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JoáoLutz
Lafetâ
A representaçãodo sujeitolírico na Paulicéiadesvairada

tante de seunascimento.Como estelivro pôde entusiasmartan-


tos jovens escritorese poetasda época?Como conseguiuele le-
A representação dosujeitolírico var Oswald de Andrade a escrevero comovido texto "O meu
na Paulicéia desvairada poeta futurista"?Sabemosque as leiturasfeitaspor Mário para
pequenosgrupos de amigos obtinham grande sucesso,e que o
próprio Manuel Bandeira impressionou-sevivamentecom os
poemas:o autor de Carnauale de Cinza dashoras(que mais tar-
de, falando sobreHá urnagota de sangueem cadapoema, acharia
a fórmula lapidar do "ruim esquisito"para qualificar a poesia
Parao leitor de hoje, a leitura da Paulicéiadesuairadaéuma "passadista"do amigo), saiu do encontro realizado na casade
experiênciaainda capazde provocar muito estranhamento,mas Ronald de Carvalho, em I92I, estimulado a modificar seusru-
por motivos obviamentediversosdaquelesque comoveramos mos criativos a partir do impacto da Paulicéia.
contemporâneos.O que estranhamosé tomar contato, pela pri- Outras conversóes,sepodemosfalar assim,ocorreriam nos
meira vez, com versosque não foram escritos"para leitura de anos subseqüentes.O livro escandalizavaos arautose fascinava
olhos mudos", mas pere seremcontados,urrados,chorados- os espíritosmais livres e criativos. De certo modo, como um
como diz o autor no "Prefácio interessantíssimo".Ao longo do evangelhoestético, ele vazia a boa nova das mudançasimedia-
século,a poesiamudou demais,foi baixandode rom, alterouseu tas e necessárias- e o contato de suaspalavrascatalizavaasvon-
registrono sentido de cortar boa parte da eloqüênciadeclamató- tadestransformadoras,precipitando aquilo que a própria época
ria herdadado Romantismo e do Parnasianismo.Caminhamos preparara.Mantidas asescalas,ocorria com a Paulicéiadzsuaira-
mesmo paÍaa poesiade olhos mudos; o canto, o urro e o choro da algo parecido com o que Lacanl nota a respeitoda força da
foram substituídospor ume espéciede low proflr do verso,que psicanáliseem seusprimeiros anos:sua novidadedesarmavae
abandonou o destaquehiperbólico em favor da discrição ame- desconcertavaas resistências.
na do coloquial.E é assimque, acostumadosà força insinuante Está claro que isto serveparâ explicar, e ainda assim ape-
de Manuel Bandeira,ao poder suaveda fala de Drummond, ao nas em parte, somenteo impacto inicial da obra de Mário de
encantoantidiscursivodeJoão Cabral, é inevitávelque tenhamos Andrade. Certo: é precisovê-laem seudesenvolvimentoao longo
a estranhasensação de deslocamentodiante desseque foi o pri- dos primeiros anosdo Modernismo - vê-la modificar-see avul-
meiro esforço de se criar entre nós o verso moderno, capazde
representara agitaçáoe o tumulto da vida nas grandescidades 1 "Paraque a mensagemdo analistarespondaà interrogaçãoprofunda do
- agitaçãoe tumulto que de resto,hoje em dia, também nos sujeito, é precisocom efeito que o sujeito a ouça como a respostaque lhe é parti-
parecemtão relativos. cular, e o privilégio que tinham os pacientesde Freud de recebera boa palavrada
Mas tal sentimento não nos desobrigada necessidade de boca mesmadaqueleque era o anunciador,satisfazianelesessaengëncia".Escri-
tentar compreendero fenômeno da Paulicéiadesuairadanoins- ras,SãoPaulo, Perspectiva,1978, pp. 155-56.

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tar, em apenasquatro anos,entre I92l e 1925, do ritmo har- do elafica pronta, a família (alvoroçadapor maisestaloucurado
mônico da Paulicéiaao registrocoloquial do Losangocáqut,e daí doido-da-casa)reúne-separaconhecêla.Trata-sedo famosoCris-
à variedadeda pesquisaetnográficado Ck dojabuti-, é preci- to de trancinha,de fato notávelcriaçãode Brecheret.Mas o es-
so entendersuainquietanteexploraçãode tantosângulosda cul- cândaloé imediato:diante da arte modernaa família tradicional
tura internacionale brasileira,para podermosaquilatarsua in- seenfurecee recriminao compradorinfeliz. Mário defende-se e
fluênciadecisivanosjovenspoerasda época,nomescomo Drum- defendeo Cristo, inutilmente - ninguém se convence.Mas é
mond, Murilo Mendes ou Jorgede Lima, que chegarama assi- depoisdestacenameio farsesca que ele,enervadoe exasperado,
milar até mesmoseuscacoetes. Mas senos limitarmos ao exame sentea inspiraçãosúbita,abanca-se e escrevede uma só assenta-
do fenômeno da Paulicéia desuairada,veremos que seu caráter da o que viria depois a constituir a Paulicéiadesuairada,
de novidadedesconcertante rem papeldecisivona recepçãoen, Acho a anedotasignificativapor váriasrazóes,entre elaspor
tusiásticados contemporâneos.O charmeda novidadetinha suas revelar-noso curiosofundo psicológicoda criação:a um perío-
raízesnum impulso profundo de mudanças.Paraagir como agiu, do depressivo, em que o poetaprocurae não encontraa suains-
não podia apenasostentar alevezadas modaspassageiras, mas piração,segue-se a irrupção de uma correntede energiacriado-
necessitava radicar-seem estímulointerior persistente,provocado ra suficientepara removertodos os obstáculos.A energiaé des-
tanto pelo contâto com aspoéticasvanguardistaseuropéias,como pertadapor uma briga em família,em torno da artemoderna-
pela vivênciaintensada nova realidadede São Paulo no início e os fatores familialarte moderna, opondo-se em táo forte ten-
dos anos 1920. Poderíamosdizer,um pouco rebarbativamente, sáo,devem ter revolvido conflitos profundos da personalidade
que e necessidade profunda a animar o sujeitoé a representaçáo (conflitos que Mário representarámais tarde, transfiguradoscom
modernado seupróprio eu moderno,em esrreitacorrelaçãocom humor e freudianaironia, nos Contosnouos).Sejacomo for, o
a cidademoderna. episódiomodifica p situação:o poetaque antestentaraescre'rer
É conhecidaa anedotado "estouro"que estánasorigensda "à maneira de Verhaeren",encontra dentro de si a linguagem
Paulicéia.Em carta a Augusto Meyer,2 Mário de Andrade con- nova para representar-se e para representara suacidade.
ta que desejara,inspiradopor leiturasde Verhaeren,escreverum A recepçáoda obra foí capazde captar esteélan.Foi capaz
livro de poemassobreSão Paulo, sem enrrerantoconseguirfa- de captartambém os problemasque ele implicava.Veja-se,por
zê-lo.Na mesma época,encantadopor um busto de Cristo es- exemplo,o seguintetrecho de Tristão de Athayde, escritoime-
culpido em gessopor Brecheret,decidecompráJo. Semdinheiro, diatamentedepoisda publicaçãodo livro: "Haverá muita coisa
entra em negociaçóes com o irmão, conseguelevantara quântia transitória,nestapoesiaa um tempo demolidorae construtora,
necessária e autorizao artistaa passara obra em bronze.Quan- não poderá agradarfacilmente a grandemaioria dos leitorescujo
gostoainda refugacom razáoa certasousadiasdassínteses poé-
ticas atuais,já superadascomo vimos em outras literaturas-
z Em Mário de Andrade
escreuecartas a Alceu, Meyr e outros. Coligidas e forçarâmuitasvezesa nota com o simplesintuito de espantaros
anotadas por Lygia Fernandes, Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1968, pp. 49-57. burgueses[...] -, terá por vezescondescendências com
excessivas

