiros. O filhote de malvado
deveria estar no quarto de Norman enxergando à luz de velas. Ele poderia estar
deitado na cama de Norman.
Pobre do hóspede, seus pertences estavam todos à mercê da criatura. Chegaram
então ao lado da porta do quarto de Forbes, este tirou a chave do bolso, entregou
ao outro e cochichou:
― Abra com cautela que eu te dou cobertura, prometo não tirar meus olhos da
porta do teu “ex-recinto”. ― falava como um camponês da era feudal que
lamentasse a tomada de um reino por outro rei opressor.
Mas, as mãos de Norman estavam trêmulas, quase congeladas. O amigo falara
algo sobre ex-recinto, ele queria dizer que o quarto não lhe pertencia mais, mas
sim a uma criatura desconhecida, invasora. Às vezes, a sinceridade de Forbes era
tamanha que chegava a ser engraçado ouvir suas palavras.
Ex-recinto. Total veracidade.
Norman conseguiu enfiar a haste da chave na maçaneta e girou devagar a porta,
mas não conseguiu impedir que ela rangesse ao abrir. Forbes o empurrou com
cuidado para dentro do quarto e entrou fechando a porta atrás de si. Demorou em
acender a luz, daria tempo de uma criatura veloz invadir o quarto. Norman trancou
rapidamente a porta após o outro acender a luz.

352
― Não aguento mais ficar aqui. Estou com muito medo, sinceramente. ― disse
Norman.
― Cheguei à conclusão que devo te dar razão, afinal não estamos com medo de
sombras que passeiam pelo hotel e são inofensivas na verdade, podemos estar
lidando com uma criatura educada para devorar carne humana. Temo pela nossa
integridade física. ― Forbes desabafou.
Forbes colocou a mão direita no ombro do amigo e o encarou nos olhos:
― Percebe a importância de não podermos dormir? É a nossa vida que está em
jogo, nunca passei por situação semelhante, preferiria ser sequestrado por uma
corja de bandidos a estar nesta situação.
Norman nada dizia, queria se mandar o quanto antes. Forbes prosseguiu:
― É como se não conseguíssemos sair daqui, como se algo não quisesse,
estamos bancando os corajosos, mas já estamos fazendo hora extra em Pitfall.
Sabe, eu sinto a necessidade de se mandar e acionar a polícia a fim de que façam
uma busca neste hotel. Na verdade não estamos sendo corajosos, é difícil admitir,
mas...
A voz assustada e sincera de Forbes ao dizer as últimas palavras somadas ao
silêncio do hotel estava agravando o medo de Norman.
― É difícil admitir, mas não estamos aqui por vontade própria, inconscientemente
já queríamos ter ido embora, porém não estamos conseguindo.
― Como assim? Basta descer, pegar o carro e se mandar.
― Você aceitaria ir embora sem os teus pertences?
― Pela minha vida sim. Mas, a chave do meu carro está na minha mala que está
em poder do filhote de malvado.
― Poderíamos aproveitar o meu carro e sumir de vista, a polícia que venha
resgatar o teu num outro dia.
Norman sabia que o amigo não falava aquilo por mal, a situação dos dois era caso
de se encontrar um meio de sobreviver. Forbes sentou-se na cama de frente para
a porta e depositou a arma no colchão.
― Pode tomar banho que eu fico de guarda, apesar do frio eu vou querer me
lavar, suo demais quando fico tenso.
Norman consentiu e foi até o amigo dar-lhe um aperto de mão:
― Eu não sei como tudo isso vai acabar, mas vivo ou morto eu vou até o fim.
Forbes entendeu a mensagem e sorriu, sentia-se forte com aquelas palavras,
sabia que os dois juntos em posição de combate eram imbatíveis, ao menos até
toparem com algo desconhecido. Algo que deveria ser portador de enormes
braços e que provavelmente corria com uma velocidade espantosa.

353
Chegou a temida noite de se encontrar com o filhote de malvado e este encontro
nunca seria esquecido.
Isto é, se caso os destemidos forasteiros conseguissem sair vivos de Pitfall.
Esta dúvida pendia na cabeça dos dois, cabeças abaladas pelas palavras de
Bobster e pela luminosidade bruxuleante que advinha do quarto ao lado.
Norman calculava se a sombra que espreitava uma mesa de banquete em um dos
quadros do corredor fosse do filhote de malvado. Mas, a mesa desenhada estava
em um ambiente que não era do hotel. O ambiente desenhado parecia uma
cozinha grande de uma fazenda, talvez.
Que bobagem seguir seu raciocínio, quadros não poderiam trazer respostas para
o complexo enigma que enfrentavam.
Precisavam apenas de uma coisa, conseguir sair vivos de Pitfall e a solução para
este caso, em como fugir, parecia ser o enigma mais difícil de todos. Um enigma
cuja resposta tinha começo, mas aparentava não ter meio e muito menos um fim.

354
30

MADRUGADA CONTURBADA, A MISTERIOSA LUZ VERDE E UM CLARÃO QUE


ESPANTA

O quarto estava escuro quando Lionel Harter despertou na madrugada. A reza de


Audrey já deveria ter acabado há muito tempo. Ele dormira no momento em que a
mulher se colocara genuflexa a orar.
Ele estava assustado com o silêncio da madrugada. Não se recordava da última
vez que despertou antes do momento certo de se levantar pela manhã.
Nem mesmo se lembrava de como era o silêncio dos que dormiam. Colocou seu
chinelo e desceu a escada tomando o cuidado necessário para não despertar sua
pobre mulher, foi direto à cozinha. Vasculhou a geladeira e encontrou um copo de
leite que havia abandonado pela manhã à mesa e que a carinhosa Audrey tivera o
cuidado de guardar para uma próxima vez, um breve café da manhã.
O frio estava de espantar a alma. Aquele inverno seria rigoroso e não iria perdoar
os desavisados e desacolhidos moradores de rua.
Consultou o relógio de parede e constatou que passava um pouco da uma e meia.
O relógio era de madeira e tinha o formato de uma casinha de pássaro, só faltava
um morador para a casinha.
Permanecia assustado, com os pêlos da face eriçados. Tentou recordar se tivera
um pesadelo, mas viu apenas um branco, não deveria ter sonhado ou tido um
pesadelo. Bebeu o primeiro gole de leite do copo geladíssimo e isto fez seus
dentes doerem na raiz, quase cuspiu o leite ao chão.
Droga, não pensara em usar a leiteira para esquentar o líquido rico em cálcio.
Encarou mais uma golada e tornou a guardar o copo na geladeira. Empurrou a
porta da geladeira que fechou em um estrondo, se Audrey tivesse despertado,
logo notaria sua falta na cama e correria ao seu encalço como as mulheres
ciumentas que insistem em monitorar seus suspeitos maridos, mas, que bom que
ela não era ciumenta, porém zelosa, apenas. E ele não tinha cara de suspeito,
nem beleza para constituir ameaça aos laços conjugais. Bastava sua imensa calva
para espantar o desejo que as mulheres poderiam sentir por um homem.
Apesar de as pessoas idosas serem conselheiras e boas entendedoras da vida, às
vezes suas cabeças vagam por ideias toscas. Acontece que uma ideia deste
patamar acometeu Harter naquele momento. O frio da noite deveria estar gelando
sua cachola e fazendo mal para as ideias.
Correu à sala e destrancou a porta. O vento gelado castigou sua face quando teve
vista para o mundo exterior. A rua estava iluminada apenas pela fraca luz do luar,
mas era possível distinguir muita coisa.

355
Estava só de óculos, camisa, cueca e chinelos.
Verei como anda o sono de minha filha e meu neto, pensou.
Na verdade, seus pensamentos eram uma boa desculpa para sua consolação, seu
desejo era de andar, andar tanto de modo que pudesse analisar a floresta.
Como era bonita a natureza!
Como eram belos e convidativos os cantares dos pássaros!
Era possível encontrar um morador para seu antigo relógio de parede. Sim,
naquela noite gelada e escura, um pássaro deveria estar querendo abrigo ou um
lugar para repousar e era exatamente isto que Harter faria, procurar um morador
para seu relógio de estimação.
Saiu e fechou a porta, mas não a trancou. Os seus pés cobertos por uma pobre
faixa de chinelo estavam congelando.
Encaminhou-se rapidamente para a ruela que dava acesso às outras ruas. A igreja
estava com as luzes todas apagadas, poderia chamar o padre para desfrutar
daquela bela noite.
Chegou à ruela e foi rumo à última rua, onde morava sua filha com o inútil marido.
Caminhava sem olhar para os lados, fitava apenas a floresta. Sabia que corria
perigo, mas era um homem e deveria honrar suas calças, cueca naquele instante
e seu membro masculino.
Não sentia mais os pés, nem mesmo sua pele facial, estavam congelados. O
vento obrigava a copa das árvores a assobiar uma melodia perturbante. Poderia
irromper outra tromba d’água como na noite anterior.
Parou em frente à casa da filha e constatou que as luzes estavam apagadas,
todos dormiam, com certeza. Tentou girar a maçaneta para pegar o genro em
descuido com a segurança do bando e reprimi-lo ou delatá-lo, mas ficou frustrado,
a porta estava trancada. Não tinha do que acusar o genro neste caso.
Caminhou até a extremidade da floresta e parou de frente para a árvore mais
próxima do vilarejo. Fitou a árvore como quem encarava um gigante frente a
frente.
Desejava ouvir o canto de um pássaro para depois aliciá-lo.
Olhou para dentro da floresta e enxergou uma luminosidade, era um pássaro que
brilhava, um pássaro verde. Deveria ser de uma beleza e raridade só.
Seus olhos quase lacrimejaram de fascinação, pois não foi preciso atrair a
gracinha voadora sobre si. Ela se aproximava lentamente.
O pássaro se aproximava, vinha em sua direção. O bichinho desejado estava
crescendo e não, não voava, flutuava pelo chão. Era como se a criaturinha
estivesse se aproximando timidamente, com medo.

356
Era inusitada a visão, o primeiro pássaro que flutuava e crescia conforme se
aproximava que presenciara em toda sua longa existência.
O pássaro estava cada vez mais próximo, deveria estar apenas a vinte metros de
distância, com parte do corpo oculto pelas árvores e parte à vista. Ele era negro e
emanava luminosidade verde pelas suas laterais, media um metro e cinquenta no
máximo. Não foi possível ouvir seus cantares, mas ele zumbia, exato, zumbia
semelhante a uma abelha gigante.
Parecia até, espere, era preciso limpar os óculos para enxergar melhor, pois já vira
aquele pássaro em outra ocasião. Correto, vira o pássaro na noite passada e
exatamente no mesmo lugar. O vira quando estava na casa de sua filha para o
jantar com o padre e fitara a floresta pela janela.
O pássaro negro que brilhava verde estava mais próximo e não tinha medo de ser
capturado.
Limpou os óculos que estavam um pouco embaçados pelo vapor da sua ofegação
de prazer e o recolocou, podendo assim enxergar melhor o pássaro. Foi quando
sua mente chegou a um resultado perfeito de uma equação. Não era sensação de
déjà vu apenas, vira quem se aproximava em outra ocasião, na noite passada e
não se tratava de um pássaro, mas sim da misteriosa luz verde que tanto era
comentário e dava pavor entre os habitantes de Pitfall.
Aquela iluminação feérica era capaz de assustar e causar fascinação ao mesmo
tempo.
O rosto de Harter se assemelhava ao das crianças entretidas em um desenho
animado de televisão.
Correu em disparada rumo à sua casa.
Não possuía a velocidade de um atleta ou de um jovem em sua plena idade. Não
olhou para trás, sabia que quando saíra em retirada, a luz verde estava a menos
de três metros dele.
Chegou à famosa ruela que conduzia às outras ruas, o único acesso para a sua
salvação.
Não é tão longe assim, não é tão longe assim. Pensava.
Sentiu o ar faltar quando se aproximou do acesso à rua de sua casa. Tinha a
sensação de que ia enfartar. Sim, estava perto de um ataque cardíaco, o medo
misturado à correria desenfreada lhe garantia isto.
Não é tão longe assim, não é tão longe assim.
Chegou perto da igreja, não iria chamar o padre. Era melhor correr para seu
abrigo próprio.
Ora, se o pássaro não queria uma pousada ou um abrigo, ele do contrário queria
sua casa o quanto antes.

357
Acalme-se, a luz verde não corre, apenas flutua, não tão devagar, mas eu devo
estar em vantagem. Pensava, mas suas ideias não tinham coesão, não se
encaixavam perfeitamente, faltava um neurônio em seus raciocínios que impedia
os pensamentos de seguirem em sincronia perfeita e correta.
Até que enfim, chegou à porta de sua casa. Não encontrou coragem em olhar para
trás e ver a luz verde.
Abriu a porta e entrou rapidamente com o pé e a face congelados, mas com o
coração e o pulmão aquecidos pela intensa atividade. Era um milagre não ter
sofrido uma síncope cardíaca. Trancou a porta. Um alívio, mas não descartava a
possibilidade de a luz verde poder atravessar paredes. Ela parecia ter desviado
das árvores, flutuando, mas disto não tinha plena certeza.
Fitou o relógio de parede e sentiu pena ao julgar não ter encontrado algum
morador para aquela casinha exemplarmente esculpida.
Correu para o quarto e deitou ofegante na cama, era outro milagre a mulher não
ter sido desperta com sua afobação barulhenta.
Fechou os olhos e fez o sinal da cruz como todo bom e lúcido católico faria em
seu lugar. Estava deitado na cama usando os chinelos, não se apercebeu, seria
uma prova pela manhã que algo havia acontecido de errado pela madrugada. A
mulher iria questionar se caso ele fora ao banheiro e se esquecera de tirar os
chinelos ao deitar.
Harter conseguiu dormir ainda com a respiração e batimentos cardíacos alterados.
Era uma pena ou uma sorte, pois não iria se lembrar muito bem do ocorrido pela
manhã. Com certeza, recordaria de parte do episódio como um simples pesadelo.
Ele esteve sonâmbulo desde o momento em que despertara assustado na
madrugada e descera para tomar um gole gelado de leite que seria mais um
vestígio anormal pela manhã, pois a quantidade de leite do copo fora reduzida
pela metade.
Eram duas pistas de arregalar os olhos, mas nem mesmo o homem ou o detetive
mais inteligente do mundo conseguiria encaixar as duas pistas para descrever o
que ocorrera com Harter durante a madrugada.
Uma conturbada e assustadora madrugada.

***

Ele se recusava a dormir. Parker não poderia permitir que o andarilho


atrapalhasse seus planos, era preciso botá-lo fora de combate.
Aproximava-se das três da madrugada. Parker estava bem acordado com um
charuto aceso, tragava a fumaça prejudicial sem sentimento de culpa enquanto
que o andarilho o ficava assistindo.

358
O mais impressionante era que ambos estavam sentados fora da casa em pleno
frio de inverno de uma madrugada florestal. Parker em sua cadeira de balanço
confeccionada em madeira, o outro sentado ao seu lado, no assoalho também de
madeira.
Ele se recusava a dormir, era preciso agir. Parker levantou-se e lançou o charuto
ao nada, na rua. O andarilho se apressou em repetir a atitude do homem que lhe
dava abrigo e o seguiu, para dentro de casa.
Parker estava tenso e foi à cozinha sem pestanejar, pois deveria ter alguns
restantes quilos de boa carne em sua geladeira.
Vou colocá-lo fora de combate. Pensou.
Nikosson o seguia como um cão sarnento em busca de um caridoso dono, mas
não eram necessárias palavras de advertência, pois o andarilho não falava. Uma
vantagem para Parker que não precisaria ouvir latidos pedindo misericórdia e
como Parker era o carrasco intocável que não poderia se dar ao luxo de usufruir
de comiseração, bastava planejar um meio de barrar o farejamento e a
perseguição do maltrapilho.
Abriu a geladeira e tirou sua peça congelada de carne bovina.
― Você deve estar morrendo de fome. Vou preparar um café da madrugada
caprichado para você. Assim, eu poderei fazer meu passeio pelo vilarejo enquanto
você dorme quentinho e feliz, com a barriga cheinha!
Não suportou suas palavras, gargalhou cortando o silêncio da fria madrugada. O
andarilho de fato estava com fome, não se alimentava desde o meio-dia, seus
olhos brilharam de desejo.
A carne demonstrava uma coloração que não deixava dúvidas, estava no auge de
sua gostosura, o momento exato para se consumir como refeição diária ou em
forma de churrasco.
Parker pegou uma faca afiada e cortou metade da peça de carne com ódio e disse
cerrando os dentes com força:
― Coma com vontade, na mesma vontade com que vou me vingar.
Parecia rugir como um leão. Tossiu.
Acendeu uma boca do fogão e colocou uma frigideira com um óleo usado
anteriormente que apresentava uma coloração escurecida de fritura. Cortou o
pedaço de carne dividindo-o em cinco vastos bifes, muito vistosos e os depositou
desordenadamente na frigideira. O som de carne fritando ecoou e invadiu a casa
toda.
― Ao menos um bom lugar para se esquentar. ― disse Parker.
Ficara sem lenha, pois fizera a besteira de depositá-las nas chamas da lareira na
noite anterior, todas as lenhas.

359
A carne fritava e aspergia um aroma de gordurinha queimada. O andarilho estava
com água na boca pelos bifes e Parker babando e rosnando por vingança.
― Hoje vamos saber quem é homem de verdade. ― reclamava para o andarilho
ouvir, como se estivesse em desabafo.
Não usou garfo ou trincheira. Pegou cada bife com a mão direita e os virou.
Queimou uma parcela da mão com gordura quente, mas não esboçava
reclamação de dor. Isto o fazia sentir-se superior a todos os homens.
― Aproveite enquanto estou solidário, em breve a tua mamata cessará e a rua fria
e cruel estará te esperando de braços abertos.
O andarilho não prestava atenção nos ataques do outro, esperava apenas o
momento de comer com fartura e mergulhar em seu merecido sono.
Parker apagou o fogo da boca antes mesmo dos bifes fritarem completamente e
os colocou em um prato de porcelana com algumas flores vermelhas estampadas.
Levou até a mesa onde o andarilho já estava sentado, aguardando e disse:
― Esta é a comida da tua vida e as flores do prato são teus brindes de cortesia.
Deveria haver um quilo de carne. Era o momento de esperar que o andarilho
ficasse fora de combate. Saiu novamente, trancou a porta para impedir a saída do
outro e sentou-se na cadeira de balanço. Acendeu um charuto, começou a
balançar e retomou sua vigília.
Seus olhos pareciam bombardear com ódio a casa do médico que o humilhara.
Era preciso esperar, ser paciente e gozar de mais uma vitória proporcionada por
sua inteligência imensurável e incomparável.
Fechou os olhos sentindo o vento gelado lhe castigar. A única fonte de
aquecimento era a ponta de seu charuto.
Passaram-se alguns minutos, seu nariz começou a escorrer devido à temperatura,
mas não se importava. Recuar era ação para os fracos, mas enfrentar o combate
era atitude de bravos e destemidos.
Poderia se aquecer em breve através da obra de suas mãos.
Balançava, engolia fumaça, tossia e não deixava de fitar a casa, alvo de seu ódio.
As dores no peito haviam cessado de vez, de fato, o médico deveria ter razão
quando disse que seu problema era prisão de ventre, gases transitando
loucamente dentro de seu corpo, procurando alguma porta de escape em que
pudesse atingir o mundo dos vivos.
Assim permaneceu por quase duas horas, deveria ser um milagre ter permanecido
consciente, sem sofrer com a hipotermia. A volta de seu nariz estava com uma
casca grossa de escarro impregnado, puxar aquele produto lamacento com a mão
deveria ser um castigo e iria doer, mas nada que ele não pudesse encarar,
provando sua bravura indômita de homem.

360
Era chegado o momento de agir. Levantou-se com dificuldade, não estava mais
sentindo seu corpo, se transformara em uma verdadeira pedra de gelo humana.
Deu seu último olhar de orgulho e ódio para a casa da frente antes de entrar e
começar sua ação vingativa.
Ao entrar sofreu um susto repentino, o imprestável do andarilho estava sentado no
sofá da sala, desperto como nunca e esperando o regresso do caridoso anfitrião,
era como um cão bem tratado que insistia em se manter desperto para
recepcionar o dono que tanto o amava.
Isto despertou a ira de Parker que bradou em alta voz:
― Você não vai impedir minha vingança!
Nikosson parecia não entender a queixa alheia, era como se dissesse não estar
preocupado em presenciar uma atitude impensada de outrem.
Parker abriu a porta do porão e desceu a escada, o andarilho o seguia. Seu objeto
almejado estava no centro do porão, pronto para ser retirado. Aquilo era sua arma
secreta de guerra e ele tinha outras no estoque do porão.
Acontece que sua arma era pesada e o imprestável poderia ser de grande
préstimo naquele momento. Parker abraçou o galão de combustível para carros e
o arrastou até o pé da escada:
― Pague a comida por mim oferecida e ajude-me a subir esta merda.
Nikosson se preparava para ajudar o caridoso anfitrião, quando este o interrompeu
e advertiu:
― Espere, deixe-me tentar elevar o galão com minha própria força, talvez você me
atrapalhe na penosa empreitada.
Parker tentou elevar o galão em um degrau, mas conseguiu apenas pouco mais
de um centímetro e soltou, sua coluna estalou. O abrigado riu com vontade da
visão cômica.
― Não fique rindo e ajude-me. Quem sabe eu não te prepare uma comida mais
abastada na próxima refeição.
O andarilho não titubeou, abraçou o galão em um lado, enquanto Parker abraçava
no outro. Perceberam que era possível subir com o peso, mas com muito
desgaste e suor. Nikosson estava fortalecido pela carne que ingerira, mas Parker
estava com os nervos trêmulos devido ao frio que sofrera por quase duas horas
seguidas.
Subiram com cautela, o resultado foi compensador. Depositaram o galão no chão
da sala, perto à porta que levava à rua.
― O teu labor acaba aqui, você novamente pode ser chamado de imprestável
agora.
Nikosson não se preocupava com os desvarios de Parker. Queria apenas assistir
o que o anfitrião planejava aprontar.
361
Parker foi até a cozinha e pegou uma caixa de palitos de fósforo.
Não trancou o abrigado quando saiu, era preciso deixar sua porta aberta caso
precisasse se retirar em fuga e frações de segundos poderiam ser preciosos.
Nikosson continuava a segui-lo por onde quer que fosse. Parker arrastava o galão
ao chão com sacrifício, rumo à casa da frente, a do médico que o humilhara e
precisava então receber uma lição do justiceiro de Pitfall.
Não solicitou a ajuda do carrapato humano que não lhe desgrudava. Contudo, o
andarilho oferecia seus serviços a todos os momentos. O esforço realizado
proporcionava uma sensação de calor que em contato com o vento gelado
resultava em um incômodo perturbante. Era como se o corpo reclamasse por ser
exposto a um ambiente de choque térmico e ameaçasse se contorcer em uma
posição sem volta da próxima vez.
Parker parou apenas quando chegou à fronteira da rua com o assoalho da casa
do médico.
Naquele momento precisou da ajuda do carrapato que não negou seus serviços
de gratidão.
Era incrível como um bom prato de comida a um faminto gerava um sentimento de
gratidão, o alvo de caridade fora comprado pela boca. Os devaneios de Parker ao
querer embriagar o outro com comida deram resultados positivos para seu plano,
sem o auxílio do mudo, ele não conseguiria arrastar o galão até o local em que
este se encontrava naquele momento, cara a cara com a porta da casa do médico.
Caso contrário, Parker necessitaria trazer combustível em menor quantidade e
talvez seus planos não obtivessem êxito.
― Feche os olhos se tiver nervos frágeis. ― advertiu Parker abraçando o galão,
pronto para molhar as madeiras que constituíam parte da casa do médico, o alvo
de sua vingança.
Aquilo era mais fácil do que incendiar a floresta.
― Ou abra-os caso possua sangue frio ou de barata. ― disse, tombando o galão
e deixando o combustível nadar pelo assoalho de madeira, tomava o cuidado para
não ser afetado pelo líquido altamente inflamável.
Nikosson assistia aquela cena a sete metros de distância, quase ao meio da rua.
Quando o galão derramou metade de seu conteúdo, Parker o colocou de pé, de
modo que pudesse abraçá-lo e elevá-lo, sendo assim capaz de banhar a parede
de madeira e a porta da casa também.
Ninguém o pegaria em flagrante durante o dia, quem diria na madrugada fria.
Apesar de que o povo de Pitfall ser meio estranho, não, inteiro estranho e com
certeza não seria de se espantar assistir um habitante passeando pelo vilarejo
naquele frio de inverno, naquela madrugada que ao que tudo indicava seria
apoteótica.

362
O conteúdo do galão findou. Parker não se conteve e logo pegou sua caixa de
palitos de fósforo, retirando uma de suas unidades e riscando. A chama se elevou
na ponta do palito e iluminou seus olhos satisfeitos com a vingança quase
concluída. Chutou o galão dois metros para fora do assoalho, o que foi um grande
erro de sua parte, pois o objeto seria esquecido.
Não pestanejou, rapidamente lançou o palito incendiário à porta da casa, seu
principal alvo. Ocorreu uma reação em cadeia, o fogo ofereceu um clarão
memorável e um quentinho que Parker julgava não existir mais devido às últimas
horas de autoflagelo que praticara ao frio.
Era um justiceiro masoquista, capaz de sofrer pelos seus interesses.
O criminoso foi se retirando, andando calmamente de costas para sua casa,
chegou ao meio da rua e desatou a correr para seu lar em busca de um
esconderijo. Precisava se esconder das pessoas e das chamas consumidoras.
Entrou e trancou a porta, o andarilho não estava presente, tampouco se importava
com o farrapo humano que o auxiliara. Tratava-se de uma carta fora do baralho,
descartada por não ser mais útil em seu plano de jogo, seu estratagema que não
perdoaria e não teria misericórdia dos sentimentos alheios. Desejou não assistir o
fim de seu atentado que deveria ser no mínimo trágico, subiu ao quarto para
dormir como se nada houvesse ocorrido.
Nikosson fugira de espanto, cruzara a ruela que levava à rua principal e pegara o
rumo da floresta adentrando sua vegetação oculta pela neblina densa.
Corria sem ter previsão de parar, não sabia aonde chegaria. Queria apenas se
manter o mais distante possível do clarão que o delito de seu ex-anfitrião
proporcionara, um clarão que do mesmo modo que aquecia, espantava.
Espantava principalmente as pessoas incapazes de proporcionar males aos seus
semelhantes, uma das pessoas em questão era Gray Nikosson que naquele
momento já penetrava aproximadamente trinta metros floresta adentro.

363
31

ELE EXISTE

As horas da madrugada transcorreram rapidamente impedindo que o tédio


tomasse conta de Norman.
Ele havia proposto que intercalassem em turnos de vigília de quatro horas. Forbes
ficou com o primeiro turno, das dez da noite às duas da madrugada e Norman
ficou incumbido de ir até as seis da manhã. A luz do quarto era mantida apagada,
mas era possível se locomover e distinguir objetos pela luz do luar que penetrava
a vidraça.
Não foram surpreendidos com soníferos dispersos ao ar por objetos estranhos e
também nenhuma mangueira fora inserida por alguma brecha na parede a fim de
mergulhar substâncias alucinógenas no ar do aposento.
Norman bocejava sentado ao pé da cama em que o amigo roncava como um javali
sendo enforcado.
A descoberta mais importante fora feita por Forbes duas horas depois do começo
de seu turno, ficara provado que o filhote de malvado existia de fato.
No momento em que Norman dormira, Forbes aproveitou o silêncio indescritível
da madrugada para tentar ouvir algum ruído provindo do malvado e conseguiu.
Encostara seu ouvido com cuidado à parede que dividia seu aposento com o que
fora de Norman e em pouco tempo conseguira captar não só ruídos de movimento
na cama, mas também uma espécie de baixo grunhido de animal.
Norman perdeu a conta de quantas vezes encostou seu ouvido à parede para
estudar movimentos suspeitos da criatura.
O amanhecer estava próximo. Forbes dormia com sua arma ao lado, de prontidão.
Bastava soar o alarme de Norman, assim, Forbes pegaria sua arma, a destravaria
e faria a parte suja do trabalho.
Forbes não cometera o grave erro de deixar a arma destravada, pois conhecia
infinitos casos de fim trágicos. Como um irmão que brincasse de apontar a arma
do pai à testa ou peito do irmãozinho caçula e o disparo acidental fosse inevitável.
Norman sempre trouxe consigo o receio de estar sendo ouvido através das
paredes do hotel, mas naquele momento de glória, era ele quem estudava os
passos de um oponente desconhecido que jamais seria possível acreditar em sua
existência.
Como seria a anatomia corporal daquela criatura? Quais perigos ela poderia
representar?
Pelo que afirmara Bobster, ela era capaz de devorar carne humana como um
faminto e destemido canibal.

364
Foi até a parede novamente escutar o que se passava no quarto invadido. Não
demorou em ouvir ruídos, mas diferentes dos demais antes ouvidos. A criatura
acabava de arrastar uma das portas do closet que emanou um som rascante em
suas roldanas envelhecidas.
Norman não sabia se continuaria a escutar ou se despertaria seu amigo e o
desafiaria a retomarem seu quarto onde repousava a criatura e dar um fim na
brincadeira. Forbes possuía licença para o porte da arma, significava que ele
atirava bem e poderia dar um fim ao sofrimento da criatura descarregando a arma.
Criatura que deveria sofrer por estar longe de seus semelhantes como havia
afirmado Bobster.
Mas, uma pergunta perdurava. Se a criatura de fato sofria por estar longe de seus
semelhantes, por qual motivo não fugia? Afinal, um homem idoso como Bobster
não poderia ser capaz de barrar as decisões de uma criatura que fora descrita
como terrível e indomável.
Norman não sabia sequer cogitar qual era a verdade da história, mas uma coisa
ficara provada, o filhote de malvado existia de fato, haja vista que nenhum humano
poderia exprimir grunhidos semelhantes aos testemunhados pelos dois forasteiros.
O amanhecer insistia em não chegar, entretanto isto não agoniava Norman. Muito
pelo contrário, ficava contente em ver o amigo descansando, pois mais um dia
longo se aproximava e ambos não teriam compromissos profissionais. Norman
escrevia e trabalhava por conta e o outro afirmara estar em período de folga
concedido pela famosa FedEx.
Como era possível um homem tão dedutivo como Forbes não estar trabalhando
como uma espécie de detetive farejador para a FBI, por exemplo?
Tudo era uma questão de correr atrás, o amigo percebia as coisas mais
minuciosas no ato e poderia ter uma carreira brilhante como agente secreto.
Possuía um sentido diferente de pessoas normais.
Outro som acometeu o quarto contíguo. A porta do closet foi fechada e a torneira
do lavabo do banheiro foi aberta. A água escorria em abundância e era possível
perceber que nada impedia seu fluxo de queda, ou seja, ninguém colocava a mão
a fim de lavá-la ou depositava algum objeto para ser molhado, de modo que a
água era desperdiçada livremente pia abaixo.
Norman tinha plena certeza de que o filhote de malvado perambulava pelo seu
quarto, não se preocupava com a integridade de seus pertences como a chave do
carro, sua dor de cabeça estava interligada com a integridade física sua e de seu
amigo.
Uma ideia perspicaz e perigosa passou pela sua cabeça, cerrou o punho direito e
deu três fracas batidas em sequência na parede de madeira. Era possível
distinguir apenas o som da água sendo desperdiçada.

365
Esperou alguns segundos e repetiu os golpes à parede...
Não obteve resposta. Procurava estimar o grau de inteligência da criatura, se caso
ela respondesse golpeando do outro lado da parede, significava que era portadora
de uma inteligência inferior, uma inteligência digna de um animal irracional.
O silêncio exceto o fruir da água permanecia imperando no aposento ao lado. A
criatura poderia estar do outro lado da parede, apenas escutando as batidas
desconhecidas.
Norman repetiu os golpes e para sua surpresa obteve resposta, foram três batidas
semelhantes às suas, mas em uma excitação de quem traz um pensamento em
dúvidas do que se estar lidando. Era exatamente isto, para a alegria de Norman, o
filhote de malvado parecia não ter o raciocínio suficiente para chegar a um
denominador comum e ter certeza de que outro ser vivente estava do outro lado
da parede o testando, ou chamando sua atenção.
Norman repetiu as batidas e logo obteve resposta novamente, não era preciso
dizer qualquer coisa, sabia que seria fácil de enganar a criatura, mas não sabia
precisar como era arguto o seu faro de animal.
Norman bocejou novamente, seria bom dormitar mais algumas horas. Em pouco
tempo chegaria o momento de passar o turno para o outro e descansar. Mal podia
esperar para contar as novidades de sua descoberta e deixar que o amigo tirasse
suas próprias conclusões.
Forbes continuava roncando como um animal castigado por um tecido adiposo
avantajado que porventura revestisse seu pescoço e o comprimisse devido seu
peso extremo, apesar de Forbes não ser tão gordo assim.
Norman alarmou-se, pois a criatura parecia estar abrindo a porta do quarto que
estava entreaberta quando houveram regressado ao hotel na noite anterior. O que
ele mais temia estava se tornando realidade, a criatura saiu de seu aposento para
ir não se sabe onde. Talvez o malvado tentasse penetrar no quarto onde havia
dois suculentos banquetes ou fosse descer ao saguão do hotel. Era como se o
jogo tivesse virado e ficado a favor de Bobster novamente em uma questão de
segundos.
Uma dúvida o perturbou. O filhote de malvado poderia estar inquieto devido estar
sendo atormentado pela fome?
Ele estaria em busca de quem batia à sua parede?
Havia outro ponto, a torneira fora deixada aberta e jorrando rios de água. Ficou
atento a qualquer movimento que ocorresse de frente à porta do quarto que lhes
servia de abrigo até então e que poderia ser invadido a qualquer momento.
Correu na ponta dos pés a fim de não fazer barulho, cutucou o amigo que
despertou assustado:
― Ele saiu do quarto.

366
Forbes pareceu despertar em um lampejo de segundo e pegou sua arma. Quase
desabou ao chão quando colocou os pés em terra firme e se levantou, estava
deveras sonolento, era como se seu cérebro não houvesse assimilado a
necessidade de fazer futuros movimentos que o restante do corpo esperasse
executar.
Norman o segurou e o equilibrou. Forbes tomou a frente e ficou rente à porta, o
outro estava postado ao seu lado. Mantiveram silêncio e os ouvidos atentos, foi
possível naquele exato momento perceber que a criatura cruzava o corredor de
frente para a porta do quarto onde estavam abrigados, foi como um forte rastejar
de passos de alguém descalço que não se preocupasse em sujar a sola dos pés
ou até mesmo de martirizá-las com fiapos de elementos penetrantes e cortantes à
carne.
Era preciso pensar no que fazer. Estavam apopléticos e com os radares dos
ouvidos muito bem configurados, rastreando qualquer movimento que
representasse perigo.
Forbes sentiu a boca do estômago e as pernas. Altos borborigmos provinham de
seu organismo. Norman também temia, mas era o mais tranquilo da dupla, pois
contava com uma arma manejada por um perito lhe dando cobertura.
Forbes fitou o amigo face a face como quem dizia ser o momento de arriscar, o
agora ou nunca, ou a preciosa e irrevogável chance da vida. Norman se preparou
para tudo, tanto para se deparar com uma criatura assustadora e ser devorado
vivo como para desferir violentos golpes capazes de ferir o oponente por mais
forte e capacitado que fosse.
Forbes, então, abriu a porta com cuidado sem deixar de espiar a fresta de
abertura cujo grau crescia lentamente conforme ele empurrava a porta. O corredor
estava mergulhado em plena escuridão, mas era possível perceber que a criatura
não estava lá, ao menos de frente para a porta naquele instante escancarada.
Quando colocaram a cabeça para fora tiveram a surpresa da madrugada, talvez a
surpresa desde quando vieram a cair na maldosa Pitfall. A voz de Bobster soava
do saguão, mas não era possível perceber o que ele dizia, porém o que de fato fez
duas duplas de olhos se arregalarem foi a enorme cauda de animal iluminada por
um grupo de velas que bruxuleava do saguão, a cauda descia a escada rumo ao
encontro de seu curador, o temível Jim Bobster. Parecia até mesmo uma enorme
cobra que se deslizava com medonha versatilidade e inestimável perícia.
Quando a cauda sumiu de vista, eles avançaram quatro metros rumo à vista do
saguão e ficaram quase de frente para a porta do primeiro aposento e o mais
próximo da agora tenebrosa escada. Assim foi possível distinguir as palavras de
Bobster:
― Está com fome? Eles não deveriam ter mencionado você.

367
Soou um grunhido baixo e Bobster prosseguiu:
― Agora eles pagarão pela intromissão e serão o teu banquete do dia.
Bobster deu uma pausa e disse:
― Em breve eles virão te buscar de volta e eu não mais poderei usufruir da tua
malvadeza para dar um corretivo nos hóspedes que me desobedecerem.
Soou o grunhido novamente.
― Eu sempre preciso te devolver, eu queria você para mim. ― Bobster dizia com
lamento e voz chorosa, como uma criança que perde ou quebra o seu brinquedo
preferido.
Bobster mudou o tom de voz para mais sério e firme e prosseguiu:
― Não se preocupe, permitirei que arrombe a porta e os ataque a bel-prazer.
Assim, você terá apenas o trabalho de devorar e o do resto me encarrego eu.
O grunhido foi mais agudo, pareceu um ruído de satisfação ou prazer orgástico.
Forbes fez um sinal para que prosseguissem até o topo da escada e tivessem
vista para o saguão de modo que pudessem conhecer a anatomia do filhote de
malvado.
Forbes se achegou até o topo da escada e se manteve oculto pelo canto da
parede. Por sorte, Bobster precisaria elevar a cabeça para enxergá-los e pegá-los
em flagrante. Mas, os planos de ver a criatura falharam, pois ela aparentava estar
no aposento contíguo ao saguão em que Norman buscara o molho de cópias das
chaves do hotel. Bobster fitava tal aposento e falava gesticulando, trazia um
sorriso de satisfação estampado nos lábios com grossas rachaduras e dentes
amarelados pela idade. Era o aposento que deveria ser usado como reduto por
Bobster enquanto não estava a balançar em sua cadeira do fantasmagórico
saguão do hotel.
Bobster gesticulou freneticamente e desafiou quase em gritos a criatura:
― Não perca mais tempo, se tu fizeres o banquete agora ficarei tranquilo e
encontrarei um modo de esconder os restos mortais antes que amanheça e o inútil
do xerife como que por intuição venha em busca deles.
O sexto sentido apitou nas cabeças dos forasteiros que correram em busca de
seus abrigos, antes que trancassem a porta puderam escutar o som de passos
rápidos e pesados que subiam a escada, o filhote de malvado parecia correr como
um quadrúpede em uma perseguição frenética. Não acenderam a luz do quarto,
correram quase sem fôlego à cama e sentaram-se de frente para a porta. Forbes
estava com a arma apontada para a porta em um ponto imaginário, seu alvo era a
cabeça de alguém com cerca de um metro e noventa centímetros de altura que
porventura arrombasse a porta.

368
A porta recebeu uma forte pancada, mas não capaz de arrombá-la logo de cara.
Apesar de ser notório que uma dezena de pancadas semelhantes seriam capazes
de mandar a proteção dos forasteiros pelos ares.
Norman estava com o coração aos pulos, Forbes procurava não se alterar para
preservar uma boa mira com sua preciosa concentração, apesar de ser quase
impossível. Seus nervos também estavam tensos e sentiu, então, a espinha
chacoalhar como se fosse um feixe minúsculo de metal recebendo uma alta
tensão de energia repentina.
Outra pancada forte castigou a madeira da porta. Se ao menos existisse um modo
de saltar pela janela e fugir. Restava a confiança que tinham no revólver de
Forbes.
Outro tipo de investida foi adotada pelo filhote de malvado, naquele momento ele
tentou girar a maçaneta várias vezes seguidas e com extrema violência. Um
grunhido de animal faminto e com raiva soou, mas era em uma tonalidade baixa.
Fato estranho, pois um animal com raiva grunhe com uma tonicidade mórbida.
As investidas continuavam. Norman não sabia até quando seus nervos iriam
suportar e lançou uma ideia ao espaço:
― Atire!
Forbes escutou muito bem o que disse o amigo, mas se manteve em silêncio sem
dar uma resposta, apenas se mantinha firme em sua mira. Norman repetiu:
― Atire!
Forbes não sabia medir o grau de sanidade do amigo, para falar a verdade, ele
próprio não sabia mais como agir. A porta parecia começar a oferecer sinais de
fracasso quando o filhote de malvado tornou a espancá-la violentamente. Talvez o
amigo estivesse coberto de razão e fosse necessário gastar uma bala para
afugentar a coisa ou alvejá-la.
A dobradiça superior da porta se desprendeu de seu devido lugar e um som de
metal sendo abalroado invadiu o ambiente. Não existia outra alternativa, Forbes
firmou a concentração e atirou. A bala atravessou a porta e o buraco da destruição
começou a fumegar.
O chumbo quente teria acertado a criatura?
Ao menos as batidas cessaram, o ato que Forbes antes julgara impensado surtiu
efeito.
Norman bufou aliviado. A criatura tinha medo de tiro, na pior das hipóteses.
― Ele deve ter fugido, eu não ouvi qualquer urro de dor. ― disse Forbes
abaixando o revólver e enxugando a testa suada com a mão esquerda.
O quarto estava muito bem iluminado, pois os raios solares do amanhecer se
fizeram presentes. Nem sequer perceberam quando a luz do dia deu a graça de

369
sua presença devido a grande intensidade de pavor que foi o momento de fugir do
filhote de malvado.
Estavam mais aliviados após alguns minutos sem ouvirem qualquer ruído no
interior do hotel, torciam para que Bobster não viesse com suas represálias,
apesar de se julgar algo impossível.
Existiam duas possibilidades, a criatura fora alvejada e estava ferida ou morta ou
fora afugentada pelo disparo. Ambos acreditavam na segunda hipótese.
Mas, existia outra possibilidade que não passou pela cabeça de nenhum dos dois,
o filhote de malvado poderia ter aversão à luz do dia, por isto Bobster mantinha o
hotel no máximo de escuridão possível.
Se caso o malvado fugira por aversão à luz, aquele deveria ser o último dia que os
forasteiros ousassem a passar no hotel, pois o bando de malvados poderia invadir
o hotel ao anoitecer e auxiliar o filhote em seu ataque.
O filhote de malvado deveria estar com fome de carne e sede de vingança.
Norman e Forbes esperavam não passar outra noite em Pitfall, estavam
convencidos de que era a hora de ir embora, estavam cientes também de que
quando saíssem do hotel, se caso conseguissem, não deveriam mais regressar,
pois o filhote de malvado poderia estar em qualquer canto escuro, pronto para
atacar e devorar.
As preocupações não se resumiam à criatura desconhecida, existia o perigo
iminente que representava Bobster. O velho do hotel não deixaria barato aquele
tiro e se transformara no maior perigo para a vida dos forasteiros, perigo maior do
que o imposto por uma criatura com braços de dois metros, dentes finos, grandes
e bem afiados e quem sabe, possuísse a capacidade de escalar paredes e
arrebentar vidraças, tudo isto quando a noite chegasse. Depois de toda aquela
peripécia, não se tinha tanta certeza assim de que a criatura voltasse a atacar
apenas ao anoitecer, ao menos não na cabeça dos forasteiros que naquele
momento queriam apenas uma oportunidade de sair do hotel, com vida.