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o seusubconsciente lírico. Serátudo issoexato,semdúvida,mas ver neles,ao mesmotemPo,qualidades.Posiçãoparadoxal,que


representao livro uma corajosa clarificaçáode tendências,uma eleexprimiu na época(1924) com uma intuiçãofulgurante:"Foi
visãopoderosada vida atual e de todosos contrastesda civiliza- nessedelírio de profunda raiva que Paulicéiadesuairadase escre'
veu, no final de 1920. Paulicéiamanifestaum estadode espíri-
çãomoderna,uma reaçáonecessária contra a asfixianterotina das
formasconsagradas e bem gramaticadas, e, sobretudo,uma ten- to eminentementetransitório: cóleracegaque sevinga, revolta
tativa de originalidadeliteráriabrasileira- ainda presademais que não seesconde,confiançainfantil no sensocomum dos ho-
ao urbanismo talvez,para poder alcançaruma realidademais mens.Estessentimentosduram pouco.A cóleraesfria'A revol-
vasta-, mas cheia de força, de possibilidades,de inteligência ta perde suaï^záode ser.A confiançadesilude-se num segundo.
Comigo duraram pouco mais que um defluxo. Passaram. Deve-
conquistadora.A poesianão é só isto, é certo.Nem há formulas
de arte; o necessário é que cadaartistaseprocure a si mesmo.E ria corrigir o livro e apagar-lheestesaspectos? Náo. Os poemas
o encantoda vida literáriaé justamentea diversidadedastendên- foram muito corrigidos. Muita coisa delesse tirou. Alguma se
ajuntou, masos exageros, tudo quanto ere rePresentativo do es-
ciase o jogo daspersonalidades. O Sr. Mário de Andrade é um
homem de muito espíritopara não compreendertudo isso,as- tado da alma, e não desfalecimentos naturais em toda criação
artística,aí seconservou.Uma obra de arte náo é expressiva só
sim como viu em seulivro a 'blague'seentrelaçavaà seriedade.
pelasbelezasque contém. Ou o Sr. Alberto de Oliveirâ seria
Sejacomo for, valepor toda uma vanguarda".3
O trechoé longo, maspelasuaimportânciamerecea trâns- superiora CastroAlves.Muitas vezesos defeitossãomais inte-
criçãointegral.Tristão de Athaydedesconfiousempredos "exa- ressantes e comoventesque asbelezas.Direi mais: muitas vezes
geros"jacobinosdos modernistas,e não deixariade assinalá-los o defeitoé uma circunstânciade beleza".
aqui; masissonáo o impedede reconhecerque o livro tem "uma Esta idéia final, de que "o defeito é uma circunstânciade
visãopoderosada vida atual e de todos os contrastesda civiliza- beleza",parece-mede grandeimportância para entendermoso
alcancee a repercussãoinicial da Paulicéia.Não pelo sentido
ção moderna". Estesentimentode verem-seretratadosfoi, tal-
vez, o que entusiasmouos contemporâneos. comum, bem banal,de que uma obra possasercomoventepela
Interessante,também, é o fato de que o próprio Mário de granáezaquenela foi tentada,emboranáo tenhasido conseguida.
Andrade, emboraadmitindo os defeitosdo livro, timbrasseem Isto talvezsejao que Mário de Andrade, em Parte'quis dizer,e
tambémnão deixade serverdadeiro:de fato, há obrascujo gran-
de intuito - apesarde não alcançado- nos emociona.AÌém
de Castro Alves, lembrado por Mário, poderíamospensarem
3 Tristão deAthayde,"Vida Literária", O
Jornal"Rio deJaneiro,211111923. Álvaresde Azevedoou Lima Barreto'Mas vejo o problematam-
Transcrito em Marta RossettiBatista,Telê Porto Ancona Lopese Yone Soaresde
bém por outro lado. Quero lembrar uma frasede Adorno, cujo
Lima Brasil:prìmeiro tempoms6lsTnisya
- 1917-1929, Documentação,
SãoPau-
alcanceparece-mepertinenteparaa questãoque discutimosaqui.
lo, IEB-USP, 1972, pp.200-207.A citaçãoseguinte,de Mário de Andrade,está
"Quasesepoderia medir a gtandezadaarte de vanguarda",escre-
em "Crônicas de MalazarteVII", originalmentepublicadana Amérìu Brasìleìra,
Rio deJaneiro, abril de 7924, e republicadanestelivro (pp. 71-72). ve Adorno, "com o critério de saberseos momentoshistóricos,