370
32

SURPRESAS DA MANHÃ

O sol da manhã dissipou alguma parte dos estragos causados pelo frio da
madrugada.
A floresta havia sofrido com a densa neblina que atormentara o vilarejo antes que
o sol mostrasse sua face e executasse sua tarefa mais comum, a de oferecer a
iluminação necessária para que transeuntes pudessem ter certa tranqüilidade em
caminhar fora de casa, a exemplo do lenhador Horace Singer, que pulava cedo da
cama para cortar lenha, o combustível aquecedor de todas as casas do mundo
restrito e disperso que era Pitfall.
Não que o lenhador temesse a escuridão da noite, mas era preciso ter sinceridade
para confessar que ninguém seria capaz de explicar o motivo da chegada de uma
terrível sombra que tanto causava medo nos moradores do vilarejo.
Tornara-se uma rotina considerar o medo que tomara conta de Pitfall como algo
normal e aceitável.
Horace Singer tentara manter vigília algumas vezes para surpreender a misteriosa
luz verde, capturando-a com o propósito de se tornar um herói, não que ele fosse
cobiçoso de aplausos, mas trazia dentro de si certa responsabilidade de proteger
os habitantes do vilarejo, pelo motivo de ser o maior conhecedor da floresta junto
com Malone, de onde parecia provir a luz verde de capa negra que vagava pelas
madrugadas desoladas ao redor do vilarejo, nas extremidades da floresta em
busca de espalhar o medo, ao menos era o que aparentava ser sua intenção.
Os fracassos das vigílias do bravo homem da floresta não foram suficientes para
desanimá-lo, sabia que a qualquer momento poderia se deparar com o invasor
desconhecido e botar um fim no mistério. Sabia também que deveria manter o pé
no chão, pois ninguém possuía informações o bastante para definir o que de fato
era a luz verde.
As reflexões que ficassem de lado. Ele empurrava sua pesada vagonete
transbordante de lenha. Acabava de cruzar o acesso à rua da igreja e se
encaminhou para o lado direito da rua, o lado em que morava Josias “cachorro-
louco” Parker.
Winepowder vinha em seu encalço, atento, pronto para obedecer qualquer ordem
de seu dono.
Havia um movimento fora do normal, o xerife estava conversando com o médico
Parkhurst, de frente para a casa deste. Mas, algo chamava a atenção fora o cheiro
de madeira carbonizada, a parede da frente da casa do médico estava ausente e
era possível estudar o interior de sua residência como um comprador que
observasse uma vitrine de apetrechos desejados, mas que não existisse o vidro
371
de frente, desprotegendo assim cem por cento o ambiente com seus adereços à
venda.
O lenhador se aproximou. Os dois homens que conversavam puderam notar sua
chegada, mas mantiveram o diálogo.
Singer estacionou a vagonete e parou de frente para os homens, obrigando o cão
a imitá-lo:
― O que aconteceu por aqui? Pelo visto a noite foi quente.
Os homens não tomaram por mal a ironia do lenhador.
― Sim, a noite foi quente e a chapa vai esquentar para alguém. ― respondeu o
xerife contorcendo a boca em um gesto de desprezo obrigando seu bigode a se
movimentar.
― Já tenho minhas suspeitas. Pena que não possa fazer justiça com minhas
próprias mãos e tomar uso da força bruta. ― emendou o médico.
Horace Singer parecia entender o sentido da conversa:
― Quer dizer que a tragédia que aqui ocorreu foi...
― Sim, suspeito com absoluta certeza de incêndio criminoso. ― o xerife concluiu
o raciocínio do lenhador.
― E eu tenho absoluta certeza sobre quem estamos falando. ― emendou
Parkhurst com olhar repleto de desprezo e sedento de justiça.
― De quem estão falando? ― perguntou o lenhador desconfiado de alguém em
específico.
― Você o conhece muito bem, é exatamente quem você está pensando. ―
respondeu o homem da lei com uma calma de quem não precisa se preocupar se
está enganado ou não.
Horace Singer fez um gesto de afirmação com a cabeça como quem já entendeu o
recado:
― Permita-me fazer um teste, xerife?
― Que tipo de teste?
― Meu cão é um farejador de primeira, posso tentar reforçar nossa suspeita. ―
respondeu o lenhador sem esperar a permissão do xerife, pois já chamava a
atenção do cão e o conduzia ao assoalho enegrecido pelo fogo castigador.
― Tem minha permissão. Apesar de eu julgar difícil o cão encontrar qualquer odor
humano em meio ao forte cheiro de madeira carbonizada.
O homem da lei pensava de modo limitado e subestimava a capacidade de farejar
do cão. Singer como se fosse um guia conduzia o cão a farejar o assoalho da
casa.

372
Wine farejou uma circunferência pequena e latiu para o lenhador, depois seguiu
uma trilha, farejando o chão. O lenhador o seguia e o cético xerife assistia a cena,
boquiaberto.
O cão seguia rumo à casa da frente, a de Parker e só parou quando a porta da
casa o impediu de entrar.
Olhou para o dono e latiu novamente, este por sua vez o mandou que se calasse
com o famoso dedo indicador perpendicular à boca, formando uma cruz
imaginária.
O lenhador contentou-se com o ocorrido e fitou os dois homens do outro lado da
rua. Ambos traziam um olhar de incredulidade. O xerife segurava o que parecia
ser um galão incriminador do delito humano.
Horace retornou ao encontro dos dois e se preparou para tornar a empurrar sua
vagonete, colocando as duas mãos na parte superior do objeto, pronto para
empurrá-lo.
A vagonete possuía quatro rodas e era simétrica, permitindo assim que fosse
empurrada sem necessitar de uma manobra de rotação.
Apesar de o cheiro da bota fedida de Parker estar recente no assoalho da casa do
médico não significava que ele fosse o criminoso, mas não se podia ignorar a
inteligência do cão, pois naquela manhã, apenas o médico e o xerife haviam
andado pelo assoalho. O cão, por método de exclusão seguiu o rastro deixado
pela última pessoa que subira ao assoalho na noite ou na madrugada.
― Temos as provas necessárias, basta fazer a lei valer e dar um castigo exemplar
no terrível Parker. ― disse o lenhador já empurrando a vagonete rumo ao outro
lado da rua.
Decidiu abastecer de lenha as casas do outro lado da rua, o lado da igreja e da
casa dos Bombay. Estava com saudades de estudar a beleza de Tania Bombay.
O cão feliz o seguia, houve apenas o tempo de o homem da lei dizer:
― Obrigado pela ajuda, o teu cão reforçou nossas certezas e fique tranquilo,
vamos à busca do infrator.
Horace Singer deu apenas uma olhadela e piscou para os dois, seguiu o seu rumo
refletindo se Parker deveria ir para a cadeia, caso fosse, quem seria seu
adversário ferrenho nas cartas?
Estava ciente também de que o xerife não seria capaz de manter algum habitante
preso caso este não houvesse matado ou roubado.
John Parkhurst jurava não existir qualquer meio dentro de sua casa, como uma
vela ou algum objeto que necessitasse de energia elétrica para se alimentar e se
manter vivo perto da parede incendiada, provando assim que o fogo fora ateado
do lado de fora da casa.

373
Por sorte, nenhuma fiação elétrica corria no interior da parede destruída e por
milagre, o médico despertara com o ar cálido que subia do fogo ao seu aposento e
com o cheiro forte de queimado. Sua mulher ficara em pânico, paralisada à cama.
O médico correra em busca de sua mangueira significativamente grossa de
diâmetro e boca que apresentava uma circunferência de abertura de sete
centímetros e estava abandonada no porão e a acoplara à torneira da cozinha, a
mais perto da parede incendiada. Conseguira apagar o fogo em três minutos e
evitar o maior desastre, a destruição de sua casa e de casas vizinhas. Alguns
vizinhos houveram saído de suas casas devido ao épico cheiro de madeira sendo
consumida pelo fogo e até tentaram buscar baldes de água, mas o médico como
um autêntico bombeiro não dera trégua às chamas e as calara para sempre. Não
sobrara oportunidade que permitisse a ajuda dos poucos vizinhos que eram em
número de três homens socorrer o médico e impedir que suas casas também
fossem consumidas.

***

Horace Singer chegou até a casa dos Bombay e estacionou sua vagonete. Cerrou
o punho e deu duas batidas à porta. O coração estava aos pulos com o suspense
de quem o atenderia, embora pudesse ser apenas ela.
Tinha consciência de que estava apaixonado por Tania, mas sabia que seu amor
jamais seria correspondido. Bastava enxergar suas qualidades, um homem que
vivia sujo e suado, de enormes barbas por fazer, no entanto, que saberia tratar
muito bem uma dama.
A porta foi aberta e a figura de Tania surgiu com vastos e belos cabelos cor de
amêndoa.
O coração de Singer gelou, pulava quase fugindo pela boca.
― Trouxe a lenha. ― foi o que conseguiu expressar.
Tania sorriu meigamente:
― Entre, por favor, já tomou café da manhã?
O lenhador ficou sem jeito, não sabia precisar se suas bochechas estavam
rabicundas de vergonha.
― Sim, já tomei o café da manhã. Mas, agradeço o convite.
Como foi idiota ao dizer aquilo, tratava-se de uma grande chance de corresponder
à generosidade e quem sabe, ser mais bem visto. Tania ficou com um semblante
de seriedade com o convite rejeitado:
― Tudo bem, você deve estar muito ocupado e...
Howard surgiu de dentro da casa e abraçou a mãe por trás, depois exibiu seu
rosto para o lenhador:

374
― Ei, você é muito forte. Seria capaz de derrubar um soldado?
A vergonha de Horace apenas agravou-se, agachou e fitou o menino nos olhos.
Tania assistia à cena, um pouco sem jeito de se desculpar das impensadas
palavras do filho:
― Cale a boca, Howard. Eu te ensinei modos de respeitar as pessoas. ― ela
agachou-se para fitar a criança e trazia uma mistura de admoestação e vergonha
estampada no rosto.
O lenhador também já fitava o menino cara a cara e disse:
― Não se preocupe senhorita, ele é um menino muito esperto. Mas, modéstia à
parte eu seria capaz de derrubar vários deles com meus braços. Você nunca me
viu derrubar as árvores?
Howard negou com a cabeça, o lenhador prosseguiu:
― Pois então, as árvores possuem o peso de quem sabe, mais de vinte soldados
bem preparados.
O menino sorriu. Como gostaria de poder contar com um pai que oferecesse a
mesma proteção que parecia transmitir o homem da floresta. Uma proteção que
sua família necessitava.
Singer levantou-se e foi a vez da mulher ouvir suas palavras:
― Estou velho e minhas pernas doem quando me agacho, gostaria muito de
poder continuar à altura do menino para conversar.
― Não diga assim, você deve ter feito muito esforço ao cortar lenha. ― Tania
procurou consolá-lo cordialmente.
O lenhador sorriu.
― Vou buscar a lenha.
Winepowder estava sentado e assistia à cena, parecia entender tudo o que se
passava e de como aquela mulher mexia com os sentimentos de seu curador que
abraçou mais de dez achas de lenha e foi até a casa da cliente.
Howard ficou encantado com a vitalidade do cão e foi afagá-lo. O animal
demonstrou um grande prazer em obter um novo amigo.
Enquanto isto, Tania guiava o local da lareira ao lenhador como que por costume,
embora este último já o conhecesse muito bem.
― Sempre coloque a grade de proteção para evitar acidentes. ― ele admoestou
ao depositar a encomenda em seu devido lugar, ao lado da lareira.
A lareira demonstrava clamar pelo combustível necessário para se manter acesa,
os Bombay estavam sem lenha no estoque.
― Temos procurado fazer isso.
― Sempre faça. ― ele estava com uma enorme falta de assunto, pois ficava por
demais acanhado quando estava de frente para aquela mulher.

375
Ela sorriu:
― Mas, eu não estipulei a quantidade de lenha que gostaria. De qualquer modo,
quanto te devo?
― Nada.
Ela fez uma careta estranhando a resposta do homem:
― Como nada?
― O inverno começou rigoroso e eu achei por bem distribuir grande quantidade de
lenhas aos moradores do vilarejo. ― mentiu, queria apenas ser generoso com a
mulher que lhe oferecera o café de forma cordial.
Tania continuava surpresa, mas decidiu não prorrogar o assunto:
― Você é um homem muito generoso. Estou sem palavras.
O lenhador ficou calado perante o elogio da desejada mulher. Ela disse mais:
― Você acorda cedo, usa o teu esforço físico e é capaz de se matar para
proporcionar o bem estar aos outros. É uma atitude muito louvável.
― Não fale assim, eu fico sem jeito. Entenda que minha vida é apenas isto, cortar
lenha e empurrar meu pequeno vagão.
― Você não tem filhos? Nunca se casou?
Era incrível como em um vilarejo tão pequeno os habitantes sabiam tão pouco da
vida e do passado dos outros. Enquanto que em outros lugares, alguns seriam
capazes de matar para tomar cuido da vida alheia. Em Pitfall, o povo parecia ser
muito reservado.
Ela aparentava conversar com desprendimento e fazer perguntas com
naturalidade.
Ficava provado que a dificuldade do lenhador em se abrir era devido a como ela
mexia com seu interior.
― Não tenho filhos e não é preciso dizer que nunca fui casado.
Ela ficou triste com as palavras do homem que já cruzara o limítrofe dos quarenta
anos. Ele parecia ser alguém frustrado na vida sentimental.
― Mas, você nunca desejou ter uma família? ― ela estava intrigada.
― Desejei, mas...
Ela permaneceu em silêncio obrigando ele a continuar o que dizia:
― Sempre me rejeitaram.
Naquele momento, Howard entrou correndo e gritando de alegria. O cão pulava ao
lado do menino e abanava a cauda com fervorosa euforia.
― Acalme-se, Wine. ― disse o lenhador.
O cão pareceu compreender e cessou de pular. O menino ficou triste:
― Estava tão legal.

376
― Ele precisa ir, e o cãozinho também. ― disse Tania mostrando uma cara feia ao
filho, para que este compreendesse e ficasse calado.
― Em outra ocasião eu trago o cão para você brincar. ― disse o lenhador.
Howard se contentou, sabia que não conseguiria brincar com o cão naquele
momento e tinha consciência que nada poderia ser feito. Sorriu com tristeza
disfarçada.
Naquele momento, Dix surgiu à porta da cozinha e andava se arrastando devido
ao peso e a idade. A atenção do homem foi tomada e Tania percebeu. Ela se
esquecera de Dix que estava sentada na cadeira da cozinha tomando café e
precisava de ajuda rápida e presente para sua devida locomoção.
― Espere que eu te ajudo, Dix. ― disse Tania se encaminhando para a velha
senhora.
O lenhador tomou posição e também foi até a idosa. Tania se preparava para
pegar num dos braços dela e auxiliá-la no processo de locomoção até o sofá
quando soou a voz do homem da floresta:
― Deixe comigo, eu a levo até o sofá.
Ele sabia que a velha deveria ser depositada no sofá repleto de cobertores, pois
sempre a vira lá deitada.
― Eu pego em um braço e você no outro. ― Tania deu uma opinião sobre o
melhor modo de transportar a senhora, em dupla.
― Não se faz necessário, eu a levo. ― disse o lenhador feliz pela oportunidade.
Como que por mágica, Dix apareceu no colo do lenhador. Ela deveria pesar mais
de cem quilos e mesmo assim, não era suficiente para obrigar o homem a bufar
durante o percurso. Muito pelo contrário, ele a levou com uma tranqüilidade
celestial.
Seus músculos braçais ficaram mais salientes e demonstraram-se gigantescos,
fato que não passou despercebido aos olhos da surpreendida Tania.
Sem problemas, o lenhador depositou a velha no sofá e de quebra, a cobriu com
três cobertores.
― Obrigada, você é um homem muito atencioso. ― elogiou Dix com a voz
forçada, pois fora acometida por um pequeno resfriado e não se sentia muito bem.
Quase obrigou os olhos de Tania lacrimejarem com a linda cena presenciada.
Deveras, estava de frente para um homem de respeito e ela nunca percebera isto
devido ao sofrimento com a morte do marido.
O lenhador foi até a porta de saída e passou a mão na cabeça do menino em
modo de carinho e depois bateu uma palma para chamar atenção do cão que tudo
assistia e disse:
― Vamos ao trabalho.

377
Tania foi até a porta, o homem estava pronto para empurrar a vagonete rumo à
casa dos Harter.
― Obrigado por ser tão bondoso conosco. ― disse Tania com um sorriso
estampado no rosto.
Dix, por ser muito sábia e experiente chamou a criança para dentro e a distraiu
com conversas.
Pegara no ar o fio da meada e desejou dar uma forcinha para Tania, sabia que
alguém precisava ocupar o lugar do falecido Stace na vida da ainda jovem e
formosa mulher.
Do lado de fora, o lenhador disse suas últimas palavras daquela memorável visita:
― Caso precisarem de mais lenha até o anoitecer, procurem uma forma de me
avisar.
― Amanhã eu voltarei, como sempre. ― emendou.
Tania apenas sorria. Um sorriso que naquele momento se tornou tímido. Foi um
momento muito agradável a visita do homem da floresta, ela, a exemplo do filho,
se sentia protegida com ele por perto. Talvez ele fosse capaz de dissipar com sua
presença o medo que o filho trazia dos gritos do menino da rua de trás e dos
imaginários soldados que apareciam na frente da janela de seu quarto, fitando-o.
O lenhador empurrava o vagão até a casa ao lado e trazia em sua mente alguns
pensamentos agradáveis, tinha esperança para ser mais claro.
Singer calculava em forma de expectativas dentro de si, enquanto que Tania,
fitando-o de sua porta trazia pensamentos mais altivos do que o do homem.
Ele trazia pensamentos de esperança, e ela, por sua vez, pensamentos de
certeza.

***

Josias Parker despertou.


Dormira pouco.
O sono permanecia o incomodando, fazendo com que tivesse a sensação de que
a cabeça lhe pesava uma tonelada ou que estava com uma imensa bola de
chumbo dentro de sua caixa craniana.
Todavia, o que tinha a fazer era mais importante do que infantis horas de
descanso.
Chegou o grande momento de contemplar sua obra-prima. O momento de se
orgulhar de tudo aquilo que sua mão era capaz, mesmo que enfrentando a tudo e
a todos.

378
Há muito tempo não acordava pela manhã com uma sensação de alívio como
após ter cometido aquela vingança exemplar.
A sua vingança serviria de exemplo para todos os que ousassem a interferir em
seu caminho de justiça e retidão.
Não sabia a proporção do estrago causado pela sua obra. Não se importava se
todo o vilarejo tivesse se convertido em brasas e cinzas malévolas.
Gostava mesmo é de impor respeito e exigia que acatassem ao seu pedido
compreensível e justo. Para ele, bastava que o enxergassem como o juiz, o
intocável e irrepreensível carrasco do vilarejo.
Não custaria tomar um caprichado café antes de contemplar as conseqüências
dos seus dotes artísticos.
O andarilho sumira, pois se tratava de um bundão que tinha medo da própria
sombra.
Os habitantes que não viessem com a história de que Nikosson fora atentado por
uma gangue cruel, o juiz não acreditava em qualquer uma das afirmações das
pessoas que na verdade queriam passar a mão na cabeça do farrapo e tratá-lo
como um pobre e coitado.
Parker poderia despachar aquela gangue que era fonte da imaginação fértil dos
imprestáveis moradores de Pitfall apenas com sua voz de justiça.
Foi até o banheiro e consultou seu rosto, havia a marca da vitória estampada em
sua face. Porém, seus olhos estavam muito avermelhados devido à noite mal
dormida.
Parou suas reflexões quando sentiu um cheiro diferente, não era café e nem
queijo derretido. Era um cheiro de queimado, mas não havia com o que se
preocupar, pois nada em sua casa estava sendo queimado.
Aquele cheiro dava o ar das graças e o congratulava pela sua conquista no
território inimigo. Era o aroma da vitória que invadira suas narinas, era o sinal de
que seu ataque de justiceiro obteve um êxito incontestável.
No mínimo uma rua toda de casas fora consumida pelas chamas assassinas e isto
era bom, muito bom. Era a prova de que ninguém poderia ser superior a ele.
O médico o provocara e recebera a excelente punição pelo seu pecado.
Mas, e se Claire Freebody fora queimada?
Restava o consolo de julgar que uma bela carne se tornara em churrasco.
Não se importava com tal preocupação, ela também impôs injustiça a ele e era
louvável que compartilhasse do castigo punitivo do marido.
Escovar os dentes?
Não era o momento mais oportuno para aquilo, era o momento de se alimentar e
depois se regozijar.

379
O café que preparou foi um pouco reforçado além da conta, na verdade, iria
consumir gordura suficiente para tapar as veias de um elefante.
Quatro fatias de bacon que deveriam ter apenas sua décima parte de carne e o
restante, de venenosa gordura animal clamando para invadir sua corrente
sanguínea e dar cabo da sua vida, do malvado e inconseqüente vingador.
Ora, até os bacons clamam por justiça.
E o que dizer das três fatias de torrada que mergulhara no pote de manteiga?
Precisava de energia, de fibras alimentares. Afinal, ele era um homem de fibra.
Alguém tinha dúvidas disto?
Era um homem que Claire deveria ter notado e escolhido, ao invés do descuidado
médico que permitira que o justiceiro minasse sua casa na madrugada com
truques pirotécnicos.
A única testemunha de seu justo delito estava ausente e não teria coragem de
entregá-lo. Bastava colocar uma boa fatia de carne na frente de Nikosson e
comprar o seu eterno e precioso silêncio.
Mas, para o caso de o andarilho o entregar, poderia sofrer com a represália do
justiceiro.
Conclusão, seria melhor que o andarilho se mantivesse calado como sempre
estivera, com a língua enrolada no meio da boca.
Uma justiça exemplar para o andarilho seria ter outra fração de sua língua
suprimida e tal castigo iria doer até em quem ouvisse o episódio de seu suplício,
em que o andarilho fosse pego pelo inominável carrasco.
Parker pegou duas torradas e fez um sanduíche com duas fatias do bacon como
recheio.
Devorou com uma fome animal, uma fome de comer para sobreviver. Uma fome
que poderia ser saciada apenas com vingança à mesa.
Queria soltar um grito de prazer, mas poderiam vir tirar satisfação de sua loucura.
Estava mergulhado em prazer solitário. Sua imaginação ameaçava.
O próximo incêndio apoteótico que provocaria seria na floresta, quem vivesse que
veria.
Restavam outras duas fatias de bacon e uma torrada. Poderia tomar dois copos
de uísque para finalizar o café da manhã.
Não poderia esquecer-se da sobremesa, um belo charuto fumegante e expelidor
de ares cálidos.
Merecia os mimos que tinha, pois sabia ser um herói que brevemente iria receber
seus devidos reconhecimentos.
Devorou o restante do bacon e depois se serviu de um copo de uísque para
acompanhar a torrada escorregadia.

380
A parte final do café não poderia ficar melhor, a torrada movediça escorregou de
sua mão e caiu ao chão.
A manteiga recebeu inúmeros pós do chão que se apegavam facilmente a
substâncias grudentas. A torrada aparentou estar recheada por aquelas geléias
com minúsculos flocos de chocolate.
Que beleza de café da manhã, pensou.
Gargalhou ao pegar a torrada do chão. Tossiu após os gracejos.
Não importava, tossir fazia parte de sua vida, como quando um homem se casa e
sua mulher não é capaz de desgrudar da sola de seu sapato por um miserável
segundo.
Bebeu o copo todo de uísque e comeu a torrada com gosto, a manteiga suja
parecia ter adquirido o gosto de mofo ficando assim mais atrativa ao freguês.
Não poderia mais se dar ao luxo de titubear. Acendeu um charuto e o fumegou no
ambiente hostil que era sua casa, a casa do homem que espantava.
Olhou para a porta da sala e gargalhou com vontade. Tossiu com prazer.
Pegou a chave do bolso do macacão desbotado e foi até a porta.
Preparava-se para fazer surpresa.
Destrancaria a porta e faria a contagem regressiva, conforme a contagem
decrescesse o número, o grau de abertura da porta seria incrementado em uma
fração e cresceria, permitindo assim que a sua obra fosse revelada aos poucos.
Como uma cortina que se abre devagar para exibir um imenso quadro, revelando
suas novidades.
Destrancou a porta, abraçou a maçaneta com a mão esquerda e a girou.
Começou a contagem, tossia ao mesmo tempo.
A expectativa aumentava, começara a contagem pelo vinte, estava no treze, mas
ainda não era possível ver qualquer parte da obra, apenas cheirá-la, e que cheiro
agradável sua tinta artística portava!
A tinta com cheiro único, cheiro de material queimado.
Para o caso de chegar ao zero e não ter sido capaz de sincronizar a contagem
com o grau de abertura da cortina, poderia escancará-la aumentando assim a
surpresa do espetáculo.
― Nove.
Espere, havia alguém de pé, impedindo que fosse possível ver a sua obra.
― Oito.
Abriu mais um pouco.
― Sete.
― Seis.
Sim, havia alguém contemplando a sua obra e o impedindo de vê-la.

381
― Cinco.
O alguém estava acompanhado.
― Quatro.
O alguém trazia uma estrela dourada no peito.
― Três.
O alguém e o outro na verdade estavam de frente para sua porta, mas não
contemplavam sua obra, pois pareciam querer entrar em sua casa em operação
intrusiva para aborto do mau elemento.
― Dois.
Contava com a voz quase ausente como se estivesse prognosticando o que viria
pela frente.
― Um.
Orgulho ao chão!
― Zero.
O alguém era o xerife, o outro alguém era o médico, sua derradeira vítima.
Não foi possível sequer raciocinar. Parker fora entregue pelo farejar de um cão e
nunca saberia do fato. O cachorro-louco teria inveja do faro do verdadeiro cão e
raiva eterna de seu cuidadoso dono.
O médico olhava o carrasco sentindo orgulho de ser honesto. O que o xerife disse
em seguida soou como música aos ouvidos do médico:
― Josias, considere-se preso em nome da lei.

382
33

O JUIZ CLEPTOMANÍACO

Um clima de humor acometera o ambiente do xerifado.


Oliver Kingston e o xerife estavam jogando conversa fora enquanto Parker era
mantido no xadrez. O homem louco gritava uma vez ou outra provocando as
gargalhadas dos presentes.
O fato cômico era que os gritos de indignação mais pareciam um uivo de derrota
exprimido por um urso orgulhoso e não conhecedor das palavras “perdedor
inconformado”.
Parker tossiu alto e gritou:
― Me tirem daqui seus vermes. Dou-lhes dez minutos para me libertar, caso
contrário, sofrerão com a minha infalível justiça.
Tratava-se de uma oportunidade rara. O xerife não sabia o que era rir
descontraidamente na presença de um amigo há muito tempo, parecia ser
questão de anos atrás.
Kingston questionou o xerife enquanto este ria polidamente após o último protesto:
― Como ficará a situação de Parkhurst?
O xerife respondeu ainda com uma expressão de bom humor:
― Vamos dar um jeito. Os irmãos Blume são capazes de consertar o estrago
antes do anoitecer.
Os irmãos Blume eram dois eficientes carpinteiros e estavam socorrendo a casa
do médico.
― Mas, assim, o delito ficaria barato para Parker. Não, ficaria de graça. ―
contestou Kingston.
O detento que escutava a conversa bradou a plenos pulmões:
― Vá cuidar da tua irmã, aquela doente mental!
O xerife não se conteve e gargalhou com vontade, aquele dia aparentava se tratar
de um dia memorável. Kingston não se abateu com as palavras do homem que
não sabia pensar e disse em voz baixa ao xerife:
― Não rebaterei. Deixe os debates para os políticos.
O xerife aproveitou o gancho e agravou sua risada. Kingston estava mais sério,
era um homem controlado e íntegro, não era, portanto, tão favorável assim às
gozações que sofria o preso, por mais criminoso e culpado que fosse.
O negro trazia raízes cristãs em suas crenças.
O xerife se defendeu e respondeu quando conseguiu parar de rir um pouco:
― Ele será julgado nos conformes da lei.

383
Kingston não compreendia onde o xerife pretendia chegar. O homem da lei
consultou o relógio da parede e constatou que faltava um minuto para as nove da
manhã.
― Ele é pontual e nunca se atrasa. ― disse o homem da lei.
Kingston entenderia as palavras do outro somente quando visse com seus
próprios olhos de quem o xerife se referia.
O xerife foi até a porta, seguido por Kingston. Ambos olharam rumo à ruela que
cortava o meio da rua principal.
Uma figura exótica apareceu após virar os limites da ruela que conduzia à rua
principal. Ele usava toga negra, uma peruca branca e óculos, as duas primeiras
eram apetrechos antigamente usados por juízes em suas indumentárias.
O homem se aproximava e encarava o xerife e seu acompanhante. Ele parecia
falar em voz baixa, talvez algo ilegível para qualquer perito em leitura labial.
Deveria se tratar de uma algaravia.
Uma agravada brisa gelada obrigava o balancinho da forca a balançar de um lado
para o outro e emanar o som rascante do elo da corrente que estava acoplado ao
suporte superior da forca. O homem chegou de frente para o xerife e parou,
formou uma espécie de tubo com as duas mãos e as ligou colocando a direita
atrás da esquerda. Aquela formação manual foi levada à sua boca como se fosse
uma trombeta, o juiz então soprou e simulou tocar o som das trombetas como se
estivesse anunciando a chegada de alguém extremamente importante para seu
país.
Tam-tam-ram-ram-tam-taaaaaaaaaaaammmmm.
O homem tornou à sua posição natural, possuía um rosto fino, mas com um nariz
um pouco volumoso e parecia ter pouco mais de quarenta anos, talvez beirasse os
cinqüenta. Porém, quem o visse, perceberia uma vitalidade jovial que tinha o
poder de transmitir seus princípios.
― Obrigado por vir, vamos ao que interessa. ― disse o xerife entrando e
conduzindo o recém-chegado para o interior do xerifado.
Kingston estava sem palavras para descrever a cena assistida. O xerife cumpriu
com o que sempre afirmara que faria quando algum habitante viesse para o
xadrez.
Os três se acomodaram em suas devidas cadeiras. O xerife estava na sua de
direito e os outros dois sentados nas cadeiras de frente para ele, como se fossem
os interrogados em questão. Kingston quebrou o silêncio:
― Quer dizer que Pew Casper julgará o destino de Parker?
O juiz sorriu cordialmente enquanto notava a beleza que emanava duas miniaturas
em cerâmica que enfeitavam a mesa de lei, a da estátua da liberdade e a que
aparentava ser um templo asteca.

384
― Vamos saber qual será o destino de Parker. ― disse o xerife animado.
― Não joguemos conversa fora, tomem um café e vamos ao veredicto da lei. ―
emendou o xerife.
― Obrigado, não tomo café todos os dias, preferiria um prato de aveia ao leite. ―
disse o juiz como quem recusa uma oferta milionária e tem cacife para tal.
O silêncio imperava no interior da cela que ficava no aposento ao lado. Parker
deveria estar apenas pesquisando o que se passava no xerifado.
― Infelizmente não temos o prato requerido. ― lamentou o xerife em tom de
gozação, aliás, o xerife não conseguia falar sério naquele dia.
― Não se preocupem, eu já tomei meu café favorito em casa. ― disse o juiz com
tom de indiferença e levantando-se.
― Tragam-me o criminoso. ― emendou o juiz.
O xerife se levantou e botou seus óculos pretos, Kingston permanecia sentado e
teve que engolir uma advertência do juiz:
― É melhor auxiliar ele. Os homens de mente criminosa são imprevisíveis e
podem revelar seu lado mais violento em situações controversas como a prisão da
alma vingativa. ― filosofou o juiz.
Kingston entendeu o lado bom da advertência e acompanhou o xerife até a cela. O
juiz deu seu golpe quando os dois sumiram de vista. Arregalou os olhos e pegou
as duas miniaturas antes cobiçadas, depois as ocultou em um bolso interno da
toga.
Restava contar com a sorte. Seria algo impossível o xerife não perceber a falta
das miniaturas, mas, poderia incriminar Parker de qualquer modo e fazer os
objetos aparecerem como que por mágica em um local comprometedor para o
detido.
Pew Casper deveria ser um homem de muita sorte, pois enquanto estivesse
presente no xerifado, ninguém notaria o sumiço das peças em miniatura.
Foi o tempo de o ladrão reacomodar-se com postura em sua cadeira para o xerife
regressar trazendo Josias Parker que estava de mãos livres, sem algemas e
fumava um charuto fumacento.
O xerife obrigou o preso a sentar-se em sua cadeira de honra, a do xerife. Parker
fitou o juiz com um olhar de desprezo e nojo.
Frank estava de prontidão para sacar a arma e impedir qualquer tentativa de fuga.
Kingston ficou na porta do xerifado de braços cruzados, barrando a saída de
qualquer um, como se fosse o segurança de uma loja. O negro com sua juventude
e músculos avantajados deveria ser mais do que suficiente para barrar um velho
raquítico como Parker.
― Podemos começar. ― solicitou o xerife.

385
Parker aproveitou a deixa para baforar mais fumaça que invadiu as narinas do juiz,
provocando um forte pigarro neste último. Casper deu três tapas na própria boca
como se estivesse se punindo pelo pigarro, um costume corriqueiro em si. Toda
vez que pigarreava ou tossia, desferia três tapas punitivos na boca.
Afinal, não precisaria pedir desculpas pela sua falta de compostura após se
martirizar publicamente.
O xerife advertiu Parker:
― Apague o charuto e me dê.
― É melhor fumá-lo aceso, mas não cobice o meu, se quiser tenho outros comigo.
― respondeu secamente o detento.
― Você só se mete em rolos. ― disse o juiz para o julgado.
― Você é meu fã e por isto deseja ficar sentado à minha frente em pose de
veneração. ― rebateu Parker.
― Apague o charuto. ― Tornou a advertir o xerife olhando com seriedade para a
boina de Parker e com certa vontade de desferir uma pancada punitiva na cabeça
do acusado.
Parker obedeceu, mas pegou o charuto e girou a ponta acesa na mesa. Sua
atitude poderia ser vista como uma espécie de afronta aos presentes que
teimavam em lhe julgar. Afinal, ele era o juiz e deveria julgar e não ser julgado.
― Aconteça o que acontecer você sempre será visto como um louco. ― disse o
xerife indignado com a afronta, mas sem reação.
Parker tossiu e gargalhou com vontade, sem tirar os olhos do juiz que estava
mudo.
Kingston, à porta, procurava não entrar na discussão e fazia seu papel temporário
de guarda.
O auxiliar do xerife não pôde estar presente, pois fora acometido por uma forte
gripe após a noite fria da tempestade em que adormecera indevidamente
agasalhado após ingerir calmantes.
O xerife abaixou a cabeça e fechou os olhos como se estivesse cansado e metido
em uma tremenda enrascada:
― Pode começar a dar o veredicto.
O juiz apalpou o bolso interno da toga e pegou seu martelinho de madeira, faltava
a bloco oval de madeira usado para bater o martelinho e promulgar a sentença. O
xerife permanecia de cabeça baixa e com os olhos fechados, mais um sinal da
sorte monumental do juiz que apalpou o bolso para tirar o suporte oval de madeira,
puxou a miniatura do templo asteca e logo percebeu escondendo-a novamente.
Kingston não poderia ter visto, pois estava com a visão obtusa e o xerife deveria
estar com os pensamentos em outro mundo ao permanecer de olhos cerrados.

386
Entretanto, o acontecimento não passou despercebido aos olhos de Parker que
brilharam com sede vingativa.
Dois homens que se julgavam os donos da verdade estavam frente a frente, o
falso juiz seria julgado pelo verdadeiro, mas o verdadeiro estava nas mãos do
falso após a terrível revelação de cleptomania.
O falso juiz poderia dar uma sentença de justiça vingativa com as próprias mãos
ao verdadeiro quando findasse aquele anormal julgamento.
Parker encarava o juiz como um leão faminto em revelar a verdade. O juiz
entendia o olhar do outro e sabia que deveria amansar a pena, que deveria se
tornar tão leve como a de uma ave franzina e indefesa.
O xerife tornou a encarar a cena do julgamento e disse:
― Vou descrever os fatos.
Todos ficaram em silêncio esperando o relato do xerife.
― Houve um incêndio criminoso na casa de John Parkhurst e tudo indica Parker
ser o responsável.
O xerife deu uma pausa e prosseguiu:
― Não existem provas suficientes que incriminem Parker, apesar de o acusado ter
discutido ferrenhamente com a vítima no dia de ontem.
Pew Casper escutava o relato e assimilava a situação, se fosse pesar o caso na
súmula da justiça deveria pedir provas concretas do delito. Decidiu tirar uma para
descontrair, pois sua máscara havia caído aos olhos do julgado:
― Eu senti o cheiro de queimado quando despertei, pensei que houvessem
adiantado o churrasco comunitário do Dia de Ação de Graças.
O xerife não deu importância à troça e prosseguiu:
― Entendemos que o incêndio foi criminoso principalmente por ter sido esquecido
um galão vazio de combustível na rua, de frente para a casa da vítima. ― apontou
para o canto do recinto onde repousava o corpo de delito.
― Mas, qual é a prova de que Parker é o infrator? ― o juiz perguntou pensando
em livrar a cara do acusado e por sua vez, ficar livre da revelação caótica de seu
roubo.
O xerife raciocinou, não contaria o episódio em que o cão do lenhador farejou os
rastros de Parker para impedir contenda entre o preso e o dono do cão. Afinal, o
homem sábio é capaz de pacificar certas situações, impedindo que o fogo se
alastre pela floresta.
Fogo na floresta era tudo o que Parker desejava ver naquele momento, no
sentindo literal da coisa. Passava em sua cabeça uma forma de atear fogo
proposital na parte da floresta frente à casa do lenhador.

387
Parker julgava-se homem suficiente para confessar seus atos de justiça, não trazia
qualquer vergonha dentro de si sobre o que cometera. Haja vista que um ato de
justiça como aqueles deveria ser aplaudido e lembrado por todos.
― Eu sou o responsável pelo incêndio justiceiro. ― confessou, deixando os
presentes perplexos.
Kingston não se conteve:
― Ora, assim fica fácil punir o culpado. O próprio peixe morde a isca sabendo de
sua existência e cai na armadilha.
O xerife não se conteve e riu da mentalidade do criminoso. Ele se julgava dono da
verdade e juraria ter a chave do bem e do mal nas mãos.
― Quando o réu é confesso, a pena diminui. ― disse Parker procurando
misericórdia, mas disfarçava sua fraqueza como uma estrela de cinema
dramatizando.
― Aguarde o que é justo. Você tem dado muito trabalho para mim. ― disse o
xerife.
Pew Casper colocou a peça de madeira ovalada na mesa e segurou seu
martelinho de madeira com a mão direita, bastava calcular um veredicto e bater o
martelo proclamando a sentença cabível.
― Estamos lidando com um réu confesso, sim, podemos diminuir-lhe a pena.
O xerife esboçou feição de indignação, mas também não pensava em prender
Parker por mais algumas horas que fossem.
Parker dava um sorrisinho de vitorioso e fitava o juiz olho no olho. Frank indagou:
― E qual é a sentença?
O juiz levantou o martelinho de madeira, pronto para colidi-lo com o suporte
ovalado, também de madeira.
― Ora, o que é mais justo do que o infrator arcar com as despesas financeiras da
reforma do domicílio atingido pelas suas chamas justiceiras?
Bateu o martelinho três vezes no suporte e esperou a ação dos presentes. O
xerife foi o primeiro a dizer:
― Tudo bem, ficou barato. Mas, eu o libero agora?
― Não, quando a reforma for concluída...
Parker ficou irado internamente, mas tinha confiança de que não passaria aquela
noite na prisão, conhecia a habilidade dos irmãos Blume, parceiros de jogos e
sabia que seriam os únicos capazes de consertar seu estrago justo.
Todavia, o juiz e o xerife não ficariam impunes. Kingston sofreria seu calvário
depois dos dois poderosos. O peixe pequeno que esperasse sua vez e
respeitasse a vez dos grandes.

388
― Vamos à cela. ― disse o xerife colocando a mão no ombro do prisioneiro que
não ofereceu resistência e obedeceu.
Casper e Kingston foram assistir a cena do animal voltando para sua jaula.
Dinheiro não seria problema para o prisioneiro.
Parker assentou-se na banqueta de madeira que ficava no interior da cela, estava
desolado. O juiz não resistiu e disse para todos ouvirem fazendo uma troça com o
preso:
― Não é à toa que Parker vive com a cabeça metida na boina. Se eu tivesse uma
careca semelhante sentiria vergonha de sair na rua.
O xerife e Kingston riram polidamente da piada. Parker irou-se mais ainda, saberia
julgar o verdadeiro juiz. Porém, precisava se defender naquele momento e o fez
com excelso esplendor:
― Se eu tivesse um cabelo igual ao teu na cabeça...
Parou de falar e gargalhou, a expectativa dos ouvintes era gigantesca. Parker
tentou parar de rir para continuar e conseguiu dizer antes de explodir numa
gargalhada que contagiou a todos, exceto o juiz:
― Se eu tivesse um cabelo igual ao teu naquele lugar, teria vergonha de usar o
vaso sanitário para defecar.
O juiz ficou pasmo com a criatividade maléfica alheia e se arrependeu de ter
bancado o brincalhão, acabou sentindo-se envergonhado como um bobo da corte
após o revide do verdadeiro homem com dotes artísticos para palhaço zombeteiro.
Foi preciso transcorrer mais de um minuto para que as gargalhadas cessassem.
Parker tirou um charuto e um isqueiro de dentro do macacão:
― Vou fumaçar o ambiente para acalmar os nervos.
O prisioneiro não poderia ser impedido de fumar, por sorte, a cela ficava em outro
aposento ao do xerifado propriamente dito.
O homem baforou o charuto logo de cara expelindo uma leva fenomenal de
fumaça acinzentada.
Novamente o juiz precisou pigarrear e tossir após ingerir a fumaça. Deu três
tapinhas na boca de modo punitivo.
Pew Casper não queria deixar barato o fato de ser o último alvo de troças.
Tramava algo a dizer, mas conseguia apenas criar filosofias baratas, aberrações
imaginárias oriundas de uma cabeça culta, mas incapaz de exprimir senso de
humor:
― Josias significa lixo e Parker significa humano, logo, Josias Parker em grego é
lixo humano. Vocês têm o hábito de chamá-lo de Parker que é humano, então, por
quê não chamá-lo de Josias que é lixo, apenas?

389
O xerife e o negro ficaram em silêncio, não encontraram motivos sólidos para rir
da piada sem noção do juiz, este ficou um pouco sem jeito e julgou ser o momento
de voltar para casa onde vivia só.
Parker sentiu um imenso gozo dentro de si, o outro tentava imitar seu humor, mas
era incapaz. Baforou o charuto e disse:
― Todos tentam ser como eu por inveja, mas não conseguem se assemelhar a
uma bactéria de minha unha do dedão do pé. Seu bando de invejosos!
O xerife precisava botar um fim no assunto, a brincadeira de permitir que Pew
julgasse Parker estava rendendo mais do que o esperado. O prisioneiro era
incapaz de conviver com algum semelhante ao redor, tratava-se de um animal
perigoso que marcava seu território e era capaz de atacar qualquer espécie de
invasor.
― Vamos andando, deixe que ele amargue um pouco da solidão da cela fria. ―
solicitou o xerife.
Solidão? Parecia chacota dizer que Parker conhecia o termo solidão, do contrário,
era totalmente imune a senti-la ou testemunhá-la.
― Espere, deixe-me fazer meu último relato. ― pediu o juiz.
Kingston bufou e fitou a porta com cara de indignação, o xerifado havia se
convertido em um poleiro de figuras anormais se atacando com palavras. O juiz
formou uma espécie de esfera com as duas mãos e começou a girá-las simulando
que a superfície de uma bola se movimentava constantemente, suas manobras
chamavam a atenção e eram interessantes:
― Acredita que eu possa abrir um buraco negro, a terrível porta eterna do
universo paralelo e enviar Parker para outra dimensão ou ainda mandá-lo para o
raio que o parta?
O xerife e o negro continuavam não aprovando as brincadeiras do juiz. O preso
deleitava-se com as cenas assistidas.
Realmente, era preciso ter estômago para engolir as atitudes do juiz sem vomitar.
Este, por sua vez, fez um novo gesto manual, entrecruzou os dedos de uma mão
na outra e disse:
― Posso também gerar um campo magnético ígneo capaz de lançar tochas de
fogo punitivas e incinerar o delinqüente.
Kingston decidiu tentar um modo de espantar o juiz, fazê-lo se sentir engraçado,
deu um sorriso e disse amistosamente:
― Eu achei essa engraçada e criativa. Você é um homem muito inteligente.
― Sim, vocês não estavam me compreendendo corretamente. Agora que você
entendeu, explique para o xerife.
― Não quero explicações, vamos embora. ― disse o xerife sem paciência,
virando-se para tomar o rumo da porta de saída do aposento da cela.
390
Kingston o seguiu, o juiz foi atrás e se virou para Parker antes de sumir de vista:
― Qualquer hora eu te quebro de pancada.
― Tente a sorte. ― rebateu o preso provocando riso nos outros dois que estavam
fora da discussão.
Ficou claro que Parker levava vantagem ao juiz quando o assunto era provocar o
psicológico alheio e arrancar risadas. Aliás, nenhum homem no mundo seria capaz
de levá-lo nas palavras e se conseguisse a façanha teria um castigo semelhante
ao do médico sem-paredes.
― Ei, xerife, você deveria se preocupar com Nikosson que desapareceu após o
incêndio ao invés de me deter e me taxar como homem mau. ― gritou Parker.
O xerife escutou, mas não assimilou a princípio. Parker julgava que o andarilho
sumira do vilarejo, pois este era um medroso de carteirinha que deveria estar no
mínimo refugiado na floresta esperando que toda vila houvesse sido incendiada.
Os três novos nomes da lista de Parker haviam se retirado, este ficou só, fumando
seu charuto. O primeiro seria o juiz, depois o xerife e por último Oliver Kingston.
Gostava de tramar vinganças específicas para cada personalidade de pessoa,
afinal, cada um tem o gênio que merece.
Gostava também de assistir a cara de arrependimento de cada um. A vingança ao
médico estava completa? Talvez sim, o médico era muito inferior e seu eu
requisitava uma vingança de escalão mais alto, o xerife.
Mas, naquele momento, gostaria de assistir o rosto de arrependido de um certo
juiz que usava uma peruca com cachos brancos bem aderidos que seriam um
espetáculo ao queimar no fogo.
Melhor pensando, existia um modo de se vingar de todas as pessoas de Pitfall:
colocar fogo na floresta. E quem poderia ser testemunha de sua implacável justiça
em meio à vastidão de vegetação esverdeada prontinha para arder na brasa?
As árvores não falam, mas só faltava isto acontecer em Pitfall.
Eles que se preparassem para seu revés...

***

Era um momento decisivo. Um teste de sobrevivência.


Dois homens eram mantidos trancafiados em um aposento de hotel.
A fome com sua face negra e foice sedenta em cortar trigos abastados de dias fora
a responsável por ceifar o sossego dos dois.
Era preciso tomar uma decisão, tentar fugir do hotel ou esperar, esperar e morrer
de fome.

391
Norman estudou a possibilidade de pularem a janela do quarto. A ideia foi usar
dois lençóis para formar uma espécie de trança como a de Rapunzel e atá-la à
forte cabeceira da cama, permitindo assim que usassem a engenhoca como cabo
de descida.
Para os mais pessimistas, ou realistas, a cabeceira de madeira da cama deveria
estar oca e usada como morada de legiões de cupins devastadores, capazes de
desossar um humano em poucos minutos. Assim não suportaria o peso e
debandaria.
Para os mais espertos, como era o caso dos dois hóspedes, não havia cupins,
pois seria possível escutá-los ruminando o interior da cabeceira nas madrugadas
silenciosas.
Forbes esbanjava uma inquietação delirante, Norman parecia raciocinar. Ambos
estavam sentados à cama, de frente para a porta com seu novo orifício cheirando
à pólvora e madeira queimada.
Forbes consultou seu relógio de pulso.
― Aproxima-se o meio-dia.
Norman afirmou com a cabeça, mas permanecia absorto em um mundo
longínquo.
― Sabe o que isto significa? ― indagou Forbes, falando desprendidamente.
― Sei, significa que passamos do horário do almoço. O taverneiro deve estar nos
esperando com mais uma de suas exemplares gastronomias.
― A comida da mulher dele é muito boa. Ao menos algo de valor neste vilarejo
sombrio.
Norman assentiu. Forbes zombou da situação adversa:
― Nos resta um consolo, escutar o padre tocar o sino.
― Sinalizando nossa completa desgraça. ― Norman contrariou o outro, falava o
mais sério possível.
― Ora, não é tão grave assim. Espere a fome apertar e eu mostrarei para o velho
e seu filhote como se faz uma bela fuga.
Norman sabia que o outro não perdia a pose, sempre se mantendo otimista, mas,
até que ponto a fortaleza que demonstrava ser Forbes suportaria sem sucumbir?
Surgiu uma chance, era como se houvesse caído do céu. A voz distante de
Bobster soou, ele parecia estar de frente para o primeiro aposento e deveria estar
se encaminhando ao quinto, talvez estivesse levando seu amado filho para dormir
após este ser espantado por um tiro.
Os dois hóspedes ficaram em estado de alerta. A voz que parecia ser a de Bobster
soou e vinha de muito próximo:
― Não deixarei barato o buraco da bala.

392
Alguém fechou a porta do quinto aposento, deveria ser o filhote de malvado que
esperava pelo seu fiel curador e protetor. Talvez o velho do hotel estivesse
levando o restante de alguma carne de banquetes anteriores.
A situação pareceu transformar a tranqüilidade dos dois em uma peneira que
permitiria a passagem de fragmentos de medo e dúvida.
Era preciso fugir e para bem longe do hotel.
Soou a voz do velho, ela vinha do quarto ao lado, o quinto. Era lógico que ele
falava com o filhote e os dois se encontravam lá, no aposento ao lado.
Poderia ser uma chance de ouro. Já haviam combinado que Norman deveria
esquecer seus pertences até segunda ordem, até que o xerife viesse fazer uma
busca no hotel para desmascarar para sempre Jim Bobster.
Mas, e se Bobster fosse desmascarado e sua face fosse medonha?
O mistério do hotel englobava mais coisas complexas e incogitáveis ou se estava
falando apenas de um louco na terceira idade, querendo dar uma aparência de
castelo do horror ao hotel?
Forbes tomou a frente e tateou o bolso em busca da chave da porta. Correram no
corredor sem se preocupar se iriam alarmar a fuga com seus passos rápidos e
fortes.
Foi o que aconteceu.
Quando conseguiram chegar ao saguão após descerem afobadamente a escada
soou um som de uma porta sendo aberta no andar de cima.
Eles vinham ao encalço dos fugitivos, o malvado e seu velho protetor.
Não era possível pensar, correram até a porta de saída que estava entreaberta e
nem sequer se preocuparam em fechá-la, correram para a taverna, a fim de matar
a fome e se manterem distantes das dependências de Bobster e sua indesejável
presença.
Eles correram tanto que não perceberam que havia algo de diferente no quadro da
velha caolha, algo que chamaria a atenção do mundo. Um rasgo na parte inferior,
talvez provocado pelas unhas do filhote de malvado.
Empurraram a porta de vai e vem da taverna e ficaram com seus queixos no chão.
Um homem velho estava sentado em um banco de frente para o balcão do
taverneiro, ele tomava em uma xícara o que deveria ser um café pelo fumegar
disperso. O homem sobressaltou-se com a pressa com que alguém chegava e
empurrava a porta de vai e vem da taverna, tanto que virou a cabeça para estudar
quem chegava.
Os dois forasteiros estavam espantados, encarando o velho, olhos nos olhos.
Olhos conhecidos.
Eram os olhos de Jim Bobster.

393
***

Sua tarefa estava cumprida.


Julgara com retidão e coerência.
Não seria má ideia julgar mais alguém, faltava encontrar o réu adequado para
receber sua voz de punição ou de absolvição.
Quem seria a vítima?
Quem seria a pobre alma que se julgava invencível como Parker a receber o que
merecia e se postar em seu devido lugar?
Perguntas que ele brevemente responderia.
Estava com a indumentária adequada. Faltava os últimos preparativos para
cumprir o ritual que deveria ser seguido à risca para simular um verdadeiro
julgamento.
Calculava que deveria julgar alguém que permitisse ao julgamento entrar para a
história.
Apalpou o bolso interno da toga e retirou os objetos afanados no xerifado.
Colocou cada um em uma extremidade da sua mesa da justiça, a miniatura da
estátua da liberdade à direita e a do templo asteca à esquerda.
A cortina estava devidamente cerrada e a porta muito bem trancada, assim,
impediria que inoportunos atrapalhassem o memorável pleito.
Restava o último preparativo para começar o julgamento, posicionar o bloco
ovalado de madeira, o Romeu, carinhosamente apelidado por ele. Simbolizava o
homem que deveria se portar como todo bom homem e tomar pancadas da
mulher, seu martelinho, a Julieta, outro apelido carinhoso elaborado pelo
inteligente ex-juiz.
Afinal, todo homem deveria ser um bom masoquista quando estivesse de frente
para sua mulher.
Sentou-se na cadeira da justiça e guardou um minuto de silêncio, seu semblante
sério poderia ser motivo de troça para reais presentes no julgamento, porém não
existiam pessoas reais em sua sala, apenas uma centena de imaginárias.
Na parede atrás dele, havia uma placa trazida como souvenir dos tempos áureos
de tribunal, ela dizia em letras douradas pregadas em uma madeira bem
envernizada:
IN GOD WE TRUST
Havia uma cadeira, a cadeira do réu, de frente para o juiz e do outro lado da
mesa.

394
O réu era simbolizado por uma bolsa com uma bandeira do Canadá pintada em
azul, havia escrito:
CANADÁ, A TERRA DA LIBERDADE
Surrupiara a bolsa da casa dos Bombay, a bolsa deveria pertencer a Dix, pois era
um artefato com visual antigo e desgastado. Mas, era possível transportar um
pesado cão em seu interior, em vista de seu tamanho e aparente resistência.
Terminou o minuto de silêncio. Ele deitou a Julieta na mesa e começou a primeira
parte do seu modo de julgar, sempre com filosofias baratas que antigamente
faziam arder os ouvidos das mais requintadas autoridades presentes no tribunal.
Ele falou com voz de autoridade e intimidação:
― Quando o homem zomba da lei, amontoa mutirões de lixo em sua vida futura e
perde o bem mais precioso que lhe cabe, o documento de identidade que afirma
que ele respeita a lei e seus meios de julgar.
Sentiu um gozo interior, pois ainda era capaz de expelir sabedorias aos ouvidos
alheios. Prosseguiu:
― Roubar é ruim, matar é péssimo, zombar da lei é ato inapelável e imperdoável.
Ele apontou o dedo indicador para um réu imaginário e fez uma ilustração:
― Um irmão era gorducho e outro era magrelo, a mãe chegou da ginástica e
encontrou um frango devorado na geladeira. Qual dos dois irmãos comeu o frango
impiedosamente?
Esperou alguns segundos como se simulasse o tempo de resposta do réu
imaginário:
― O gorducho? Mentira!
Levantou-se e apontou o indicador com mais ameaça:
― Preconceito!
― Indícios duvidosos não são provas concretas e exatas. O irmão magrelo
também possui um estômago capaz de comportar um frango inteiro, seu imbecil.
Ficou na dúvida se um estômago sozinho poderia ser o abrigo de uma carne mal
mastigada e procurou se redimir, pois o réu não era um simples mortal:
― Entretanto, a resposta certa seria que os dois comeram o frango.
Deu uma pausa e tornou a remendar a situação:
― Mas, eu teria certeza de que o gorducho devorou noventa por cento do
galináceo.
Sentiu-se mais embaraçado do que anteriormente, não poderia se dar ao luxo de
escorregar perante o réu que era apto a desferir uma resposta certeira e ferir sua
infinita inteligência.
Sentou-se e acalmou-se.

395
― Prossigamos com uma palavra de sabedoria: você, estando certo ou errado
poderá ir para a jaula se eu te julgar com indubitável autoridade.
Fitou o teto.
Imaginou a platéia sedenta de aprender com sua sabedoria. A platéia fascinada,
falou em coro uníssono:
― Óóóóoohhhhh.
O réu se matinha omisso, quieto, dominado pela suma sabedoria do ex-juiz.
O acusador contemplou as duas novas miniaturas de sua mesa e disse ao réu:
― Faça como eu. Se algo alheio se encaixar melhor em nossa propriedade, não
se caracteriza roubo o furtar. O mundo carece de beleza arquitetônica e clama
pelo arranjo escultural de um mestre semelhante a mim.
O réu permanecia em silêncio mórbido, definitivamente não possuía a inteligência
do juiz.
― Muito bem, meu nome é Pew Casper e eu serei o responsável por colocar esse
investigador charlatão na cadeia.
Ele tornou a simular um olhar ao réu e disse com propriedade:
― Eu sou o Casper, Pew Casper.
Seus devaneios ultrapassavam os limites da loucura. Era um homem solitário e
precisaria passar o seu tempo, distraindo-se com algo, sobrou a opção de simular
insólitos julgamentos e demonstrar toda a sua audácia e perspicácia.
Pegou a Julieta com a mão direita e elevou-a:
― Chegou a tua hora. Quem poderá te livrar de mim?
Olhava ameaçadoramente para a bolsa antiga.
Acalmou-se e tornou a deitar a Julieta. Bufou fingindo estar cansado de lidar com
charlatões:
― Você não contava que um dia encontraria um juiz como eu. Eu sou a tua
acusação e a tua defesa. O que temos em tua defesa? Nada!
― Você julga a fama algo suficiente para inocentar a tua conduta? Volte para o teu
lugar, livre o meu país e honre a tua nação!
Esperou alguns segundos, não ouviu o clamor dos expectadores e nem objeção
do réu.
― Como veio parar no melhor lugar do mundo?
― Não estrague a imagem de meu país.
O réu pigarreou e abaixou a cabeça, lamentando.
― Outra sabedoria: existiam dois caminhos, um demonstrava rua azul, o outro rua
vermelha, o homem de verdade entra e segue no caminho de rua azul, pois no fim
você saberá que o tal caminho conduz ao meu país e se arrependerá de lá chegar.
O réu aparentou querer abrir a boca para objetar, o juiz o interrompeu:

396
― Aquieta-te, pois onde terminam minhas palavras de sabedoria começam as tuas
asneiras de degenerado de guerra.
― Óóóóoohhhhh. ― a platéia estava maravilhada.
Ele elevou a mão direita informando que a platéia deveria se calar e ela obedeceu
rapidamente:
― Não terminei as acusações, tenha paciência, algumas poucas coisas eu ainda
tenho contra ti.
O réu fitou o juiz com olhar de derrota, o julgador prosseguiu:
― Espere e saberá sobre o teu trágico destino de suplícios.
A platéia começou a ficar em clima de suspense pelo desfecho esperado.
― Não basta tecer conjecturas aleatórias como você sempre fez e acertou na
mosca, por sorte, poderias ter jogado e ganho na loteria. Minhas conjecturas
estando certas ou erradas definem destinos, e o teu será desesperador.
Começou a soar uma ladainha da platéia que prestigiava o julgamento do século.
― Silêncio no tribunal. Caso contrário, serão julgados na mesma medida que o
acusado.
Houve o silêncio requisitado, o juiz era medonhamente respeitado.
Pew Casper bocejou, precisava comer algo e tirar sua soneca da hora do almoço.
Seu mundo era vazio. Carente de relacionamentos com outro ser humano, mas
abundante em esboçar devaneios, sem nada dever a alguém.
O réu abriria a boca novamente. O juiz interpelou-o lançando o braço ao ar como
se estivesse disparando um poder mágico:
― Cuidado! Tuas palavras podem condená-lo. Não entre em contradição.
O Romeu clamava por receber a pancada de amor da Julieta, o ex-juiz sabia, mas
o homem deveria se controlar e esperar sua hora de receber o golpe da fêmea
chegar para finalmente se livrar das palavras agressivas e sem nexo do homem
louco.
Até os objetos inanimados gostariam de fugir daquela tortura imposta pelo reto
juiz.
Pobre das miniaturas afanadas que recebiam suas boas-vindas com aquela fonte
humana de suplícios.
O réu demonstrava tamanho desconforto que necessitava encarecidamente abrir a
boca para se condenar e parar de ouvir o sermão imposto pelo mais poderoso.
O juiz apalpou a região do estômago e escutou um ruir abismal. Seria necessário
interromper a sessão para um lanche?
Sim.
― Suspendo a sessão para uma refeição, podem aguardar em suas posições que
em breve retornarei.

397
Estava satisfeito. Sabia que a platéia estava maravilhada com a sua indiscutível
superioridade.
Levantou-se e foi até a cozinha que era o cômodo de trás. O térreo era composto
pela “sala de julgamento” e a cozinha, dois quartos e um banheiro no andar
superior complementavam a estrutura de sua casa.
Amava aquilo. Aveia ao leite.
Preparou um prato cheio e devorou como almoço, não se preocupava em demorar
e fatigar as pessoas que compareceram ao tribunal, elas seriam devidamente
impedidas de abandonar o julgamento memorável antes de seu fim. Pois, havia
três fortes seguranças em guarda na “sala de julgamento”.
Limpou a borda da boca e a ponta do nariz com a toga, foi fácil mascarar seu
delito, bastou esfregar a parte manchada da toga com outra região limpa. Era
como se os fragmentos de leite que haviam sido impregnados no tecido da
indumentária fossem desintegrados e iniciassem queda-livre ao chão.
Voltou à sala de julgamento, escutou os presentes, inclusive o invejoso réu que
acompanhou com a cabeça os seus movimentos de regresso:
― Óóóóoohhhhh.
O juiz sentou-se e não demorou em desferir mais uma das suas:
― Ao me alimentar refleti sobre o veredicto mais viável. Parece que meus
neurônios trabalham com mais gratidão quando estou a me saciar.
― Espero que meu veredicto não obrigue que você faça uma última prece.
O olhar do réu esboçou gratidão, seus olhos avermelhados de emoção marejaram,
tinha certeza de que o juiz em toda sua retidão iria inocentá-lo.
O juiz o fitava com olhar altivo. Pegou a Julieta.
― Percebi que você não é a pessoa mais indicada para estar aqui de frente
comigo.
Deu uma pausa para fazer mistério:
― Sabia?
Outra pausa se seguiu:
― Existem muitos melhores do que você que ao serem acusados aumentariam
meu status de coerente e me dariam a condecoração de juiz do século!
Pew Casper fizera um excelente pé de meia que lhe assegurava um futuro
tranqüilo e fugira da obrigação de ser juiz.
Fora possível cometer tamanha atrocidade devido ao seu elevado salário.
Refugiara-se em Pitfall e julgava que nunca seria encontrado, sabia também que
deveria estar sendo procurado como desaparecido, seria cômico enxergar sua foto
no quadro dos desaparecidos de uma delegacia qualquer ou estar com o rosto
pregado em postes do país inteiro, principalmente em Nevada, de onde fugira.

398
Procurava se esquecer da época em que propunha enigmas no próprio pleito
judicial e eles o levavam a sério, era muito respeitado e temido pela sua
sabedoria.
O mundo carecia de juízes retos em suas decisões como ele. Mas, toda estrela
deveria ter seu brilho escondido em determinado momento da vida. O assédio e a
procura eram capazes de privá-lo das tarefas mais particulares e íntimas e por isto
se julgava muito bem refugiado e encoberto.
A platéia aguardava ansiosa as próximas palavras opressivas que receberia o réu.
― Não tente esconder-me confidências, estou aqui para desmascará-lo.
O réu era apedrejado com vaias do público que demonstrava estar do lado do
julgador e acusador. Era o momento propício para dar um fim no julgamento.
Abraçou a Julieta com força e carinho e mirou o Romeu. Elevou a Julieta e deu
três batidas fortes no Romeu, promulgando a sentença esperada:
― Condeno-te a sofrer alguns dias em prisão e após tal vergonhoso tormento ter a
cabeça decepada por uma guilhotina fabricada especialmente para ti!
Ele era um mero juiz refugiado e o réu um célebre personagem que entrou para a
história da literatura, um famoso detetive londrino admirado pelo mundo e
perseguido pelo coerente juiz.
O sangue da justiça circulava nas veias do juiz, como um icor particular e
desconhecido.
O réu recebera a sentença e fora acusado sem ousar abrir a boca para contrariar
as duras verdades proclamadas por Pew Casper.
O mundo do lado de fora girava em torno de um possível perigo vindo da floresta,
o homem com sua peruca branca estava alheio a tudo isto em seu mundo
imaginário.
O ex-juiz tinha duas virtudes em questão, a de não perambular pelo vilarejo à noite
e nem voltar tarde da taverna.
Mas, quem poderia garantir que uma porta trancada fosse suficiente para impedir
qualquer ataque a uma pessoa que vivia em outro mundo?
Após a sentença, a platéia não deixou de esboçar sua última maravilha:
― Óóóóoohhhhh.
Em verdade, era necessário que o ex-juiz retornasse ao mundo real, pois aquela
noite prometia ser atribulada e poderia exigir um cuidado extra dos habitantes.
Todas as noites de Pitfall nos últimos tempos mereciam respeito e cobravam um
caráter zeloso de seus moradores.
O ex-juiz era destemido, anormalmente corajoso, porém, naquele momento tinha
plena ciência de que não deveria bancar o espertalhão como gostavam de fazer

399
certos habitantes do vilarejo. Por mais que gostasse e vivesse em um mundo
imaginário, era também uma das sentinelas mais atentas.
Era um daqueles que reforçariam a porta pregando todos os pedaços de tábua
que encontrasse pela frente, tudo isto para impedir que algo ou alguém
desconhecido o fizesse uma visita de cortesia. Principalmente depois que vira uma
sombra gigante sair de dentro do poço em uma madrugada poucos dias atrás.
O julgamento terminou e ele foi direto procurar as tábuas e puxar os móveis da
cozinha para a sala de julgamento, a mesma que possuía a porta que dava
acesso ao restante de Pitfall e sua infinidade de bosques encobertos por
gigantescas sombras opressoras.

400
34

OS FORASTEIROS DÃO UMA SUGESTÃO

― Terminamos.
O xerife ficou surpreso com a chegada repentina dos irmãos Blume ao xerifado.
Cecil era o porta-voz da dupla. Christopher se mantinha a estudar o xerife com
seus olhos de coruja, prontos para seguir qualquer movimento alheio.
― Rápido assim? ― perguntou o xerife após o susto.
― Costumamos prezar a eficiência desde os tempos de orfanato. ― respondeu
Cecil procurando não cair do fio bambo da cordialidade.
― Melhor, livraram a cara de um doido. A propósito, se caso vocês não
terminassem o serviço antes do anoitecer dificilmente teriam com quem jogar
cartas na taverna na solitária noite que se aproxima. ― o xerife cutucou, mesmo
sabendo que os irmãos eram de fato eficientes em suas obrigações.
― O jogo que fique para depois. Quando vamos receber o pagamento pelo
majestoso feito? ― Cecil questionou em resposta não deixando de responder à
altura, na ironia.
― Acredito na eficiência dos senhores, o pagamento será feito pelo infrator.
Até Chris Blume ficou alarmado com as palavras do homem da lei, permanecia
boquiaberto como sempre, como um bobo que precisava manter a boca aberta
para respirar adequadamente.
― Nada mais justo. Que brilhante ideia a do senhor ao penalizar o autor do
estrago a fim de que pague pelo seu ato cruel. ― Cecil elogiou.
― Não me pajeie, odeio que massageiem meu ego. Parker foi devidamente
julgado pela pessoa certa.
A conversa tomava rumos que provocavam comichões nos ouvidos de Cecil que
decidiu por um fim:
― Quando receberemos?
― Assim que possível, primeiro vou libertar o infrator e exigir que desembolse os
gastos. Quanto ficou?
― Seiscentos dólares, um preço camarada pela obra de arte que fizemos, a
parede reconstruída ficou de uma beleza exótica, graças a Parker.
― Ele vai pagar. ― o xerife procurou consolá-los.
― Olha que fizemos um excelente trabalho, veja com os teus próprios olhos. A
parede da casa do médico se tornará ponto turístico de Pitfall, lixamos as
madeiras que dão a impressão de serem douradas reluzentes.
Ponto turístico?

401
Só faltou o xerife rir da cara de Cecil, qualquer pessoa em sã consciência
consideraria a hora de sumir de Pitfall.
O xerife se cansou dos dotes egocêntricos dos Blume e os conduziu até o recinto
da cela onde repousava Parker:
― Sigam-me, vamos combinar o pagamento.
Parker estava deitado com os braços apoiando a cabeça para que a mesma não
sentisse a rigidez do velho travesseiro, parecia alguém na praia, deitado na areia,
de olho para o sol. Mas ninguém na praia tragaria um charuto fumacento como
aquele que Parker fumava.
Imperava ondas de fumaça cheirando a erva queimada na cela.
Parker estava quase invisível como um ninja após lançar sua bomba de fumaça.
― Você é sortudo em ter companheiros de jogos tão versáteis no que fazem. ―
disse o xerife.
Parker ouviu aquela voz soar como músicas, sua esperança de sair da jaula
cresceu como uma massa repleta de fermento.
Levantou-se e foi até as grades, agarrando duas hastes com as mãos.
― Primeiro apague e jogue essa merda no lixo. ― o xerife advertiu.
Parker gargalhou da feição de seriedade que o xerife demonstrou.
― Você não é capaz de parar um soldado tão preparado como eu. Se quisesse,
eu poderia ter fugido a qualquer momento, mas preferi deixar você se julgar o
máximo.
Os irmãos Blume gostaram da chacota de Parker e demonstraram através de um
sorriso polido e uma troca de olhares.
― Tudo bem, vamos brincar. Quando você fizer a confissão da humildade será
liberto, mas antes disso...
O xerife foi se retirando. Parker se desesperou e começou a pular freneticamente
e chutar as grades:
― Me tire daqui, seu monte de merda!
O xerife retornou com um sorriso de gozação:
― Peguei você. Se você soubesse como fugir não se desesperaria a tal ponto.
Parker odiou o xerife, a vingança já fora tramada, mas era preciso agravar o grau
de punição. O xerife deveria pagar pela sua ousadia.
― Aguarde minha volta. ― desabafou Parker.
― O que você fará? Tocará fogo no xerifado?
― Pior.
O xerife manteve silêncio esperando o complemento do raciocínio do preso.
― Pobre Frank. ― disse Parker como se estivesse lamentando a morte
inesperada de um cachorro de estimação.

402
― Eu poderia te manter na jaula por me ameaçar, sabia? Mas eu sei que você é
um homem bonzinho e não tornará a se vingar das pessoas para o teu próprio
bem.
Parker fitou o rosto do xerife e depois estudou o dos irmãos Blume, eram dois
perfeitos idiotas.
A gargalhada pareceu cavernosa e a tosse quase lhe tirou o fôlego.
― Seria melhor que esse animal ficasse preso, mas é divertido vê-lo roubar o
lenhador na mesa de jogos. ― disse Cecil.
O xerife estava ficando nauseado com o aroma de ervas do charuto de Parker e
decidiu libertá-lo. Pegou a chave da cela no bolso da calça e proclamou a
liberdade:
― Sinta-se livre da jaula. Os irmãos Blume te acompanharão até a tua residência
para receberem os seiscentos dólares que lhes são devidos.
Parker arregalou os olhos e disse:
― Dinheiro de bebida e que eu poderia usar como papel higiênico, parece que
sem mim vocês morreriam de fome.
Baforou e gargalhou. Saiu da cela e deu sua advertência:
― Prepara-te para a guerra, pobre Frank.
O xerife empurrou-o pelas costas, conduzindo-o até a saída do xerifado:
― As tuas ameaças não me espantam.
Parker permitia ser empurrado com um sorriso vingativo no rosto.
Frank Silver julgava que as tolices de Parker já haviam dado o que tinham que dar.
Verdadeiramente, não tinha tempo suficiente para se preocupar com as criancices
de Parker, mesmo que suas brincadeiras fossem de mau gosto e capazes de
ceifar vidas.
Os três jogadores de cartas se retiraram comportadamente do xerifado. Parker
aproveitou para advertir antes de sair:
― Você deveria se preocupar com Nikosson que provavelmente se perdeu na
floresta após contemplar e se assustar com meu fogo justiceiro.
O xerife deu um tchau se despedindo ironicamente de Parker que desapareceu de
vista.
Frank se pôs a raciocinar nas palavras de Parker, era difícil julgar se eram sérias
ou zombeteiras.
Caso fossem sérias, era preciso averiguar a situação e ir ao encalço do homem
que mais parecia uma criança de tanto indefeso que era. Poderia estar em sérios
apuros.

403
Ele saiu e trancou o xerifado. Foi até a extremidade da floresta e raciocinou se
deveria adentrar a área da vegetação. Nikosson poderia estar perdido em um
labirinto de árvores.
Ficou parado na entrada da floresta e focou seu olhar em busca de algum
movimento. Apenas alguns galhos de árvores balançavam devido à fraca e gelada
brisa que passeava pela vegetação.
Não sabia julgar se seria uma atitude prudente a de entrar naquela floresta, mas
seu trabalho o obrigava a oferecer proteção aos habitantes do vilarejo.
A floresta parecia trazer todos os mistérios que rondavam Pitfall. Aquela parte
obscura do mundo poderia guardar segredos terríveis, como homens capazes de
se transformarem em lobisomens em noites de lua cheia.
Não sabia definir se sentia medo. Não, de fato não sentia medo, mas sabia que
devia levar a sério a situação de Pitfall.
Era preciso saber por onde andava Nikosson se caso o idiota estivesse falando
sério.
Talvez as palavras de Parker fossem para despistar as ideias do xerife acerca do
delito cometido na madrugada anterior.
Ele, apesar de tudo sabia que algo não cheirava bem naquela situação. Procuraria
Nikosson no vilarejo, nas casas, porém, apesar de difícil, era preciso confessar
que o andarilho deveria estar perdido no meio da floresta.
Restava torcer para que não fosse em um lugar longe, distante do vilarejo e dos
amedrontados habitantes que pareciam não mais existirem de tanto que se
escondiam de algo ou alguém no aconchego de suas casas.
Casas que o xerife iria visitar uma por uma, depois iria à taverna almoçar para se
preparar para o fim do dia que poderia ser agitado.
Algo inédito em Pitfall.

***

A porta de vai e vem da taverna foi empurrada e ficou fazendo seu movimento
característico de vai e volta após a entrada do xerife. Era uma autêntica porta de
vai e vem das histórias de faroeste.
Norman, Forbes e o taverneiro eram os únicos presentes até a chegada do xerife
que foi logo solicitando algo para comer:
― Faça-me um prato caprichado, por favor.
O homem da lei bufou e sentou-se na mesa de jogos. O taverneiro subiu as
escadas enquanto respondia:
― Pois não.

404
Os dois forasteiros estudavam a exaltação do xerife. Houveram presenciado uma
cena aterradora.
Ao chegarem à taverna, Bobster lá estava. O estranho era que haviam escutado a
voz de Bobster no hotel e não seria possível que o velho chegasse antes deles à
taverna, nem que pulasse a janela e escalasse paredes e tetos.
As cabeças de ambos vogavam numa tremenda confusão. Bobster tomara seu
café e se retirara para o hotel fingindo não conhecer os seus hóspedes.
Era uma situação embaraçosa, difícil de explicar.
Forbes questionara ao taverneiro desde que horas o velho do hotel esteve na
taverna e receberam a espantosa resposta: aproximadamente três quartos de
hora.
Existia então uma testemunha que juraria por tudo que Bobster estava na taverna
à quase uma hora. O que contradizia o fato de terem escutado a voz de Bobster
poucos minutos antes de chegarem à taverna. Tudo isto significava que havia
mais alguém no hotel e que imitava muito bem a voz de Bobster.
O filhote de malvado?
Brad Fillman retornou com uma bandeja que continha um prato transbordante e
variado em cores. O xerife foi servido e agradeceu obrigando o taverneiro a
replicar antes de se retirar:
― Faça bom proveito do banquete.
Os dois forasteiros já haviam almoçado, o xerife demonstrava estar com uma fome
voraz e surpreendeu quando se levantou e levou sua bandeja até a mesa dos
dois. Sentou-se antes mesmo de pedir licença:
― Dão-me licença para sentar?
Ambos consentiram. O homem da lei questionou após abocanhar uma garfada de
alface:
― Não vão almoçar?
― Já estamos satisfeitos. ― respondeu Norman.
Forbes decidiu encaixar algo propício:
― Parece um pouco exaltado.
O homem da lei permanecia olhando somente o prato, abocanhou mais uma
garfada e respondeu com a boca cheia:
― Problemas.
― Que tipo de problemas? ― perguntou Forbes indiscretamente.
― Com os habitantes. ― o xerife permanecia curto em suas respostas, tinha certo
orgulho e não gostava de compartilhar seus problemas, os dois forasteiros
entendiam que o medo dominava o protetor de Pitfall.

405
Bradley Fillman estava atrás do balcão escrevendo algo em seu bloco de notas,
vez ou outra usava a orelha esquerda como suporte para deitar e manter seu lápis
em fácil acesso.
― Precisamos dizer algo, mas quando o senhor terminar de comer. ― disse
Norman.
― Digam.
― Você já está com problemas demais e não queremos dar-te mais um enquanto
está na sagrada hora de comer. ― disse Forbes.
― Podem dizer, nada consegue ser pior do que o problemão que arrumei hoje.
Forbes fitou Norman como quem dizia: ele não sabe o que está falando.
― Tudo bem, eu posso dizer...
O xerife encarou Forbes olho no olho:
― Sim.
― Estamos com problemas no hotel. Jim Bobster é uma pessoa muito estranha.
― Sim, eu o conheço muito bem. Não encaro isso como novidade.
― Pois bem, o senhor sabe de existência de alguma criatura no hotel?
Frank Silver ficou intrigado, mas sentiu-se obrigado a dar uma risadinha:
― Criatura é?
― Vou melhorar minha pergunta. Existe mais alguém no hotel além de Jim
Bobster?
― Não. ― o xerife respondeu levando mais uma garfada à boca.
Os dois forasteiros se entreolharam.
― É estranho o fato de soar vozes enquanto Bobster não está no hotel. ―
comentou Norman.
― Bem, não é novidade por aqui a fama de hotel mal-assombrado que leva o
Bobster Inn. ― disse o xerife.
― Você já viu algo? ― indagou Forbes.
O xerife bebeu uma golada de suco de limão, seu preferido.
― Sim, existe uma assombração do hotel com a qual me deparo corriqueiramente.
Os dois pares de olhos dos forasteiros ficaram vidrados, o xerife entendeu que
desejavam uma resposta mais específica:
― Tal assombração tem nome, Jim Bobster.
A frustração tomou conta de Norman. Forbes não estava surpreso, sabia que se
houvesse algo encoberto, dificilmente o xerife abriria o jogo. Não havia um modo
de provar a existência da criatura, eles mesmos haviam visto no máximo a cauda
do filhote de malvado.
Joseph Forbes tentou garimpar por outro lado:

406
― Qual era mesmo o problemão que o senhor ganhou?
― Eu não havia dito.
Forbes fez uma cara mal disfarçada:
― Certeza?
O xerife terminou de engolir o que estava mastigando, decidiu contar o seu
tormento:
― Vocês devem conhecer o homem que anda todo rasgado e descalço por aí.
Ambos afirmaram com a cabeça.
― Um velho que gosta de fumar charuto colocou fogo em uma casa do vilarejo e o
homem em questão não bate totalmente bem das ideias, apesar de ser mais
correto que o velho do charuto. Então, o homem que se chama Gray Nikosson
fugiu para a floresta ao ver as chamas arderem, ele deve ter pensado se tratar do
fim do mundo e fugiu.
― Sim, é um problema considerável. ― disse Norman.
― Não terminei, o pior é que ele deve estar perdido na floresta.
― Ele poderia ter ido para a casa de alguém. Ele mora sozinho? ― indagou
Forbes.
― Ele não tem moradia. Cada dia ele passa na casa de alguém, o taverneiro por
exemplo o recolhe sempre, é um homem excelente.
Não foi possível saber se Fillman ouvia a conversa, mas naquele momento coçou
a nuca enquanto anotava. Algumas pessoas afirmam que quando são assunto na
boca de outra pessoa, partes de seus corpos coçam como sinalizador, cada
pessoa deve ter sua exclusiva campanhinha anatômica.
― O pior é que eu passei de casa em casa e perguntei para cada morador e
ninguém viu ou abrigou Nikosson após o horário do incêndio.
Os dois forasteiros se entreolharam. Forbes decidiu garimpar um pouco mais:
― Quer dizer que o tal homem deve estar perdido na floresta?
O xerife confirmou com a cabeça.
― Sabe qual rumo da floresta? ― indagou Forbes.
― O autor do incêndio me jurou que foi do lado de cá.
O xerife voltou a beber um gole do suco enquanto os outros dois se entreolhavam
novamente. Forbes pareceu indicar com o olhar que ele saberia muito bem o que
fazer.
― Que tal fazer uma busca? É ou não uma boa ideia?
O xerife tornou o semblante mais sério e encarou Forbes:
― É a única forma cabível de encontrar o perdido, apesar de ser quase impossível
apenas dois homens executarem a tarefa. Seria como procurar agulha no palheiro.

407
Eles entendiam que o xerife se referia a ele próprio e seu auxiliar. A sugestão
seguinte foi de Norman:
― Você pode montar um grupo. Não existem homens de confiança por aqui?
― Sim. ― respondeu o xerife aparentando gostar da ideia, julgava que poderia
formar um grupo forte para encarar a floresta em sua imensidão e seus perigos.
― O taverneiro por exemplo. ― disse Norman.
― Ele não, é preciso manter a taverna aberta e não quero meter o bedelho dele
no meio, sem contar que ele já tem um filho carente para cuidar.
― Mas a ideia de meu amigo sobre formar um grupo é propícia? ― indagou
Forbes maravilhado com a audácia de Norman, batendo em seu ombro de forma
amistosa.
― Sim, vou acatar a ideia. Já pensei em Oliver Kingston.
― Estamos à disposição. ― disse Forbes.
O xerife coçou a barba, pensou, calculando se deveria confiar nos forasteiros, a
ideia da busca fora deles e não havia mal algum:
― Mas existe um porém.
― O quê? ― indagou Norman.
― A floresta pode ser perigosa, existem animais selvagens que a esta altura do
campeonato já devem ter devorado o pobre Nikosson. Vocês têm armas?
Norman estremeceu ao pensar na possibilidade de se deparar com uma frota de
malvados no meio da floresta, acreditava que o xerife pudesse estar falando em
enigma quando se referiu a animais selvagens. Forbes abriu o casaco e revelou
sua arma ao xerife que desabafou:
― Ótimo, já somos cinco. Vocês, Kingston, meu auxiliar e eu.
― Quem mais poderia ser escalado? ― indagou Norman.
― Não se preocupem, disso me encarrego eu.
O xerife lembrou-se da versatilidade do cão do lenhador ao desmascarar Parker.
O cão poderia farejar os passos de Nikosson e seria de grande valia. O lenhador
por sua vez, era extremamente forte e sabia atirar muito bem.
O xerife estava empolgado e levantou-se sem terminar a refeição. Disse antes de
sair:
― Estejam no xerifado antes das dez da noite e devidamente agasalhados, se
caso Nikosson não houver regressado, vamos à sua busca.
― Mas como você saberá se ele não apareceu na casa de alguém?
― Dei ordem para quem vê-lo, me notificar o quanto antes.
Exceto Parker que não queria diálogo, apenas vingança.
O xerife saiu apressadamente sem pagar o taverneiro, este não se preocupou,
pois sabia que o homem da lei sempre precisava fazer suas correrias repentinas e

408
acertava a conta em outro momento. Havia comida no prato e suco no copo do
xerife, alimento abandonado.
― Eu só não entendi por qual motivo a busca será feita somente ao anoitecer. ―
reclamou Norman.
― Os segredos e coisas ocultas estão mais salientes no período noturno, é o
momento em que os lobisomens vão à caça. ― ponderou Forbes.
― Malvados no nosso caso. ― corrigiu Norman.
― Talvez. ― disse Forbes fechando o casaco para esconder a arma.
Forbes prosseguiu:
― Uma coisa é certa, não vamos voltar ao hotel hoje e devemos estar preparados
para uma noite agitada.
Norman sentiu um arrepio na espinha.
Entrar na floresta após a sensação ruim que sentira quando lá estiveram e ainda
por cima à noite?
― É incrível como o medo nos faz sentir vivos. ― disse Forbes.
― Do contrário, o medo também é capaz de matar em determinadas situações. ―
contrariou Norman.
Era algo difícil de assumir, o medo, principalmente quando se falava de homens.
Afinal, homens não deveriam ter medo.
Forbes estava a contemplar parte das árvores da floresta que pareciam o estar
esperando para o acerto de contas. Elas pareciam calmas e serenas, pacientes
para o momento do encontro.
Um encontro que Forbes deveria assumir que temia, de fato.
Lobisomens, malvados, luzes verdes ou qualquer outro oponente que fosse,
seriam capazes de se esconder agilmente na imensidão de árvores e na escuridão
noturna. No inverno como naquela situação, a neblina era outra aliada da floresta
que aparentava guardar algum inimigo.
Inimigo que deveria ter devorado o pobre do Nikosson.

***

Frank Silver estava empolgado com a ideia dos hóspedes do Bobster Inn.
Não seria capaz de colocar a mão no fogo por eles, mas, a ideia de organizar um
grupo de confiança para buscar o andarilho fora genial.
Ele acabava de chegar ao armazém de Kingston que seria seu primeiro
convocado e que certamente aceitaria participar da operação.
O anfitrião estava retirando o conteúdo de uma caixa, pareciam pacotes de açúcar.

409
A estátua de pirata fora mexida e estava de frente para a porta do
estabelecimento, logo à entrada.
Ele tomou um susto ao entrar, deveria ser brincadeira da parte de Kingston ter
colocado aquela estátua rente à entrada.
― Kingston. ― chamou após recobrar-se do pequeno sobressalto.
O negro estava encurvado e levantou, voltando-se para quem lhe chamava pelo
nome. O xerife se aproximou.
― Precisará de mim no xerifado? ― perguntou generosamente.
― Tomarei você emprestado sim, mas não no xerifado e nem agora. ― respondeu
colocando seus óculos escuros.
― Que bom, estou dando uma organizada no estabelecimento.
― Percebi pela estátua.
― Ah sim, pretendo tirá-la daqui. Ela é pesada, mas creio que conseguirei arrastá-
la até o segundo andar.
― Quer uma ajuda? ― indagou o xerife.
― Seria gentileza demais da tua parte, és um homem muito ocupado.
Kingston ficou sem jeito de aceitar aquele auxílio. A resposta do visitante foi
confortadora:
― Não se caracteriza um problema para mim, aqui sempre foi calmo e o meu
trabalho é sentar em uma mesa de xerifado e esperar a hora de ir embora chegar.
Esqueceu-se?
Kingston bufou, estava suando apesar do tempo gelado:
― Você disse bem, aqui foi calmo, não é mais.
― Todo mundo já sabe disso. ― o xerife sentiu-se responsável por Pitfall não
conseguir manter seu status de vila tranqüila.
Kingston ficou sem resposta.
― Eu vou precisar de você hoje à noite e posso muito bem te ajudar com essa
estátua. ― continuou o xerife.
Frank foi até a estátua e começou a deitá-la. Kingston chamou-lhe a atenção:
― Espere, eu sei a melhor forma de carregá-la.
Kingston foi e abraçou a estátua pela cabeça e solicitou que o xerife a abraçasse
pela parte inferior.
O homem da lei que antes estava na posição de Kingston não entendeu o motivo
de precisar trocar de lado, mas deveria haver alguma parte quebrada e que o
proprietário saberia como manuseá-la.
Subiram a escada e chegaram com facilidade ao segundo andar. A estátua era
pesada, mas não caracterizou sufoco para os dois fortes homens.
― É por aqui.