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como tais,fizeram-senelaessenciais, ou, pelo contrário,afunda_ sujeito-objetoem formasconstrutivase objetivas(na linha do Fu-
ram-sena intemporalidade."a
turismo,do Cubismo e do Abstracionismo),ora invertendoa
ora, justamenteo "momento histórico" fez-seessencial na ênfrueatravésda elaboraçãode formasdestrutivase subjetivas(na
Paulicéia desuairada-Aqueles que depreciam uma obra por ser
linha do Expressionismo,do Dadaísmoe do Surrealismo).t
ela datada,querendodizer com issoque ela não superasuacir-
Essadistinção,feita assimem traçostão largos,serveapenas
cunstancialidade - e portanto não seuniversaliza- deveriam
paranos mostrarcomo a oscilaçáoentre uma arte extremamen-
refletir melhor sobreessafrasede Adorno. Ela indica que o mo-
te impregnadade subjetividadee outra marcada,ao contrário,
mento histórico moderno - a coisificaçáo,aprepotênciado
pela objetividadedas formas,acompanhoude modo profundo
mundo, o esmagamentoda subjetividade,a negaçãodo huma_
o desenvolvimentodasvanguardashistóricas.No casoda Pauli-
no (váriosnomesdo mesmofenômenobásico)tornou-seessen-
céiadesuairada,como em tantos outros, a separaçãodas linhas
ciaÌ na arte modernaporque seincorporou à sualinguagem,vi_
não sedá inteiramentebaseada no "moto lírico", na liberaçãodos
rou procedimentoartístico,foi integradono coraçãod" for-"
impulsosdo que Mário chamavade "subconsciente",a lingua-
de tal modo que fez-se"representarivo".No casod.apaulicéia,
gem tende paraa linha destrutiva,de forte influênciaexpressio-
como bem viu Mário de Andrade, era precisomanrer os ..exa_
nista;contrabalançandoisso,entretanto,é visíveltambém todo
geros",pois eleseram "bem representativos"do "estadoda alma"
um esforço(explicitadona teoria do versoharmônico) de carâ-
- mais que documentocondescendente do subconsciente líri- ter construtivo,a tendência"pronunciadamenteintelectualista"
co, como pensavaTristão, eleserammarcasnegativas(quaseno
do livro, à qual o poetaserefereno "Prefáciointeressantíssimo".
mesmo sentido em que se fala de negativofotográfico)de um
A críticaatual assinalouestatensãona obra de Mário, mos-
momento histórico. Era atravésdestasmarcas_exageros que o trando como ela é constitutivade seu estiÌo.Roberto Schwarz,
mundo da negaçãoficavarepresentado nos poemas,for-"r.r._ por exemplo,no seuensaio"O psicologismona poéticade Má-
gativasbem dignas dagrandezada arte de vanguarda.
rio de Andrade", referiu-sea "polaridadesirredutíveis",que di-
Mostrar como se dá isso na paulicéia desuairadaédifïcil e
lacerariamo pensamentoestéticodo autor.6Luiz Costa Lima,
complexo.Parteda demonstração,entretanto,é o que tentarei
em "Permanênciae mudançana poesiade Mário de Andrade",
fazer aqui, buscando focalizaro problema da representaçãodo
partiu destaobservaçãode Schwarzsobreo "traço psicologizante"
sujeito Ìírico, como sesabecentralna arte modernadesdeBau-
para desenvolvera tesede que a poesiamário-andradinadeixa
delaire, e que asvanguardasdo começo do século tenraram re-
solverem duasdireçóesprincipais:ora equacionandoa relação
t A distinção entre as linhas "impressionista-cubista-abstracionista"e "pri-

mitivista-expressionista-surrealista" está em Alfredo Bosi, História concisada lìte-


ratura brasileira,São Paulo, Cultrix, 1970, p.378. O autor observa que "os mo-
a Theodor ìW.
Adorno, "Lukács y el equívocodel realismo,,,in Realismo: dernistas da fase heróica baralhavam as duas linhas".
mito, doctrinao tendenciabisairical BuenosAires,Tiempo Contemporâne 6 Rob.rto Schwarz, A sereìae o desconfiado,Rio de
o, 1969, Janeiro, Civilização Bra-
p.49.
sl tel ra.IY O).