410
Entraram no quarto de Melissa que estava a escovar a cabeleira com o olhar
vidrado em um espelho giratório.
― Pode colocá-la aqui.
O xerife apoiou a parte inferior da estátua ao chão após a solicitação de Kingston,
este, por sua vez, teve o trabalho de erguê-la e mantê-la de pé. Depois, girou-a de
modo que ficasse de frente para a cama de Melissa.
Ela deu um sorrisinho malicioso para o xerife, pois assistia a tudo pelo reflexo do
espelho.
O alvo do sorriso ficou sem jeito. Kingston conduziu-o para fora do aposento e
confidenciou:
― Ela tem estado carente.
O xerife sorriu, tinha a sua mulher e seu filho, e não precisaria constituir outra
família.
Sua querida mulher deveria estar lhe esperando ansiosamente em casa. Seu filho
de vinte e um anos estava no segundo ano da faculdade de Direito, estudava na
Carolina do Sul e se comunicava por carta com os pais, uma vez ao ano. Ele
prometera que passaria aquele fim de ano com os pais, mas Pitfall deveria ser o
lugar mais longínquo e inacessível da Terra.
O corpo da irmã de Kingston era escultural e tentador, porém, o xerife era um
homem religiosamente fiel, assim como todo bom marido deve ser.
Desceram após o anfitrião oferecer algo para beber e a oferta lhe ser recusada
com agradecimentos.
O visitante abriu o leque do assunto:
― Ela necessita da tua presença às noites?
― Ela se dá muito bem sozinha. Por quê?
― Como havia dito anteriormente, precisarei de você à noite.
― Não há problema, do xerifado eu consigo manter os olhos aqui. Afinal, estamos
lado a lado.
― Você está enganado. Precisarei de ti, mas não será no xerifado.
― Rondas no vilarejo?
O xerife negou com a cabeça e logo respondeu:
― Precisaremos entrar na floresta...
Kingston, assim como todo habitante do vilarejo sabia que entrar na floresta não
era boa ideia, quanto mais à noite. Ficou meio que abalado.
― Espere, quer dizer que nós dois vamos à floresta durante a noite? Fazer o quê?
― Vamos em grupo de homens, precisamos encontrar Gray Nikosson que ao meu
julgar, se perdeu na floresta.

411
Kingston estava assustado com o pedido do xerife, nunca em sua vida levaria em
conta a possibilidade de buscar alguém perdido na floresta. Principalmente se
tratando de Pitfall, à noite e nos últimos tempos.
― Entendi. Como sabe que ele está perdido?
O visitante explicou todo o ocorrido. Kingston ficou mais esclarecido, mas ainda
não engolia o fato de precisarem entrar na floresta.
― Todas as desgraças de Pitfall parecem atraídas pelo maldito Parker. ―
desabafou Kingston.
― Há problema em deixar sua irmã sozinha?
― Desde que eu tranque bem a porta, não. A busca não poderia ser feita durante
o dia?
O xerife aproveitou para fazer uma troça do anfitrião:
― Está com medo dos lobisomens?
― Não temo homens, nem lobos e muito menos a mistura dos dois elementos,
lobisomens. ― respondeu Kingston com um sorriso, tinha consciência do grau de
amizade com o xerife e uma brincadeira sempre cabia bem.
― Aceita?
Kingston não pestanejou:
― Claro que sim.
― Traga a tua melhor arma.
― Meu rifle.
― Legal, pouco antes das dez eu venho te chamar.
Kingston desejava ter mais detalhes da operação estranha, mas necessária,
afinal, a vida de Nikosson estava em jogo:
― Quem fará parte do grupo?
― Você, os dois forasteiros que você deve conhecer muito bem, meu auxiliar e eu.
― Os forasteiros? Eu os julgo de confiança também.
Kingston sabia que os hóspedes do Bobster Inn eram de confiança melhor do que
ninguém.
Seria capaz de botar a mão no fogo por um deles em especial.
― Vou indo.
O xerife se virou para ir embora quando lembrou-se de algo e tornou a encarar o
anfitrião:
― Gostaria de te pedir mais um favor, mas não sei se está ao teu alcance.
― Peça.
― Consegue fazer duas daquelas tochas especiais até a noite?

412
Kingston sabia confeccionar tochas duradouras e fáceis de manusear, técnicas
secretas de escravos antigos, conhecimento herdado do pai que por sua vez
herdara de antepassados, aquele tipo de coisa que transcorre geração por
geração:
― Acho que sim, tenho os materiais necessários e começarei agora mesmo.
O xerife não dispensou agradecimentos e virou-se para ir embora, foi a vez de
Kingston interromper sua ida com uma hipótese:
― Você poderia chamar Horace Singer para nos acompanhar.
Frank Silver parou, virou apenas a cabeça e disse:
― Já havia pensado nisso. O cão dele poderá ser útil.
― Chame Ronald Malone também. ― Kingston deu outra sugestão.
― Não é má ideia, seriamos assim, sete homens e um cão.
― Um grupo de dar inveja. ― disse Kingston procurando animar o xerife que
estava com o semblante de preocupação.
Preocupação justificável, pois a floresta ainda caracterizava um mistério quase
que completo para Pitfall.
O homem da lei estava cada vez mais empolgado com a ideia de formar um grupo
de resgate, a visita a Kingston fora produtiva. Não havia considerado Ronald
Malone, um exímio caçador e atirador.
Saiu.
Mataria dois coelhos com uma cajadada só, pois Horace Singer e Ronald Malone
eram vizinhos.
Poderia inclusive conversar com os dois juntos e poupar saliva e tempo.
A temperatura estava caindo.
Tomou a ruela e foi rumo à rua da outra extremidade do vilarejo, onde moravam os
dois homens que provavelmente encaixar-se-iam ao grupo, tornando-o forte e
numeroso.
Conteúdo e qualidade não faltariam.
Estava quase chegando ao acesso à última rua quando escutou o soar do sino da
igreja.
Meio-dia.
Parou para escutar o badalar que emanava um som diferente. Apurou os ouvidos
e constatou que o badalar soava normalmente, mas algum outro barulho ofuscava
o som agradável do pesado sino de bronze.
As batidas eram na madeira, sim, martelo na madeira e elas vinham do antigo e
desativado poço da terceira rua. Não, elas vinham da casa que ficava de frente
para o poço abandonado. Vinham da casa de Pew Casper, o juiz que colocara
Parker nos eixos, ao menos, assim pensava o xerife em seu modo cego de ver.

413
Uma ideia conveniente passou pela cabeça do xerife. Parker se vingara do médico
com fogo e não deixaria barato o fato de ter sido preso. De modo que Casper e ele
próprio estavam na lista negra de Parker e isto não era segredo.
Será que Parker acabara de se vingar do ex-juiz do mesmo modo que se vingara
de Parkhurst?
Com fogo a domicílio?
De modo que obrigou o dono da casa a fazer reparos na porta?
Era preciso apurar e ele foi até a casa de onde vinham as batidas. Chegando lá,
perguntou:
― Casper, tudo bem com você?
As batidas que vinham do lado de dentro e eram desferidas na porta cessaram e
um silêncio imperou por menos de dez segundos quando as batidas
recomeçaram. O xerife tornou a perguntar se aproximando mais um pouco da
porta:
― Tudo bem com você?
A resposta foi repentina após a pergunta:
― Mantenha silêncio, estou interceptando a rota de fuga dos cupins selvagens.
― Por que manter silêncio?
― Você pode espantá-los. ― respondeu o ex-juiz.
O xerife não caiu naquela desculpa deslavada. O ex-juiz se embaraçara em suas
respostas e contradizia todo o mundo que desejaria se livrar dos cupins numa
situação como aquela.
Casper deixou a entender que ansiava manter os cupins em sua porta.
Deveria estar ficando louco. Estava na verdade pregando tábuas na porta e não
queria confessar o medo que tinha de Pitfall e de quem pudesse invadir sua casa.
Frank Silver ficou sem resposta diante da situação e foi embora após bufar de
cansaço. Não bastava Parker com seus devaneios.
Foi ao que lhe interessava. Precisava conversar seriamente com o lenhador e o
caçador.
Parou de frente para a casa dos Malone. Foi possível escutar a voz distante de
uma criança que cantava. O filho de Ronald deveria estar brincando com alguém.
Uma brisa gelada passeou pelo seu rosto e obrigou seus pêlos do corpo se
eriçarem.
Que gelo!
A noite ofereceria mais um obstáculo que poderia ser crucial para a desistência
das buscas, o frio intenso.
Todavia, estando bem agasalhado, ao lado de tochas fumegantes e em
movimento daria para suar de calor em meio ao clima de inverno.

414
Bateu à porta. A cantoria cessou do lado de dentro.
Ronald Malone abriu a porta, mas não ofereceu para que o xerife entrasse, estava
um pouco assustado, pois não era normal receber a visita do representante do
vilarejo naquele momento.
― Preciso falar contigo. ― disse o xerife.
Sonny Malone surgiu à porta e foi repreendido por seu pai:
― Querido, entre.
O menino obedeceu prontamente. Ronald saiu e fechou a porta atrás de si.
― O que há de errado? ― perguntou o caçador desconfiado.
― Nada. Preciso ter uma conversa particular com Horace e você.
O caçador continuava desconfiado, mas não retrucou.
Os dois teriam cometido algum delito na floresta?
O xerife bateu à porta de Horace e esperou. Após um minuto aproximadamente,
foi atendido.
O lenhador aparentava estar com a roupa de dormir e desculpou-se:
― Estive entregando lenha até agora e o frio agravou minha preguiça. Em que
posso ser-lhes útil?
― Podemos entrar? ― indagou o xerife.
O lenhador conduziu os dois homens ao interior de sua sala, a lareira estava a
todo o vapor e o cão deitado ao lado parecia querer se aquecer.
O animal levantou-se ao ver os dois visitantes e foi até o caçador, querendo
receber um afago do conhecido vizinho.
Alguns acreditam que os cães sejam capazes de traçar um perfil exclusivo de
cada humano e tenham um sinalizador que indica verde quando se pode pedir um
afago ou vermelho quando se deve fugir de pessoas cruéis e matadoras.
― O que desejam? ― indagou o lenhador.
― Na verdade, decidi reuni-los para facilitar minha tarefa de convocá-los.
O lenhador e o caçador se entreolharam, estavam sendo convocados para qual
tarefa?
Parecia até uma convocação de soldados para uma guerra mundial.
― Convocar-nos? ― indagou o lenhador.
― Sim...
O xerife explicou a situação do sumiço de Nikosson. O caçador ficou aliviado. O
lenhador esperava por algo semelhante, estava preparado para todo tipo de
situação em Pitfall.
― Eu posso cooperar e levar meu cão.

415
Após a aceitação de Horace, o xerife esperando uma resposta do segundo
homem encarou-o, este se desculpou:
― Temo pela minha família. Não posso deixar mulher e filho pequeno a sós neste
canto do vilarejo. O menino não conseguiria dormir sem minha presença.
― Entendo e te dou razão, embora contasse muito com a tua participação. ―
respondeu o xerife.
― Eu faria tanta falta assim? ― estranhou o caçador.
A resposta estava na ponta da língua do xerife:
― Sim, imagine um corpo sem uma perna, a pessoa andaria capengando. Você é
um excelente atirador e poderia nos ser útil.
― Será preciso atirar? ― o caçador continuava estranhando, mas se fazia de tolo
para demonstrar falta de necessidade acerca de sua cooperação.
― Não sabemos com o que estamos lidando. Como você sabe, o vilarejo anda
recebendo estranhas visitas ultimamente e desconfio que os visitantes venham da
floresta.
O lenhador dava razão ao xerife, de fato, entrar na floresta à noite exigia o
emprego de toda cautela possível.
― Brenda poderia passar a noite na casa dos pais. ― sugeriu o lenhador.
O xerife sorriu e encarou o caçador como quem afirma não existir qualquer
desculpa, mas não tentava o intimidar.
― Seria a única solução se quiserem contar com minha presença. Estou ficando
muito dentro de casa e careço de um pouco de aventura, sinto que estou
regredindo à infância de tanto que brinco com meu filho. ― disse o caçador
animado, o xerife ficou muito feliz com a confirmação.
O grupo estava formado. Somando todas as peças, foi obtido um quebra-cabeça
montado, embalado e selado.
― Estejam antes das dez no xerifado, fico extremamente grato com a cooperação
de ambas as partes. ― agradeceu e levantou-se para sair, imitado pelo caçador.
― Não querem ficar mais um pouco? ― indagou o lenhador e recebeu duas
gratas negações.
O homem da lei olhou o cão antes de sair.
O animal estava sentado com a língua de fora, seu olhar parecia humano, era
como se tivesse entendido o recado e que estivesse disposto, pronto para a
guerra.
A porta foi trancada após a saída dos visitantes. O lenhador aproveitaria a tarde
para dormir.
Frank Silver se despediu do caçador e rumou para o xerifado.

416
Ronald Malone entrou em sua casa e foi recebido pelo filho alegre. Brenda estava
com o semblante de preocupada:
― Sonny me disse que o xerife esteve aqui.
― Nada de importância. ― respondeu e piscou disfarçadamente para que o filho
não notasse.
O menino era esperto, mas sua malícia não chegou a tanto, permitindo-lhe pegar
a trama que pairava pelo ar. A piscadela deveria ser o sinal para a mamãe fazer
alguma sobremesa e ele estaria incluído neste maravilhoso plano.
O caçador se abaixou e colocou as duas mãos nas bochechas do filho:
― Papai vai caçar hoje à noite, uma carne bem gostosa para o almoço de
amanhã.
O menino ficou contente e pulou de alegria, depois sentiu uma pontada de tristeza
no coração, gostaria de ter o pai presente e era apenas a segunda vez que ele iria
caçar à noite.
― O lobo mau pode pegar você e eu não quero ficar sem você. ― o menino
estava com um semblante de notável preocupação.
Ronald abraçou seu filho e inventou algumas desculpas:
― Não se preocupe, o lobo mau pega apenas crianças e eu não irei só, Horace e
seu bravo cão me acompanharão.
― Posso ir também? Se o lobo mau me ver com dois adultos e um cão, não virá
me pegar.
O caçador tocou o nariz do filho como se estivesse apertando um botão e desferiu
outra desculpa:
― Você fica para proteger a mamãe.
― Mas, o lobo mau não pega adultos, então não tem perigo de ele levar a mamãe.
Brenda riu da inteligência do menino que era capaz de colocar qualquer adulto
mentiroso em contradição. O menino era ensinado que o nariz de quem mente,
cresce.
― Além de crianças, ele pega mulheres delicadas como sua mãe que não é capaz
de levantar a mão para bater.
Brenda gostou da forma carinhosa como o marido falava dela.
― Então, é perigoso ficarmos aqui sem você. ― o menino continuava driblando as
desculpas do pai.
― Vocês dormirão com o vovô e a vovó.
Brenda ficou surpresa com as palavras do marido, não sabia se eram verdadeiras
ou desculpas até que o menino adormecesse.
― O lobo mau pega velhos fracotes como o vovô! ― exclamou o menino.

417
Os dois adultos riram do modo como o menino acusou o velho homem. Ronald
remendou a situação:
― O vovô não é fraco. Ele consegue dar um soco tão forte como um coice de
mula.
O menino ficou mais tranqüilo, mas não deixou transparecer. Mal sabia ele que o
avô estava mais temente que uma criança indolente.
Ronald levantou-se e encarou Brenda, deu outra piscadela. A mulher entendia que
o marido explicaria o assunto depois e que nada do que dissera era verdade. O
momento de conversar seria quando a criança fosse tomar seu demorado banho
em que gostava de encher a banheira e deixar seus barquinhos de papel vogarem
para lá e para cá na banheira como se estivessem em apuros num tempestuoso e
encapelado mar.
Dizem que as mulheres têm um sexto sentido, capaz de revelar sentimentos e
fraquezas ocultas dos homens. Brenda naquele momento lia nos olhos do marido
certo temor.
Não conseguia explicar quem obrigava o marido a ter tais sensações, mas achava
que tinha a ver com a caça e sabia que todas as caças eram feitas na floresta, e
todas as vezes que se lembrava da floresta entrava em cena uma personagem
muito conhecida entre eles e o menino.
Era o personagem usado para instruir o menino a fugir de desconhecidos e de
situações aparentemente tranqüilas, mas que por trás ofereciam verdadeiros
perigos.
Sim, o marido estava com um medo semelhante ao do indefeso filho.
Medo do lobo mau.

418
35

A SORTE ESTÁ LANÇADA

A noite exibia seus traços mais obscuros quando se misturava ao frio intenso.
Lionel Harter esperava. Sabia que a luz verde não deixaria barato sua invasão da
noite anterior.
Sentia a dor do arrependimento. Martirizava-se por intenso.
Audrey fazia o jantar. O cheiro de costela assada era tentador, mas isto pouco
importava ao amedrontado homem que estava escondido em sua casa, fazendo
valer seu toque de recolher.
Ele estava na sala, andando para lá e para cá. Escutava o som do fogo crepitante
da lareira.
A luz verde iria chegar de surpresa, ele sabia disto. Entretanto, não sabia definir se
seria em pouco tempo ou no meio da madrugada.
Fora um perfeito asno ao cruzar os limites da floresta, um centímetro que fosse.
As horas transcorriam lentamente e ele parecia vegetar em seu caminhar de vai e
volta. Era como se fosse uma planta ambulante que seguia instruções automáticas
de ir e vir, em busca da luz do sol.
O período noturno se tornara um castigo para ele após a ousada invasão.
Nove e meia.
Parou no meio da sala, com o coração aos pulos. Alguém bateu à porta.
Era a luz verde.
Engraçado era o fato de ele ter invadido a área alheia sem um pedido de licença.
A luz verde, por sua vez, demonstrava possuir o poder de atravessar paredes e
mesmo assim era educada, batia à porta, pedindo autorização para entrar.
Não cairia na armadilha. Pensava enquanto corria para o segundo andar, fugindo.
Derrapou na escada e por pouco não botou um fim nas suas envelhecidas pernas.
Audrey gritava da cozinha, por sorte ele conseguiu atingir o segundo andar a
tempo, antes de soar outras batidas à porta.
― Querido, atenda!
Ele manteve silêncio, fingindo estar alheio à situação.
Ela repetiu a intimação enquanto se encaminhava para a sala, a fim de atender
quem chegava de surpresa:
― Querido.
Soou uma voz familiar e vinha lá de fora. Ele morreu de vergonha ao reconhecer a
voz da visitante, sua filha:
― Mamãe, sou eu, Brenda.

419
Ele se preparou para descer a escada quando um pensamento lhe interrompeu no
caminho de descida.
Sua filha poderia estar fugindo da luz verde e buscava refúgio na casa dos
amáveis pais. Bem, se a luz verde houvesse dado um fim no genro, melhor seria a
situação.
Não deu tempo de gritar para Audrey não abrir a porta. Ela atendeu a filha
rapidamente.
Harter só pôde descer quando percebeu que a filha chegava para visitar, sem
passar por apuros. Tudo indicava que o genro estivesse bem, especialmente
quando ele entrou, seguindo sua mulher.
O velho desceu a escada para dar um abraço na filha e acariciar o neto como de
costume.
Audrey abraçou a filha, o genro e por último o neto, de modo carinhoso e único.
Como os bons abraços da vovozinha coruja.
Harter chegava aos visitantes com semblante sério, de vergonha mal disfarçada.
Abraçou a filha, afagou a cabeça do netinho:
― Esquilibrizinho.
Percebeu que o genro estava com o rifle atado ao ombro.
Mas que maldita merda era aquela?
Não; não queria e nem deveria falar com o genro que acabava de aprontar mais
uma das suas. Onde já se viu alguém andar em Pitfall com um rifle? Aquela
maluquice toda significava pura e exclusivamente, medo?
Poderia ser medo, mas o medo do genro era justificável, afinal, a história da luz
verde já fazia parte da cultura folclórica de Pitfall.
Era preciso dar um desconto àquela situação, o genro poderia salvá-lo da visitante
da floresta, pois um rifle valia mais do que um bom par de punhos.
Mas assim seu orgulho seria ferido, ser salvo pelo genro.
― Papai, não vai cumprimentar o Ronald?
A filha o afastou do mundo ilusório, ela parecia querer chorar, era como se
estivesse dependendo da resposta dele.
Harter estendeu a mão ao genro e perguntou com uma voz ocultando desprezo:
― Como vai?
Ronald acatou ao cumprimento e apertou a mão do sogro:
― Tudo bem e com o senhor?
Harter se afastou após o aperto de mãos e não respondeu a pergunta que ficou
pendente no ar.
Ele foi até a cozinha, todos o assistiam com o semblante sério de incompreensão.

420
― Não dêem bola para ele, a idade o está modificando. ― Audrey tentou acalmar
a filha.
― Ele sempre foi assim com Ronald! ― Brenda descarregou quase prorrompendo
em lágrimas, pensava que a situação nunca iria mudar.
― Acalme-se, o jantar está quase pronto. ― disse a animada Audrey colocando a
mão no ombro da filha.
A velha foi até a porta, fechá-la, pois o frio começava a proporcionar seus efeitos
no interior da casa. Tomou um tremendo susto. Um homem e uma fera estavam do
lado de fora.
Recobrou-se apenas quando reconheceu o lenhador Horace Singer e seu cão.
O lenhador improvisara uma espécie de coleira com uma corda grossa, o pescoço
do animal era protegido por uma espécie de pano jeans atado à corda.
O cão ofegava botando a língua para fora, com certeza estava babando ao cheiro
da costela assada.
― Entre, vamos jantar? ― ofereceu a anfitriã.
O lenhador pensou duas vezes, poderia dar um desfalque significativo na comida
do jantar dos Harter, porém era preciso aceitar, pois se alimentara apenas com um
pão recheado com geléia de coco.
O lenhador agradeceu beijando a bochecha da velha senhora que gargalhou, pois
a barba do forte homem estava avantajada e fazia cócegas na pele de pano fino
dela.
Era boa ideia o jantar, pensava o caçador consigo. A busca organizada pelo xerife
poderia transcorrer a noite toda.
Audrey fechou a porta e conduziu o pessoal à mesa. Lionel já estava sentado em
seu lugar obrigatório, como os assentos reservados para idosos em transportes
públicos.
Aconteceu a infelicidade de Ronald sentar-se de frente para o sogro que fingiu não
perceber o fato.
Audrey se preparou para servir o arroz, Brenda foi ao seu auxílio.
A costela estava praticamente assada, bastava servir e degustar a guloseima.
Arroz branquinho com a gordura da costela soava como manjar às narinas do
lenhador. Os anfitriões permitiram gentilmente que o cão ficasse ao lado de seu
dono no jantar. A fama de cão civilizado era conhecida por todos de Pitfall, não
haveria perigo do animal atacar o banquete de todos.
Brenda servia arroz de acordo com o desejo de cada um. O lenhador não
começou seu banquete por sorte, pois era zeloso em esperar que os anfitriões
dessem a garfada inicial, a de honra.

421
Brenda conversava com a mãe sobre receitas de sobremesas. Lionel mantinha
silêncio e era imitado pelo genro e pelo lenhador. Sonny brincava com o cão que
demonstrava estar mais interessado na costela que terminava de assar.
Brenda se preparou para abrir o forno e foi advertida pela mãe:
― Cuidado querida, você pode se queimar. Coloque a luva de algodão para retirar
a assadeira.
Brenda obedeceu prontamente, a luva de algodão que era própria para manejar
utensílios de cozinha quentes estava pregada em uma tábua de suporte ao lado
da pia.
Os presentes fitaram a costela farta em carne que Brenda colocou à mesa,
pareciam os homens que estudavam as belas mulheres que transitavam.
O cão pareceu exprimir um choro baixinho.
Audrey chegou com uma faca afiada e um garfo trinchador de churrasqueira.
Cortou vários pedaços da costela com rapidez e precisão.
Um fato inusitado passava despercebido aos olhos dos presentes. O lenhador
depositara seu rifle no armário da cozinha, porém, o caçador permanecia com o
rifle às costas, como um soldado pronto para qualquer embargo repentino.
A presença do lenhador, sentado ao lado de Lionel era desprezível aos olhos do
último que pensava em segredo:
Odeio cão ofegando ar quente em minha perna e homem barbado fungando no
meu cangote!
O lenhador sequer houvera cumprimentado o velho ranzinza. Não se atentara pelo
fato, estranhamente, pois sempre se portava educadamente. Uma justificativa
poderia ser a história conhecida de que o velho odiava o genro e deveria ser
desprezado pelo sentimento injusto.
Audrey serviu dois pedaços suculentos para cada presente, exceto a Sonny que
ganhou um. Ela pegou uma vasilha que deveria servir para colocar ração e
misturou o pedaço da costela que mais continha osso com uma leva de arroz. Era
para o cão com certeza, mas a vasilha deveria ser de gatos, era rosa
esbranquiçada e nela estava escrito em relevo:
LOVELY KITTY
Audrey colocou a vasilha contendo a comida do cachorro na pia e foi até a mesa,
sentou-se ao lado da filha que já houvera se acomodado ao lado do marido.
Sonny estava ao lado do cão e do lenhador.
― Querido, faça a oração de agradecimento. ― Audrey intimou o marido
intencionalmente.
Ele pareceu engolir uma azeitona, mas não contestou. Todos mantinham silêncio e
saudosa posição de reverência:

422
― SENHOR, te agradecemos pela farta mesa, pelo pão que nos tem
proporcionado e pela saúde de cada dia. Amém.
Lionel se preparava para dar a primeira garfada quando foi advertido pela esposa:
― Cadê a parte da oração que o padre nos ensinou em que devemos abençoar os
presentes?
Tudo bem, querida. Foi você quem decidiu tocar fogo no circo. Pensou o velho.
― PAI, abençoe nosso querido esquilibrizinho, que ele tenha uma carreira
profissional brilhante e seja exemplo para seus pais. Abençoe Horace e seu cão,
que eles sempre estejam nos alegrando com o calor de vossas presenças e de
suas lenhas tão necessárias. Abençoe também minha amada filha que nunca
seguiu os conselhos de seu pai, mas merece tudo de melhor. Abençoe minha
esposa, tenho cumprido a promessa de amá-la e respeitá-la em qualquer situação
da vida e, por fim, abençoe meu genro, dê-lhe cérebro e massa cinzenta para
conduzir o futuro de sua família. Amém.
Aquilo havia sido um insulto a Ronald, indiretamente a oração dava facadas de
repreensão no pobre alvo de injustiças.
Todos estavam em silêncio. O coração de Brenda doía, mas era preciso manter a
postura e não prorromper em lágrimas.
Audrey foi até a pia e pegou a vasilha do cão, serviu o animal no canto da cozinha.
O lenhador ficou contente com a prestatividade da velha senhora para com o seu
mascote.
Um leve cheiro de flores passeava pela casa.
Começaram a jantar no mesmo momento em que algo assustou a todos.
Pancadas estrondosas, desferidas por fortes mãos acometeram a porta da casa.
Horace e Ronald levantaram-se alarmados. O lenhador foi à frente e Ronald
preparado estava pronto para atirar com seu rifle. O restante estava congelado de
medo à mesa.
Quem poderia bater com uma força descomunal como aquela?
O lenhador tomou a frente e abriu a porta com imensa coragem, o caçador lhe
dava cobertura. O cão não seguiu o dono, continuava devorando a costela
gordurosa.
Não havia sinal de qualquer pessoa ou animal. A rua estava vazia e o frio estava
mais intenso do que anteriormente, uma brisa obrigou o fogo da lareira a crepitar.
Horace e Ronald se entreolharam e saíram. Passearam o olhar pela rua deserta e
não detectaram qualquer movimento que excedia os limites da normalidade.
Tornaram ao jantar. Horace disse procurando confortar os presentes:
― Ninguém, mas se entrar aqui tomará uma série de balaços na cabeça.

423
Lionel agradecia ao bom DEUS pela presença do forte homem e do genro à sua
casa.
Somente ele sabia quem batera à porta, era a luz verde em seu movimento de
vingança. Bem que poderia dar uma tempestade como aquela de noites atrás e
obrigar aos dois homens pernoitarem em sua casa e oferecerem-lhe assim,
proteção e escolta.
― Estranho, mas deve ser alguma espécie de brincadeira de criança. ― dizia
Audrey acobertando alguma verdade que desconhecia, mas sabia existir.
Prosseguiram o jantar. Sonny estava com um pouco de medo, mas se sentia
melhor em estar ao lado do lenhador e com o seu pai e o cão por perto. Sabia que
era o lobo mau que batia à porta, testando a capacidade de resistência da mesma
para uma futura investida.
O cão terminou e voltou ao lado do dono. Lionel percebeu e tinha esperança que
todos permanecessem em sua casa e dormissem ali, porém, não haveria
desculpas, todos moravam muito perto e alguns passos poderiam colocá-los de
frente para suas casas.
Seria possível inclusive ir embora debalde de uma tempestade.
Perguntou após uma bela garfada, quase que entregando seu medo:
― Não gostariam de dormir aqui esta noite? Está perigoso perambular pelo
vilarejo.
Alternava em encarar o lenhador e a filha. Ela prosseguiu o assunto:
― Na verdade é sobre isso que viemos falar.
Um gozo tomou conta do coração do velho, sua esperança atingiu o topo do
medidor imaginário de intensidade, estava muito feliz e falou antes de colocar
outra garfada à boca:
― Que ótimo, temos lugares suficientes.
Mastigava enquanto ouvia as palavras da filha:
― Gostaria de saber se Sonny e eu podemos posar aqui esta noite. Eles vão
caçar e...
Lionel pegou o guardanapo e cuspiu tudo o que havia em sua boca antes de
prorromper em risadas.
Ria da situação dos dois animais irracionais que se submeteriam a uma caça com
um frio daqueles e um perigo iminente que estava à espreita. Mas foi também um
sorriso que uma dor no coração lhe obrigou a esboçar, eles não dormiriam em sua
casa e ele seria o único homem, responsável pela proteção do lar.
Sabia que a luz verde iria tirar satisfação de sua ousadia e tinha ciência de que
seria devorado.

424
Tudo ocorreria como uma espécie de queima de arquivo onde ele ousara
conhecer a extremidade da floresta, um pedaço de chão que lhe poderia custar a
vida e afetar os limites de sua sanidade mental.
― Eu perdi a vontade de comer! ― protestou Brenda largando o garfo e a faca no
prato que chegava ao fim.
Era uma espécie de teatro para chamar a atenção de seu pai e fazer com que se
arrependesse. Estava saciada e não ficara enojada com a cena.
― Desculpe filha, mas eu não posso conversar enquanto como, pois acabo rindo
e está feita a merda.
Riu novamente de desgosto, estaria sozinho como responsável pela integridade
da casa.
Somente a tempestade e uma improvável nevasca poderiam salvá-lo da obrigação
de ser herói. Todos estavam pasmos com o grau de insanidade que acometera o
velho.
Brenda continuou com seu teatro e derramou o pouco conteúdo de seu prato na
vasilha do cão, este rapidamente foi para a segunda parte do banquete que lhe
caía do céu.
Era como se estivesse dizendo: está vendo papai? O cão dormirá de barriga cheia
e sua filha será obrigada a padecer de fome.
― Eu não gosto de vocês! ― protestou Sonny.
Cruzou os braços largando a refeição e continuou:
― Eu gosto só de brincar e vocês gostam só de brigar. Não podemos viver no
mesmo mundo.
Ficou emburrado. Audrey encarou o marido, queimando-lhe com o olhar. O velho
ficou sem graça e percebeu sua falha, mas não conseguia largar sua
insensibilidade e tudo não passava de culpa do genro.
― Eu poderia colocar-te para dormir no sofá. Mas para tua felicidade temos um
espaçoso quarto de hóspedes. ― Audrey dizia, com nojo da atitude do marido.
O lenhador levantou-se e foi até o cão que terminara de engolir o segundo bolo de
comida.
― Vamos indo. ― ele disse ao cão, atando seu pescoço à coleira improvisada,
sabia que a parafernália não tinha força para barrar o ímpeto farejador e
perseguidor do animal, mas era um modo de mantê-lo dominado em seu
quadrado.
Ronald levantou-se e despediu-se dos presentes, beijou o filho e a esposa na
boca.
De fato, doía em Lionel ver o genro beijar a filha. Naquele momento ele percebia o
motivo de não gostar do genro e não era culpa do último, ele tinha ciúmes da filha,
foi uma revelação arrebatadora.
425
Alguns psicanalistas deveriam explicar a razão de seu ciúme, talvez pelo fato de
se tratar de filha única.
Como fora idiota, nunca percebera o fato, sentia ciúmes da filha com o genro e
inconscientemente odiava o rapaz, mas a culpa era totalmente sua e era exclusiva
de sua cabeça.
Mas, ninguém precisaria saber daquilo.
A filha possuía a beleza que sua esposa não tinha há mais de décadas.
Ronald explicara a situação para Brenda, ela dizia ser perigoso entrar na floresta,
mas ficara mais tranqüila ao saber que o marido teria a companhia de um
verdadeiro batalhão com um arsenal de guerra, o lenhador era uma fortaleza aos
seus olhos e o marido não era bobo.
Era o momento de deixar de acreditar em fantasmas e animais gigantes e
mitológicos advindos da floresta. Nenhum bicho-papão poderia derrubar uma frota
armada e treinada de homens.
Eles seguiram o destino e saíram. Brenda pensava em quem poderia ter quase
conseguido derrubar a porta e se porventura voltaria. Temia não ver mais o marido
vivo, apesar de no fundo saber que ele voltaria inteiro e ileso. Seria uma longa
noite de espera, mas precisaria dormir.
Ronald ficou com o pé atrás de deixar a família sozinha com o sogro imprestável,
mas trazia certa segurança.
Os Harter estavam temerosos e transmitiam uma insegurança de desesperar a
alma de qualquer herói de cinema.
Audrey trancou a porta e não pendurou a chave em seu lugar de costume, o
chaveiro. Levou-a consigo onde quer que fosse e não demorou a solicitar que
subissem para descansar. Lionel já estava no segundo andar há muito tempo.
Deixaram a lareira acesa e a mesa como ficara após o jantar. Audrey apagou a luz
da sala e da cozinha e todos subiram. Ela chegou a oferecer que tomassem banho
apesar de saber dos perigos de quem se banha com o estômago cheio, mãe e
filho negaram o banho, estavam com medo.
Audrey os deixou no quarto de hóspedes e foi até o seu aposento onde Lionel já
estava deitado, vestia apenas cueca e uma camisa cavada, estava cobrindo-se
com uma dupla de grossos cobertores.
Ela havia se esquecido de perguntar se a filha estava com fome após a barbárie
de Lionel, mas desejava não sair mais do quarto naquela noite.
Raciocinava, deveria fazer sua oração e depois desferir o sermão de instrução e
advertência ao marido que demonstrava fingir ter dormido como a velocidade da
luz.
Ele mentia, pois desejava fugir do falatório e da responsabilidade com a vigília da
casa. Se a luz verde entrasse e viesse em sua busca, tentaria fingir estar morto.

426
Um calmante ajudaria muito bem.
Seus pensamentos foram interrompidos pela voz doce de Audrey:
― Lionel.

***

Ronald Malone e Horace Singer chegaram ao xerifado.


O xerife levantou-se de sua cadeira e foi até os dois homens, dar-lhes um aperto
de mãos:
― Agradeço a vinda, a vossa cooperação será de muito valor.
Norman e Forbes estavam sentados em duas cadeiras no canto do xerifado.
Ambos fitavam os que chegavam, mas não reconheciam o homem que
acompanhava o lenhador.
O xerife conduziu o caçador até os forasteiros e o apresentou.
― Esses são hóspedes do Bobster Inn e estão de passagem por aqui. ― disse o
homem da lei.
Malone sorriu contrariando sua fama de manter o semblante sempre sério. Apesar
de ser um homem íntegro, trazia uma feição que demonstrava se tratar de alguém
sério e que estimava a vida com seu devido valor, religiosamente.
Conway estava de pé, assistindo tudo com os olhos bem atentos. Estava pálido,
pois fora acometido por uma indisposição misteriosa após os dois calmantes que
ingerira.
Não se sentia cem por cento, sabia que se precisasse fazer um movimento mais
brusco ou correr, poderia desmaiar. O xerife o aconselhou a ficar em casa, de
repouso, mas o valente auxiliar não desejava ficar de fora da operação em
hipótese alguma.
― Falta alguém? ― indagou Forbes para quem quisesse responder.
― Estamos esperando Kingston. Que horas são? ― indagou o xerife para seu
auxiliar que consultou o relógio de pulso e informou:
― Dez e vinte.
― Vou chamá-lo. ― disse o homem da lei, saindo.
Após a saída do xerife, os presentes mantiveram silêncio. Era como se todos
estivessem raciocinando algo e não pudessem se dar ao luxo de ter suas
reflexões interrompidas.
Nenhuma palavra foi dita até que o xerife regressasse com o último dos
guerreiros.
Oliver Kingston, o negro, desculpou-se ao entrar:

427
― Perdoem o meu atraso, estava terminando de fabricar as tochas e elas me
deram um trabalho do cão.
Winepowder fitou o homem que falara, parecia entender que se referiam a ele
quando entoavam a palavra cão.
― Não tem problema, estamos na hora, gostaria de oferecer-lhes um café antes
de partirmos. ― disse o xerife, sempre tomando a frente das situações apesar de
não possuir uma mente genial.
Forbes disse com certo interesse:
― Posso ver uma dessas tochas?
Kingston trazia uma em cada mão e o rifle atado ao ombro. Ele prontamente
entregou uma de suas obras para o homem que solicitara a ver.
Forbes girava a tocha de modo que pudesse entender cada detalhe. Norman
seguia o amigo em seu estudo. Kingston não ofereceu demonstrar a tocha para
outro dos presentes, pois todos conheciam este trabalho seu.
Os forasteiros estavam perplexos com a riqueza de detalhes do trabalho de
Kingston.
A tocha exibia uma haste preta que parecia ser de uma madeira firme e a cabeça
parecia ser feita de infinidade de tecidos aglomerados em uma forma
perfeitamente delineada.
― És um artista, como ela é feita? ― indagou Forbes encarando Kingston.
― Obrigado pela parte que me toca, mas não posso revelar meu segredo...
A atitude de Kingston poderia parecer indelicada, mas sua resposta fora
necessária devido ao tempo que corria, em breve, ele poderia revelar o caminho
das pedras de como era confeccionada uma tocha daquelas.
― Muito bem, temos três lanternas e duas tochas. Vamos acender as tochas
apenas no caso de adentrarmos uma parte da floresta em que não
comprometamos sua integridade vegetal ou no caso de precisar afugentar animais
selvagens. Todavia, se andarmos sempre unidos não teremos problemas com
animais. ― declarou o xerife.
Forbes entregou a lanterna a Kingston e se desculpou de sua pergunta, ao que o
outro respondeu:
― Não precisa pedir desculpas, em outra ocasião poderemos confeccionar uma
tocha juntos.
O xerife começou a dar as instruções:
― Vamos caminhar lado a lado, não em fila. Todos estão com suas armas?
Soou um coral de confirmação em uníssono:
― Sim.

428
― Ótimo, estou ciente de que estamos em seis armados e um desarmado. ―
prosseguiu o xerife querendo deixar tudo em panos limpos.
O desarmado em questão era Norman Legrand que não sabia sequer pegar numa
arma.
― Acha que consegue carregar as duas tochas apagadas? ― o xerife indagou a
Norman.
Norman ia respondeu quando foi interrompido por Kingston:
― Ele conseguirá, eu tenho uma bolsa especial para carregá-las nas costas sem
que estorvem em qualquer ação ou pesem. Vou buscá-la.
― Melhor ainda. ― disse o xerife.
Kingston tornou até sua casa buscar o artefato.
― Ele é um homem muito caprichoso e precavido. ― Conway elogiou o ausente.
― Basta definir quem vai usar as lanternas. ― disse Norman, parecendo ler o
pensamento do xerife.
― Perfeito, vou ao meio com uma, é melhor que as outras duas fiquem com os
dois homens de cada extremidade de nossa fila vertical.
― Quem serão? ― indagou Forbes.
― Pensei em Kingston e Malone. Explicando, Horace não poderia, pois está com
uma das mãos ocupadas com seu cão e não conseguiria acionar seu rifle com a
outra que lhe resta segurando a lanterna.
― Não é aconselhável que Norman vá ao canto, pois está desarmado e qualquer
necessidade brusca não o permitirá reagir. ― emendou o xerife.
Frank Silver falava como se existisse um ser perigoso e capaz de atacar de
surpresa, no fundo todos consideravam esta possibilidade, mas nada justificava
todo aquele cuidado, pois estavam apenas em busca de um homem.
Não eram necessárias mais explicações, todos seguiam a linha de raciocínio do
xerife.
Kingston retornou e foi vestir Norman com o apetrecho. Depois colocou as duas
tochas na espécie de bolsa.
― Como se sente?
― É como se fosse um peso mínimo, um graveto seco e capaz de voar à leve
brisa. ― respondeu Norman.
― Como as tochas poderão ser acesas? ― indagou Forbes.
― Seus tecidos foram pré-umedecidos com uma substância inflamável, basta
riscar o isqueiro na superfície combustível e pronto.
Kingston tirou um isqueiro do bolso da calça e exibiu.
― E as lanternas? Pilhas não duram uma noite toda. ― disse Norman alarmado.

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Conway tirou um pacote de pilhas do bolso da camisa e provocou risadas em
todos.
Parecia incrível como aqueles homens eram precavidos.
Seria possível que algum deles levasse alimentos ou um kit de socorros, ocultos
em suas roupas?
O xerife repassou as instruções a Kingston que não as ouvira.
Fechou-se então o quebra-cabeça.
Kingston, Singer e Malone levavam seus rifles atados aos ombros.
O xerife, seu auxiliar e Forbes carregavam seus revólveres.
O revólver de Forbes estava oculto em seu casaco, como sempre.
Saíram do xerifado. Conway trancou a porta.
A sorte estava lançada.
Eles poderiam ganhar o jogo e encontrar o desaparecido.
Qual seria, porém, a derrota que o jogo em questão poderia oferecer?
A sorte fora lançada.
Não havia a opção de voltarem atrás em suas decisões.
Quando uma moeda é lançada ao léu para uma etapa de cara ou coroa. Ela cai e
oferece apenas duas possibilidades distintas: cara ou coroa, sorte ou azar, vitória
ou derrota.
Eles tinham ciência de que a moeda fora lançada e esperavam que para o bem ou
mal, ela caísse o mais rápido possível, revelando o destino.

430
36

A BUSCA

E foi assim que o grupo explorador começou sua busca por Nikosson.
Primeiro, todos ficaram parados de frente para a floresta contemplando a vasta
paisagem noturna.
Depois, um uivo distante de lobo cortou o silêncio aterrador que imperava.
E por último, antes que os corajosos homens entrassem à floresta, Conway
chamou o xerife de canto e confidenciou sem que ninguém ouvisse o que era dito:
― Por acaso você guardou as miniaturas de enfeite da nossa mesa?
O xerife contraiu o rosto como quem deseja esforçar a memória para lembrar algo
e disse:
― Não me apercebi. Por qual motivo pergunta?
― Elas não estavam na mesa quando saímos, aliás, a última vez que as vi foi no
meu último turno de vigília.
― Isso é grave, sabe que eu nem senti falta das miniaturas, ando por demais
esquecido. ― protestou o xerife contra si mesmo.
Naquele instante, o lenhador chamou a atenção dos dois homens da lei, pois o
grupo esperava a voz de comando do xerife para entrar à floresta.
Norman e Forbes conversavam em voz baixa e pareciam querer se ocultar do
campo de visão do restante do vilarejo.
Temiam serem vistos por Bobster.
Entretanto, a maior preocupação dos dois era com a possível existência dos
malvados da floresta.
Malone era o mais calmo dos homens. Kingston se portava como um soldado
veterano de guerra.
― É caso para depois, basta ir à casa de Parker e retomar o que foi furtado. ― o
xerife tratou de tapar o sol com a peneira e deu a primeira instrução: ― Vamos
indo.
Os homens em silêncio entraram na floresta e seguiram sem rumo.
A luz da lua e das lanternas de Kingston e Malone davam a direção. Por sorte, a
luminosidade natural da noite, vinda da lua, poderia ser suficiente para guiar os
intrusos.
Intrusos, assim poderíamos denominar o grupo naquele momento. A floresta
parecia possuir considerável desprezo em relação aos homens.
Homens e um cão, intrusos.