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escaparaquilo gue, desdeBaudelaire,fora fundamental"ao sen- que há no livro, entre â representação do eu e a representação
timento da poesiamoderna: o impacto da grandecidade".Isso da cidade. Impressionismoe expressionismo,nas palavrasde
se daria na medida em que Mário, levadopelo desejode "conri- Ronald de Carvalho,ou objetivismoe subjetivismo,na formu-
nuar a exploraçãode seu eu", resquíciode um subjetivismoro- laçãode CarlosAlberto de Araújo, o movimento tenso aponta
mântico, é ìncapazde representara cidade,pois roma-aapenes paraasduasgrandeslinhas que dividiram asvanguardas.No meu
para logo mergulhá-la "no anonimato da subjetividadepoética".7 entendimento,esteponto de irresoluçáo- que traz conseqüên-
Adiante voltarei a esteponto, e veremosque talveznão seja ciasgravespare o acabamentoformal dos poemas- é de mui-
isto exatamenteo que ocorre.Por enquanto,observemosque a ta relevânciapara se discutir os modos de representação do su-
tensa oscilaçáoentre subjetividadee obietividadefoi assinalada jeito lírico na poesiâda modernidade.Quando CarlosAlberto
pelos contemporâneos da Paulicéiadesuairada.Já Ronald de de Araújo sugereque Mário é objetivo na sensação, emborasub-
Carvalho, escrevendosobreo livro em 1922, anotava:"Seuim- jetivo na expressão, suâ mâneira de formular o problema lem-
pressionismoé ao mesmo tempo deformadore expressionista".S bra-mea análisefeita por Auerbachdos procedimentosnarrati-
E Carlos Alberto de Araújo, em anigo de Klaxon, desenvolviaa vos de escritorescontemporâneosda Paulicéia:Virginia-Woolf
mesma idéia: "Dissemos que Mário é um objetivo. Mas é um e Proust.Auerbachmostra,em "A meia marrom", que nelesos
objetivo paradoxal,isto é, que toma à cidadeem que vive aqui- recursosdo foco nerrativovisam a objetivar,ao máximo possí-
lo apenasque lhe pode servir.É portanto um objetivo na sense- vel, a reproduçãodos movimentosda consciência,mas o resul-
çáo (recebetudo, embora só guardealgumacoisa),masé um sub- tado final é paradoxalmenteo máximo de subjetivaçãoda nar-
jetivo, se assimpodemos nos explicar,na expressão". E prosse- rativa.O eu quenos fala escaPaem meio a meandrosde pensa-
gue: "Este subjetivismo,aliás,como é natural num livro de se- mentos,senseções, desejos,percepçóes incompletasetc. Ou seja:
paração,de rompimenro enrreo eu que possuíaartificialmente o eu aïtifrcial e uno do século XIX dá lugar a rm eu múltiplo e
e o eu que afinal reconheceuem si mesmo, é um subjetivismo desagregado,de um "subjetivismo exagerado"- 6srns dilix
exagerado".9 CarlosAlberto de Araújo.
Estasobservações sãodo maior interesse,
pois mostramco- Talvezsejaesteo grandeproblemade linguagemda Pauli-
mo os próprios contemporâneossentiama tensãosignificativa céiadesuairada:equilibrar a notação objetiva dos aspectosda ci-
dade modernacom o tumulto de sensaçóes do homem moder-
no, no meio da multidão. Este jogo arriscado,do qual Proust e
7 Luiz Costa Lrma, Lira e antilira (Mtirio, Drumrnond,
Cabral),Rio de Ia- Virginia'Woolf sesaíramtão bem, nem semPre- s para di7sl
neiro, CiviiizaçãoBrasileira,1968. a vedade:muito raremente- 1ç5slvsu-se a favor de Mário nes-
8 Ronald de Carvalho, "Os independentesde SãoPaulo",
artigo de 1922, te primeiro livro. A delicadacristalizaçáodo lirismo, que segundo
republicadoem Brasil:primeirl tem?omodzrnista,op. cit., p. 198-200. Hegelconsistena passegem de toda a objetividadeà subjetivida-
e CarlosAlberto deAraújo, Klaxon,n" 7, nov. 1922,p. I entre a Paulicéiae
3, ediçãofac-simi- de, é perturbadapelo movimento incessante
lar com introduçãode Mário da SilvaBrito, SãoPaulo,Martins ISCET, 1972. o desvairadotrovadorarlequinal.Mas o fato de ter tentadoisso'

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de ter tentado forjar essamodernidadeda representação, foi o vicissitudesdeixammarcasna linguagemdos poemas,cicatrizes


lance feliz de Mário de Andrade: nesseinstante, e reromando que testemunhama complexidadedas forçasliberadorase re-
agoraa frasede Adorno, um momento históricofez-seessencial pressivasem jogo.
na suaobra. Veiamosagoracomo se dá esseProcessoem algunsdos
Ou por outraspalavras:o mesmo movimento que pertur_
Poemas.
ba a cristalizaçãodo lirismo, cria nos poemasuma d.issonância Antes, o título do livro: há nele um cruzamentocurloso'
que é índice dasdissonâncias da vida moderna.o lirismo difïcil talvezreminiscência(voluntária ou não) de Émile Verhaeren'
e incompleto represenraasdificuldadese incompletudesdo su_ uma das obras do poeta belga intitula-se Lesuillestentaculaires
jeito lírico na modernidadeincipiente.Neste caso,estariabem précédées du Campagneshallucinëes,lOo que sugere a possiyef
justificadaa intuição de Mário, ao dizer que muitasvezesos de- j,.rnçao, no titulo Paulicéia desuairada,do substantivo "uillei'
feitos sãocircunstânciade beleza,e ao recusar-se realizadapor
a limpar o li- i"ni., qualificando as"camltagnes")'Atransposiçáo
vro dos exagerosapontados.A tensãotranspereceporque estáno Mário àe Andrade cria efeitosnovos. Em primeiro lugar," uilles"
fundo-de-origemda forma, nasrelaçõesentrerecidas pelo sujei- é substituídopor "Paulicéia",o plural abrangentee universali-
to lírico com a realidadeque o circundae que por issomesmoo zantecedepassoà limitação precisado objeto' Issoparecesero
artistanão consegueresolver(com prejuízo,é claro,do equilí- primeiro indício de uma tendênciaà individualizaçáoconcre-
brio formal dos poemas,coisaque uma estéticaclassicizanie vê tit dor^do materialtemático.Mas a operaçãoseguinte,a troca
naturalmentecomo defeito e mau gosto). dos adjetivos,é ainda mais sugestiva.A aplicaçáodo adjetivo
Seessahipótesefor verdadeira,estudara representaçáo do "tentaculares"àscidadesmodernasdecorrede um modo de vê-
sujeito lírico na Paulicéia desuairadae algo como estudar suas las.como seresvivose monstruosos,cujasruase Praçesseesten-
"vicissitudes".Talvez não sejaapenas,como pensaRoberto
dem de maneira animal, enleandoe apreendendoos homens:
,,
Schwarz,que o psicologismolevea poéticade Mário de Andrade Leursd.oigtsuolontaires,qui secompliquent/De mille doigtsprécis
a um dilaceramenroentre "polaridadesirredutíveis".E talveznão et métalliques".11
sejatambém, como achaLuiz Costa Lima, que o poema-calei_ Seniimosdiantedas"cidadestentaculares"uma misturade
doscópio representativoda cidademoderna sejaprejudicado por fascinaçáoe repulsa;fascinaçãopelo movimento poderoso que
uma consumação subjetivado assunro.Há tudo issosemdúvida, elascontêm, repulsapela parte monstruosae envolventedesse
mas a mobilidade do sopro poético na paulicéiaé muito maior mesmomovimento:
do que essas formulaçóesparciaispossibilitamenrrever.De fato,
a subjetividadeestáali submetidaa grandepressão,que estoura
tudo - o eu, a cidade,a linguagem-, rudo submetendoà frag- 10 Émile Verhaeren, Les uilles tentacalaires Precedéesd.esCampagnes hallu-
mentação.Como no casodaspulsõesanalisadaspor Freud, nun_ cinées,Paris,Mercure de France, 1917' Consultei, no IEB/USP'
o exemplar que
ca sepode apreenderdiretamenteo sujeitolírico, que deslizade pertenceu à biblioteca de Mário de Andrade'
metamorfoseem metamorfose, ora numa,or^.,o.,,â forma.Suas 11 E. Verhaeren , o?. cit., p. 107 .