431
Intrusos nem sempre sabem por onde vão entrar ou por onde vão fugir, às vezes
são lançados à sorte oferecida pelo ambiente invadido, no caso, a inóspita
floresta.
Caminharam pouco tempo quando Malone obrigou a todos pararem e lançou uma
advertência que não haviam considerado até então:
― Fiquemos atentos para o caso de alguma armadilha antiga. Elas são as piores.
Horace fitou o xerife e reforçou a ideia:
― Ele está coberto de razão, esse ponto da floresta é pouco explorado e podemos
nos deparar com uma desagradável surpresa. Esqueci-me da última vez que aqui
estive.
Eles se referiam às armadilhas como o alçapão conhecido como cova-surpresa, a
corda arrebatadora que eleva o capturado pela perna e o deixa de ponta-cabeça
até que sua vida se esvaia devido à grande concentração de sangue no cérebro,
ou ainda, a dentadura de ferro, capaz de triturar o mais rijo membro humano.
Explicando a situação, estavam em um ponto da floresta em que a vegetação
começava a se tornar mais densa e fechada e precisavam se tornar mais cuidados
e versáteis em seus movimentos.
Os intrusos estavam cientes dos perigos que as armadilhas antigas poderiam
representar, prosseguiram na invasão em modo de alarme, qualquer movimento
estranho seria escandalosamente mencionado.
Um uivo de lobo ressoou, o animal parecia próximo, talvez a uma milha à
esquerda.
Winepowder rosnou e tentou fugir em busca do lobo, obrigou seu dono a firmar a
mão na corda usada como coleira. O cão estranhava o som de outro animal ser
ouvido de tão perto, apesar de estar acostumado com uivos, porém estes sempre
foram distantes.
Norman era o mais tenso do grupo, apesar de não deixar transparecer.
Julgava que alguns pares de armas não seriam capazes de barrar um malvado
com intenções carnívoras bem definidas.
Todo predador que procura render sua presa, possuí faro aguçado para fazer valer
sua superioridade.
Haviam caminhado quinze minutos, poucas palavras haviam sido ditas.
A floresta apresentou uma região com vegetação espinhosa que obrigou aos
homens a caminharem lentamente para que pudessem desviar dos castigos
gratuitos que uma boa picada da natureza poderia oferecer.
Horace Singer teve sérios problemas no braço direito, o mesmo que segurava a
coleira improvisada.
Seu braço parecia um verdadeiro cacto composto de carne e osso.

432
Aquilo ardia, mas ele procurava não transfigurar a face. Deixaria para fazer a
retirada dos espinhos quando alcançassem uma área mais limpa de vegetação,
pois aquela parte seria capaz de sufocar o homem de pulmões mais apurados do
mundo.
Aos poucos, uma sensação de claustrofobia tomou conta de Forbes. Ele odiava
armários estreitos com teias repletas de aranhas, quanto mais um emaranhado de
árvores capazes de esconder suas aranhas exímias em esbanjar truques
malévolos para ludibriar suas vítimas, sedentas em expelir sua peçonha numa
suculenta corrente sanguínea.
Eles estavam na parte mais negra da floresta. Um labirinto desconhecido.
Havia algo errado, Norman sabia. Deveria existir algum caminho mais suave.
Outro inimigo indesejado ganhava força, a neblina que o frio intenso produzia.
Norman questionou se estava tudo bem com seu companheiro de hotel, o mesmo
respondeu que sofrera um surto de falta de ar.
Bobagem, Norman estava atento demais para engolir aquilo. Porém, não era
momento de questionar palavras alheias.
A situação preocupava a todos, exceto Malone que estava com o rosto sereno e
despreocupado. Ele percebeu que os demais hesitavam para continuar e alertou:
― Eu conheço aqui, é um ponto desconfortável, mas basta seguir em frente.
Pegaram uma elevação não menos desconfortável. O xerife estacou para respirar
e deu um sinal para que todos o aguardassem:
― Estamos andando por cerca de vinte minutos, acredito que poderemos a partir
daqui chamar pelo pobre do Nikosson.
Conway assumiu uma posição de incredulidade, depois do ocorrido no xerifado
em que um provável animal de porte colossal vindo da floresta quase arrombara a
porta, quase não acreditava na sobrevivência de Nikosson.
Sim, seu superior estava coberto de razão ao chamar o desaparecido de “pobre”
Nikosson.
O xerife se recompôs naquele instante e gritou a plenos pulmões, assustando os
outros homens:
― Nikosson.
O silêncio continuava a dar as cartas. Pelo visto, nada poderia ser feito, a não ser
continuar a exploração da floresta.
― Em pouco tempo estaremos em uma região mais aberta. ― advertiu Malone.
Todos gostaram da ideia de se verem livres do emaranhado sem fim de galhos.
Continuaram a caminhada. Olhos atentos.
Temiam mais por suas vidas do que pela de Nikosson. Contavam com a sorte.

433
O procurado deveria ser carta fora do baralho naquela altura do campeonato, um
jogador fora da mesa.
Estavam em silêncio, caminhavam com dificuldade. Malone quebrou o protocolo e
tomou a frente do grupo, solicitou ao xerife que lhe desse a permissão de ser o
guia:
― Eu conheço esta faixa de terra, estamos nos aproximando de um lago.
As palavras do caçador deixaram o grupo perplexo.
Lago?
Como assim? Ninguém sabia daquilo, nem mesmo o lenhador que apesar de
explorar costumeiramente o lado oposto da floresta, conhecia muito bem aquelas
paragens.
O grupo parou para questionar o caçador.
― Nunca vi o lago que você mencionou, tem certeza de que ele fica por aqui? ―
indagou o lenhador com uma feição de dúvida.
― Sim, caminhei mais de uma vez por aqui, inclusive passei uma tarde
contemplando o lago, quando eu estava cansado de caçar e ver o sangue dos
animais abatidos escorrer.
― Vamos ao que interessa. ― disse o xerife apontando para que continuassem.
― Nikosson! ― gritou Kingston, temendo o caso de o andarilho ter sucumbido,
afogado.
Era possível imaginar a agonia das vítimas de afogamento, onde o oxigênio se
transforma em artigo de luxo que dinheiro nenhum do mundo é capaz de comprar.
Caminharam mais cinco minutos, com cautela, até que avistaram a terra
prometida por Malone.
De fato, chegaram numa extensão mais pobre em vegetação, e melhor ficou a
situação quando conseguiram avistar o lago em questão.
O caçador encheu-se de orgulho ao estar correto em sua bússola mental.
Singer aproveitou o oásis em meio ao deserto para desabafar toda sua dor
guardada e começou a puxar uma leva de espinhos atrás da outra.
Todos perceberam o suplício do brutamonte, mas nenhum deles ofereceu-se para
ajudar.
Talvez estivessem receosos em apalpar o braço de outro homem.
― Muito bem, sinto que nesse mato tem coelho. ― disse Forbes.
A luz do luar revelava um lago de águas negras, a poucos metros de distância.
A extensão aqüífera era uma forma parecida com uma bola desconexa em certos
pontos de sua extremidade.
― Isso leva a lugar nenhum, Nikosson não pode estar por aqui. ― protestou
Conway.

434
Foi a vez de Forbes protestar:
― Uma pessoa que vive ébria pode muito bem se afogar em um lago por mais
raso que seja.
― Tudo bem, é o caso então de verificar se existe algum corpo boiando. ―
retrucou Conway.
― Vamos parar de tecer conjecturas e ir avante. ― advertiu o xerife.
As duas lanternas passeavam pelo ambiente. Era possível se guiar apenas com a
luz do luar, naquele ponto específico.
Prosseguiram a caminhada e pararam na borda do lago.
― Será possível verificar toda extensão do lago com as lanternas? ― indagou o
xerife.
― Sim, veja. ― respondeu Kingston, usando sua lanterna para iluminar todos os
pontos do lago.
Parou o movimento no centro do lago e alarmou:
― Veja aquilo!
Todos estavam atentos ao objeto que boiava na água.
Ficaram aliviados ao discernirem um tronco aparentemente fino.
Naquele instante soou o uivo de um lobo, mas vinha de longe.
O trabalho de rastrear o lago todo com as duas lanternas foi versátil de modo que
o xerife solicitou:
― Vamos andar uma milha mais e voltar.
Norman não concordava, poderia combinar com seu amigo de hotel a
possibilidade de juntos, continuaram a explorar a floresta mesmo que fosse para
topar com um malvado ou com a assustadora luz verde.
Cada um dos sete homens temia algo.
O xerife, seu auxiliar e Kingston pensavam na possibilidade de se depararem com
o dono da sombra de mais de dois metros que assolara a noite da tempestade.
Malone e Singer esperavam pela presença da luz verde.
Os dois companheiros de hotel consideravam mais séria a possibilidade de
descobrirem a caserna de algum filhote de malvado e todo o seu bando faminto.
O cão farejava o rastro de Nikosson, seria bom se ele pudesse falar.
Era penoso o fato de uma criatura de faro tão apurado como aquela não poder se
comunicar com seres mais racionais.
Winepowder sabia que Nikosson passara naquele local, mas sabia também que o
aroma característico do andarilho não era o único por ali.
Havia um Q a mais.
Nikosson não passara por ali sozinho, mais alguém estivera em sua companhia e
Wine sabia disto.
435
Aquela era a situação.
Singer abandonou a tarefa de remover espinhos. Conseguiu se livrar de pelo
menos metade deles.
Chegaram a uma extensão de árvores semelhantes. Todas possuíam um tronco
fino e eram altas. O ponto a favor à expedição era a facilidade de se transitar
naquela região.
Estavam com os olhos atentos ao que se passava ao derredor e a um possível
atacante oculto.
A neblina estava mais densa.
A floresta estava gelada e a temperatura abaixava mais e mais de modo que os
rostos expostos eram castigados pela falta de fonte de aquecimento.
Kingston acendeu uma tocha. Não para iluminar, pois naquele ponto da floresta
até mesmo as lanternas eram desnecessárias.
A tocha chamejante aqueceu o grupo e a luminosidade extra permitiu a Norman se
atentar para uma coruja que os estudava de cima de uma árvore.
Ela os imputava por estranhos, intrusos indesejáveis.
Repentinamente, algo ocorreu e levou o coração dos valentes a mil.
Wine conseguiu escapar das mãos de seu dono e saiu numa carreira
desenfreada. Sumiu de vista e obrigou ao lenhador correr em seu encalço.
O restante dos homens seguiu aquele que buscava desesperadamente resgatar
seu cão.
O cão parecia estar a léguas de distância. Singer atolou a perna em um buraco
barrento e quase a quebrou. O grito foi espontâneo.
O restante do grupo veio em seu socorro. Kingston movimentou a perna do pobre
homem de um lado para o outro, a fim de saber se a mesma estava quebrada ou
apenas fora torcida.
Por sorte, o lenhador pôde se levantar e continuar normalmente. Restou a
sensação de um nervo retorcido que muito incomodava.
Seu cão. Precisava resgatar seu cão antes que ele se atracasse com um bando
de lobos. Correu novamente ignorando os empecilhos, a vida de seu cão valia
mais do que uma simples dor.
― Acalme-se! ― gritou o xerife.
Todos continuavam a perseguir o desesperado homem. Por pouco, Kingston não
incendiou a floresta com a tocha. Ela bambeou de sua mão que a resgatou no
limite de despencar desfiladeiro abaixo.
Faltou um milésimo de milímetro para que o sonho de Josias Parker se realizasse.
Ver a floresta tomada pelo fogo.

436
É lógico que a obra de arte ser realizada pelas suas mãos seria melhor, mas um
“showzinho” daqueles seria capaz de abrilhantar seus olhos.
O cão latiu.
Ele estava à frente, numa distância que deveria ser de pouco mais de cem metros.
Singer correu mais e mais, e era veloz como um atleta muito bem preparado.
Todos corriam. A cena era assustadora, parecia um bando de homens fugindo de
algo bizarro, extremamente ameaçador.
Forbes estava ficando para trás, estava quase sem fôlego e começou a babar e
cuspir muito. Seu peito doía, estava devendo e muito em seu preparo físico.
Norman parou para ajudar o amigo e chocou sua cabeça com uma árvore, mas
nada que pudesse o derrubar. A preocupação principal era com o fato de o amigo
estar quase sofrendo uma parada cardíaca.
O cão latiu. Kingston voltou para auxiliar Norman.
O negro foi o único além de Norman, a perceber a situação preocupante de
Forbes.
Norman escorou o amigo, uma mão às costas e outra pronta para impedir
qualquer tipo de queda da vítima.
Forbes cuspiu e falou com dificuldade:
― Estou bem, preciso respirar um pouco.
Kingston segurava a tocha como um herói equilibrista. Era capaz de correr e fazer
movimentos escalafobéticos sem deixar o objeto chamejante cair em terra.
Passaram-se alguns minutos, nenhum sinal dos outros homens que correram
atrás de Singer e seu cão.
― O jeito é seguirmos andando. ― sugeriu Kingston.
O trio seguiu o provável caminho reto que fora tomado pelo restante do grupo.
O cão tornou a latir e seu latido não parecia vir de tão longe como se imaginava.
A neblina embaçava qualquer visão, mas a tocha de Kingston afastava seus
efeitos climáticos.
O trio passava despercebido, camuflado pela neblina cada vez mais densa.
Norman sentiu calafrio e sua espinha tremer ao pensar na provável presença de
um malvado que estivesse escondido nas cercanias.
Forbes antes capengava, naquele momento, porém, parecia ter ressuscitado e
pronto para uma nova batalha. Como uma fênix imortal.
Era possível enxergar o restante do grupo que retornava ao encontro dos que
ficaram para trás. Singer estava com seu cão novamente que ofegava com a
língua para fora. Seus olhos pareciam virados de tanto correr.
― O que aconteceu? ― indagou o xerife ao se aproximar dos três que estavam na
retaguarda.

437
― Forbes precisou parar um pouco. ― respondeu Kingston.
― Para que? Urinar? ― indagou Conway.
Forbes gargalhou da ingenuidade do auxiliar de xerife.
― Não meu caro, meu preparamento físico não anda tão bem e precisei tomar um
pouco de gás, pegar ar, melhor dizendo.
― Tudo bem, o importante é que estamos todos juntos agora. ― disse o xerife.
― Não encontramos Nikosson, mas encontramos algo interessante graças ao
destemido cão. ― emendou o xerife.
― O que é? ― indagou Norman.
― Venham ver e preparem suas armas. ― sugeriu o xerife.
O grupo completo seguiu o caminho antes tomado pelo cão fugitivo.
O que haveria de tão interessante e que exigia as armas em alerta?
O trio que ficara na retaguarda precisaria passar por uma dificuldade antes de
saber.
Um cheiro de madeira queimada tomou as redondezas.
Algo estranho, a floresta estava em chamas?
A dificuldade se aproximava, eles caminhavam.
O obstáculo se mostrou quando algo prendeu o pé direito de Kingston que
caminhava ao canto do grupo já desorganizado e fora de fila.
A corda arrebatadora ergueu a vítima por cerca de dez metros de altura.
Kingston não conseguiu manter a tocha em sua mão, tamanho o susto que levou
ao ver o mundo de ponta-cabeça.
A tocha quase caiu na cabeça de Norman. Kingston gritou com a voz desfigurada
devido sua mais nova posição:
― Bata ela no chão com força e repetidamente.
Todos entenderam que a tocha poderia colocar fogo na vegetação e causar um
sério estrago, Forbes obedeceu a voz do homem que fora vítima de uma
armadilha e bateu a tocha seguidamente no solo ainda barrento em função da
tempestade.
A tocha se apagou. Um alívio.
Bastava encontrar uma forma de salvar a vítima.
Dizem que uma pessoa demora um dia para morrer na situação em que Kingston
se encontrava. Lesões e hemorragias minúsculas vão acometendo o cérebro da
vítima devido à alta concentração de sangue, até que o óbito ocorra.
Entretanto, Kingston não gostaria de pagar para ver seu fim após um dia de
suplício. Sabia que estava acompanhado de homens capazes de salvá-lo.
― Façam uma cama humana que eu darei um jeito de soltá-lo. ― sugeriu o
valente Malone.
438
― Como pensa em soltá-lo? ― indagou Forbes.
― Seria capaz de escalar uma árvore desse porte? ― indagou Norman incrédulo.
O tronco da árvore era grosso e impossibilitava que alguém o abraçasse para
escalar.
― Eu conseguiria escalar. ― disse o lenhador.
― Vou tentar. ― retrucou Malone e foi para sua tentativa.
Abraçou um lado do tronco com uma mão e o outro lado com outra, mas não
conseguiu escalar um metro que fosse. O fracasso abriu a possibilidade de outro
homem tentar.
― Segure o Wine, eu saberei escalar essa árvore.
Foi assim que aconteceu o resgate de Kingston. O caçador cuidou de impedir
outra fuga do cão enquanto que Singer executava seu ato de heroísmo.
Era incrível como ele conseguia ir derrapando tronco acima como um exímio
praticante de arborismo que arriscava quebrar as regras e escalar uma árvore ao
invés de andar por trilhas em suas copas.
A diferença era que o lenhador usava apenas a habilidade de seus membros
corpóreos e não precisava usufruir de qualquer artefato de escalada.
Ele parecia encaixar seus dedos em irregularidades no tronco, invisíveis aos olhos
nus e fazia isto com majestade. Os espinhos remanescentes o castigaram
fervorosamente no trajeto.
Ele chegou até a corda que anexava o mecanismo da corda arrebatadora ao
tronco. Pegou seu canivete e cerrou até que Kingston caísse, depois, a cama
humana foi responsável por não permitir que ele chocasse a cabeça ao chão.
- Madeira! – alarmou o herói.
Os dois oficiais e os dois forasteiros conseguiram formar uma cama elástica com
suas mãos e comportaram o caído da árvore como um bebê indefeso e inocente
que pulasse do mais alto edifício.
Kingston estava salvo e a expedição poderia prosseguir.
O lenhador, em um ponto da árvore, enquanto abraçava o tronco e descia, deu um
pulo ao chão e quase derrapou.
O xerife bufou de alívio e disse:
― Acho que podemos seguir em frente.
― Não vamos chamar pelo desaparecido? ― indagou Forbes.
― Acho que não devemos gritar tanto. ― respondeu o xerife em uma desculpa
mal disfarçada.
― Por qual motivo não devemos gritar? Estão com medo de alguma criatura
fantasmagórica? ― Forbes tornou a indagar, procurando uma brecha na
blindagem mental que parecia estar o xerife.

439
― Não estamos com medo. ― desculpou-se o homem da lei.
Forbes insistiu:
― Então...
O frio intensificou-se, estavam sem movimento por algum tempo e precisariam
retornar às atividades motoras e dar um gás no físico.
― Podemos chamar pelo desaparecido? ― insistiu Forbes, quase chegando ao
patamar de chatice crônica.
― Tudo bem, faça como quiser. Afinal, não estou aqui para manter uma palavra
irrepreensível, de modo que, aceito novas ideias dos colegas que nos brindam
com suas necessárias presenças.
A verdade era que todos estavam mais tementes por suas vidas do que em busca
de Nikosson. Forbes chamou, mas não houve o cantar de um pássaro como
resposta que fosse.
Retomaram a caminhada e cruzaram um novo grupo de árvores.
Foi quando contemplaram uma fumaça em meio à neblina que tiveram a grande
surpresa da noite, a mesma que fora descoberta pelo grupo que perseguira o cão.
Uma fumaça que subia.
Uma chaminé que se desenhava no horizonte pouco distante e assim perceberam
que estavam quase de frente para uma cabana no meio da floresta. Antes, na
busca ao cão, haviam percebido apenas a fumaça que invadia o horizonte. Mas
naquele momento tudo ficou mais nítido.
Seus corações foram aos pulos.
Estavam paralisados.
― Alguém de vocês conhece este local? ― indagou o xerife.
O caçador e o lenhador entenderam que a pergunta se direcionava a eles, mas
estavam agitados demais para responder, de modo que negaram com um gesto
de cabeça. Mantinham o olhar fixo na cabana.
O espanto terminou e se tornou em um frisson. Nikosson poderia estar abrigado
naquela cabana.
Aquela cabana poderia ser o abrigo da temida família de malvados?
Muitos criticam o pensamento humano como tendente a calcular possibilidades
ruins, porém, naquele exato momento, esta teoria era desbancada.
Humanos possuem na verdade, inteligência para pensar com crítica e farejar os
perigos mais encobertos e astutos.
― Vamos nos aproximar e averiguar do que se trata. ― Forbes sugeriu.
Sempre ele, quebrando o protocolo e indo avante.
Norman estava com o amigo, mas não teria coragem de resistir a um ataque de
malvado.

440
Deveria ser protegido pelos homens das armas.
Porém, o prazer de se estar progredindo nos problemas complexos traz uma
sensação compensadora de vitória que pouca gente foi capaz de sentir.
Os bravos homens procuravam economizar palavras, mas mantinham as armas
em estado de pronto atendimento.
Aproximaram-se alguns metros e se esconderam por detrás de um morro com
alguma vegetação que estava ao redor do lado esquerdo da cabana.
Ficaram estudando o local.
As janelas eram redondas e pequenas, uma arquitetura interessante.
O telhado estava coberto com um infinito emaranhado desconexo de alguma
espécie de corda.
Mas, a chaminé estava trabalhando. Provavelmente alguém cozinhava ou estava
se aquecendo em uma lareira.
A possibilidade de o habitante misterioso estar cozinhando era improvável, devido
o horário avançado.
Singer chamou a atenção dos homens e alertou sobre uma armadilha que estava
ao redor da cabana.
― Devemos tomar cuidado ao caminhar pelas redondezas, vejam aquela cama de
capim.
Apontou e todos olharam, ele prosseguiu:
― Trata-se de uma cova-surpresa, e parece ser uma construção recente.
Forbes pegou o fio da meada:
― Recente? De quando aproximadamente?
― Acredito que durante o último dia, enquanto o sol raiava. ― respondeu o
despreocupado lenhador.
― Acredito então que...
Forbes disse isto e ficou boquiaberto, preocupando os demais que o pressionaram
para prosseguir em sua conclusão.
― Acredito que o responsável pela armadilha, sabia que iríamos procurar alguém
na floresta.
― Faz sentido. ― foi o que Kingston conseguiu dizer.
Todos concordaram com Forbes.
― Vamos invadir? ― indagou o xerife, jogando as palavras de dúvida no ar.
Demorou, mas houve uma resposta que soou como uma astuta opinião:
― Somos homens e sei que estamos preparados para qualquer perigo, vamos
invadir com cautela. ― disse Malone.
Naquele momento, uma sombra cruzou o interior da cabana e proporcionou uma
visão assustadora em uma das janelas redondas.
441
Estavam próximos demais, mas estavam escondidos.
― Devem existir mais armadilhas por aqui. ― alertou Conway.
― O teu cão fareja armadilhas também? ― indagou o xerife ao lenhador, meio
que irônico.
― Não sei explicar exatamente, mas com certeza ele consegue farejar o rastro do
ser que as construiu, caso houver alguma.
― Ele pode ser de valia neste momento? ― o homem da lei tornou a indagar.
― Sim, acredito que se o colocarmos à frente, com certeza ele conseguirá
discernir o perigo com base no cheiro de qualquer ser que por aqui tenha
transitado.
O xerife sorriu e disse como quem dá uma excelente notícia:
― Senhores, vamos invadir a cabana...

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37

HORAS DE DESESPERO

Eram quase três da madrugada quando o guerreiro despertou daquele que


poderia ser o seu derradeiro sono.
Fora um sobressalto.
Estivera sonhando.
Um sonho que se tornara pesadelo.
A luz verde estava prestes a devorar seu genro e ele, esperto, assistia a desejável
cena por detrás de uma árvore.
Mas havia se esquecido de que fantasmas ultrapassam paredes e poderiam
farejar um intruso oculto na floresta.
O sonho se tornou pesadelo quando a luz verde abandonou seu genro e se pôs a
persegui-lo.
Ele correra muito e estivera quase enfartando quando se chocara em um pesado
tronco de árvore.
A testa.
Apalpou a testa para verificar se seu pesadelo transpassou os limites da ficção
com a realidade.
Sua fronte estava intacta, mas sabia que algo estava para acontecer.
Sabia que alguém iria chegar e bater à porta de sua casa.
Precisava se preparar para receber a visita e deveria agir como todo guerreiro de
ofício.
Desceu a escada, estava usando sua sandália de velho, vestia uma camiseta
cavada e não dispensava andar apenas com sua cuequinha amarelada pelos
longos anos de uso.
Chegou à portinhola debaixo da escada que dava acesso ao antigo porão.
Estava ciente de que entraria em uma batalha para matar ou morrer e era inegável
o fato de seu inimigo ser superior.
Precisava raciocinar sobre qual armamento deveria usar.
Sabia apenas que deveria se tratar de alguma parafernália capaz de derramar
sangue.
Novamente apalpou a testa antes de descer a espantosa escada do porão.
Sabia que poderia levar um tombo respeitável naquela escada que há muito
tempo não descia, talvez alguns anos, três provavelmente.

443
Chegara o momento de enfrentar mais um de seus medos, o porão de sua casa.
Não bastasse o corredor escuro da igreja e a floresta inexplorável, habitada pela
luz verde.
Desceu degrau a degrau com mais medo de cair do que com o que pudesse
encontrar lá embaixo, na tumba abandonada.
Mas, não chegara até aquele estágio da vida ao acaso.
Sua cabeça calva demonstrava o esplendor da glória da idade.
Era um vencedor não reconhecido, odiado pelo genro, incompreendido pela
esposa e pela filha.
Sentia uma pontada de indiferença nos olhares do neto, de vez em quando.
Lembrava-se dos seus tempos de criança, quando imaginava sobre tudo.
Mundos em que os dragões vermelhos que mantinham as princesinhas cativas
seriam devidamente castigados pelos príncipes salvadores, paisagens
exuberantes com flores inexistentes ou presentes de aniversário que somente os
bons filmes exibiam, mas que na verdade eram pura ilusão.
Difícil era crescer e encarar a realidade nua e crua em sua forma mais brutal e
aleivosa.
Pois bem, os adultos sempre enxergam os problemas em tudo, transformando
uma mísera lasca de cocô de pássaro em um monstro perseguidor e devorador de
carne.
Sim, os adultos são complicados e mais complicado ainda é entendê-los ou definir
o motivo pelo qual matutam pensamentos pessimistas.
Não havia tempo a perder com reflexões inúteis, precisava montar sua
parafernália de guerra, pois o adversário se aproximava sorrateiramente e se
apresentaria de surpresa.
Deveria haver uma lanterna no porão e ele havia deixado...
Sim, no antigo baú de papeladas corriqueiras, de anos atrás quando ainda era um
adulto e não um velho.
Na época em que se libertou do casulo da maturidade para se tornar um maduro
mor, um senhor da sabedoria, um irrepreensível nato.
Azáfama altiva do genro era querer dar-lhe opiniões de como se portar em família,
aliás, o genro não se opunha abertamente, mas com certeza pensava em se opor.
Quem poderia lhe contrariar?
Abriu o antigo baú e apalpou a lanterna que estava protegida por uma
aglomeração de teias de aranha.
Desde quando acordou como guerreiro não trazia o medo em si, poderia esmagar
nas mãos qualquer espécie de aranha, por mais peçonhenta que fosse.

444
Naquele exato instante seria capaz de se alimentar com o fluído vital expelido por
um corpo de aranha esmagado em suas mãos.
Eram as ideias do manual que servia como guia de sobrevivência na selva para
soldados treinados. Afinal, nenhum bom guerreiro morre de fome quando existem
insetos e plantas por perto.
Pressionou o botão vermelho e desbotado da lanterna e ela por sorte acendeu,
revelando grande parte do conteúdo do porão.
Para sua surpresa não havia alguém no ambiente, julgava aquilo como um
verdadeiro milagre.
Esperava encontrar no mínimo, um par de olhos cravados em si e uma máscara
monstruosa. Mas, não temia.
O cheiro de podridão era fraco, mas não deixava o direito de imperar.
Surgiu então a primeira ideia, havia um cabo de vassoura encostado em um dos
cantos do local.
Era de uma vassoura antiga que custou-lhe duzentos dólares na época.
Um presente de aniversário de casamento para Audrey, na verdade fora um
agradinho.
Aos infernos com as bodas de prata, de ouro e de qualquer metal que o mundo
materialista julga precioso.
Qualquer mulher dona de casa da época em questão gostaria de dizer que
ganhou de presente do marido a vassoura da atualidade.
Doía-lhe a cabeça só de lembrar-se da senhora idosa, chata e desprovida de
beleza que anunciava a vassoura da atualidade em um comercial de televisão.
Ora, aos raios com a vassoura da atualidade, a beleza de Audrey já havia ido para
o espaço naquele tempo.
Quer contentar seu marido?
Siga um procedimento.
Preocupe-se menos em fazer comida e mais em ficar bonita.
Levou o antigo cabo até o esmeril mais antigo ainda.
Por sorte não acordaria a mulher mestre em fazer comida e péssima em ficar
bonita com aquele ruído insignificante de madeira sendo desbastada com fervor.
O esmeril foi acionado e em algum ponto da fiação houve propagação de faíscas,
ele não sabia definir em que ponto do fio, pois não ousava olhar atrás de si como
qualquer guerreiro que honrasse sua camisa. Seu alvo era à frente, não poderia
sequer pensar na pífia possibilidade de retroceder.
Perfeita.
A primeira arma ficou perfeita.
A lança afiada de madeira frágil e estragada.

445
Aproximou sua obra de arte dos olhos, por um deslize seria capaz de perfurar
suas vistas, mas, excelente ideia foi contemplar o feito.
Isto o encorajou a procurar outro meio de ataque, outra arma que lhe
proporcionasse a sensação de proteção.
Poderia dar um trato em seu velho rifle, aquele artefato sim era do tempo da onça.
A tarefa mais difícil seria lembrar onde depositara o objeto.
Sempre fora um péssimo atirador, mas desde quando acordou com status de
guerreiro sua pontaria fora aguçada e seria capaz de manejar uma arma que
disparasse uma bala do mais alto calibre.
Espere, havia uma madeira falsa no porão, era seu esconderijo eterno.
Somente ele conhecia o esconderijo.
Inúmeras vezes sentira vontade de poder se embrenhar no buraco do esconderijo
e permanecer um bom tempo de sua vida, coisas de adultos.
Os malditos adultos que sabem apenas esbanjar uma baixa taxa de
responsabilidade e confiança.
Que idiota!
A última vez que arrastara o baú onde encontrara a lanterna foi justamente para
reforçar a proteção de seu esconderijo.
Chegara o momento de desvendar toda a merda oculta.
Empurrou o baú com a força de guerreiro. Foi um deslocamento fantástico.
Não foi difícil remover a madeira falsa, bastou uma boa jogada com as duas mãos.
Havia mais merda escondida do que um simples rifle das antigas.
A primeira merda era uma revista masculina que Audrey o surpreendera
contemplando no início da fase idosa, a época de respeito mútuo entre casal.
A modelo possuía um corte de cabelo curto estilo anos vinte e trajava apenas
peças íntimas.
A revista deveria ser da época de seu pai, no limítrofe da fase adolescente para a
adulta.
Possuía inúmeros objetos pessoais e secretos, porém, não havia tempo de
relembrá-los.
O rifle estava no fundo, por baixo das bugigangas.
Para seu desespero havia se esquecido de que justamente o cano do rifle estava
torto, muito torto. Tratava-se de uma inclinação de quase trinta graus em sua
ponta, não conseguia se lembrar qual força motora causara aquele estrago.
Mormente, o rifle poderia não servir para alvejar, mas servia para intimidar.
O respeito do guerreiro é imposto por sua coragem e não pelas armas que
carrega.
Arma é apenas um detalhe, a coragem é a força que intimida.

446
Estava com a lança e o rifle em mãos, prontos para atacar, fechou seu esconderijo
e novamente deslocou o baú com maestria selando a eterna cova que nunca mais
seria aberta.
Faltava a camuflagem.
Possuía uma lata de tinta vermelha no porão, desta vez saberia informar onde o
objeto procurado se encontrava.
Na prateleira de canto.
Foram três dedos de cada mão os responsáveis por marcar seis rastros de tinta
vermelha divididos igualmente entre as duas bochechas.
Manchou a lente esquerda dos óculos sem querer, mas poderia ser um ponto ao
seu favor, mais um vestígio de guerreiro, capaz de confundir os passos do inimigo.
Subiu a escada pronto para a guerra e deixou a lanterna acesa no porão, entregue
à própria sorte. Poderia representar a luz da glória do guerreiro que visitou o
temido porão e impôs seu respeito.
Chegou até a sala e fitou a porta na escuridão, esperou que seus olhos se
acostumassem e discernissem um pouco mais do que se passava ao redor.
Sentia que faltava algo e sabia o que era. Foi até a cozinha e pegou um dos panos
de prato preferidos de Audrey, era o que trazia uma bela ilustração da bandeira
americana.
Amarrou o pano de prato na cabeça, como uma bandana de guerreiro e tampou a
madura glória de sua calvície.
Somente quem o guerreiro permitisse poderia contemplar os anos de vitória que
sua calva representava.
Ficaria em posição de defesa e esperaria o inimigo atacar, colocou a lança de
madeira por dentro da camisa, nas costas, como um samurai pleno que deixa sua
espada de prontidão e a aciona como que por mágica.
Acendeu a luz da sala e se postou no pé da escada que dava para o
compartimento superior de guerra, longe da porta, em posição de defesa.
Aguardava a chegada do inimigo.
Esperava que a porta fosse arrombada e estava ansioso pelo momento de
afugentar seu pesadelo, a luz verde que voltaria eternamente para a sua floresta
ao se deparar com o preparado veterano de guerra a postos.
Ele não esperava que o inimigo fosse se mostrar tão cauteloso. Esperava um
ataque voraz e sem titubeios de fracos e blefadores.
Bateram à porta, o inimigo estava oculto e era educado, tanto que solicitava a
famosa permissão para entrar.
O desconhecido bateu à porta com mais voracidade, estava desesperado para
entrar.

447
As batidas estavam incessantes, se Audrey acordasse, com certeza daria um fim
naquela guerra, mas ele desejava finalizar o impasse naquele momento e não
poderia ser interferido tão infantilmente assim.
Havia uma solução, abrir a porta e atacar o inimigo sem lhe dar chances de
defesa.
Não era covardia se manter na defensiva, mas sim estratégia.
Raciocinando melhor, deveria ser leal com os inimigos por mais superiores a si
que fossem.
A perna não travou, criou coragem e foi até a porta.
Estava preparado para acionar sua lança de madeira ao abrir a porta.
― Preciso da tua ajuda...
Ele quase matou o padre Alvarez Leone com a lança afiada.
O padre invadiu a sala, mas não tinha certeza se aquela figura era mesmo Harter.
― Você não tem mais idade para sair de cueca como criança e brincar de
guerrinha. ― o padre zombou, mas estava sério e afoito.
Harter estava travado, não conseguia falar ou raciocinar devidamente.
― Alguém estava na biblioteca da igreja, vestia capa negra e me assustou muito.
O inimigo errou de endereço ou mudou a estratégia, pensou Harter ainda
apoplético.
Quando Harter caiu na real percebeu que não seria possível permanecer na
batalha e ir à busca do inimigo que invadira a igreja, o padre estava precisando de
ajuda imediatamente.
Melhor definindo, os dois estavam precisando de ajuda.
Naquele momento ele teve a certeza de que o padre passava pelo mesmo apuro
que lhe acometia.
Os dois estavam recebendo a visita da luz verde esporadicamente.
O padre o fitava com olhar de medo, como quem cobra uma posição de outrem
que está vestido e pronto para a guerra.
― Poderia fazer algo para ajudar? ― indagou o padre, esperando o apoio do
companheiro, era o momento de encarar seu maior medo, o carrasco do livro “O
mal do século”.
Harter prosseguiu em silêncio, o padre tornou a perguntar:
― E então, o que pode fazer?
Harter temia despertar Audrey, temia a vinda do inimigo e temia ser reprovado pelo
padre.
As duas únicas palavras que conseguiu exprimir foram:
― Um café...

448
***

Eles estavam decididos e encorajados.


A neblina proporcionava um aspecto fantasmagórico à cena que representava a
grande cabana em meio à paisagem da floresta.
Novamente soou um distante uivo de lobo.
O local parecia ser infestado por corujas, era possível contemplar vários pares de
olhos na escuridão do alto das árvores.
Os olhos pareciam luminares em par, em pontos diversificados e estratégicos.
Era perturbador pensar que aqueles olhos poderiam ser dos malvados.
Norman chegava a sentir um arrepio em sua nuca gelada.
Ficou combinado que o lenhador conduziria seu cão à frente e que o xerife e seu
auxiliar iriam logo atrás lhe dando cobertura com suas armas preparadas.
Conway consultou seu relógio de pulso e disse:
― Três e quinze.
― Vamos nos divertir. ― disse o e xerife, que ao contrário de suas palavras,
demonstrava vulnerabilidade.
Malone se mantinha calmo, o restante parecia estar sendo acometido por uma
descarga elétrica e tremiam tamanha a dose de adrenalina que transitava em suas
veias.
O cão iria na frente para farejar armadilhas, na verdade, rastros de quem
provavelmente as construiu. Sabiam que havia alguma armadilha ao derredor da
cabana, mais de uma, talvez.
O problema de se cair em uma armadilha seria o de alarmar quem quer que
estivesse no interior da cabana.
Havia alguém no mínimo, a sombra que transitara pela cabana e refletira na
janelinha arredondada provava a tese.
A ação começou, era um momento de oscilação de pensamento, no que diz
respeito aos limites entre a realidade e a imaginação que poderia levá-los à
loucura.
Horace Singer desceu o pequeno morro com seu cão que ofegava com a língua
para fora da boca, parecia estar faminto por uma aventura, por encontrar alguém
que era perseguido pelo seu dono.
O bando de homens seguia em direção à cabana.
A porta dianteira se situava quase de frente para a área coberta por um bolo de
gramas cortadas.
O grupo se aproximou da suposta armadilha e parou para contemplá-la.

449
O cão se pôs a farejar diversos pontos do aglomerado de gramíneas e reconheceu
aquele cheiro.
Gostaria de poder se comunicar com seu dono e dizer sobre o faro já conhecido,
era o mesmo cheiro que sentira nas mudas de plantas do lenhador.
No episódio das mudas de plantas, ele não rosnou para o dono por estar nervoso
ou com princípio de raiva.
O inocente cão tentara apenas avisar que aquele faro não lhe agradava em nada
e que o dono daquele rastro poderia ser alguém muito perigoso, mas não
significava que ele esteve danado.
Era difícil lidar com os humanos.
O grupo estava muito próximo da cabana. O lenhador disse em voz baixa:
― Há algo de estranho acontecendo, meu cão não costuma farejar por muito
tempo um determinado local.
― Significa que ele rastreou algo ou alguém do qual ele já conhecia o faro
anteriormente. ― disse Forbes.
― Faz sentido, ele dever ter reconhecido o rastro de alguém que já perambulou
pelo vilarejo ou seus arredores. ― Kingston concluiu o pensamento.
― Eu tenho uma pergunta, será possível Nikosson habitar nessa cabana? Afinal,
várias noites ele some do vilarejo. ― o xerife colocou a questão no ar.
O animal continuava a farejar o aglomerado de capins.
― Acho difícil, quando ele some é pelo motivo de ter bebido um pouquinho a mais
e acaba aconchegando-se na floresta. ― respondeu Kingston lembrando-se do
episódio em que salvara Nikosson das mãos da gangue brutal.
Uma dúvida pairava na mente dos dois forasteiros desde quando tiveram
conhecimento da existência de Nikosson.
Havia algumas casas inabitadas em Pitfall, por qual motivo não permitiam
Nikosson morar em uma delas?
Um estrondo soou, parecia uma madeira chocando-se com outra e vinha do
interior da cabana.
Os homens ficaram alarmados, pois, a princípio pensaram se tratar da porta
dianteira, a única da cabana.
O xerife fez sinal para que seguissem rumo à porta, tudo indicava que ela deveria
ser arrombada.
O grupo se aproximou com cautela e se dividiu nos dois lados da porta, ficaram
parados ao lado da parede de madeira da cabana.
O cão ficou em estado de frenesi, por sorte não latiu e delatou a presença do
grupo.

450
Ele sentia o mesmo faro da armadilha e das mudas de plantas mais agravado
naquela posição, ao lado da porta.
Definitivamente, o portador daquele cheiro estava ou esteve a pouco tempo no
interior da cabana.
Todos estavam atentos ao que iria acontecer, o xerife sinalizou apontando seu
ouvido, indicava que iriam tentar escutar algo no interior do recinto antes de
qualquer tentativa de entrada na força bruta.
Os minutos se passaram e o local permanecia no silêncio profundo. Forbes estava
inquieto e questionou, fazendo o famoso papel de encorajador chato da turma:
― Vamos ver do que se trata, estão com medo de quê?
Forbes estava no lado esquerdo, junto com Norman e os dois homens da lei. Do
outro lado estava o restante dos homens e o cão.
O xerife decidiu acatar as palavras de Forbes como sábias:
― Tentarei girar a maçaneta sem fazer barulho...
― Não, será necessário arrombar, caso contrário podemos afugentar o habitante.
― Forbes repreendeu o homem da lei.
Falavam em tom de voz baixo.
― Entendo. Você quer dizer que se arrombarmos, ele tomará um susto, mas não
conseguirá tempo para fugir. ― disse Conway.
― Não seria problema girar a maçaneta, por onde o habitante poderia fugir sem
ser pela porta em que estamos em batalhão de vigia? ― indagou Norman.
O grupo de homens do outro lado temia se comunicar com o outro grupo que
discutia acaloradamente em absurdo tom de voz baixo, a fim de não deixar soar
suas vozes no interior da cabana. O xerife respondeu:
― Correto. Mas...
Esperaram até que ele continuasse suas palavras. Ele emendou o pensamento
com uma expressão de questão no rosto:
― Quem arromba a porta?
Conway nada disse, apenas deu um tapinha amigo no ombro do companheiro que
entendeu o motivo de se prezar as boas relações entre amigos.
― Vá em frente, ela é toda tua.
Conway se locomoveu e ficou ao lado da porta, depois preparou um chute
responsável por forçar a porta e empurrá-la para dentro. Aquela porta da cabana
não tinha a cara de quem ofereceria resistência, bastaria um golpe bem dado e o
que propora efetuar a ação era exímio no assunto.
O golpe foi no centro da porta e certeiro, não houve problemas. Logo o grupo
entrou na cabana que era constituída de um cômodo amplo, mobiliado e
devidamente organizado.

451
Havia um armário, um sofá, bancos de madeira organizados em roda que
indicavam se tratar de mais de uma pessoa, mas sim uma confraria.
Tudo fez sentido na cabeça dos dois forasteiros, era a confraria dos malvados da
floresta.
Mas, eles não estavam presentes, deveriam estar caçando comida na floresta,
algo carnudo para devorar. Tudo fazia sentido, havia poucos animais na floresta
aos redores de Pitfall, eles haviam sido devorados pelos malvados.
A pergunta que não calou foi o fato de não haver qualquer ser vivo no local, sendo
que avistaram a sombra e ouviram o estrondo de madeira antes de invadirem a
cabana. A porta era a única possibilidade de fuga do habitante misterioso.
Estavam sem palavras, tudo devidamente no lugar, faltava o habitante misterioso
que esperavam encontrar ali.
Sequer um sinal de Nikosson no recinto.
Abandonaram o aconchego de suas casas para se embrenharem na gelada
floresta e procurar pelo perdido, porém, aquilo havia se tornado um mistério a ser
desvendado.
Estavam perplexos, tanto que não perceberam que um par de olhos os estudava
da floresta.
Um par de olhos averiguadores, retraídos e desconfiados e que em nada se
assemelhavam a olhos de coruja.

***

Brad Fillman embaralhou o jogo de cartas e virou a de cima à mesa.


Tratava-se do às de copas.
Aquilo significa que ele deveria encher um copo de vodca e virar goela abaixo
naquela acirrada disputa entre exímios bebedores e criativos ao se imaginar no
que se pode fazer com um jogo de cartas de baralho para passar o tempo e
quebrar o tédio.
Ele pegou a garrafa de vodca e encheu um copo, depois, bebeu o conteúdo em
um único sorvo.
Parker gargalhou do semblante feio do outro ao beber, tramava suas vinganças
pessoais enquanto desafogava a afronta da derrota.
― Tua vez. ― informou Fillman.
Eles estavam sentados na mesa de jogos que não apresentava seu aspecto
comum, pois havia se transformado em um mini-bar.
Haviam três garrafas cheias de uísque e quatro de vodca.