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desvairada
A dim ens ãoda noit e A representaçãodo suieitolírico na Paulícéia

nas im-
"La plaine est morne et morte - et la ville seusolhos enxergam,mas procura em suassensaçóes'
que a ciãadedeixa dentro dele' as marcas que revelem
Telle une bête enorme et taciturne pressóes
"Ins-
Qui bourdonne derrière un mur, i-"g.rr.úrrica e dúplicede ambos'Já no primeiro poema'
" menos como
Le ronflement s'entend, rythmique et dur, pir"ção", percebe-seque Sáo Paulo vai servir-lhe
musaconcreta
Des chaudièreset des meules nocturnes [...]"12 ãbj.,o de ãescriçáoe mais como uma espéciede
No verso"Sio
. Áod.rrr", cuja proximidadedespertao canto'
com clateza
Os "mil dedosprecisose metálicos"desaparecem no título Paulo! comoçáoãe minha vida".'' é possívelnotar
realidadeurba-
de Mário, substituídospor "desvairada",assimseatenuandouma estafusáo:a comoçãodo poetaseidentifìca com a
(funçáo do
das conotaçóes.E embora sejamantida aidéia de movimento na, a exclamaçáo(funçáo do eu) é o mesmovocativo
anormal, desatinado,sentimosdesaparecer a repulsae aumen- ,.rj q,r. a SãoPauloé dirigido, como seapelasse à vinda da musa'
tar a aproximação.A dupla substituiçãotem como efeito prin- A identificaçáoentre o espaçoexterno e a interioridadeé
verãohavia
cipal um sendmentode proximidade.Nomeando e individua- perceptíveldesdea epígrafe("Ondeaté na força do
lizando seuprimeiro motiyo temático,a cidade-Paulicéia,o poeta i.-p.r,"d., de ventose frios de crudelíssimo inverno")' Quesu-
um espaço
sefaz mais ligado a ela;atribuindolhe a seguirseupróprio esta- g.r", po, meio da linguagemantitéticae hiperbólica'
elemen-
do de ânimo, cria uma identidadeentreos dois.Poisquem é que L.t"fori.o, mítico e primordial, lugar onde sedefrontam
digamos'
seencontredesvairado,o eu ou a cidade? tos contrários.No corpo do poema estacontradiçáo'
o traie er-
A vida moderna desvairao poeta,e estetransfereseu des- meteorológicae elementar,é retomada' passandopara
da cidade:
vairismo paraavida moderna.A cidadenão surgeapenascomo lequinal dãpo"," e daí, de novo' Para acaÍ^cterlzação
o "correlato objetivo" (Eliot) dos sentimentosdo eu, pois tais Cinzae ouro"'
Trajedelosangos"'
"Arlequinal!...
sentimentosexistemem funçãoda cidade,de modo que a auto-
Luz e bruma," Forno e inverno morno"'"
descriçãotem de ser também a descriçãoda cidade.Quero di-
dourada
zer que no câsode Mário de Andrade não setrata simplesmente Assim sefundem os dois, o arlequim (cuja roupa
lugar con-
de buscarfora da subjetividadea imagem objetivaque a repre- e cinzenrarefleteluz e bruma, calor e frio) e a cidade,
A dua-
sente(como nos mauspoetas),mas que estesujeito da poesiaé, uaditório onde sedesenvolveum confronto de forças.13
dualidadedos
ele mesmo,formado pela realidadeque cânta,e estátão ligado lidade dascoresque lutam no traje de losangosé a
encontram â mesma
a ela quanto o título geraldos poemasprocura sugerir. elementosque lutam na Paulicéia,e ambos
Insisto nessespormenoresapenaspara destacaro proce- representação simbólica:arlequinal!
dimento que é básico na Paulicéia desuairada:diante da paisa-
gem citadina o poetanão registrasimplesmentea faceexternaque I3 ..Na cidadearlequinal,cuja dualidadecontém a dualidadedo eu, espe-
Miguel'W'isnik'
lhado e revestidopor ela como Por um traje de losangos"'José
de 22' SáoPaulo' Duas Cida-
O corodoscontrários:a rnúsìca€rnturno da Semana
12lbidem,pp. 105-106 des,1977,P. 122.

JbU 361
A dim ens ãoda noit e A representaçãodo suleitolírico na Paulicéiadesvairada

KrystynaPomorska,utilizando os conceirosde similarida- "O rRovRooR


de e contigüidadetais como definidospor Jakobson,e aplican-
Sentimentos em mim do asPeramente
do-osà relaçãomensagem/emirente, conclui que a poesiameta-
dos homens das Primeiras eras"'
fórica poderia "ser compreendidacomo uma espéciede poesia
As primaveras de sarcasmo
na qual a mensagemestáintimamenteligadaao emitente",e este
intermitentemente no meu coração arlequinaÌ"'
setorna "uma espéciede filtro em que todasascoisassefundem
Intermitentemente. ..
atravésde suaprópria personalidade". Criadapelo Romanrismo,
'levadaeo extremopelo Simbolismo, Outras vezes é um doente, um frio
a poesiado "ego lírico" foi
na minha alma doente como um longo som redondo"'
ainda adotadapelosacmeíras,que emborainsurgindo-secontra
Cantabona! Cantabona!
a "predominânciado espiritualsobreo concreto",mantiveram
Dlorom...
intacto o "princípio metaforicode transformaçã.o".14
Estasduascaracterísticasdo acmeísmorusso,tais como des- Sou um tuPi tangendo um alaúde!"
critaspor Pomorska,servempara grandeparte da dicçãopoéti-
cada Paulicéiadesuairada.Trata-sede uma poesiado "eu lírico", O poemaestáde novo estruturadosobreum jogo de opo-
"homens
muito marcadapela função emoriva, mas trata-setambém de sições,d.rt" rra,entreo "primitivo" e o "civilizado"'Os
"prima-
uma poesiamuito concreta,no sentidode que a paisagem,em- dasprimeiraseres"aproximam-se,atésonoramente,das
bora filtrada pelo emitente,deformadamesmopor ele,tem não ',rar",da sarcasmo",e ambosopõem-seao "frio" e à "alma doen-
âpenasuma enorme presençanos poemas,mas também uma te". A onomatopéiados sinosduplica a oposiçáo,contrastando
paradoxalautonomia.A imagem (arlequinalé o poeta e é a ci- o repiquefestivode "Cantabona!Cantabona!"à plangênciame-
dade) que une e concilia os dois pólos, identificando-os,náo lanólica de "Dlorom...". Bem observada,a construçáodo poe-
"Ins-
apagaentretantoasdiferençasentreeles."Os elementosda ima- ma obedeceao mesmoprincípio anritéricoestruturadorde
gem", como diria OctavioPaz,"náoperdemseucaráterconcreto piração":asprimaverasdaqui equivalemà força do verão,à luz
e singular."l5 Assim como não se compreendea cidadesem as . ."1o, de lá, assimcomo o frio e a doençaequivalemà bru-
"o
deformaçõesdo eu, também não secompreendeo eu semasde- ma e aosfrios de crudelíssimoinverno. De novo, SáoPaulo e o
formaçóesneleprovocadaspela cidade.Vejamos, como exemplo trovador se identificam, e de tal maneiraque os úÌtimos versos
"Ga-
destainterrelação,o segundopoema do livro: dos dois poemassãoperfeitamentesimétricos:SãoPaulo é
licismo b.rr", nos desertosda América", isto é, civilizaçãoe
"
barbárie,enquantoo trovador é "tupi tangendoum alaúde",is-
to é, primitivo e civilizado'
14Krystyna
Pomorska,
Formalismo
efuturismo,são
Paulo,Perspectiva,
1972, Èr,"r.to, aqui em meio ao mais completo subjetivismo,e de
p p . 1 0 8- 109. tal modo que a cidadenem é referidanos versos'Suapresença'
t5 Octavio Paz, Signos
em rotação, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 38. no entanto,é determinante.Aliás,entretodasascomposiçóes do

362 363
A dim ens ãoda noit e A representaçãodo suieitolírico na Paulicéiadesvairada

livro. "O trovador" (etpour cause...) pareceser o casoextremo quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
de expulsãodos elementosdescritivose de pura expansãodo parecem-me uns macacos' uns macacos'"
sujeito.Apesardisso,note-seque um cerrotom analíticoperma-
necepresenteno poeme, que o eu toma-secomo objeto e fala A identidade(e a fusãosujeito-objeto)é criadano Primei-
diretamentesobresi mesmo.Daí o procedimento,nadasimbo- ro verso,quando a monotonia da multidáo é deslocadae atribuí-
lista, da "referênciadireta ao objeto ao invés de alusõesindire- da àsretinasdo poeta- uma metonímia. Depois vem a trans-
tasao mesmo", como diz Pomorskasobreo acmeísmo;daí, tam- posiçáometafórica:os corteiossão"serpentinasde entesfremen-
bém, o fato de uma poesiatão carregadade subjetividadeper- tes".A seguiro terceiroversorePeteo Primeiro: a multidáo é vista
manecer,no entanto, muito pouco introspectiva. de novo como monotonies (metaforizadasem "Todos os sem-
Quanto a esseúltimo ponto, seriabom insistir um pouco pres") dasretinas(também metaforizadasem "minhas visóes")'
mais. O terceiro poema da Paulicéiadesuairada,mantendo ain- Todas estastransformaçóes Permitem-nosâfirmar que o princí-
da o procedimento básicoda transformaçãometafórica,deixa pio construtivoda linguagem,nestaprimeira estrofe,é a expan-
entrevercom nitidez asesferasdistintasde sujeito e objeto, for- sãodo discurso,por meio da qual o poeta' insistindosemprena
çando a parte de oposiçãoentre ambos,mas mantendo ainda a mesmasignificaçãocentrel,amplia o número de signose busca
identidade. precisarcom maior força expressivaaquilo que desejadizer' O
"Os conrl;os primeiro versojá contém, implícitos, os dois versosseguintes'que
vão apenasexpandi-lo,defini-lo discursivamente: "monotonias
Monotonias das minhas retinas... dasminhas retinas"= "serpentinasde entesfrementes"= "todos
Serpentinasde entes frementes a se desenrolar... os sempresdasminhasvisões".
Todos os sempresdas minhas visões!'Bon giorno, caro.' Estatendênciaà definiçãodiscursivaé uma dascaracterís-
Horríveis as cidades!
ticasformaisda poesiade Mário' A redundânciado significado,
compensadapela multiplicaçáo dos significantes'revelauma in-
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asaslNada de poesia!Nada de alegria!
clinaçãoà explicitaçãoprogressivado sentido;daí um afastamen-
to do modo alusivode dizer e uma aproximaçãoao modo dire-
Oh! os tumultuários das ausências!
Paulicéia-
to, que aliássurgeplenamentenos versosquatro e cinco: "Hor-
a grande boca de mil dentes;
jorros
ríveisascidades!/Vaidadese maisvaidades.'.".
e os dentre a língua trissulca
A nomeaçãodireta elimina a possibilidadede hermetismo
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos,baixos,magros...
subietivistae concretizaa realidadeque se quer descrever'En-
Serpentinasde entes frementes a se desenrolar...
tretanto, emboraa metáforaestejatraduzida,a linguagemcon-
tinua a ser metaforica,a ótica do emitente continue a afetara
Esteshomens de São Paulo, mensageme a tingir o realrepresentado. A Paulicéiasetransfor-
todos iguais e desiguais, ma em "grandebocade mil dentes"(eiscomo setransfiguraram