452
Dificilmente aquele conteúdo poderia ser ingerido por um par de humanos, porém,
em suas cabeças, tudo era possível naquela madrugada fria, no que dizia respeito
ao assunto bebida.
Hilda chamara seu marido para dormir mais de três vezes, mas não voltava ao
topo da escada da taverna para procurá-lo a mais de duas horas. Ela desistira e já
estava dormindo, disto, Fillman sabia muito bem.
Parker demonstrava virilidade e coragem ao embaralhar o bolo de cartas, virou a
sua.
Era um quatro de paus, ou seja, quatro copos de uísque.
Naipe vermelho significava vodca e o negro condizia ao uísque. A quantidade de
copos era definida pelo valor numérico da carta.
Parker não teria saúde suficiente para engolir de uma vez quatro copos de uísque.
Era pedir para morrer, era o mesmo que assinar de papel passado o seu próprio
atestado de óbito.
Foi com suavidade e extrema postura que tomou os dois primeiros, mas, os dois
últimos desceram como uma porção de água marítima, salgada e repleta de
ferrões de água-viva.
Fillman se deliciou com o drama alheio. Parker quase vomitou após sua etapa da
sorte. Ele foi literalmente ferrado pelos ferrões.
Parker nada disse, apenas pegou o bolo de cartas da mesa e entregou ao
taverneiro.
Onde estaria o maldito Nikosson?
Ele iria adorar aquela brincadeira banhada à bebida grátis. Poderia inclusive
ajudar seu protetor, Josias Parker, a beber sua alta demanda de cada etapa.
Fillman embaralhou e virou uma das cartas.
Novamente um às, agora de espadas. Um copo de uísque.
Parker não acreditava naquilo, o seu oponente beberia apenas um copo
novamente, era demais para seus nervos.
― Foi sorte. ― desabafou quase sem voz devido ao tremendo enjoo que sentia
castigando seu estômago.
― Assista como se deve beber um belo copo de uísque.
O taverneiro virou o copo com classe e depois fez um gesto de brinde ao
oponente usando o copo vazio:
― É preciso tratar a bebida com o carinho que lhe é merecido.
Aquilo estava mexendo com orgulho de Parker, apesar de considerar o taverneiro
o homem mais íntegro do vilarejo.

453
Também, uma mulher horrenda como a sua e um filho que não sabia viver fora do
quarto seriam atributos suficientes para dar um sossega leão no homem de
hábitos mais eficazes no mundo.
O homem mais esperto no lado ruim da malícia viraria um gatinho indefeso e
escravo de uma situação familiar como aquela.
Fillman provocou o adversário ao entregar as cartas. Ele as driblou entre as mãos
de Parker quando o mesmo foi pegá-las no momento em que elas foram
oferecidas.
Parker ficou furioso, o outro zombou:
― Está com os reflexos ruins meu velho, é melhor desistir.
Perdia quem desistisse, vomitasse ou não conseguisse ingerir a demanda de
bebidas da etapa corrente.
Parker finalmente abraçou as cartas, as embaralhou e virou a de cima.
Um três de copas. Três copos de vodca.
Fillman gargalhou com gosto, tão alto que poderia estar despertando todo o
vilarejo.
Parker se desculpou:
― Sabe o que isto significa? ― perguntou mostrando a carta para o outro.
Fillman apenas gargalhava e se revirava na cadeira, estava perdendo a razão
apenas com dois copos ingeridos, imagine só como estaria o estado do fígado de
Parker.
― Significa que eu sou três vezes mais macho do que você, seu imbecil!
Fillman continuava gargalhando e tudo se agravou após a indignação do
oponente.
― Apenas se delicie na vodca. ― foi o que Fillman conseguiu dizer.
Parker encheu três copos e fez uma fileira, parecia calcular qual iria beber
primeiro, não sabia se começava pelo que deveria ter alguns mililitros a menos ou
a mais que os demais.
Começou pelo que julgou possuir menos quantidade de vodca.
Aquele desceu, mas o segundo e o terceiro exigiram mais de cinco minutos de
respirações fundas e bufadas de impaciência. Pior era agüentar Fillman
gargalhando até quase morrer sem fôlego e ainda por cima durante todo o
percurso de ingestão alcoólica da etapa corrente.
Depois que bebeu, não sabia se estava vivo ou morto, mas sabia que sentia sua
mente vagar pelo ambiente e não seria capaz de definir qual dos três Fillmans era
o verdadeiro.
Sempre ouvira professores de luta dizer que se você enxerga três adversários,
deve acertar o do meio, fazia sentido aquelas palavras dos mestres de lutas.

454
O Fillman do meio o encarava sério, o do canto esquerdo o encarava com feição
de malvado e o do lado direito parecia um anjinho bom de tanto que sorria
expelindo amor interior.
Era o Fillman verdadeiro acompanhado de um anjo e um demônio que sua mente
dopada criava. Ele escutou as palavras do taverneiro, a voz do mesmo era grossa
e lenta e parecia ser a do malvado:
― Você não está nada bem, é melhor desistir.
Não conseguia raciocinar, mas calculou que poderia usar uma estratégia,
continuaria, pois seria a vez do outro tirar a carta e se o mesmo não conseguisse
suportar a demanda da etapa que viria, Parker sairia vencedor.
Fillman começara o jogo, pois estourara na rodada de vinte e um, usada para
definir quem daria o chute inicial.
― Continue e espere até que eu tire a minha carta. ― disse o Fillman bom.
― Prossiga. ― disse Parker.
Fillman embaralhou as cartas e aproveitou a situação alheia para buscar uma
figura qualquer que não possuísse valor numérico. Pegou a rainha de paus e virou
na mesa. Parker que sempre costumara trapacear sofria de seu próprio veneno e
estava derrotado.
Fillman não tinha misericórdia ao usar a trapaça com o oponente, pois sabia dos
dotes de ladrão no jogo do mesmo.
― Não preciso beber. ― era o Fillman do meio quem dizia, ele estava com humor
entre o bem e o mal, era imparcial e justo.
― Vire mais uma, seja persistente, não desista. ― dizia o Fillman malvado.
― Mesmo que seja para saber se conseguiria suportar ou não. ― sugeriu o
taverneiro bonzinho.
Parker pegou o monte de cartas, quase caiu desmaiado no chão. Virou.
O dez de ouro que condizia a dez copos de vodca.
Havia perdido, deveria reconhecer. Seu coração batia aos milhões.
Não suportaria sequer mais meio copo de vodca.
Fillman se pôs a gargalhar sem qualquer resquício de comiseração.
Parker arrotou e se levantou, bambeou e conseguiu se firmar.
Naquele momento fixou o olhar na porta de vai e vem da taverna, a neblina não
permitia a visão externa. Trajava apenas seu macacão e sentia imenso frio nos
peitos.
Foi quando um estrondo soou e o fez mergulhar-se em outro mundo, não era
possível ouvir as gargalhadas do taverneiro.
Havia perdido novamente, era a terceira do dia.

455
Primeiro havia sido preso, depois fora julgado por um juizinho de merda, metido e
covarde, agora era a derrota que mais mexia com seu orgulho, a derrota na mesa
de jogos.
Empurrou a porta de vai e vem e saiu para certificar-se de que se tratava aquele
estrondo que permanecia soando.
Era um conjunto de tambores e pratos de aço chocando-se entre si. Era uma
banda musical, como aquelas do dia da independência.
E as vozes eram grossas e viris, elas diziam uma frase em sincronia com o som
dos tambores e pratos.
Orgulho ao chão!
Eles diziam seguidamente a frase...
Orgulho ao chão!
Era uma banda do exército, não conseguia enxergá-los, mas sabia que se tratava
de uma dezena de soldados cantando em uníssono.
Orgulho ao chão!
A rua estava perfeitamente visível naquele momento, não havia qualquer alma
viva. Era fruto de sua imaginação aquela banda, sim, era um golpe de sua mente.
Poderia também se tratar de uma pegadinha do lenhador e sua turma de
perdedores nos jogos.
Orgulho ao chão!
A banda se aproximava.
Sabia que havia sido derrotado ao escutar aquele coral de vozes masculinas em
uníssono.
Orgulho ao chão, orgulho ao chão, orgulho ao chão!
Parker caía na real, era um imprestável. Não, era um homem comum. Tão comum
como o lenhador, o taverneiro e os outros. Não aceitava esta condição.
Orgulho ao chão!
Tapou os ouvidos com as duas mãos, sua cabeça parecia a ponto de explodir.
Gostaria de ter um rifle potente capaz de fuzilar aquele batalhão ou ainda possuir
galões cheios de combustível para atear-lhes fogo e proporcionar a carnificina
humana mais notável da história da humanidade. Uma singela hecatombe.
Não sabia como poderia lutar com quem não enxergava.
A voz de trovão da tropa cessou no mesmo momento em que alguém entrou em
cena e acabava de virar a ruela, vinha em seu rumo.
Fixou o olhar para saber do que se tratava, era uma velhinha com uma bolsa tão
pesada que aparentava possuir mais massa atômica do que ela própria. Era uma
visão surreal, deveria ser fruto de sua imaginação.

456
Mas ela se aproximava bambeando, a bolsa parecia conter um enorme pacote
pesado, quase arredondado.
Ela se aproximou e ele conseguiu saber de quem se tratava, era a...
Não sabia se seu coração iria parar, mas sabia que deveria correr.
Era a velha empalhada que vinha em sua direção, ela deveria estar à procura de
seu corpo natural e parecia perguntar por qual motivo fora empalhada.
Ela deveria estar dizendo algo como: minha família me odiava no fundo e não
tinha o direito de me deixar neste estado post mortem, graças a você.
A velha parecia não pesar mais do que miseráveis três quilos e não estava mais
com a bolsa, ela se aproximava e apresentava uma secura monstruosa. Parecia
uma enorme folha ambulante.
Estava nua e amarelada, como fora empalhada por ele.
Caminhava se arrastando, com dificuldade, o que demonstrava a falta de
vitalidade em seus membros corpóreos. Parecia estar carregando um peso de
outro mundo.
Seria a quarta derrota do dia e última de sua vida, caso ela o alcançasse.
O exército de soldados fora ilusão de sua embriagada mente, mas a velha se
tornou mais real quando o filho do taverneiro soltou o berreiro.
Com certeza ele assistia à cena e também conseguia enxergar a perturbante
realidade, ela se aproximava vagarosamente e tomou a frente da porta de vai e
vem da taverna. Bastava correr, para outra cidade, para a floresta ou para o hotel.
O hotel não era uma boa ideia, mas foi sua única saída, correu em disparada e
tropeçou.
Quase arrebentou o nariz na madeira do estábulo do hotel. Havia dois carros
estacionados, não seria má ideia roubar um deles e sumir de uma vez por todas
do pesadelo que se tornara Pitfall.
A velha estava muito próxima, obrigando ele a levantar-se como pôde.
Correu até a porta do hotel que para sua surpresa estava entreaberta. O hoteleiro
parecia o estar esperando ou ter previsto que um amigo tão legal estaria em
apuros e precisaria se abrigar ali.
Ninguém se encontrava no saguão, ele não se preocupou em fechar a porta, a
velha empalhada não teria a ousadia de invadir a privacidade alheia, afinal, fora
em vida uma rica distinta e educada que prezava os direitos dos outros.
Ele parou na porta do aposento dos fundos e se virou para fitar desesperado como
pôde a porta do saguão.
Viu a velha empalhada cruzando a porta, mas ela não entrou.
Ela não havia percebido que ele entrara no hotel e pensou que ele havia fugido do
vilarejo.

457
Estava livre da velha empalhada para sempre!
Ela fora para fora do vilarejo rumo à rodovia, com certeza.
Sempre suspeitou que ela habitasse algum canto de sua casa, o porão talvez.
Temeu caso ela retornasse ou o farejasse à distância. Precisava de um
esconderijo, ao menos até o amanhecer.
Estranho era Jim Bobster não estar no local, qualquer ladrão poderia ter entrado
no hotel e levado o que bem entendesse.
Entrou no aposento e verificou que havia uma mesa de pedra, parecia-se com
uma cama modelada a granito.
Havia um grande tapete ao lado com uma paisagem desenhada e o que chamava
a atenção era o alto e forte castelo da gravura.
Havia uma torre no topo do castelo e algo se movimentava lá.
Mais uma vez sua imaginação lhe pregava peças?
Aproximou-se e ficou espantado.
Era uma pequena princesa que abanava a mão e estava pedindo socorro, a fera
da história deveria estar escalando as escadas da torre em sua busca e ela não
tinha como fugir. Trazia apenas a opção de saltar para a morte.
Restava a dúvida, se deveria morrer ao saltar ou ser devorada pela fera.
Eu vou te salvar.
Abaixou-se para contemplar melhor a cena, a princesa estava mais desesperada.
Eu vou te salvar.
Percebeu uma irregularidade no canto do tapete e o puxou pela metade com
cuidado para não torcer o castelo e obrigar a princesa a pular para a morte.
Enxergou a negrura do abismo, um buraco imenso, não poderia deixar a princesa
pular para o abismo que se situava debaixo do tapete do castelo.
Havia uma escada que levava ao abismo e teve uma excelente ideia ao
contemplar aquilo. Poderia descer ao fundo do abismo e solicitar que a princesa
pulasse, assim ele a apoiaria no colo após a queda e daria o beijo final da história.
Bastava descer e gritar para a princesa a fim de que a mesma pulasse no abismo
e fugisse da fera que já se aproximava.
Manteve o tapete dobrado para que o topo do abismo não fosse coberto para
sempre e os dois morressem, ele eternamente preso no abismo e ela nas mãos da
fera.
Desceu o primeiro degrau e rapidamente repetiu a dose com os demais até chegar
ao fundo do abismo.
Quase vomitou ao constatar que o fundo do abismo era uma adaga repleta de
teias de aranha, o que mais tinha ali eram garrafas de bebidas e ele não gostaria
de ter contato com elas pelo resto de sua medíocre vida.

458
Faltava gritar pela princesa. Ela deveria pular naquele momento, não havia tempo
a perder, pois a fera se aproximava.
Ele gritou para que ela pulasse.
Eu vou te salvar!
Ela pulou e sua queda livre era veloz.
Ela chegava à velocidade da luz, o abismo estava escuro e ele como uma barata
tonta pela bebida. Ela estava caindo velozmente, não sabia se conseguiria a
amparar nos braços e desferir o derradeiro beijo de amor do casal apaixonado.
Eu vou te salvar.
Ela caía e estava perto, ele viu estrelas ao receber o choque da pancada em sua
cabeça.
Imediatamente, Parker perdeu os sentidos com a colisão.

459
38

MAIS HORAS DE DESESPERO

Nada mais poderia ser feito.


O habitante misterioso evaporara-se como uma fumaça transparente.
Os homens estavam derrotados, perderam a motivação na busca do perdido.
Não havia qualquer rastro do que há pouco tempo estivera na cabana.
Eles subestimavam a capacidade do faro aguçado de um cão, aliás, nem
consideravam a possibilidade.
Todavia, o cão mantinha seu focinho rastreando os derredores e havia o cheiro do
habitante misterioso, era inclusive o mesmo cheiro que expelia a terra das mudas
de plantas do dono.
Aquelas da despensa.
Aquelas que esperavam apenas para serem inseridas em um ponto da floresta e
desabrochar para uma nova vida.
As plantas nascem de novo, basta privar-se de um galho e inserir outra parte de
sua costela em um ponto remoto do ambiente.
Elas não pensam e não sentem as dores das outras gerações, mas sabem que
mais uma fração de suas vidas está no outro ponto remoto.
Quem dera os humanos pensassem assim em relação aos seus próximos!
O cão farejava enquanto os outros estudavam a mobília do local. Forbes abriu a
porta de um armarinho para certificar-se do caso em que o fugitivo poderia estar
omisso ali.
Mas nada.
― Quem quer que tenha estado aqui, sumiu! ― o xerife estava estupefato.
O cão tentava se locomover, mas seu dono o segurava pela coleira improvisada.
Singer conhecia a capacidade de seu cão, mas estava surpreso a ponto de não
conseguir se atentar pelo simples fato do animal estar farejando algo que poderia
ser crucial na resolução do mistério da cabana.
Norman estava ao lado do auxiliar do xerife e estudava o amigo forasteiro andar
de um lado para o outro.
Kingston e Malone se mantinham na porta de entrada da cabana, atentos ao
mundo exterior. Eles não haviam percebido o par de olhos que antes os encarava
da floresta.
Forbes andava para lá e para cá, calculava, tentando seguir o raciocínio do ser
que evaporara como que por mágica. Ele não possuía o faro de um cão, mas sua
inteligência estava trabalhando a todo o vapor.

460
― Acabamos por aqui! ― exclamou Conway.
Forbes virou-se e o encarou seriamente, o impasse do olhar permaneceu por
alguns segundos até que houvesse o revés:
― Não tenha tanta certeza assim, ainda nos resta uma arma infalível.
Conway não entendia a que se referia o forasteiro e questionou:
― A que se refere?
― É simples, me refiro a um de nós, o cão.
― O que o cão pode encontrar que não encontramos ou o que ele pode ver que
não somos capazes de visualizar? ― o xerife indagou estranhando.
Eles tinham ciência de que nada havia na cabana.
― A questão não é que ele pode ver, mas sim o que ele pode encontrar farejando,
o rastro...
― Disso eu sei. ― o lenhador contestou.
― E por qual motivo não nos deu tamanha ideia? ― indagou o homem da lei.
― Eu estava esperando você solicitar ideias.
O lenhador estava se comportando como um bobo que esperava receber ordens.
Forbes foi até aquele que esbanjava a pinta de tonto e disse:
― O cão está quase babando para se ver livre da coleira.
O lenhador entendeu o recado e começou a transitar para onde quer que o cão
fosse.
O animal estacou de frente para o pequeno sofá e farejou de forma abundante o
carpete.
― Deve haver algum animal perigoso debaixo do sofá. ― disse Kingston.
― Qualquer animal, por mais perigoso que fosse teria atacado em forma de
defesa. ― Norman contestou, ele julgava que o cão estaria próximo demais da
possível criatura e o ataque teria sido inevitável.
Havia a possibilidade do animal em questão estar considerando o respeito que era
devido ao bravo cão.
― Quem se habilita? ― indagou o xerife.
― Acalmem-se, não existe qualquer tipo de animal debaixo do sofá. ― disse
Forbes descontente com o receio que acometia os outros.
― E o que você propõe? ― indagou Conway.
― Proponho que eu desloque o sofá. ― respondeu Forbes indo para a tarefa.
Norman se preocupou e julgava mal o fato do amigo estar esbanjando excesso de
confiança.
Forbes deslocou o sofá, mas nada havia ali.
― A criatura deve estar alojada no interior do sofá. ― Malone deu a ideia.

461
Forbes prosseguia descontente com as suposições lógicas dos outros homens,
mas sabia que a linha de raciocínio dos mesmos direcionava-se para um caminho
sem solução.
― Permita que eu lhes mostre.
Forbes puxou o carpete e revelou um buraco semelhante a uma descida para um
porão. Depois, voltou o rosto para fitar o grupo incrédulo:
― O nosso companheiro da cabana desceu esta passagem subterrânea.
― Como você chegou a essa conclusão? ― o xerife gaguejava, sem graça de sua
falta de sensibilidade.
Forbes apalpou o bolso da camisa e pegou um charuto:
― Creio não ser a melhor hora para tragar, mas me permitam.
Retirou um isqueiro do mesmo bolso onde havia o charuto e o acendeu. Disse
após uma baforada:
― O cão estava com um anseio incessante de farejar o sofá e eu deduzi bem o
fato do proprietário da sombra que avistamos no interior da cabana ser de alguém
de mais de dois metros. Sendo assim, ninguém poderia estar omisso no interior do
sofá que convenhamos, é minúsculo. O estrondo que ouvimos ocorreu nesta
entrada secreta, após o misterioso habitante se embrenhar em seu interior.
Kingston compreendeu o sentido daquelas palavras, era uma luz no fim do túnel. A
sombra que o forasteiro esperto se referia com certeza se tratava da mesma
avistada em Pitfall, na noite da tempestade.
O xerife encarou seu auxiliar, depois questionou o forasteiro:
― Como chegou à conclusão de que o misterioso transeunte da cabana possui
tamanha estatura?
Forbes baforou:
― É simples. Veja a altura da pequena janelinha redonda.
O xerife contemplou. Os demais não evitaram o olhar.
De fato, a janelinha se situava em uma altura considerável do chão.
― Como todos podem contemplar, não houve distorção na sombra que avistamos,
ou seja, foi uma visão reproduzida com alta fidelidade. Nosso habitante é
avantajado em altura, traduzindo.
Os homens estavam maravilhados com a simplicidade dos fatos, mas que
somente o forasteiro fora capaz de se atentar.
Os adultos são acostumados a lidarem com problemas complexos e aos poucos
tendem a não considerarem os menores determinantes, eles estavam
devidamente justificados. Forbes prosseguiu com as suas bateladas de ideias:
― Mas, eu ainda não descrevi o fator principal que culminou na minha conclusão
de que o nosso habitante secreto foi se estabelecer debaixo da terra.

462
Norman confiava nas palavras do amigo, os outros homens estavam fora de si
mesmos, eram muitos sustos e surpresas para um curto espaço de tempo.
― Diga. ― Norman encorajou o companheiro de hotel.
― A chaminé. ― Forbes respondeu rispidamente.
Naquele momento nada mais precisaria ser dito, todos compreenderam, mas
Forbes prosseguiu:
― Onde está a fonte geradora da fumaça expelida pela chaminé da cabana?
O silêncio insistia a dominar.
― Eu lhes digo, vejam aquela nervura na parede.
Forbes apontou para a parede ao lado da janelinha redonda onde haviam visto a
sombra. Havia uma espécie de cano oculto por detrás da parede de maneira que
era possível notar pela irregularidade daquele local onde a parede deveria ser
plana.
― A fumaça vem debaixo da terra e segue aquela passagem secreta na parede,
eu digo secreta, pois a intenção do engenheiro dessa obra foi manter segredo no
mecanismo.
O cano secreto terminava no teto, mas não era possível enxergar o começo da
chaminé propriamente dita.
― Mas, cadê a chaminé? ― indagou Conway.
― Não é possível vê-la, o cano se finda nela que por sua vez, se torna a
responsável por expelir a fumaça ao mundo exterior.
Ninguém falava. Apenas o xerife se atreveu:
― Existe mais algum fato que somente a tua mente tomou nota?
― Não, por enquanto. Só tenho algo a dizer...
Forbes baforou antes de prosseguir:
― Estamos perseguindo alguém que não habita na cabana...
Deu outra tragada e novamente baforou antes de concluir seu pensamento:
― A cabana é apenas um adorno, um artigo de luxo. Quem quer que estejamos
perseguindo passa a maior parte da vida debaixo da terra e usa o buraco que
acabei de lhes revelar como passagem deste mundo para o mundo subterrâneo.
Outra pausa para baforar:
― E digo mais, a possibilidade do indivíduo ser uma pessoa humana é remota e
quase que improvável.
Norman ficou em choque, conhecia Forbes melhor do que os outros e sabia que
dificilmente ele se enganaria nas conclusões, quando ele afirmava significava que
tinha quase cem por cento de razão.
― O que você pensa então? ― Norman colocou fogo na conversa e o amigo
contra a parede que respondeu sem pestanejar:

463
― Não sei exatamente com o que estamos lidando nem consigo explicar a luz
verde, embora acredite ter relação direta com nosso misterioso companheiro. Só
posso afirmar que...
Estava se tornando desagradável o forasteiro não terminar suas conclusões antes
das baforadas incomuns. Ele baforava como se estivesse respirando e
necessitando do oxigênio:
― Posso afirmar que vamos descer este buraco misterioso e que iremos encontrar
uma família...
Outra pausa, ele fitou Norman:
― Me refiro a uma família de malvados.
O sangue de Norman gelou nas veias, mas não impediu que ele questionasse:
― Você se refere àqueles malvados que tanto tememos?
― Talvez, eu só sei dizer que é uma família e que eles são malvados.

***

Faltavam dois copos de vodca para que enfim o taverneiro terminasse sua cota
pessoal.
Parker não dera conta de finalizar o jogo e fugira em modo de desistência.
A humilhação no jogo fora tamanha que o taverneiro ganhara e permanecera
lúcido, sem qualquer tontura ou enjoo no estômago. Mas, naquele exato momento
sofria com seu castigo pessoal.
Tudo ocorrera rapidamente após os gritos de seu filho.
Aqueles gritos que ele não saberia definir se estavam exprimindo medo ou dor.
Era horrível pensar que seu filho poderia clamar por uma necessidade especial,
tão básica e tangível para os normais e inalcançável para os anormais.
Não, corrigindo, seu filho não era anormal, e sim especial.
Sua mulher era cuidadosa demais com o menino e não deixaria faltar-lhe qualquer
coisa. O problema seria o caso de algum dia ela vir a faltar para os dois.
Ela era tudo para o menino e para a taverna.
Se ela faltasse, simplesmente, ele venderia apenas bebidas em seu
estabelecimento, sendo que seu maior lucro se baseava nas refeições solicitadas
por um grupo de homens solteiros. Parte predominante do vilarejo.
Estivera lúcido até ouvir os gritos do garoto, depois perdera a razão. Embaralhou o
jogo de cartas e virou uma delas.
Seu despeito, sempre ele, teve mais sorte do que Parker, o adversário fácil de
bater.
Era um nove de copas, nove copos de vodca.

464
Não estava bem desde o quinto.
Decidiu encarar o oitavo, encheu o copo até deixar transbordar, tanto que o copo
bambeou e dançou de um lado para o outro, parecia até uma navegação tentando
se manter equilibrada em um mar altamente encapelado.
Virou o copo de uma vez, faltava o nono.
Fitou a cabeça empalhada do búfalo e a boca do animal se mexia, ele parecia
querer falar.
Fillman sabia o que o animal tinha para dizer: continue bebendo e fique com a
cabeça nas alturas assim como nós.
Gargalhou da inteligência irônica do animal.
Os olhos do bicho giravam fora de órbita, ele estava doido de pedra.
Era uma visão cômica.
Encarou a cabeça de porco que se situava na parede do balcão, ela parecia não
existir até esboçar sua expressão de humor particular.
O porco sorriu e ficou com a feição de japonês. Os olhos finos fechados e um
sorriso irônico com fundo malévolo.
Ele não parecia dizer algo além de: seja bem-vindo à taverna.
Faltava saber o que o alce tinha para dizer, olhou para trás de si.
O animal estava com a expressão desenhada e com as palavras prontas para
serem desferidas: amigo, eu vivo livre e sou caçado, você vive preso e tua mulher
auxilia na tua libertação. Você está livre do menino, do menino da rua de trás,
você não sabe, mas muitos o temem por esta expressão maldosa. Sinta-se livre
para voar, beba, flutue e respire liberdade.
Os olhos do animal giraram na órbita, ele estava doido como o búfalo. Apenas o
porco permanecia cordial e isto era sua obrigação, pois adornava a entrada da
residência do taverneiro. Quem subisse a escada conseqüentemente se depararia
com a cabeça do porco cordial.
De todos, apenas o alce parecia estar revoltado com sua sorte.
Faltava o último copo, mas ele seria capaz de beber uma centena ou um milhar
para desafogar suas mágoas.
Gostava de estar na taverna, aquele era seu ambiente.
Se fosse obrigado a passar um dia fora de seu estabelecimento, sentir-se-ia como
um peixe fora da água, como um animal longe de seu habitat natural ou ainda
como um urso selvagem mergulhado em uma ereção eterna e incapaz de alcançar
uma fêmea para efetuar a cópula, sem um lugar definido para inocular seu sêmen,
a divina sementinha do amor.
Precisava estar ali, mas precisava também passear e tomar ar fresco.

465
Os olhos dos animais empalhados giravam e o deixavam tonto e enjoado, encheu
o último copo e se levantou. Iria brindar com o mundo, fora da taverna.
Empurrou a porta de vai e vem e saiu para a neblina densa.
Esperou até que seus olhos se acostumassem à neblina e fitou a janela do quarto
de seu filho que deveria estar dormindo.
― Durma com os anjos, gatinho. Papai está aqui para te proteger.
Ele capengou e quase caiu. Uma tontura hercúlea quase o fez desmaiar, parecia
que sua cabeça iria estourar. O sangue parecia querer pular para fora das veias e
ser livre assim como seu filho desejava estar livre daquele quarto.
― Papai te protege.
O conteúdo do copo havia caído ao chão pela metade quando ele bambeou de
tontura.
― Papai é o soldado valente e o teu quarto é a trincheira de proteção. Papai te
ama e está aqui para te proteger.
Foi possível enxergar a cabeça de porco dentro da taverna. O animal exprimia um
sorriso mais contente do que anteriormente.
O porco era cordial, ele seria capaz de motivar o mais desfalecido dos guerreiros.
A traição viria depois. O porco arregalou os olhos e girou-os na órbita, quase
obrigando o taverneiro a vomitar vodca pura.
― Impostor!
Ninguém estava ali como amigo, seguiu os conselhos do búfalo e continuou
bebendo, estava com a cabeça nas alturas, aquilo era bom. Mas o búfalo também
havia girado os olhos, porém fora mais honesto e não agira por traição como o
porco.
― Porco traidor!
Fillman bebeu um gole do copo, faltava outro gole para terminar.
Olhou então para o hotel que estava com a porta escancarada.
Lembrou-se daqueles dois forasteiros que ficavam no hotel, eles sim pareciam ser
bons companheiros.
Decidiu que iria passar uma noite na presença de amigos e longe de traidores.
Os inimigos impostores da perdição.
Era estranho, mas poderia jurar que havia uma sombra na saída do vilarejo,
parecia uma pessoa que não conseguia parar no lugar de tanto que bambeava
com o corpo.
Fillman acenou e gritou:
- Amigo, precisa de ajuda?
Não houve resposta ou mudança de postura na sombra que continuava a seguir
seu caminho de fuga. Decidiu não incomodar quem ia embora.

466
Capengou e foi até o hotel, caiu na porta do saguão. O copo quebrou numa parte
da borda, mas rolou até perto do pneu de um dos carros que ali estavam
estacionados.
O copo também se portava como inimigo, mas ele estava ali em busca de amigos.
Entrou como pôde e parou de frente para o balcão da recepção. Havia um castiçal
com sete velas apagadas que se acenderam automaticamente.
Ele gostava de beber muito, apesar da tontura e ânsia de vômito como ponto
negativo, havia o ponto positivo de se poder fazer mágicas, façanhas impossíveis
para os homens fracos e comuns, aqueles que não sabem sequer o que é mandar
um copo de uísque goela abaixo.
Havia uma porta aberta que conduzia a um cômodo contiguo, os forasteiros
deveriam estar jogando cartas naquele lugar. Não custava vasculhar.
Conseguiu entrar no cômodo em questão não sem antes tomar um belo tombo e
bater com a cabeça na parede e ter a impressão de que as espadas que
adornavam a porta giravam deixando-lhe mais nauseado ainda.
Quase inundou o chão com litros de bebidas que possivelmente seriam expelidos
em um vômito monumental.
― Vocês estão aí! ― exclamou quando enxergou o buraco em que se embrenhara
Parker.
Arrastou-se até o local para ver do que se tratava, mas estava tudo escuro.
Precisava daquela escuridão para dar um fim em seu enjoo, pois havia algum
objeto querendo girar em qualquer ponto que fitasse, objetos impostores que se
aproveitavam de sua situação para lhe pregar uma peça nada amistosa.
No escuro não haveria possibilidade de se visualizar objetos giratórios.
Teve a impressão de estar andando de cabeça para baixo, deixou-se levar e
entrou no buraco negro, precisava estar urgentemente em um local onde nada
enxergasse.
Pisou o primeiro degrau, o segundo e constatou que se tratava de uma escada
que se inclinava poucos graus a cada degrau percorrido.
Não conseguia se lembrar, mas talvez houvesse descido uma dezena de degraus
até chegar em terra firme e poder caminhar no escuro.
Seus olhos não demoraram a se acostumarem com a escuridão e tudo ficou mais
nítido, mas nada girava, muito pelo contrário, aquele lugar era morto até demais.
O ar parecia estar parado no tempo, como se quisesse revelar um segredo preso
há séculos.
Não podia acreditar no que via!
Nada girava ali, mas conseguiu discernir que se tratava de uma adega que
continha prateleiras com centenas de garrafas e não menos teias de aranha.

467
Havia o lado mau, pois aquela quantidade de garrafas lhe fazia lembrar-se de
bebidas, tudo o que não queria que existisse naquele momento.
Foi difícil, mas segurou-se e não expeliu o vômito.
Por outro lado havia o fator positivo. Aquelas garrafas de bebidas antigas
poderiam abastecer sua taverna pelo resto da vida.
Estava rico!
Encontrou um tesouro que nunca imaginara estar tão próximo.
Começou a girar em uma dança frenética, ainda não acreditando no divinal
achado.
Girou, girou.
Era como se estivesse dançando livre naqueles festivais antigos de músicas e
danças em que é oferecido ao convidado um enorme salão.
Não se lembrava mais do enjoo, das bebidas e das drogas de objetos e olhos
giratórios.
Não se lembrava, principalmente quando recebeu uma forte pancada na cabeça e
caiu desacordado no chão.

***

― Malvados? Que história é essa de malvados?


O xerife indagava Forbes, pois não estava gostando das palavras misteriosas do
homem que acabara de chegar ao vilarejo.
― Não dê atenção sobre o assunto, afinal, ninguém de Pitfall gosta de abrir a
boca para falar. ― respondeu Forbes secamente, inconformado com o silêncio
dos habitantes enquanto havia procurado informações sobre hotel.
― Devo encarar como uma afronta? ― o xerife estava perdendo a paciência.
― Não, encare como um conselho. Não temos tempo a perder, vamos perseguir
aquele que habita a cabana, ou o que mora debaixo da terra, se for o caso.
Tratava-se de uma grande quantidade de surpresas para um dia só, o habitante da
cabana provavelmente era o responsável por quase ter arrombado a porta do
xerifado.
― Então, vamos descer. ― o xerife aceitou a ideia, pronto para conduzir a frota de
homens.
― Ainda não, decida primeiro quem ficará aqui para nos dar cobertura. ― Forbes
deu a sugestão.
Todos estavam calados, apenas assistindo o embate de ideias entre o xerife e o
forasteiro.
― Meu auxiliar fica.

468
Conway fez cara de decepção, demonstrava querer participar da busca ao
misterioso habitante subterrâneo, ideia louca de Forbes. Porém, não se ouviu
palavras de protesto.
― Não é bom que ele fique sozinho. ― admoestou Forbes.
O xerife perguntou encarando um por um:
― Alguém se habilita à tarefa?
Um dos homens levantou a mão direita, era Ronald Malone:
― Eu faço companhia a ele lhes dando total cobertura.
O xerife sorriu, estava feliz com a decisão do caçador, um homem modesto e
valioso.
Tudo parecia acontecer muito rápido.
Os homens desceram a escada que dava acesso ao misterioso mundo
subterrâneo. Todos sabiam que o cão poderia ser importante na busca do fugitivo
de modo que o animal foi o primeiro a descer junto com seu dono.
O xerife desceu em seguida, depois Kingston, Forbes e por último Norman que
recebeu as palavras sinceras de Malone:
― Espero que consigam retornar com vida.
Norman deu um sorriso e desceu.
As palavras ditas pelo caçador não esboçavam o que o mesmo pensava do
assunto, não acreditava em fantasmas, monstros da floresta ou seres mitológicos
que ressurgem de tempos em tempos.
Ele acreditava sim, em alguém muito perigoso, mas humano e racional.
Restaram apenas os dois na cabana e não era possível escutar qualquer sinal que
pudesse provar que os demais estivessem vivos.
― Acha que somos predestinados a sobreviver? ― indagou Conway.
― Não, acredito que somos predestinados a passar uma longa noite no silêncio
de uma cabana no meio de uma gelada floresta, vigilantes. ― respondeu Malone
antes de bocejar prolongadamente.
― Pois é, será uma longa noite. ― continuou Conway, depois sentou-se no
pequeno sofá para descansar e fitar a floresta.
O frio entrava pela porta escancarada da cabana. Ele não sabia explicar como,
mas sentia que a porta da cabana deveria ficar aberta.
Malone aproveitou a situação e foi até a nervura da parede que ocultava um cano
que dava para a chaminé segundo Forbes, estudou a parede. Parecia um
pesquisador especializado, em busca de informações para incrementar e
enriquecer sua pesquisa.
Foi a vez de Conway bocejar. Uma onda de ar frio invadiu a cabana e foi possível
ouvir as folhas das árvores dançando ao som do vento.

469
Passaram-se cinco minutos e os dois mantinham silêncio, cada um preso em seu
mar de reflexões.
Malone imaginava quem poderia ser o autor daquela engenhoca de escape da
chaminé, imaginou que aquela cabana poderia ter sido construída há um século.
É interessante mergulhar em pensamentos que nos levam ao passado, em como
as pessoas se comportavam e em como levavam a vida de forma mais simples.
Malone virou-se para fitar o auxiliar do xerife e o encontrou sem reação, com os
olhos arregalados, fitando a floresta.
Havia algo que causava imenso espanto no homem em choque.
Malone não teve tempo de perguntar, alguém parou à porta e estava de frente
para Conway, encarando-o.
Havia um prêmio de consolação, quem estava pronto para dar o bote no auxiliar
do xerife estava em ponto que não poderia enxergar a presença de Malone.
Conway estava entregue, sabia que não haveria tempo de reação, bastava
esperar o ataque da fera e dar adeus a este mundo cruel.
A fera estava pronta para atacar, quase terminou de apertar o gatilho quando ouviu
o grito de Malone e se virou para encará-lo:
― Ei, você!
Malone atirou e lançou a arma do recém-chegado para o outro canto da cabana.
O malvado abraçou o punho direito com a mão oposta e exprimiu um gemido de
dor.
A colisão da bala do rifle de Malone com seu revólver havia sido por demais forte,
pois o tiro fora certeiro. Era como se um caminhão houvesse se abalroado com
um carro em uma rodovia.
Conway agiu rapidamente tirando sua algema oculta e rendendo o malvado.
Ficaram os três na cabana, o recém-chegado era o dono do par de olhos que
bisbilhotava da floresta e foi colocado sentado no pequeno sofá por Conway.
O malvado estava de cabeça baixa tamanha sua vergonha, o braço ainda iria doer
por muito tempo.
Nenhuns dos dois bravos homens tiveram vontade de questionar o malvado, pois,
eles já conheciam a fama dos comportamentos estranhos dele.

***

Não havia qualquer sensação de claustrofobia.


O grupo seguia iluminado pelas lanternas nas mãos de Norman e do xerife e uma
das engenhosas tochas na mão de Kingston.

470
Era uma verdadeira caverna. Um corredor amplo e arrepiante que parecia
conduzir ao outro lado do mundo.
Parecia se tratar de um local de exploração de minérios. Um corredor cavado por
milhares de homens determinados a encontrar uma valiosa pedra de ouro.
Eles caminhavam devagar e com olhares cautelosos.
Não se lembraram de procurar a fonte de fumaça da chaminé que deveria ficar por
detrás daquele corredor sombrio.
Forbes remexia os pensamentos no seu pesadelo de infância em que se
embrenhara no suposto ninho da aranha.
Qualquer mente fértil iria maquinar aquilo que ele temia naquele momento. Ele
tramava a terrível possibilidade daquela caverna estar repleta de aranhas
gigantescas.
Imaginava uma delas escalando a parede da caverna de modo ágil e repentino.
Havia um cheiro remoto que incomodava a narina do cão. Era o mesmo cheiro das
mudas de plantas da despensa.
O xerife confidenciou com o grupo, falava em uma voz quase inaudível:
― Isto aqui é incrível!
Parou, o grupo fez o mesmo.
― Já estamos caminhando há quinze minutos em uma caverna que parece não
ter fim, qualquer ser humano não conseguiria viver aqui, o oxigênio lhe faltaria. ―
raciocinou o xerife.
Forbes se mantinha alheio às palavras do homem da lei, mas se expressou:
― Talvez ele não seja humano.
O cão se esforçava para seguir caminho, mas o lenhador oferecia resistência.
― A atitude do nobre cão demonstra que devemos prosseguir. ― afirmou Norman.
O xerife sabia que aquela perseguição poderia salvar a vida de Nikosson, algo lhe
dizia que o sumiço do andarilho estava diretamente relacionado ao habitante da
cabana.
― Vamos prosseguir, sinceramente acredito que Nikosson possa estar aqui. ―
disse o xerife dando o braço a torcer.
― O que vocês pensam sobre? ― indagou ao grupo.
― Estou de pleno acordo. ― respondeu o lenhador.
Kingston nada disse, mas afirmou com a cabeça.
Forbes encarou Norman, ambos se mantiveram calados.
― Confio em homens como vocês, vamos prosseguir. ― disse o xerife.
― Espere. ― disse Forbes.
Quando aquele homem dizia algo inesperado, todos paravam para ouvir.

471
Forbes precisava dizer algo embora temesse a chegada do bando de aranhas
gigantes, sim, era preciso reconhecer, suas pernas estavam quase travadas
tamanho seu medo.
― Kingston, acha que consegue apagar a tocha para depois tornar a acendê-la?
O interrogado pensou alguns segundos e respondeu:
― Consigo. É sempre um pouco trabalhoso, mas quando alguém como você
solicita eu procuro atender.
Forbes ficou surpreso com as palavras do amigo do vilarejo:
― Obrigado pela parte que me toca.
― O que vocês estão tramando? ― o lenhador indagou.
― Logo saberá. ― respondeu Forbes de modo amistoso.
― Vem coisa por aí. ― disse o xerife sabendo da extraordinária capacidade de
Forbes.
O forasteiro parecia ser portador de uma indubitável percepção extra-sensorial.
Kingston aproximou-se de Forbes e depositou sua mão direita no ombro do amigo:
― Confio em você.
Apagou a tocha como que por mágica após arrastá-la no chão, como um ninja que
lança sua bomba de fumaça sem fazer ruído alarmante.
Forbes encarou Norman que entendeu o que o outro queria e apertou o botão da
lanterna, apagando-a.
A única fonte de luminosidade que restou foi a lanterna do xerife. Forbes fitou o
homem da lei nos olhos como se esperasse uma reação positiva.
Um flash tomou conta dos pensamentos do xerife, parecia ser uma memória muito
bem guardada e pronta para emergir no momento mais propício, um momento em
que o orgulho de seu portador deveria ser quebrado, mesmo que fosse o orgulho
de um homem simples e humilde.
Seu pai comprara uma bicicleta e desafiara o filho a perder seu medo após vários
anos de triciclo. A criança relutava, mas certo dia subiu na bicicleta e decidiu
permitir que seu pai lhe guiasse. A confiança foi crescendo, era como se uma
escada estivesse sendo escalada degrau por degrau. Quando ele subiu no último
degrau surgiu o brado de vitória. Perdera o medo e o resultado foi uma infância
divertida de uma criança que ganhava algumas moedinhas de trocado por buscar
alimentos, remédios e entregar jornais aos vizinhos de bairro, e todas estas tarefas
eram executadas com a sua bicicleta novinha.
Confiara em seu pai e fora feliz. Quando concentrava seu pensamento no
estranho forasteiro sabia que estava no penúltimo degrau da confiança, bastava
escalar o último.
Apague a lanterna!