36s
A dim ens ãoda noit e A representaçãodo suieitolírico na Paulicéiadesvairada

os " mille doigtspreciset métalliques",de Verhaeren), e as multi-


sol da madrugada"...O arrancoinicial, porém, guardao encan-
dóessão"pus de distinção".Na última estrofea metáforadesa- to da descobertae da invenção;suasdissonânciassoam como
pârecede novo, para dar lugar à explicaçãoquaseprosaica:..Es_ anúnciosde um novo tempo, signosde luta criativa.
teshomensde SáoPaulo,/ todos iguaise desiguais,/quando vi_ Paraconcluir, gostariade comentarbrevementeaindadois
vem dentro dos meus olhos tão ricos,/ parecem-meuns maca_ poemas,duasdasquaffo paisagens que ele incluiu no livro. Ve-
cos,uns macacos". remoscomo a representação do sujeitooscila,no primeiro caso,
Parece,portanto, que há dois procedimenroschocando_se: entre a expansãolírica e a interferênciaprosaica,mas em com-
a metáfora,presaà posturasubjetiva,à poesiado ,,egolírico,', e pensação, no segundocaso,conseguegrandeunidadeexpressiva.
a definiçãodiscursiva,presaà posturaobjetivae intelectualista.
"Parsactv N" I
F.ssaúltima rompe muitas vezesa cristalizaçãolírica e provoca
dissonâncias.Na Paulicéiadesuairada,aliás,as dissonârrciaspa- Minha Londres das neblinas finasl
recemserde dois tipos: ou desejadas, procuradas(como asantí_ Pleno verão. Os dez mil milhóes de rosaspaulistanas.
tesesluz rbruma, forno rinverno morno), e que seintegramao Há neve de perfumes no ar.
tom do poema, ou involuntárias,que escapamao domínio do Faz frio, muito frio...
sujeito lírico (como estaestrofefinal do poema ,,Os correjos"), E a ironia das pernas das costureirinhas
rompendo a unidadede tom, por causada durezaprosaicaque parecidascom bailarinas...
resultada explicitaçãode sentido,e produzindo um efeitop..rÀro O vento é como uma navalha
de coisanão resolvida. nas máos dum espanhol.Arlequinal!...
Penosopara nós, bem entendido.É possívelque estejaaí Há duas horas queimou Sol.
um dos "defeitos"que Mário de Andrade deixou fi.", po. .or_ Daqui a duas horas queima Sol.
siderálos "circunstânciade beleza",restemunhasde ,,r" ,.rrr"-
tiva de representarem linguagemmodernaa aventurâdo homem Passaum Sáo Bobo, cantando, sob os plátanos,

na grandecidade.A ruptura de tom é uma dasvicissitudesdo um tralalá... A guarda cívica! Prisão!

sujeitolírico: desequilíbrioformal, defeitoestético(senos colo- Necessidadea prisão

camosda perspectivade uma estéticada unidadee do equilíbrio), pâra que hqa civilizaçáo?

aponta-nosentretanto,como dissonânciaque é, paraasgrandes Meu coraçãosente-semuito triste...

tensõesda vida (e da arte) daquelaépoca.É sinal essencialdo Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas

momenro histórico. dialoga um lamento com o vento...

A grandepoesiado Modernismo brasileirosó sefará mais Meu coraçãosente-semuito alegre!


tarde.O próprio Mário terásuafasemadura,esplêndida,repre_ Este friozinho arrebitado
sentadapor algunspoemasbelíssimosdo final dos anos W)O e dá uma vontade de sorrir!
dos anos 1930: "Poemasda amiga","poemasda negra",.,Giras_

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A dim ens ãoda noit e
' A representaçãodo sujeitolírico na Paulicéiadesvaìrada