472
Parecia dizer seu pai com a voz branda de educador.
Não cairia bem prorromper em lágrimas, mas o pensamento que o fizera recordar
seu falecido pai e professor marejava seus olhos de lágrimas.
Apague a lanterna!
Ele poderia obedecer a voz imaginária de seu pai e apagar a lanterna, assim, seria
capaz de chorar sem ser descoberto pelos outros.
Sabia que era apenas sua consciência que produzia a voz de seu pai
aconselhando.
Deveria seguir sua consciência, sim, era o momento de escalar o último degrau de
confiança em Forbes.
Apague a lanterna!
Apagou a lanterna e quase a lançou ao chão em modo reprovativo e de repulsa.
Como um viciado freqüentador dos alcoólicos anônimos que lança a garrafa de
bebida nociva em modo de reprovação diante dos colegas de jugo.
Ouviu um sorriso de contentamento de Forbes:
― Agora, mantenham silêncio.
O cão pareceu entender e também obedeceu, parou de ofegar e ficou tranqüilo
com a resistência que oferecia o dono à sua fuga.
Continuava farejando o mesmo aroma da terra das mudas de plantas da despensa
e sabia onde ir, sabia qual rastro seguir para chegar até seu portador. Aqueles
homens deveriam confiar nele e em sua capacidade de farejador.
Obedeceram à solicitação de Forbes por cinco, dez, quinze minutos...
Soou então um barulho distante, muito distante, aquele som na verdade era o eco
do barulho e fugia da originalidade.
A sensação era a mesma de quando se espera um fantasma se manifestar, mas
que fosse preciso manter o silêncio e fingir não se existir ou estar alheio ao
mundo.
Climm, climm.
Soava fino, tímido e remoto. Parecia até vir de outro mundo ou dimensão.
Era semelhante ao som de uma picareta chocando-se com uma pedra de metal
resistente que obrigava o objeto agressor, a picareta, a deslizar por sua superfície.
Climm, climm.
Houve um baixo murmúrio de empolgação. Forbes solicitou:
― Vamos seguir devagar com apenas uma das lanternas acesas, mas em silêncio
absoluto.
― De quem se trata? ― o xerife tentou colocar a carroça na frente dos burros.
― Não sei dizer, mas pode haver mais alguém, por tal motivo devemos seguir com
uma lanterna, porém, dando valor à cautela. Acredito que ninguém de nós deseja

473
topar com algo ou alguém de repente, pelos corredores deste mundo sem fim e
submerso na escuridão. ― respondeu Forbes.
Norman temia. As palavras do amigo pareciam soar como uma advertência de um
ser de outro mundo. Como aqueles mortos-vivos mensageiros que atormentam os
pesadelos das inocentes e indefesas crianças.
Temia principalmente os malvados. Naquela situação crítica, sua mente vagava
pela possibilidade da floresta estar infestada por uma família de malvados,
composta por centenas de membros ou quem sabe milhares.
Entrava em sua mente aquela velha história de que quando não existe um
predador capaz de manter em equilíbrio a quantidade de seres da espécie presa,
há uma superlotação na população de sua espécie. Imagine uma espécie de rato
que se prolífera em um ambiente que não oferece um predador natural.
A merda está feita, como dizia o velho professor de Norman.
Eles seguiam.
Devagar e sorrateiros.
Um parecia ler o pensamento do outro de modo que o esquadrão da salvação se
mantinha em perfeita sincronia. Apenas a lanterna do xerife iluminava o ambiente.
Forbes caminhava ao lado do homem da lei e logo deu um sinal para que
parassem e ouvissem.
O eco parecia mais próximo, pouca coisa, mas era possível notar que estavam
caminhando em direção ao som perturbador da picareta em colisão com uma
pedra deslizante.
O xerife apontou a lanterna para o chão de modo que não iluminasse muito à
frente.
― Minha nossa, isto é incrível! ― exclamou o lenhador mantendo o baixo tom de
voz, se referia à fantástica sensação de se transitar em uma caverna escondida
pelo tempo e que parecia abrigar vida.
O cão ofegava e parecia querer se libertar das amarras da corda, ele farejava o
cheiro familiar, o mesmo das mudas de plantas da despensa.
O corredor em que caminhavam apresentava um chão perfeitamente plano e
nenhum resquício de pedras ou algo fora do lugar.
Climm, climm.
― Prossigamos. ― solicitou Forbes.
Eles recomeçaram a caminhada quando o xerife apontou a lanterna para frente e
conduziu o grupo, tarefa que dividia com Forbes.
Um pouco adiante surgiu a primeira teia de aranha do caminho e era gigante,
espantosa. Forbes deu um pulo e se segurou para não gritar. Todos se alarmaram
com a atitude vulnerável do líder.

474
Winepowder deu um breve latido, encarando a enorme teia, como se quisesse
defender o homem intimidado de seu bando.
O xerife estranhou o susto do outro líder do grupo:
― Controle-se homem, é apenas uma teia de aranha.
Forbes retirou um lenço do bolso e enxugou a testa banhada em suor devido à
grande quantidade de adrenalina gerada após o terrível susto.
― Foi apenas um sobressalto. ― desculpou-se e bufou como se estivesse em
pleno deserto ou em um local árido e longínquo.
Guardou o lenço no bolso e foi obrigado a ouvir uma troça do companheiro mais
chegado, Norman:
― Com um sobressalto assim você coloca em xeque a tua capacidade de manter
as rédeas do grupo.
Forbes não acreditava nas palavras ouvidas e advertiu o outro:
― Pode ser, mas não se esqueça que eu possuo uma espécie de aversão por
aranhas e suas teias. Traumas de criança, todo mundo guarda o seu.
Norman sabia do ponto fraco do amigo e decidiu não dar corda à brincadeira, visto
que temia se deparar com um malvado que deveria possuir mais de dois metros
de altura, sem contar que o mesmo poderia ser portador da capacidade, não, da
real necessidade de devorar carne humana.
Havia cinco pratos suculentos e um canino de sobremesa, para lustrar os dentes
retentores dos restos mortais dos humanos, o prato principal.
Não era momento para se prostrar diante dos traumas de criança. Forbes estava
com as pernas bambas, era como se a terra firme fosse criar uma cratera a sua
volta e sugá-lo para outro mundo. Deveras, não estaria seguro de si enquanto não
cruzasse aquela barreira fina e pegajosa.
― Vamos voltar? ― indagou o xerife, esperava alarmar Forbes que continuava a
suar.
― Nem que eu morra. ― protestou Forbes já se preparando para retomar a frente
da frota dos guerreiros.
Norman admirou a audácia do amigo. Uma teia de aranha não poderia ser capaz
de barrá-lo, afinal, o simples fato de se imaginar uma aranha de mais de um metro
seria capaz de botar qualquer homem valente para correr.
Havia algo mais perigoso e sutil que uma simples aranha.
Há pouco tempo estiveram no meio de uma floresta, sem rumo, sem direção.
Naquele momento, um som distante os atraía como um canto de sereia que
espera a chegada do hipnotizado pescador para lhe triturar os membros carnais
com voraz apetite.

475
Prosseguiram. O cão estava mais inquieto e começava a provocar dores na mão
do lenhador que insistia em manter o animal preso à corda improvisada como
coleira.
O cão latiu.
Um arrepio transitou pela espinha de Kingston, o homem que mais preservava o
silêncio naquele momento.
O cão não podia botar tudo a perder.
― Querem que eu vos guie? Wine fareja algo! ― exclamou o lenhador após
questionar.
Forbes respondeu repentinamente:
― Coloque o cão à nossa frente, mas procure não permitir que ele lata. Confio no
faro desse garoto.
O lenhador obedeceu de prontidão, sabia como manter seu cão em silêncio,
bastava tratá-lo com um jeitinho especial e o mesmo perceberia que estava sendo
útil, mas que fosse preciso esperar o momento de dar o bote sem se exaltar
demasiadamente.
Caminhavam tendo o cão como líder. Era o momento de comparar quem podia
mais, o cão com seu faro ou os humanos com suas audições.
― Interessante que o túnel segue um só caminho. É como se quem projetou este
caminho soubesse exatamente onde queria chegar. ― disse Kingston.
Todos concordavam com a genial engenhosidade do possível antigo escavador.
O som do objeto pesado sendo colidido com o metal deslizante parou, tudo se
tornou silêncio, exceto o ofegar do cão preso em amarras que queria sair em
disparada a todo custo.
O animal estava coberto de razão, afinal, o cheiro da terra das mudas da
despensa se agravara e estava mais forte, mais vivo. Estavam chegando perto,
perto demais.
De repente, nem o faro aguçado do cão, nem a audição apurada dos homens
venceram o desafio de quem chegava mais perto. A visão foi responsável por
desvendar o ponto antes desconhecido, encoberto, mas que naquele momento
estava nítido aos olhos nus.
Uma luz no fim do túnel.
Seus corações intensificaram a freqüência dos batimentos.
Era a luz no fim do túnel!
― Parem, pode ser perigoso. ― advertiu o xerife.
Todos pararam, porém o cão queria correr, era como se ele dissesse que efetuara
uma tentativa de avisar aqueles que não queriam enxergar a real situação em que

476
se encontravam. Era como se os homens no fundo de suas consciências não
quisessem acreditar que de fato encontrariam alguém.
Não era a luz verde, era apenas uma luz no fim de túnel.
Talvez fosse uma das mutações da luz verde ou como ela se manifestasse no
mundo subterrâneo.
Um mundo de medos passeava pelas cabeças dos, devemos convir, corajosos
homens. O principal que passeava na mente do lenhador, por exemplo, era de o
túnel desabar e soterrá-los por toda a eternidade. Um mundo de terras e pedras
que calariam a voz de bravos homens para sempre e um não menos destemido
cão de estimação.
A verdade era que o problema que mais se agravava se referia ao controle
psicológico que quase não mais existia naquele meio envolto em calor humano.
― Prossigamos. ― conseguiu dizer Forbes.
Todos aquiesceram, mas não com a voz e sim com a atitude, caminhavam
novamente, naquele instante, porém, existia um rumo definitivo.
As batidas recomeçaram, não precisaria ser alguém demasiadamente inteligente
para saber que era o som de uma picareta em colisão com uma pedra de metal
deslizante.
― Fantasma? ― indagou Kingston.
― Acredito que não, mas sinceramente tenho minhas dúvidas. ― respondeu
Forbes, sempre pronto a considerar ideias e rebatê-las ou defendê-las.
― Basta prosseguir. ― disse Norman lamentando não possuir uma arma e saber
atirar.
O medo do que iriam encontrar palpitava seus corações e isto os fazia sentirem-se
vivos. Era um sinal milagroso de que o sangue, o fluído vital, circulava com severa
responsabilidade em suas veias e os permitia locomover as máquinas engenhosas
que eram seus corpos mortais. Entretanto, aquele sintoma os fazia considerar
mais de perto a possibilidade da morte.
A fome era um fator que começava a prejudicar Kingston, não havia se alimentado
bem para a expedição, ao contrário dos demais. Mas o frisson causado pela visão
no fim do túnel poderia ser um combustível motivador, a força motriz capaz de
manter o motor ligado.
O xerife apagou a lanterna e solicitou que todos parassem.
Subiram mais um degrau da escada, a luz no fim do túnel tomou outro formato.
Apresentava naquele momento algo a mais do que uma luminosidade, era
possível discernir uma sombra, nada além disto, porém havia movimentos na
sombra, movimentos estes que estavam sincronizados com os barulhos dos
golpes que antes retornaram a soar.

477
Restou uma certeza: aquela sombra era do indivíduo que colidia a provável
picareta com a não menos provável superfície deslizante e...
Ela parou de se movimentar e desapareceu.
― Será que ele nos percebeu? ― indagou Kingston, seu estômago roncava.
― Acho difícil, estamos em uma distância considerável. ― esclareceu Forbes.
Norman contestou:
― A não ser que...
Ele tinha certeza que a sombra que desaparecera era de um malvado e todo
animal que se preze possui um excelente olfato:
― Ele tenha nos farejado!
Forbes não havia pensado naquela possibilidade, o amigo acertara na mosca ao
dizer aquilo que para muitos poderia soar como bobagem.
― Nunca vamos alcançá-lo assim! ― exclamou o lenhador enfurecido de estar
naquela situação apesar de possuir espírito servil.
― Não te precipites homem, todo túnel tem um fim. ― rebateu Forbes.
― Mas podem existir inúmeras passagens secretas que o fugitivo conhece. ―
novamente contestou Norman.
Forbes deveria reconhecer que seu amigo pensou com mais clareza duas vezes
seguidas, porém, não tivera a audácia de perceber que ele havia dado aquele
resultado exato ao lenhador para que o mesmo pudesse se contentar com a
situação e prosseguir, quando afirmara que o túnel possuía seu fim.
― Não fiquemos parados, avante homens! ― encorajou Forbes e eles
prosseguiram.
Andaram três minutos e ficaram muito próximos da luz no fim do túnel, pararam
com mais um susto.
Havia um ser adormecido sentado em uma cadeira. Estava de cabeça baixa e
parecia ter passado a vida em uma posição desconfortável.
Wine abanava sua cauda com vigor, estava muito próximo daquele cheiro que tão
bem conhecia na despensa de seu lar, mas o mesmo não provinha do ser
dormitante que estava sentado de cabeça baixa.
― Ouçam! ― exclamou o xerife.
Era o som dos golpes, mas vinham de mais longe.
Ainda estavam perplexos com a cena presenciada.
― Vamos, ele não vai acordar. ― Forbes deu sua ideia.
Todos traziam uma estranha sensação de que não mais pertenciam ao mundo dos
vivos, aquilo tudo parecia uma visão de pesadelo que se desenhava aos poucos e
que não poupava esforços para distorcer imagens da realidade, transformando-as
em uma divagação de esquizofrênico.

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Prosseguiram lentamente.
Era uma visão terrível, o ser não passava de um velho magro, calvo e as faixas de
cabelo que restavam aos lados da sua cabeça estavam em um tamanho
avantajado e não sabia o que era se submeter a uma bela escova por um bom
tempo.
Ele roncava baixinho e parecia estar com pouco menos de um por cento de seus
sinais vitais.
Era difícil precisar sua idade.
Eles cruzaram o novo ambiente ao lado do velho que dormia, mas não
conseguiam tirar os olhos da figura decrépita, tomada por marcantes rugas.
Wine farejou o sapato preto da criatura e foi puxado pelo dono que temia
despertar o indivíduo.
Mal sabiam eles que o velho estava acordado e estudava mentalmente seus
passos.
Ele conhecia até mesmo cada um de seus nomes.
Mas, o barulho da picareta cessara e eles nem sequer notaram.
O susto foi tamanho que o grupo quase caiu no chão tamanho o choque. Wine era
o único ciente de que alguém estava se aproximando lentamente, pois o cheiro
vinha junto ao seu possuidor.
Um homem gigante surgiu repentinamente de um corredor escuro e quase rachou
a cabeça de Forbes com um golpe de picareta.
O forasteiro foi salvo a tempo pelo forte, indômito, o incrível Horace Singer soltou
a corda que prendia seu cão e abraçou o braço do agressor com as duas mãos
fazendo o mesmo gritar de dor.
Singer pressionava o braço do agressor de modo que pudesse destrinchar seus
ossos. A feição de dor do misterioso homem poderia se comparar a uma máscara
dramática acometida por um terrível pavor.
Wine tentou morder as pernas do gigante, mas foi impedido por Kingston que
segurou-lhe pela coleira. O cão se pôs a latir sem cessar, acabava de conhecer,
ficar frente a frente com o portador do cheiro que dominara a despensa de casa.
O gigante desferiu um forte soco na cabeça de Singer com o braço que estava
livre, mas precisou soltar a picareta que estava segura pelo braço quase
esmagado.
Singer precisou se lançar ao chão devido à tontura. Sua cabeça parecia um barco
que perdera direção no meio do mar. A forte concussão obrigou o xerife e Forbes a
apontarem suas armas para o misterioso homem.
― Eu resolvo este problema, larguem as armas, ele vai me conhecer agora! ―
exclamou Singer.

479
Tudo acontecia muito rápido, não existia tempo para agir. O lenhador parecia ser
portador da habilidade das moscas que enxergam tudo em câmera-lenta e
conseguem agir em uma fração de segundos, diferentemente de um ser humano
como exemplo.
Singer levantou-se e pulou agarrando o corpo do gigante, ambos desabaram ao
chão, abraçados e atados.
Parecia um conflito entre exímios lutadores, um verdadeiro duelo de titãs.
Singer desferiu um forte soco no rosto do gigante pressionando seu crânio ao
chão com a pancada. Um estrondo de osso chocado ao chão soou provocando
aflição nos presentes.
As armas permaneciam apontadas para o gigante, no caso do lenhador desfalecer
em luta, um balaço resolveria o embate.
O gigante babava e seus olhos pareciam os de um homem insano.
Mas não havia com o que se preocupar, o gigante estava dominado. Singer
desferiu outro soco e nocauteou o misterioso homem que já estava com o pulso
direito quase esmagado e o braço esquerdo quebrado. Desmaiou de dor. A
imagem do homem estirado no chão com o rosto banhado em sangue foi
marcante quando o lenhador se levantou.
Todos estavam paralisados, no entanto, se assustaram com um resmungo que
vinha de trás. Não estiveram cuidando da retaguarda e poderiam ter sido pegos
desprevenidos.
Wine acalmou-se ao ver o homem caído no chão. Seu parceiro resolvera a
parada.
O velho estava de olhos abertos e os encarava com um olhar capaz de gelar a
alma.
― Vocês não deveriam estar aqui! ― gritou com uma voz cavernosa, o ar
transcorria nas cordas vocais gastas pelo tempo.
Era uma voz diferente de todas que já ouviram, parecia um morto que estivera
enterrado há muito e se levantara de seu túmulo para revogar algo que tivera
direito em vida e não recebera.
― Vão embora, os malvados estão chegando!
Norman teve como primeiro impulso fitar Forbes que retribuiu o olhar de pavor.
― Eles estão com fome hoje!
O cão rosnou para o velho e correu ao ataque, fugindo das mãos de Kingston.
Mordeu a perna esquerda do pobre homem. Sua anatomia era magra, havia
apenas osso e provavelmente uma pele ressequida.
― Desgraçado!

480
Singer puxou seu cão. Todos sentiram pena do velho indefeso que acabara de
experimentar da mordida do cão viril, na flor da idade.
Os olhos do velho lacrimejaram. Não sentia dor semelhante há muito tempo.
Acreditava que jamais, no resto de sua existência precisaria provar uma dor
naquele nível. Sua perna ardia e seu osso parecia doer internamente.
― Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? ― indagou o xerife
estupefato.
Não houve tempo para explicações, a tragédia chegou à sua próxima cena.
Surgiu o som de um zumbido, era como se uma corrente elétrica ambulante
estivesse se aproximando do local.
Todos se viraram para presenciar o próximo personagem da trama. Norman e
Forbes esperavam os malvados, mas surgiu uma figura que sequer lembravam-se
da existência.
Era a luz verde!
Ela parecia flutuar e parou ao lado do corpo do gigante abatido.
Era uma capa negra com capuz que não possuía membros corpóreos, apenas
emanava luz verde nos lugares dos braços, pernas e rosto.
Tratava-se de um corpo verde luminoso vestido com uma capa negra.
A luz do teto que iluminava o ambiente piscou. Apagou e acendeu novamente.
O velho decrépito soltou uma risada macabra, com o timbre fino, parecia querer
imitar a risada característica das bruxas.
Era como se a sua gargalhada anunciasse um espetáculo de terror que estava
prestes a começar.
A figura estava parada, como se estivesse encarando o grupo de homens frente a
frente, esperando algum movimento de represália.
Um som característico acompanhava o estranho ser. Era uma espécie de zumbido
que parecia o canto de um inseto ainda desconhecido pela ciência e provinha do
interior da capa negra.
Todos estavam pasmos diante daquela criatura superior. O cão rosnava e exibia
sua trinca de dentes, mas permanecia imóvel devido sua privação imposta pelo fiel
dono e sua coleira improvisada.
Ele nunca fora submetido antes a uma coleira, aquele artefato era uma novidade,
algo desconhecido e que viera para por em xeque a sua integridade de cão para
como o homem que tanto lhe tinha apreço.
O velho tossiu, sua garganta gasta pelo tempo secou.
A luz verde voltou a flutuar lentamente em direção ao grupo, estava muito próxima.

481
Foi em uma fração de segundos que Kingston se atentou para a genial ideia de
erguer o rifle e apontar para a figura infernal. O velho buscou fôlego e gritou como
pôde antes de ser acometido por um surto de tosses:
― Não atire, ela é humana!
A luz verde parou novamente, parecia ter entendido que não lhe faria bem uma
bala de rifle alojada no corpo luminoso. Naquela proximidade já era possível
discernir um rosto pálido no capuz negro, um rosto banhado por feixes de luz
verde, um rosto muito sério que apresentava apenas um olho. Entretanto,
estudando melhor, um dos olhos era minúsculo e desconexo de sua simetria.
Todos foram acometidos por uma vaga lembrança, mas ela estava mais clara para
Norman e Forbes, aquele rosto era familiar e se parecia muito com o da velha
senhora que estava retratada no saguão do hotel.
Um forte arrepio correu à espinha dos dois forasteiros, era como se fossem
gêmeos siameses e interligados pelo mais íntimo do subconsciente.
Entretanto, eram os outros três homens que chegaram à conclusão perfeita, que
formaram o quebra-cabeça. Os homens que habitavam o vilarejo muito antes dos
forasteiros sonharem com sua existência sabiam, reconheciam aqueles dois
velhos.
O macho do casal estava irreconhecível e poderia ter passado despercebido se a
figura da luz verde não tivesse se revelado.
O baque do momento impedia que todos os humanos que participavam daquela
cena tomassem qualquer reação. Kingston há muito abaixara o rifle. O cão
rosnava, mas parecia entender que dificilmente se veria livre das mãos do
lenhador.
O xerife venceu o seu medo, temia o zumbido e a estranha luz que passeava
entre o corpo da velha senhora e da capa negra. Puxou um par de algemas e se
aproximou da figura que permanecia estática, como uma estátua assustadora que
é muito familiar ao lado de mausoléus.
Ele ergueu as algemas e fez soar a voz da autoridade:
― Você está presa.
Sua voz saía picotada devido ao clima de tensão e medo do momento, e quase
não se podia entender do que suas palavras se referiam.
Não seria difícil arrastar aqueles dois velhos até o xadrez, sequer seriam
necessários pares de algemas ou pesadas bolas de ferro atadas aos pés sofridos
pelo tempo.
A figura permanecia imóvel, apenas se ouvia o estranho zumbir vindo de si.
― Onde está Nikosson? ― foi o que conseguiu perguntar o xerife.
Aos poucos, o braço direito da coisa foi se elevando e uma mão seca e pequena
surgiu, com o dedo indicador apontando uma direção, o local de onde ela própria

482
surgira, a entrada sombria e misteriosa que conduzia a outro caminho daquele
pavoroso e terrível corredor subterrâneo.
O lugar onde pode habitar todo o tipo de criatura inimaginável, o lugar que tudo
encobre.
Até mesmo no mais claro dos dias de verão.

483
39

A VIDA SEMPRE MUDA...

Os homens conseguiram retornar com rapidez após o resgate de Nikosson que


estivera amordaçado no compartimento subterrâneo apontado pela mão da luz
verde.
A tarefa de subir a escada que conduzia à cabana foi árdua devido à grande
quantidade de achados que eram transportados.
Singer ficou com a ingrata missão de obrigar o algemado grandalhão a andar na
base da força. Chegou a acertar duas vezes a costela do rendido que não parava
de babar de ódio.
O xerife carregou o velho no colo, ele não pesava tanto e nem oferecia resistência,
mas a caminhada quase travou os braços de Frank.
Kingston carregava Nikosson pelo ombro, o que estivera cativo fora submetido a
um teste de fome, houvera ingerido pouco alimento e água e estava
consideravelmente debilitado.
Forbes estava com o revólver de prontidão e não tirava os olhos dos rendidos,
principalmente da luz verde que naquele momento já não ocultava o rosto com o
capuz negro e apagara sua chama, seu mecanismo fantasmagórico,
humanamente improvisado.
Norman conduzia o cão pela corda, por sorte, o animal estava calmo e parecia
entender que deveria cooperar.
Maior surpresa do que todo o ocorrido na parte oculta do mundo foi contemplar
Jim Bobster rendido na cabana, de cabeça baixa.
― Teremos uma explicação. ― alegou o xerife jogando uma indireta a todos os
ouvintes capturados, o velho dormitava em seu colo.
Os dois homens que permaneceram na cabana com Bobster estavam
boquiabertos, pois haviam descido cinco pessoas e um cão, mas naquele
momento de êxtase, surgira de debaixo da terra quatro pessoas a mais.
A madrugada estava prestes a chegar ao seu fim. Um clima de tensão ainda
pairava sobre aquela cabana. Nenhum sinal de qualquer malvado devorador de
humanos.
Os capturados estavam com semblantes de derrotados e aspiravam o ar da
vergonha, mantendo suas cabeças baixas. Exceto o gigante que parecia tentar
encontrar meios de voar em cima de Horace e lhe exterminar.
O xerife se aproximou de onde Jim Bobster estava sentado e o intimou:
― Levanta-te, teu avô merece um descanso.
Aquelas palavras fizeram Norman e Forbes se entreolharem.

484
Avô?
Aquele velho que descansava no colo do xerife era avô de Bobster?
Bobster obedeceu e o velho foi acomodado no sofá, sentado.
Frank se virou para Forbes que estava com a arma e os olhos atentos:
― Pode se considerar um gênio, quem diria, uma família.
As palavras ficaram vagas, o xerife esboçou uma feição de quem deveria ter dado
ouvidos ao outro e que só após sofrer uma experiência de reconhecimento é que
se debandou na triste obrigação de confessar:
― Você afirmou que encontraríamos uma família debaixo da terra e acertou em
cheio.
Forbes parecia compreender vagamente e balançou devagar a cabeça em modo
de exibir um não. O homem da lei prosseguiu:
― Talvez não conheçam, mas os velhos do mundo subterrâneo são os avôs
paternos de Bobster.
― O dorminhoco é Terrine Bobster e a temida luz verde é Mildred Bobster. ―
emendou o xerife.
Norman coçava os talos de barba por fazer, parecia alguém que custava
compreender ou engolir a verdade do que era dito.
Naquele momento, o gigante atentou-se contra o lenhador. Foi uma frustrada
tentativa de desferir uma cabeçada no rosto daquele que se mostrava superior.
Horace abraçou-o pelas costas e lhe deu um apertão no corpo. O capturado quase
explodiu por dentro e ficou sem fôlego. Mas, ainda não entregara os pontos,
encontraria uma maneira de fugir e devorar todos os vivos.
O gigante possuía cabelo dourado, sujo e que lhe batia quase ao ombro. Seu
bigode era da mesma coloração e tinha covinha no queixo, um conjunto de fatores
que salientavam sua masculinidade.
Frank Silver se aproximou do desvairado e avisou quase aos berros, estava
nervoso com a resistência do grande homem:
― Caso tentar fugir novamente, vamos sossegar-lhe com um tiro ou uma bela
surra.
Kingston compreendia que a sombra que lhe atormentara no dia da tempestade
era daquele homem. Os homens da lei também haviam chego a esta conclusão,
principalmente quando consideravam a pesada porta do xerifado que quase fora
arrebentada.
― De quem se trata? ― indagou Norman ao xerife, se referia ao gigante.
Nikosson parecia uma criança abandonada que assistia a um espetáculo de rua,
uma peça teatral em que as personagens não poupam esforços para expressar
suas individualidades.

485
― Temos muito que conversar, vamos indo. ― respondeu o xerife.
Cruzaram a floresta novamente pelo mesmo caminho, mas daquela vez, tomavam
cuidado dobrado para não caírem em armadilhas, o que poderia colocar tudo a
perder.
Conway revezava com seu superior o pesado fardo de carregar o velho, avô de
Bobster.
Chegaram ao limite da floresta e visualizaram o vilarejo, o momento do amanhecer
se aproximava, a madrugada e seu esmaecimento sombrio eram invadidos pela
luz do sol que aos poucos dominava.
O xerife instruiu o batalhão a ir para o hotel de Bobster. A porta de entrada do local
estava escancarada e o saguão era banhado pela claridade da lareira.
Entraram para mais uma surpresa.
Havia um homem sentado na cadeira de balanço de Bobster, fumava um charuto e
possuía idade avançada.
Seu olhar estava obtuso à situação. Aparentava não ter percebido da chegada do
tropel. Baforava e olhava para a junção da parede com o teto, balançando na
cadeira.
Trazia um olhar frio, parecia querer desabafar, reconhecer que havia perdido.
Os dois forasteiros reconheceram o homem que era o mesmo retratado no quadro
do terceiro aposento do hotel. Era a versão mais idosa do senhor que estava
retratado com uma machadinha na mão e pronto a extrair lenha de um tronco de
árvore.
Havia dois homens aos seus pés, estavam desacordados ao chão e atados por
um emaranhado sem fim de cordas.
Brad Fillman e Josias Parker, sem a boina, apresentando sua calva monumental,
haviam perdido para o velho homem.
Mais um da família de malvados se colocava em cena.
― Você está preso por tempo indeterminado, Jardine Bobster. ― o xerife intimou
como um incorruptível oficial de justiça.
Para o homem não importava ouvir aquelas palavras, há muito tempo não ficava
tão próximo e em conjunto com o seu bando de malvados.
Afinal, na situação em que se encontrava, reconhecia que era o momento de
recomeçar uma nova vida, mas desta vez, unido aos seus... pais, filho e o velho e
bom companheiro, Ludwig Van Martleen, que babava de ódio, mais do que o
normal, aquilo sim era capaz de preocupá-lo.
Tanto que ele tentou sacar a arma que trazia oculta, mas, Ronald, esperto como
sempre já o interceptara em sua ação e atirou, jogando o revólver que surgira do
nada para trás do balcão do saguão.

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O velho permanecia indiferente à situação, porém, não conseguiu esconder uma
dor lancinante que invadiu a estrutura muscular de seu pulso direito.
A apagada luz verde desejou socorrer seu filho que por sua vez já havia erguido
os dois braços, se entregando e ficou apenas no aguardo de receber um par de
algemas.
Naquele instante a madrugada se transformou em um novo amanhecer do dia
mais movimentado da história de Pitfall.

***

O fumegar emanado pela chaleira quente de Tania era capaz de enfeitiçar


qualquer pessoa que transitasse aos redores da casa dos Bombay.
O cheiro do café que ela acabava de passar agradou as narinas do xerife Frank
Silver.
Após uma longa noite sem dormir, aquela programação realmente era muito boa.
Norman e Forbes aguardavam sentados à mesa enquanto que o menino os
encarava com os olhos brilhando, pois gostaria de lhes fazer uma pergunta que
estava entalada na garganta. Poderia ser considerado como um ratinho que
quisesse cruzar os limites de uma fresta, mas que por mais que se contorcesse
não conseguisse achar passagem.
Dixie estava descansando em seu sofá, seu velho companheiro de noites e mais
noites.
Tania serviu uma xícara para o xerife que estava de pé, depois prosseguiu com os
dois forasteiros que tanto fascinavam seu filho. O leite e o queijo foram os outros
dois ingredientes daquele café da manhã simples, mas exemplar.
Howard sabia que aqueles dois homens que tanto temera da primeira vez, na
verdade eram dois soldados extremamente preparados para a guerra ou para
defendê-lo do menino da rua de trás. Daqueles berros sem nexo que tanto lhe
amedrontavam.
― Espero que gostem do queijo que misturado ao aroma do leite com café fica
uma maravilha. ― dizia Tania toda feliz por receber aqueles homens em sua casa.
Mas ela estava um pouco encucada com a razão da visita, eles queriam de
conversar com Dix e não deixaram claro sobre qual assunto, afirmaram que eram
perguntas acerca do vilarejo.
Os capturados haviam sido levados cativos ao xerifado e eram vigiados por
Conway e Kingston. O xerife temia que os dois dormitassem e dessem vazão ao
gigante que poderia sucumbir as grades do xadrez que convenhamos, não era lá
estas coisas.
― Vocês são soldados de verdade? ― soltou Howard com medo da resposta.
487
A pergunta foi direcionada aos forasteiros. Forbes fez uma careta engraçada e
apertou a bochechinha do menino:
― Não, mas seriamos bons soldados...
― Ele é um soldado. ― Norman interrompeu o amigo enquanto mencionava o
xerife apontando com o indicador.
O xerife se agradou com a brincadeira e bebeu mais um delicioso gole. Tania
assistia encantada toda a cena, os homens que lhe visitavam eram legais e se
deram bem com o seu filhinho.
― Você sabe qual é a posição do soldado na hierarquia do exército? ― indagou
Forbes brincando com o menino.
Howard sorriu e perguntou:
― O que é “hienarquia”?
Todos gargalharam com gosto e foram cortados pelo chamar de Dix:
― Tania?
A prestativa mulher sabia que deveria preparar um café na bandeja como Dix
gostava de receber todas as manhãs. Ela fez isto com versatilidade e foi até a sala
servir a pobre senhora.
Forbes conversava gentilmente com o menino e enumerava todos os postos que
se lembrava do exército, o último dito por ele foi marechal. Era um homem atento,
mas havia trocado major por coronel, invertendo o degrau da escala.
O xerife informou a Norman:
― Vamos falar com ela.

***

Tedioso seria aquele dia.


Para o padre Alvarez Leone nada corria bem.
Acordara com uma tremenda enxaqueca e bancara o herói ao tentar dispensar
uma dose de café na xícara após um momento de tontura. Sua mão fora castigada
por uma golfada de café fervendo.
Naquele momento se encontrava no banheiro, com a mão queimada debaixo da
torrente abundante de água. Era a única maneira que encontrara de aliviar a
ardência localizada.
Não precisaria se preocupar com o desperdício de água, afinal, a conta era
bancada pelas miseráveis ofertas dos não menos miseráveis fiéis. Ele não os
julgava miseráveis no sentido literal da coisa, mas sim por se tratarem de um
número reduzido. Seu milharal nunca crescia para que pudesse gozar uma
excelente colheita.

488
Para piorar, estivera vendo fantasmas na noite anterior. Avistara uma capa negra
andando no corredor escuro da igreja. Ele havia rezado, ido à casa dos Harter e
voltado quase pela manhã, esticara as pernas no sofá aconchegante da biblioteca
e pegara no sono.
Fantasmas perambulando pelo vilarejo ao redor da floresta era história comum,
mas pela primeira vez presenciara ou ouvira falar sobre uma visita interna, dentro
de alguma casa ou no caso a igreja, o cantinho santo, onde o mal não ousa
habitar ou cruzar os limites.
Decidiu fechar a torneira e estudar o grau da ardência que diminuiu, mas ainda era
insuportável.
Assistiu uma camada de pele correr pia abaixo após reabrir a torrente salvadora.
Aquele seria um dia de descanso, de aliviar a tensão. Poderia trocar a noite pelo
dia. Dormir de dia e sair à noite. O fantasma de capa preta invadira seu habitat e o
obrigara e abrir mão de seu aconchego noturno. Poderia inclusive inventar a
desculpa deslavada dos sete dias de bênção na tua casa, assim, iludiria o Harter,
prometendo posar sete noites seguidas em sua casa e trazer como resultado uma
bênção para o lar. E por que não setenta vezes sete?
Os Harter engoliriam facinho, facinho.
Era o mais novo e inovador modelo do golpe do vigário.
Julgava-se um pescador de homens, capaz de vender facilmente seu peixe, nem
que tivesse que empurrá-lo um pouquinho para tal.
Fechou a torneira e constatou que a ardência diminuiu para um estágio aceitável a
qualquer ser humano que se julgasse um homem. Padres na verdade ficavam no
meio, entre os dois sexos, eram obrigados a se portarem como eunucos e
ignorarem suas naturezas masculinas.
A verdade é que aquela vida não era fácil. Muitas vezes sonhou que estava
introduzindo seu membro rígido no meio cálido e úmido das pernas de uma mulher
que nunca vira o rosto, sempre encoberto pela escuridão do quarto.
No entanto, seu dia não poderia permanecer daquela maneira, não acreditava em
coisas mandadas e não havia visto um gato preto.
O motivo da sua má sorte deveria ser a capa negra perambulando pela igreja, foi
após aquela visão que tudo mudou.
Poderia se tratar do carrasco do “Mal do século” que viera transformar seu viver
num verdadeiro inferno.
Pensando melhor, chegou a uma conclusão, aquele dia poderia ficar muito bom.
A menina dos seus olhos, aquela que tanto lhe alegrava seria a solução para a
sua depressão momentânea.
Mau agouro não permanece para sempre, principalmente para um exemplar
representante da mãe igreja, por mais notívago que se tornasse.

489
Harter também deveria ter visto a capa negra andando pelas cercanias da igreja,
afinal, estivera parecendo uma versão mais velha e maluca do Rambo na
madrugada que passou.
Foi até a biblioteca e contemplou a cômoda, a morada do seu amor, aquela que
lhe alegrava.
Onde estava a chave?
Estava no bolso da batina, da outra, a que deixara para trás, no banheiro.
Correu buscar. Apalpou o bolso da batina pendurada e custou encontrar o que
procurava.
Voltou à biblioteca e encaixou a chave no buraco da glória para que pudesse abrir
a porta da esperança.
As portas da vida nos reservam grandes surpresas, cada uma que você abre pode
trazer uma novidade revolucionária que proclamará um fim na sua existência ou
colocará os teus passos no eixo.
A porta da cômoda já estava destrancada, sendo que o padre a trancara
devidamente no último acesso, e disto ele tinha plena certeza.
Estranho!
Aquele momento foi crucial, aquela porta reservou a destruição de um homem.
Aquela porta que tanto fora a responsável por exibir o seu amor não deu o ar da
graça naquela derradeira ocasião.
Não haveria outra vez, outro encontro, outra oportunidade.
Ele sentia como se estivesse tentando segurar um rio na palma da mão, mas que
aos poucos, a água fosse escapando pelas frestas perfeitamente desenhadas nas
curvas das mãos, entre os dedos. Como se tentasse e fizesse o impossível para
conter a água, mas que fosse impossível.
A sua menina dos olhos se fora para nunca mais tornar ao seu devido lugar.
Ele gritou de tristeza e se ajoelhou no chão. Com as duas mãos, agarrou tufos de
cabelos dos dois lados da cabeça e começou a puxá-los desesperadamente
enquanto prorrompia em lágrimas.
Desejava explodir, desaparecer, assim como o amado objeto que fugira sem ao
menos se dar ao luxo de trancar a porta atrás de si em modo de respeito que ele
acabava de chegar à conclusão que nunca merecera ou aspirara a merecer.

***

Dix havia terminado o café.


O xerife puxou uma cadeira e sentou-se de frente para a senhora, de modo que
pudesse melhor interrogá-la e entendê-la.

490
Norman e Forbes estavam de pé como prestativos guarda-costas.
Tania levou a xícara usada por Dix para a cozinha e aproveitou para carregar seu
filho com certa aspereza, pois o xerife havia deixado claro que aquela conversa
não seria de modo algum bem digerida por uma criança inocente.
Dix tossiu e seus olhos lacrimejaram, visto que a idade lhe pesava muito naquela
manhã.
― Desculpe o transtorno. ― lamentou o xerife.
― Não te preocupes, há muito tempo não recebo visitas, velhos adoram conversar
e expor suas experiências. ― disse ela quase irrompendo em tosse novamente.
O xerife olhou para o chão, procurava o que falar àquela mulher vivida. Por fim,
chegou a um fator comum:
― O que sabe sobre os Bobster?
A pergunta foi direta e não deixou rastros de arrependimento, fora bem desferida e
encaixada. A velha pensou um pouco, mas chegou a uma resposta simples:
― Sobre qual deles?
A senhora não entendia por qual motivo o xerife mencionara a família Bobster em
si, sendo que a mesma havia sido desfeita há anos. Pitfall contava apenas com a
presença de Jimmy, o dono do hotel.
― Existe algum problema se eu perguntar sobre cada um de seus membros?
― Não, são como um corpo.
O xerife acompanhava as palavras da mulher com invejável atenção, logo
prosseguiu:
― Quem seria a cabeça desse corpo?
Dix pensou, tinha a resposta na ponta da língua, mas era sempre prudente em
suas palavras:
― Popeye.
Ninguém entendeu exatamente a quem ela se referia. O nome descrito se referia a
qual dos Bobster?
― Quem é Popeye? ― indagou o homem da lei.
― Mildred, seu apelido carinhoso, mas pouco conhecido. Aquela mulher seria
capaz de carregar um país nas costas.
Naquele instante eles entendiam. Popeye se referia ao olho deformado da velha
senhora, a luz verde de Pitfall e modelo facial do assustador quadro do saguão do
hotel.
― Ela é tão esperta como você diz? ― indagava o xerife.
Os dois forasteiros se mantinham alheios à conversa, a pedido do xerife que
permitiria que Forbes e o amigo desferissem suas pancadas de perguntas logo
após.

491
A garganta de Forbes coçava de tão cruel privação. Era um questionador nato,
implacável e que retirava verdades do meio de uma multidão de mentiras, como
quem procura uma agulha no meio do palheiro.
― Sim, ela é uma pessoa competente e como eu havia dito, pode carregar um
país nas costas assim como sempre fez com a sua família. Nunca mais tive
notícias dela.
O xerife pensou e pensou, por fim lançou mais uma carta de seu interrogatório:
― A senhora a conhecia pessoalmente?
Dix riu, depois deu uma breve tossida:
― Fazíamos receitas juntas...
― Que tipo de receitas?
― Bolos, tortas de frango e preparados de carne. Ela era uma pessoa notável.
Ocorreu um momento de silêncio até que o xerife virasse para fitar Forbes e lhe
permitir uma pergunta.
Forbes se portou como um sedento jornalista que tanto esperava para começar
sua primeira entrevista:
― Notável? Em qual sentido?
Ele pegara uma intenção no ar, no fundo do olhar da velha senhora e ela revelou:
― No sentido de estranha, comportamentos às vezes anormais, o que não
condizia com a sua conduta de responsabilidade.
― O que ela fazia de tão estranho? ― Norman alçou o voo da liberdade.
Dix pensou e riu com o olhar absorto:
― Um dia, estávamos preparando um guisado de carne de alce e eu a surpreendi
devorando um pedaço cru e ensangüentado de carne. O sangue chegava a
escorrer pelas beiradas de sua boca. Ela deveria estar muito faminta, melhor
dizendo, aquilo com certeza era um hábito comum a ela.
Os três se entreolharam. Forbes disse:
― Ora, isso não é tão anormal, nunca ouviram falar de vampirismo? É um
comportamento totalmente humano.
― Conheço o termo, mas não é normal uma pessoa que sofre de vampirismo ser
tão dissimulada, digo, se sentir tão à vontade para cometer tal ato em cima de um
palco, onde todos possam apreciar a peça. ― respondeu Dix.
Forbes deveria reconhecer que a velha fora mais sábia que a si, a idade de
experiência colhida valia muito, muito mesmo.
Não só ele, mas todos concordavam que ela tinha total razão, fora inquestionável
em suas palavras.
O xerife tornou a perguntar:
― Há quanto tempo não vê tua companheira de receitas?