E sigo. E vou sentindo,


à inquieta alacridadeda ìnvernia,
Este ponto do poema é importante pela sua intenção de
como um gosto dè lágrimas na
combateestético.O SaoBobo que passaem liberdadesobos plá-
boca...,,
tanos,cantarolandoo tralalá irracional, é talvezuma boa e irôni-
A primeira esffofedesencadeia ca alegoriada "loucura" modernista.A guarda-cívicae a prisão
uma sériede imagensque
paracompor.aprerendidâpaisagem. parnasianas sãoparodiadaspelo poeta nos versos"Necessidade
:ervem Na aparêná",o r|'r_ a prisáo/ para que haja civtlízação?",uma redondilha e um de-
jeito estáausenree só vemos
,u.gi, ,r-"quadro onde sol e nebli_
na se confundem. Na verdade,.1. cassílaborimadosem -ão, o "admirabilíssimoão". Admitida tal
,. .*ord. por trás a. ."ã
noração,de cadaimagem,vestindo leitura,haveriana passagem uma correspondência entre lingua-
a roupa arlequinalda cida_
de. É um proc€ssosensível,concrero, gem e intençãoparódicae o tom irônico predominarianela. O
quaseepidérmicode des-
crever:as neblinasopacas,o, p.rfu_., problema é que o lirismo do poema é rompido pela súbita ir-
que setransformamem
neve'o frio, o vento como uma navalha rupçãoda paródia,a coerênciainterna da composiçãoé abalada
aorr"arr.- tudo é sen- - antesintegradas- produzem agoradesa-
tido pela pele,como sea cidadereyesrisse e as dissonâncias
o homem. gradávelefeito de irregularidadeformal.
Também-alinguagemé, em.conseqüência,
* sensívele opa_ E ainda mais: a prisãoparnasiana,mesmo combatida,vai
ca.Possoparafrasear a estrofee reduzi_la u_ .ntrr.iado
como, acabarpor impor algo dassuaslimitaçõesao poeta.A estrofefi-
por exemplo, "no verão da paulicéia "
a neblina . o .,r.rr,o,.
ternam com o sol". Mas a paráfrase nal ("E sigo.E vou sentindo,/à inquieta alacridadeda invernia/
assimrealizadanos da "l_
naso núcleo lógico e perdeo que é como um gostode lágrimasna boca..."),constituium verdadeiro
fundamental:a flama, ;*j; "p._
tividadeque transfigur" fecho-de-ourobem ao gostoparnasiano,sejapela forma decas-
a linguagem,;;;;,;; silábicados dois últimos versos,sejapela facilidadesentimental
na linguagem aréque a linguagem
-.r"foricamente
mesmar. f"!, p"...p,*.i,lìã
Nestemomento do poemao lirismo da imagem, sejapelo fato de buscarresumir lapidarmenteasten-
enconrra_se plenamen_
te realizado,semprejuízo para aobjetividade. sóestodasque atravessam o poema.
Mas, ,r" p"rr"g.- É importante observarque as ruprurasde tom náo se de-
paraâsestrofesseguintes,a tensão
vai diminuindo, a fi;gró;
afrouxa e perde a qual,rladecompacra vem, nos casosexaminados,a um subjetivismoexcessivo do poe-
dos primeiros versos.A
partir da segundaestrofeo movimenro ta. Pelo contrário, é a definiçãodiscursiva,a necessidade de ex-
lírico vai sendorefreado
aospoucos,e assensações,livremente plicitaçáo do sentido que interfere na maior parte das vezese
registradascedemlugar a
um pensamentomaisnítido-emais destróia qualidadelírica. No poemaque estemoscomentando,
lógico.A linguagem,. ,ãrr"
mais explícita,e o reor meta6rico a ruptura parecedar-seem decorrênciade uma espéciede con-
dimïnui na mesmaproporção.
flito de linguagens:a grafiado lirismo, responsávelna primeira
r6 T. \tr. estrofepelo acúmulo de sensaçóes simultâneas,permite entretan-
Adorno, .,Discursosobrelírica y sociedad,,,
in Notasde literatu_ to que afloremtambém velhoshábitosde versejar,anterioresao
ra,.Barcelona, Ariel, s.d., pp. 60-61[há ediçãobrasileira:
ver nora à p. 101 deste estouroda Paulicéia."ljso de cachimbs" - 2n61suMário no
volumeÌ.
"Prefáciointeressantíssimo". Mas a intromissãodo Parnasianis-

368
369
desvairada
A dim ens ãoda noit e A representaçãodo suieitolírico na Paulicéia

aPenasesbo-
mo nestepoema bem pode serconsiderada,ainda, como um ou- cos- a tensáodiminui, sutiliza-seem contrastes
triste, o plátano substitui os impermeáveis'
üo sinal do momento histórico. ç.dor, ^ paÍoesorri
dos homens oPõem-se
De outras vezes,entretanto, o dado bem lançado favorece a lo.ra.rr" tem Íazío, as sombraspesadas
final suavizatambém as
o poeta.É o casodo seguintepoema: aoscorpos levesdas moças' A imagem
é chuvisco' Mas este
oporiçá.rt o raio de sol é arisco e a' 3aÍoa
"PRrsecevNo3 náo leva a qualquer penumbrismo sim-
logo i. amortecimentos
pela subjetivi-
Chove? fo"lista tardio. pelo contrário, apesarde marcada
concretude' ePre-
Sorri uma garoacor de cinza, ã"i., linguagem do poema mantém grande
" (a casaKosmos' o
muito triste, como um tristementelongo... ende a Paisagematravesde referênciasdiretas
eo máximo do re-
A casaKosmosnão tem impermeáveisem liquidação... úrgo ao fuãu.h., a Normal) e aproxima-se
cáquiserâamais
Mas nestelargo do Ârouche gi;- .otoq,rial, que na faseseguintedo Lwlngo
possoabrir o meu guarda-chuvaparadoxal, í-porr"rr,. da poesiade Mário' Mas aqui o tableau

"onqr'rirr" total
estelírico plátano de rendasmar.. p"ïf,r.*;tt esticompletã e perfe-ito;assimiladode maneira
lírica, o teÍne do movimento cosmopolita en-
i"l" r,rbl.tiuidade o livre
Ali em frente...- Mário, põe a máscara! representaçáona levezade versosque exprimem
"onrr" poeta'
movimento dos sentimentose mediaçõesdo
- Tens razão,minha Loucura,tens razão.
O rei de Tule jogou a taçaao mar...

Os homenspassemencharcados..,
Os reflexosdos vultos curtos
manchamo petitpaué...
As rolasda Normal
esvoaçamentre os dedosda geroa...
(E sepusesseum versode Crisfal
no De Profundis?...)
De repente
um raio de Sol arisco
riscao chuviscoao meio."

O procedimento básico é o mesmo que vimos desde o poe- 17A alusãoa Baudelaireme foi sugeridapor Tableatu berlinois,tesede li-
"A
também pela cópia de seu texto
ma "Inspira$o" e que consiste em desenvolver o jogo de oposi- vre-docênciade \íilli BoÌÌe, a quem agradeço
çóes entre luz e bruma, chuva e sol. Aqui, porém, os harpejos cidadesemnenhumcatáter:leituradePaulicéiadesuairadadeMáriodeAndra-
livro'
harmônicos quese desaparecem, e os versos se tornam melódi- de", análisebenjaminianados Poemasdesse

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