492
― Ora, xerife, desde quando ela partiu para o Canadá, há sete anos. Até parece
que você não se lembra do episódio.
Dix ironizou, sabia que a partida dos Bobster fora um marco na história da
pequena Pitfall, eles haviam partido na madrugada, sem deixar rastros. Dix tinha
ciência da partida para o Canadá devido à amizade com Mildred que viera se
despedir na ocasião.
Na época, todos os habitantes ficaram pasmos ao saberem da notícia da mudança
meteórica dos Bobster para outro país.
Eles eram considerados uma família de estranhos, o que fazia jus à personalidade
de Jim, nunca mais se falou no assunto ou pouco foi mencionado, e quando foi,
com certeza foi entre quatro paredes e em família.
― O mais estranho é que eles se mudaram sem mandar recado. ― desabafou o
xerife.
Por fim, Dix perguntou sabiamente:
― Eles deviam satisfação a alguém?
O xerife manteve silêncio, assim como os outros. Era um momento de reflexão.
Depois, Forbes tomou liberdade:
― Nos conte o que sabe sobre eles.
Dix encarou o ousado interrogador, mas, compreendia que havia consentido em
responder perguntas de todos os níveis.
― Eles eram estranhos, não sei qual cultura de família poderia influenciar em
comportamentos anti-sociais.
Dix tossiu e indagou:
― O que desejam que eu conte?
O xerife fez uma feição de poucos amigos:
― Tudo que você sabe da vida íntima deles.
Ao que Dix logo começou:
― Já tive oportunidade de adentrar o hotel dos Bobster, engraçado que sempre foi
um hotel, mas raramente abrigou hóspedes...
― O motivo deve ser a localização deste vilarejo perdido. ― Norman a cortou.
― Correto. ― Dix meneou a cabeça.
― Senhora, prossiga. ― disse Forbes.
― Certo dia, quis dialogar com Mildred, minha única amiga íntima de Pitfall e
decidi visitá-la de surpresa, no hotel, era à noite, beirava vinte e três horas. Entrei
no hotel sem chamar, a porta estava entreaberta, em minha concepção, esta
atitude intrusiva não incomodaria qualquer um dos Bobster. Engano meu. Naquela
época eu podia andar normalmente, com um pouco de dor nas cadeiras. Havia
ninguém no saguão que estava mergulhado em uma escuridão assustadora,

493
aquela situação assustou até a mim que nunca tive rodeios em lidar com os
assuntos da vida. Mas, tudo era estranho, eu senti cheiro de incenso que parecia
vir do andar superior, onde ficam os quartos. Naquela época, os quatro integrantes
da família habitavam no sexto aposento.
Ela parou o relato após notar uma excitação entre os dois homens que
acompanhavam o xerife.
― Sexto aposento? São apenas cinco. ― protestou Norman.
― É o quarto de frente para o quinto. ― Dix se portou como um adulto em tom
professoral, oprimindo o aluno com suas informações relevantes.
― O reservatório! É o aposento que eu consegui entrar, mas que não possuía
uma lâmpada, de modo que tudo estava escuro. ― disse Norman.
Dix prosseguiu:
― Eles mudavam de quarto com freqüência, mas sempre habitavam única e
exclusivamente em um deles. Notaram que os números dos quartos não seguem
um padrão de ordem?
― Sim, mas nunca cheguei a comentar. ― respondeu Forbes.
Norman ficou pensativo.
O quarto recente de parte da família Bobster era debaixo da terra e em uma
cabana escondida nos confins da floresta.
Era possível prever o quarto futuro de todos eles, uma cela gelada no fundo de um
pequeno xerifado.
A questão central era, onde o relato da velha senhora que parecia não tratar
assuntos fúteis iria chegar. Ela continuou:
― Eu subi a escada e me deparei com um corredor parcamente iluminado. Havia
uma movimentação humana no sexto aposento, afinal, várias pessoas
aglomeradas podem gerar tamanho alvoroço, mas aquilo era anormal, era como
se alguém estivesse lutando contra outro alguém. Decidi então, me certificar do
que acontecia e como poderia ajudar, mas Mildred surgiu repentinamente e me
empurrou com educação de volta para o topo da escada.
Dix deu uma pausa para tossir e prosseguiu com o assombroso relato:
― Nunca me esquecerei quando Popeye disse a mim: fuja rapidamente daqui, ele
é muito malvado e baba a todo instante.
Os três homens se entreolharam, malvado, já ouviram falar muito naquele termo
em Pitfall.
― Em que época isso aconteceu? ― indagou Forbes.
― Pouco antes de eles partirem, talvez um mês aproximadamente.
― Minha nossa! Está na cara! ― exclamou Forbes.

494
Norman e o xerife o fitaram em modo de interrogação, como se quisessem saber
de uma novidade descoberta por um amigo de infância. Forbes deu sua opinião:
― Está na cara, o malvado em questão é o homem grande que o lenhador abateu
no mundo subterrâneo. Ele baba sem parar.
Dix se surpreendeu, não sabia a quem se referia Forbes. Posteriormente à
conversa, o xerife contaria toda a história da madrugada para ela.
― O que você fez depois? ― indagou o xerife.
― Eu perguntei se ela precisava de ajuda e recebi uma resposta ríspida repetindo
tudo o que me dissera anteriormente. Então, fui embora, mas só queria ajudar. A
aberração oculta, o tal de malvado foi o motivo da mudança dos Bobster para tão
longe.
Não era tão longe assim, ela se enganava.
O xerife solicitou:
― Fale-nos sobre os outros membros da família Bobster, o pai e o avô de Jim.
― É fácil falar de Terrine, foi se debilitando aos poucos devido à idade avançada,
sempre foi uma pessoa reclusa e preferia pensar, raciocinar ao invés de falar.
Jardine, era osso duro de roer, vivia atrás de lenha e mimava seu filho apesar
deste estar numa idade madura, nunca ouvi falar de sua esposa. Às vezes tenho
minhas dúvidas se Jim é filho de Jardine ou se é seu irmão mais novo, o
protegido.
― Qual é a idade deles, sabe dizer aproximadamente? ― indagou Forbes.
A resposta deixou todos de olhos arregalados, ela sabia, jurava ter quase certeza.
Algumas outras perguntas se sucederam. O interrogatório à pobre senhora se
estendeu por mais quinze minutos.
A pergunta final foi desferida pelo xerife que acreditava haver uma mágoa no
coração de Dix quanto à antiga amiga.
Não se preocupe, você vai revê-la e tomar satisfação. Pensava ele. Eis a pergunta
que encerrou o interrogatório:
― Você nutre algum sentimento em relação a ela?
Dix olhou para a porta da sala que estava aberta e pensou um pouco para
responder com certo incômodo:
― Saudade.

495
40

...PARA MELHOR

A mesa estava posta na sala. Fora arrastada por Ronald que gentilmente atendera
ao pedido da sogra.
Brenda se orgulhava do marido que sempre se mostrava benevolente e generoso,
pena que seu pai insistia em não aceitá-lo.
Muito lhe surpreendia a atitude do velho homem que sempre apresentou seus
desvios, se mostrando antipático, porém, aquela rixa individual com o genro,
individual no sentido exato da palavra, era algo bisonho advindo daquele que
deveria ser um respeitável senhor, pois a merda toda partia dele próprio. Mal sabia
ele que o genro pouco se importava com sua indiferença ou não.
O velho ranzinza sequer descera quando soubera da visita surpresa da filha com
sua família.
A afronta se baseava no fato de que todas as benditas vezes, a ovelha negra
insistia em acompanhar sua filha. Aquele espírito obsessor que parecia querer
andar montado à custa dela e não lhe largar aonde quer que esta fosse.
Brenda trazia os pratos para a sala, enquanto sua doce mãe terminava o molho de
tomate.
Sonny permanecia alguns minutos cheirando um dos vasos de flores que estava
ao lado da porta da sala.
― Quando é que o “beija-florzinho” da mamãe vai terminar o trabalho e parar para
comer? ― Brenda passava olhando carinhosamente para o filho, carregando os
pratos.
Ele se limitava a sorrir e continuar no seu trabalho imaginário de polinização, ao
menos era o que afirmava sua mãe quando o taxava de pequeno beija-flor.
Ronald estava sentado no sofá com a nuca escorada, estava de olhos fechados,
descansando a mente, pois passara a noite em que fora herói em claro.
Seu filho não sabia da história, ele se limitou a contar alguns pedaços à sua
mulher que ficou assustada de começo, mas se orgulhou posteriormente. Ela
sabia da existência da luz verde e pelo que ele havia dito, tudo não passara de
uma farsa, ele não deixou muito claro a parte que tocava a Bobster e sua família.
Bobster em si causava repulsa aos habitantes de Pitfall, sempre fora conhecido
como um lunático de carteirinha.
Tão lunático quanto aquele que perde seu precioso tempo para escrever estas
palavras.

496
Brenda retornou da cozinha, trazendo uma coleção de talheres, tinha até um mini
trinchador de ferro que o senhor Harter gostava de usar para o que costumava
chamar de “pescar franguinho”.
Ele se portava como uma criança à mesa, mas apenas quando estava a sós com
a sua mulher. Como no primeiro jantar de núpcias do casal, o episódio poderia ser
uma cena de um famoso filme de comédia.
Na ocasião, ele acabara de servir o vinho nas taças e decidiu lançar uma azeitona
sem caroço no ar e abocanhá-la como um exímio jogador de golfe ou um perito
encaçapador dos Pro Billiards.
No entanto, a azeitona fora parar na caçapa ao lado, na taça de Audrey que
herdara a tradição de apreciar um bom vinho com seu pai.
― Papai não vai descer? ― cochichou Brenda no ouvido da mãe que aparecia da
cozinha, trazendo uma travessa com um macarrão banhado ao molho de tomate e
coberto com tiras de bife à milanesa.
Ela não respondeu de pronto, apenas fez um sinal afirmativo com a cabeça e
prosseguiu seu caminho, demonstrando que a travessa estava mais pesada do
que quente, parecia haver um novilho inteiro debaixo daquele mundo de
macarrão.
O cheirinho da iguaria chamou a atenção do “beija-florzinho” que logo mudou de
alvo, aproximando-se da mesa recém-recheada com aquela delícia.
― Venha Ronald. ― disse Brenda, seu marido jurara estar faminto.
O homem com a barba hirsuta pareceu acordar de um sono distante e se levantou
indo à mesa.
Todos se acomodaram, restava a chegada do patriarca para que o jantar pudesse
ter um início, jantares em família, que não se sabe o meio e o fim, eles apenas
começam muito bem, em clima de confraternização, mas podem resultar em
morte.
Isto não é exagero, quem poderá explicar os mistérios da mente humana?
― Vamos aguardar Lionel, para começar a oração. ― sugeriu Audrey.
Sonny estava atento à fumacinha que a travessa quente expelia.
O caçador demonstrava estar com muito cansaço psicológico, seus olhos estavam
com uma vermelhidão preocupante, também pudera, passar uma madrugada toda
ao relento, no frio e sem pregar os olhos não era uma romaria para fracos e
despreparados.
Sentiu seu estômago roncar, mas respeitava o procedimento em família, todos
deveriam comer juntos para demonstrar como deveria ser unido um lar.
Naquele caso, ele desconfiou que o sogro soubesse que ele estava faminto e fazia
corpo mole para descer à mesa. Deveria estar brincando de barquinho na
banheira quentinha e aromatizada, este pensamento o fez sorrir. Por pouco,

497
Brenda não pegou o breve sorriso no ar e lhe perguntou o motivo. Aliás, as
mulheres às vezes, com seus cuidados acabam sendo inconvenientes. Se você
afirma que dará esclarecimentos quando chegar em casa, elas são capazes de
pegar uma faca e colocar teu pescoço em xeque na frente de todos, te obrigando
assim a confessar tudo, e acredite em mim, elas saberão se você diz a verdade ou
se está inventando uma história da carochinha para disfarçar.
Ele estava demorando, mas a conversa tomava outras dimensões. Brenda
perguntou sobre receitas, desejava fazer um quindim para o marido e o filho.
Malone não poderia reclamar de sua mulher, ela era perfeita nos cuidados da
família, da casa e super carinhosa e atenciosa na cama. Era aquele tipo de mulher
que completaria qualquer homem. Ela não era tão bela, chegava ao nível de
atraente, mas ele não tinha olhos para outra. Assim como todo homem de
verdade, aquele com H maiúsculo, afinal, para o homem basta a sua mulher.
Ele, verdadeiramente era uma excelente pessoa e casara sua índole com a de
Brenda.
O único ato que lhe condenava periodicamente na mente era o sangue que
derramava dos animais, já não tinha ciência se tal atitude era correta ou
incoerente.
Ronald refletia ao ponto de quase dormir com a demora do sogro, o menino
brincava imaginariamente e as mulheres continuavam com os papos de seus
mundos femininos quando ele, o esperado, começou a descer a escada
chamando a atenção de todos.
Ele trazia um pequeno baú de madeira nas mãos que parecia possuir uma
ilustração pirografada, mas o que mais chamou a atenção de Ronald foram as
lágrimas que surgiram nos olhos das duas mulheres, mãe e filha.
Parecia até que o velho trazia algum cadáver de um ente querido dentro do baú
tamanha a emoção que elas demonstraram quando prorromperam em lágrimas.
Ele chegou à sala e apresentava o semblante de um homem que levava tudo na
vida muito a sério. Parecia um professor olhando a turma disciplinada de alunos.
Mas, o caçador não conseguia entender o motivo da emoção daquele momento.
O menino permanecia estudando o teatro dramático dos adultos sem entender
qualquer coisa, mas não ousaria perguntar e levar uma repreensão.
― Por qual motivo choram? ― indagou o caçador assustado com a repentina
mudança de humor.
Brenda não conseguia falar uma palavra, sua mãe também. Quem tomou a atitude
foi o que provocara aquela estranha reação. Ele se aproximou do genro que se
encontrava de pé naquele instante e abriu o pequeno baú, retirou uma medalha
dourada e tomou a liberdade de coroar o pescoço do nobre caçador que não
esboçou reação contrária, apenas recebeu a condecoração.

498
Todavia, estranhava o fato de seu sogro ser o condecorador.
Harter sorriu para o genro e disse:
― Essa medalha é um presente por tua coragem e bravura.
As mulheres começaram a chorar com mais intensidade, estavam emocionadas
ao ponto de precisar de um copo de água com açúcar. As pernas de Brenda
tremiam, parecia um sonho que nunca imaginou que iria se realizar. Julgava ser
mais fácil ganhar milhões em sorteios de concursos federais.
Harter deu dois tapinhas carinhosos no peitoral do genro e continuava sorrindo:
― Tu és um excelente homem, um exemplo, assim como minha filha Brenda.
Malone ficou sem graça, pegou a medalha e levantou para que pudesse estudá-la,
sentia-se lisonjeado.
HONRA AO MÉRITO, 1947
Lionel explicou:
― Ganhei essa medalha em um concurso nacional de estrategistas de guerra,
mas quem merece levá-la no peito é você. Ela é de ouro puro, devido à
importância e repercussão que foi tal concurso.
Acontecera quando findou a segunda guerra mundial, o velho se inscrevera de
última hora e foi o inscrito número cinqüenta mil trezentos e cinqüenta e quatro de
cinquenta e um mil cento e doze inscritos no total. O desafio proposto consistia em
um mapa impresso em uma espécie de cartolina contendo um campo de
concentração com a disposição estratégica dos soldados nazistas. O desafiado
deveria construir um esquema de invasão e resgate de um grupo de cativos que
se encontravam no centro do campo de concentração. No entanto, a invasão
proposta deveria levar em consideração apenas um grupo de três soldados em
terra, sem uso de helicópteros e tanques de guerra.
E ele ganhou, Harter fora o primeiro colocado naquele memorável dia da
independência em que ocorrera um concurso apenas para distrair a população
carente e entediada de uma nação.
Ronald exclamou:
― Puxa vida! É uma medalha e tanto!
Ele entendia por qual motivo as mulheres choravam, elas estavam emocionadas,
pois era a primeira vez em muitos anos que seu sogro lhe tratava como uma
pessoa de caráter e não um mero animal que é pisado pelos ignorantes.
Harter era sincero em seus sentimentos, por ironia nunca gostara do genro e
naquele momento ele se transformava no seu herói número um. O xerife tivera um
tempinho e passara na casa dos Harter para relatar a atitude heróica do caçador
que gentilmente havia se disponibilizado para aquela missão na floresta.

499
Ele havia livrado Lionel das mãos temidas da luz verde para sempre. O velho se
preparara para uma guerra na madrugada que passara. Uma guerra que na
verdade o genro estivera ajudando a por fim.
Os dois se abraçaram. Sonny entendia apenas que aquilo era bom.
As mulheres pranteavam como se estivessem assistindo a um último capítulo de
novela, na última cena de um final feliz.
― Não acabei por aqui. ― disse Harter quando o abraço foi desatado, foi até a
cozinha.
Voltou com um revólver na mão, o menino chegou a pensar que seu avô iria matar
seu pai, sustos de crianças que adoravam imaginar coisas surreais.
Ronald reconheceu a arma, era a que fizera voar com um tiro, a arma de Jim
Bobster quando este entrou na cabana para render George Conway que contou
todo o ocorrido ao xerife que por sua vez levou a arma para brindar Malone como
souvenir da missão. Uma lembrança agradável.
Aquilo fora incrível. A bala atirada pelo caçador fora de encontro com o orifício do
cano da de Bobster. A bala se encaixou no orifício como uma rolha que se encaixa
a garrafa de vinho para lacrá-la.
― Precisa me ensinar a fazer isto. ― disse Harter exibindo o incrível feito.
Todos riram de emoção. Sonny entendia apenas que aquilo era melhor ainda.
― A tua pontaria é perfeita! ― exclamou novamente Harter.
― Obrigado. ― agradeceu Malone, sem palavras, acreditando na amizade sincera
que propunha o sogro.
Ele novamente abraçou o genro.
Sonny entendeu pouca coisa, não sabia por qual motivo choravam, não entendia o
motivo da medalha. Mas, entendia como uma criança pura que enxerga a
essência das coisas e não seus conteúdos.
Ele entendia apenas que aquilo era muito bom, entendia também que poderia
chorar assim como sua mãe e a vovó. Entendia que havia um clima de felicidade
naquele meio, uma felicidade que ainda se encontrava na fase embrionária e que
posteriormente se desenvolveria e se intensificaria proporcionando coisas boas
para aquela família.
Era como se uma aliança houvesse sido reparada no meio daquela família
pequena, simples e feliz.
Feliz, pois nasceu o amor e o respeito que antes não existiam.
Sonny entendia que aquilo era muito bom e que ficaria melhor.
Afinal, a vida sempre muda, para melhor.

***

500
Tania sorriu.
Abriu a porta, pois alguém batia.
Era a pessoa esperada.
Singer retribuiu o sorriso de forma tímida. Nunca tivera um contato sentimental tão
próximo com uma mulher, nunca estivera tão envolvido emocionalmente.
Tudo fora providencial. Tania colocou um bilhetinho no bolso da camisa do xerife e
piscou solicitando um segredinho. O xerife logo percebeu e deixou para se
certificar do que se tratava quando estivesse fora da casa dos Bombay, após o
interrogatório de Dix, pois parecia se tratar de algo muito íntimo.
Ele fora pessoalmente até a casa de Singer entregar o bilhete, este recebera com
surpresa, seu cão parecera estar atendo à novidade que batia à porta.
Lá estava ele naquele instante, atendendo a um convite para almoço, de uma
mulher.
Cruzes!
Não sabia o que era discernir um homem de uma mulher há muitos anos. Era o
momento de voltar a sentir os nervos à flor da pele.
O xerife possuía um olhar paterno para com Pitfall. Ele percebera em outra
ocasião o interesse de Tania em relação ao lenhador e decidira dar uma ajuda.
Tania parecia ter captado no ar a disposição do homem da lei em ajudar e
escrevera o bilhete. Assim, as situações casaram, resultando em um convite
aceito.
O lenhador entrou após a mulher solicitar.
Dix estava deitada no sofá e dormia, havia almoçado com o neto, pois tudo ficara
combinado para o almoço de Tania ser particular naquele dia.
A anfitriã que fizera o convite deixara a mesa toda pronta na cozinha. Havia um
frango inteiro, assado e cheirando um tempero caseiro muito bem preparado.
O xerife deixou de ser motivos de rixas para Tania que com o tempo, havia
percebido que exagerara na dose ao rebater as palavras do xerife sobre seu
falecido marido ser imprudente.
Ela havia organizado a lavanderia que ficava ao lado da despensa, pois antes,
uma mixórdia de roupas proporcionava um aspecto desagradável ao lar.
Tania fechou a porta para impedir que o vento gelado da manhã de inverno
invadisse a casa e acompanhou o homem até a cozinha. Singer estava sem
palavras tanto pela vergonha de estar perto de uma mulher desejada como por ver
aquela mesa repleta de coisas gostosas.
Ele não conseguia abrir a boca devido à timidez, não conseguia esboçar qualquer
ato que pudesse ser chamado de iniciativa.

501
― Sente-se, vamos comer. ― ela ofereceu.
Ele a encarou nos olhos. Era uma mulher linda, de baixa estatura. Deveras,
possuía uma beleza individual, difícil de encontrar nos arredores. Era aquele tipo
de mulher que você sabe que precisaria rodar algumas milhas para encontrar
semelhante, capaz de expelir a mesma feminilidade.
Ele sentiu-se sujo ao perceber que desejava aquela mulher fisicamente. Parecia
ser um adepto do celibatário, mas daqueles que são capazes de cortar as mãos e
olhos e lançar fora, ou até mesmo, seu membro inferior.
Ele conseguiu apenas perguntar ainda sem jeito:
― O teu filho não vai almoçar?
Tania sorriu da falta de jeito daquele armário que estava parado à sua frente.
― Ele já almoçou, este frango é especial para nós. ― respondeu ela que já estava
ciente de que deveria tomar todas as iniciativas.
Aquele homem não tirava por nada no mundo aquela toca preta da cabeça,
comumente usadas por lenhadores, apesar de possuir uma infinidade de fios
capilares. Não era o caso de esconder a careca como fazia Parker a vida toda.
― Não entendi por qual motivo me convida para almoçar, mas eu aceito, você é
uma mulher muito atenciosa. ― ele elogiou.
Não conseguia olhá-la nos olhos, aquela presença feminina o intimidava.
Era como se ele não fosse digno de viver aquele encontro, aquele momento a
dois.
― Obrigada, você é muito corajoso, soube o que você fez nesta madrugada.
Ele ficou mais sem jeito do que antes:
― Quem disse?
― Frank, pelo visto estamos livres da luz verde e poderemos caminhar à noite
pelo vilarejo, graças a vocês.
Ele julgava que Parker ainda representava uma ameaça iminente para a vila, mas
a tal da ameaça já tivera um susto exemplar no Bobster Inn e suas cercanias e
não queria sair de casa por nada no mundo. Lembrar-se daquela situação quase
obrigou o lenhador a sorrir, atrapalhando o momento com aquela mulher.
― Obrigado.
Tania se aproximou e o encarou nos olhos, olhava debaixo para cima, pois deveria
medir quase meio metro a menos. Ele pôde sentir o cheiro dela, era como se uma
rosa se aproximasse e expelisse seu aroma natural, suave.
Ela era irresistível. Por sorte, o menino obedeceu a ordem da mãe e fora brincar
no andar de cima, não podendo assim, interromper o momento daquele abraço
caloroso e depois o inevitável beijo.

502
Ela procurou acariciar os peitos dele que mais pareciam dois mundos prontos para
envolvê-la no abraço da perdição. Ela ficou molhada. Ele acariciava os cabelos
lisos e cheirosos dela durante o beijo tenro e sua ereção era tamanha que poderia
explodir a qualquer momento e afetar o mundo como uma bomba atômica.
Tudo o que faltava para a vida dos dois foi acrescentada a partir daquele encontro.
Howard ganharia um pai totalmente capaz de defendê-lo do menino da rua de trás
e seus gritos bizarros.
Tania sabia disto, sabia que aquele homem era um super-herói que sempre
proporcionara lenha à sua família, aquecendo e protegendo do frio.
A partir de então ele aqueceria ela de outra forma, aqueceria seu coração com o
amor de um bruto que era a prova viva de que os brutos também são capazes de
amar e chorar, como prova, ele chorava de felicidade naquele momento. Passara
a vida toda precisando de amor, mas valeu à pena esperar todo aquele tempo,
pois aquela mulher também trazia uma carga gigante de amor para dar, na
dimensão em que ele necessitava.
Amor que ele experimentaria da maneira mais intensa naquela mesma noite, em
sua casa, naquela extremidade sombria e recôndita do vilarejo oculto no lugar
mais secreto do mundo.

***

Cada membro da mamparra estava sentado lado a lado, exceto Ludwig Van
Martleen que ficara preso atrás das grades devido o perigo que representava.
Mildred ainda trajava a capa negra da luz verde, seu velho marido, ao lado,
dormitava.
Parecia um morto-vivo que alternava seu status randomicamente. Às vezes estava
vivo, acordado e ameaçador. Outras vezes estava morto, dormitando, mas sempre
de ouvidos atentos.
Sua cabeça raciocinava como a de um adolescente que acabasse de sair das
fraldas e estivesse tinindo, sedento em expelir as forças mais íntimas de sua
energia vital da juventude.
Ao seu lado, Jardine possuía o olhar absorto, como se estivesse traçando um
plano estratégico para abater em uma só cajadada os cinco homens que os
mantinham rendidos.
― Libertem Ludwig se forem corajosos como tentam demonstrar. ― protestava
Jardine de tempos em tempos.
O cativo desferiu um forte soco na grade e fez a parede do local tremer.
― Kingston, poderia ficar de guarda com o teu rifle e de olho no gigante? ―
indagou o xerife.

503
O interrogado respondeu obedecendo, mas sem dizer algo. Foi até a salinha ao
lado em que ficava a cela e apontou o rifle para o gigante, ameaçador e
determinado a atirar, se caso fosse preciso. O gigante não se intimidou, mas sabia
que aquele que o ameaçava seria capaz de cumprir a promessa.
Kingston abaixou o rifle e se colocou em posição de guarda, pronto para levantar
novamente a arma. Sabia que o seu recado fora dado.
― O meu garoto é capaz de devorá-los vivos! ― exclamou Jardine.
Jim estava sentado ao seu lado e era o mais próximo da salinha da prisão, estava
com o semblante fechado e parecia ter admitido a derrota após receber o impacto
do balaço de Ronald na mão que ainda doía significativamente. Precisava de
atendimento médico, mas não dava o braço a torcer, não faria tão humilhante
súplica.
Conway e os dois forasteiros se mantinham calados, apenas esperando uma
palavra do xerife, uma decisão.
― Libertem-no se forem homens! ― gritava Jardine, como louco.
Frank agarrou o pescoço dele com a mão direita e apertou:
― Mantenha-te em silêncio, somos os juízes por aqui.
Jardine tossiu quando o carrasco largou seu pescoço.
Mildred encarava o xerife e seus olhos eram ameaçadores, ela não falava
qualquer palavra, apenas tentava intimidar com o seu olhar.
Norman sentiu um arrepio na espinha ao pensar que poderia existir algum
malvado ou membro dos Bobster rondando o vilarejo e pronto para invadir o
xerifado em um movimento de represália, num resgate arrebatador.
Ludwig deu outra pancada na cela e tudo tremeu. Naquele mesmo instante,
Terrine gargalhou ensurdecedoramente. A sua gargalhada era semelhante às das
bruxas, era preciso reconhecer que ele tinha talento para a coisa e poderia ser um
bom imitador. Mas, aquela cena de mistério que envolvia os membros daquela
verdadeira súcia não intimidava mais.
O dia amanhecera. Metaforicamente falando.
A noite tudo encobre, mas o dia chega com sua luz para revelar os segredos
intransponíveis e inimagináveis.
Norman estava atento à situação e se recordava de todo o episódio de mistério
vivido no hotel Bobster Inn. Houve um lampejo de lembranças que parou no
episódio da cauda de animal que descia a escada do hotel, qual era a explicação
para aquilo?
O filhote de malvado deveria existir e estar naquele exato momento escondido no
hotel ou ter fugido para a floresta.
Jim pareceu ler os pensamentos de Norman e falou ameaçadoramente pela
primeira vez após ser capturado:
504
― Podem nos manter presos, mas quando o filhote de malvado chegar com sua
família sedenta de sangue, vocês terão o que merecem.
Era preciso reconhecer que aquelas palavras obrigaram às espinhas dos
forasteiros tremerem, mais pela dúvida se os malvados eram reais ou não.
― Eu o criei desde criança e ele não me negaria um pedido de resgate, sua
família é grata a mim. ― prosseguiu Jim.
O xerife gargalhou e se aproximou de Jimmy:
― Não acredito, quando foi que você teve contato com esse animal após ter sido
capturado? Como vai acioná-lo? Com alguma espécie de assobio mágico? ―
ironizava o xerife dono da situação.
― Ele reconhece o meu chamar. ― Bobster respondeu secamente.
Terrine gargalhou novamente de modo estridente com a voz cavernosa e
contorceu o corpo como se estivesse se deleitando com a maldade prometida.
Era um verdadeiro teatro para loucos.
― Você está blefando apesar de não saber jogar cartas. ― disse Conway.
― Não pague para ver, ele é mais esperto do que todos nós juntos. ― retrucou
Jim secamente.
Conway levou a sério, os forasteiros continuavam com um pé atrás. No entanto, o
xerife lançou mais uma questão como se estivesse fazendo uma acareação,
pronto para fazer o interrogado se entregar após se embaralhar nas palavras:
― Com o que você alimenta a criaturinha?
Jim demonstrou raciocinar mais do que o normal para responder:
― Carne humana.
― Não acredito. Depois desta madrugada, não acredito em fantasmas, vampiros
ou lobisomens.
― Acredito sim em loucos varridos, velhos com o pé na cova que não têm o que
fazer para passar o tempo neste fim de mundo e decidem brincar de esconde-
esconde na floresta. ― prosseguia o homem da lei.
Jim ficou com o semblante sério, e disse em um tom que quase ele próprio não
escutou:
― Espere a chegada da noite.
Norman se aproximou e disse algo no ouvido do xerife que respondeu em voz alta,
mantendo a feição de confiança:
― Você está brincando.
A cauda que descia a escada que levava ao saguão do hotel, este era o assunto
de Norman aos ouvidos do homem da lei.
Frank disse algo aos ouvidos de seu auxiliar que logo saiu do xerifado.
― Ele foi buscar algo. ― explicou-se para os presentes.

505
Conway havia obedecido, mas temia se deparar com os malvados no hotel. A
honra que sua estrela no peito exigia falou mais alto então. Ele jurou encontrar
algo ao invés de apenas buscar.
― Não sei o que fazer com vocês, desejo saber por qual motivo resolveram se
esconder na floresta e contavam com esse gigante para rachar as paredes
subterrâneas com uma picareta.
Houve silêncio, apenas um momento de silêncio. Até que Mildred o cortou:
― Procurávamos ouro.
O xerife gargalhou alto em modo de chacota:
― Ouro? Vocês estão pirados!
Ela não se intimidou e prosseguiu seriamente:
― Há sete anos, Jardine, meu filho, pegou a caminhonete de Kingston
emprestada para fazer algumas compras em Jacksonville.
O xerife ficou sério, aquilo era sério, ela estava séria.
Forbes se aproximou:
― Continue, senhora.
Jardine foi quem tomou a iniciativa:
― Encontrei Ludwig perdido em Jacksonville, ele andava em um posto de gasolina
de beira de estrada e aparentava estar faminto.
O gigante que tudo escutava, pareceu lamentar o fato com um som hilário advindo
de suas cordas vocais. Era como um urso que acabava de ver seu filho nascer.
― Decidi parar a caminhonete e questioná-lo se precisava de ajuda. Ele
conseguiu apenas estender a mão mendigando e dizer a palavra: pão. Meu
filhotinho gosta de pão, mas há muito tempo não come pão.
Soou outra lamentação produzida pela voz do gigante.
― Eu pedi que ele entrasse na caminhonete e fosse comigo que eu lhe daria pão,
assim que chegasse em casa eu lhe daria pão. Ele não pensou duas vezes, abri a
porta e ele pulou para dentro. Fui até o centro de Jacksonville buscar meus
queridos alçapões de pássaros enquanto ele, Ludwig me esperava e guardava a
caminhonete.
Houve uma pausa, todos escutavam atentamente.
― No caminho de volta eu percebi que ele era uma pessoa totalmente normal,
mas que sofrera uma grande desilusão na vida. Ele nunca se abriu conosco para
contar sua história e o que ocorrera para ele chegar naquele estado de mendigar.
O que eu sei apenas é que ele se chama Ludwig Van Martleen e é filho de
holandeses que o abandonaram no nosso país após uma visita a passeio, ele
ainda era adolescente na ocasião. Foi o que me contaram em Jacksonville.

506
O gigante sentou-se no banquinho da cela e escondeu o rosto entre os braços e
as pernas, como se fosse dormir.
― Eu o trouxe para o hotel, para que morasse conosco. Mas, na primeira noite em
que esteve aqui, após o jantar, ficou admirado com a floresta de decidiu passear
em sua imensidão, em plena noite escura. Ele não voltou normal após este
episódio, conseguiu apenas dizer que encontrou uma cabana com uma passagem
para o mundo subterrâneo. Ele afirmou ter encontrado uma grande pedra de ouro,
tanto que a estava trazendo para o hotel, mas recebeu uma forte pancada na
cabeça quando estava prestes a cruzar os limites da floresta e o vilarejo. A
pancada foi tão forte que ele teve um pouco de seqüelas, não consegue falar
direito, quando tenta dizer uma frase com várias palavras começa a babar e nada
sai.
Todos estavam boquiabertos. Kingston por exemplo, deixara sua guarda e
aparecera na sala do interrogatório para escutar o desfecho da conversa.
― Fomos imediatamente procurar a dita pedra de ouro, mas não a encontramos.
Alguém a havia pego. Deve ter sido a mesma pessoa que colidiu um pesado
tronco de árvore na cabeça do coitado.
― Como sabe que o instrumento do golpe foi um tronco de árvore? ― indagou
Forbes.
― O encontramos no mesmo local em que Lud afirmou ter recebido a pancada e
desmaiado por alguns minutos, o tronco estava sujo de sangue. ― respondeu
Mildred encarando Forbes nos olhos.
Forbes parou para refletir e deu sua opinião:
― Pela pouca experiência que tenho em mistérios, quem levou a pedra de ouro
não foi a mesma pessoa que colocou Ludwig no chão.
Todos estavam espantados com a certeza com que Forbes afirmava aquilo. Ele
continuou:
― Eu explico, é óbvio demais a mesma pessoa ter feito a ação toda. Quem
desferiu o golpe ficou com um pé atrás se conseguiria transportar a pedra devido o
calor do momento e foi até outro lugar buscar algo capaz de levar tanto peso e
neste meio tempo a outra personagem chegou com confiança e levou a pedra nos
braços. Dá até para imaginar a surpresa da pessoa que foi buscar alguma espécie
de guindaste quando voltou à cena do crime e encontrou apenas o gigante
abatido, sem o troféu que antes ali estava.
― Quem são estas pessoas? ― indagou Jardine.
― Não sei dizer, mas o que levou a pedra, a mantém escondida em casa e aposto
todas as moedas restantes de que o que abateu o gigante sabe quem está com a
pedra e faz de tudo para recuperá-la sorrateiramente, ele tenta insistentemente
entrar no lar do felizardo dono da pedra e levá-la na calada da noite, como um

507
fantasma, invisível e imperceptível na maioria dos casos. Quem quer que tenha
levado a pedra salvou a princesa das mãos de um gigante que fora abatido por
algum cavalheiro que não terminou o trabalho de resgate, apenas se pôs a
destruir o dragão, mas não levou a mocinha para casa. Era como se o cavalheiro
imprudente voltasse em busca do amor da princesa, arrependido por não ter
aproveitado a oportunidade, acho que me expressei confusamente.
Todos estavam em silêncio, aquilo fazia sentido, Forbes estava coberto de razão,
falava com tanta certeza que parecia relatar um fato verídico em que fora
testemunha ocular.
― Por qual motivo estiverem todos os últimos anos naquela caverna? ― o xerife
indagou.
― Decidimos procurar a fonte do ouro, no lugar onde Lud havia encontrado a
pedra e unimos o útil ao agradável. Ludwig era o único com forças físicas e capaz
de manter a busca nas paredes da caverna, ele fazia todo o trabalho enquanto
cuidávamos dele. ― respondeu Jardine.
O xerife lamentou:
― Mas, são tão velhos...
Os Bobster se mantiveram em silêncio.
― Segundo Dix, Terrine é o mais velho com noventa e oito anos, depois Mildred
com noventa e quatro. Posteriormente seu filho, Jardine, com setenta e oito e Jim
que conta com sessenta anos. Não estão tão em forma assim para irem à caça ao
tesouro, convenhamos. ― prosseguiu o xerife.
― Quando for mais avançado em idade saberá que a vida tem sentido quando
percebemos a adrenalina correr nas veias. ― disse Jardine.
Norman disse:
― Em relação aos malvados...
Conway entrou no xerifado, bufando de cansaço com um objeto na mão. Parecia
uma enorme cobra, mas era revestida de algodão e coberta de pano.
― Essa é a cauda do malvado que vocês viram no hotel, eu combinei com Jim
este episódio, desejávamos afugentar vocês. Eu consigo expressar um timbre de
voz semelhante ao meu filho, inclusive. ― disse Jardine.
Estava explicado o episódio em que soara a voz de Jim no hotel e numa fração de
segundos ele aparecera na taverna.
Forbes começou a sugerir:
― Quer dizer que os malvados são...
― Invenção para assustar vocês. ― completou Mildred.
― Mas, se vocês queriam nos manter longe do hotel, era só dizer que não havia
vagas. ― protestou Norman.

508
― Não queríamos afastar vocês do hotel, mas sim de Pitfall. Assim que Ludwig viu
a pedra de ouro, mudamos para a cabana abandonada em busca de mais ouro e
transformamos o Bobster Inn em um hotel fantasma para afastar as pessoas de
Pitfall, minha fantasia de luz verde veio a calhar, um fantasma que perambula os
arredores conseqüentemente afasta as pessoas pouco a pouco e deixa o caminho
mais livre. ― respondeu Mildred.
― Eu me mantive por anos a fio na adaga que fica no porão do hotel auxiliando
meu filho Jim nos sustos. ― disse Jardine semelhante a um velho lobo do mar,
coberto de histórias para contar.
Todos ficaram calados. Era incrível como uma corja de velhos, com vozes
respeitosas mais parecia uma confraria de crianças que adoram pregar peças de
terror.
― O que fizeram é crime. ― disse o xerife.
O silêncio permaneceu. Frank pensava sinceramente em libertar aqueles idosos
desde que prometessem a não se aproximarem da cabana na floresta e bancarem
os fantasmas. O xerife diria apenas para a população que os fantasmas foram
capturados e a paz voltara a reinar, sem dar maiores explicações.
― Vou chamar Pew Casper para julgar vocês. ― disse o xerife que combinaria
com o ex-juiz, apenas um susto para os Bobster, mas os deixaria livres no final de
acordo com o combinado que proporia.
Ele foi chamar o tal do Casper.
Norman perguntou após a saída do xerife:
― Como conseguiam fazer a luminosidade verde?
― Uma luz esverdeada alimentada por bateria. ― disse Mildred, despreocupada,
simplesmente.
Afinal, tudo se torna simples depois de explicado.

***

O xerife bateu à porta e não obteve resposta. Lembrou-se do dia anterior em que
ouvira Pew Casper colidir na porta com algum objeto pesado, talvez martelo de
ferro. O ex-juiz jurara como um réu prestes a ser condenado que estava tratando
de cupins.
Mentira, claro que tudo não passava de mentira e o xerife sempre soube.
Então, mesmo sem esperança, o xerife girou a maçaneta e constatou que a porta
estava trancada, mais do que trancada, deveria haver uma tonelada em móveis e
ripas de madeira pregadas protegendo a porta para que nenhum intruso entrasse.

509
Foi então até a janela e se surpreendeu ao constatar que ela estava entreaberta,
uma fresta revelava o interior da casa. Empurrou os dois lados da janela após
apoiar os dois cotovelos no parapeito.
Chamou novamente pelo morador e esperou quase trinta segundos antes de
invadir o local pela janela.
Não reparou na sala, antes, vasculhou os outros cômodos, primeiro no andar
superior. Havia um baú aberto em um dos quartos, cheio de objetos. Incrível, tinha
até brinquedos, soldados em miniatura.
Aquele homem sério, apesar de solitário não poderia se dar ao desfrute de brincar
de bonecas e soldadinhos. Acredite se quiser, havia artigos femininos como bolsas
de couro também.
Era óbvio demais, aquele homem brincava e se vestia como mulher coisa
nenhuma. Muitos relatos de objetos desaparecidos rolaram pelo vilarejo nos
últimos três anos, mais ou menos.
― Casper.
Voltou à sala e fitou a mesa do ex-juiz, assustou-se. A peruca e a toga,
indumentárias de magistrados estavam em cima da mesa, o martelinho do
veredicto estava caído ao chão.
Mas, o susto verdadeiro foi quando ele visualizou em cima da mesa a estátua da
liberdade e o templo asteca em miniatura que havia desaparecido do xerifado.
Apesar dos devaneios do anfitrião desaparecido, confiavam nele como juiz.
A porta estava coberta por madeiras pregadas e uma imensa cômoda de madeira.
Frank Silver se pôs a olhar pela janela, fitou o poço antigo e abandonado e depois
passeou o olhar no longínquo horizonte, até onde conseguia visualizar a copa das
árvores. Ele deu um pesado murro no parapeito da janela:
― Maldito!

***

Norman e Forbes estavam ao lado do hotel, prontos para darem o fora de uma vez
por todas de Pitfall. As malas já estavam prontas com seus pertences.
O xerife decidiu que iria libertar os Bobster e Ludwig no outro dia. Eles aceitaram
não bancar mais os fantasmas e assustar os habitantes do vilarejo, mas, não
deram certeza se voltariam a explorar a caverna ou não. Entretanto, isto não seria
qualquer problema. A defesa nacional não estaria ali naquele fim de mundo para
ver aquela família de velhos em busca de um tesouro.
Afinal, o parasita não era aquele grupo de velhinhos e sim o governo que sempre
busca extorquir um pouquinho a mais do povo, conforme é possível.

510
― Foi bom ter você como parceiro. ― disse Forbes com satisfação dando um
aperto de mão no companheiro.
― Você é um excelente detetive. ― retrucou Norman.
Deram um abraço amistoso.
― Preciso pegar a estrada, anotou meu endereço? ― indagou Forbes.
― Rua Jeremy Phillman, 45. E o meu?
― Rua Camp Milton, 78.
A cidade de cada um, ora, não era segredo.
Forbes foi até seu carro e Norman o alertou:
― Cuidado, há um copo debaixo do pneu.
Forbes se abaixou e pegou o copo vazio, mostrou para Norman:
― Será outra armadilha?
Lançou o copo rumo à floresta até onde sua força permitiu. Então, gargalharam.
Forbes entrou no carro e acenou um tchau ao amigo antes de partir.
Norman assistiu o carro do amigo sumir de vista e tornou a entrar no hotel.
Estudou os quadros e o saguão sombrio no geral:
― Foi legal. Renderia uma boa história.
Sorriu e saiu, pegou o carro e partiu não sem antes verificar se havia algum copo
assassino pronto para furar seus pneus.

511
Epílogo

O ar parecia mais puro quando Norman atingiu a rodovia.


Ligou o rádio, estava com saudades de escutar uma boa música e relaxar.
Escutou apenas ruídos ensurdecedores, não havia cobertura para o sinal do rádio.
A última vez que escutara um bom som foi a pelo menos uma milha e meia para
frente.
Então, foi possível notar a música fluindo gradativamente até ficar completamente
audível.
Mas, havia também uma pobre velhinha quase caindo no chão. Andava e
ziguezagueava.
Norman não sabia se ela estava pronta para desmaiar ou se havia... um peso, um
imenso peso naquela bolsa com uma bandeira do Canadá desenhada e uma
frase:
CANADÁ, TERRA DA LIBERDADE
Norman parou o carro.
Ufa, parecia haver um porco inteiro dentro daquela bolsa.
― A senhora deseja uma carona?
A velhinha parou e se abaixou como pôde para fitar quem lhe interpelava, estava
com o rosto totalmente rubro devido o esforço que fazia. Ela sorriu, mas era um
sorriso jovial que em nada combinava com uma velhinha naquele estado de dar
dó.
Norman abriu a porta do carro para que ela entrasse e ela não hesitou.
― Não deveria andar sozinha na estrada.
Era estranho mesmo, qual era seu destino?
A próxima cidade deveria ficar a quase duas horas de carro, imagine caminhando
na velocidade de uma tartaruga e levando um pesado objeto dentro da bolsa.
Ela sentou-se e deu um sorriso jovial novamente, usava óculos e seus cabelos
eram grisalhos, totalmente brancos em forma de trança, que batia quase ao meio
das costas. Possuía uma gordurinha avantajada assim como toda boa velhinha
bondosa e zelosa pela família e netos.
― Gosta de música?
Ela apenas deu uma risadinha jovial novamente, nada respondeu.
Aquilo não era mal de todo, Norman precisava de um amigo para conversar, para
contar a fascinante experiência que tivera em Pitfall. Se o amigo em questão fosse
mudo e apenas escutasse seria melhor ainda, pois apenas ouviria e não
interromperia o impressionante relato.
Na verdade, Norman juraria após deixar aquela velhinha na cidade mais próxima
que o gato havia comido a língua dela.
No entanto, ela era simpática, sua risada era agradável. Verdadeiramente, aquela
velha era uma santa, pois não saía da igreja enquanto esteve em Pitfall.
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