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RICARDO ANTUNES1
Já se tornou lugar comum dizer que a classe trabalhadora vem sofrendo profundas
mutações, tanto nos países centrais, quanto no Brasil. Sabemos que quase um terço da força
humana disponível para o trabalho, em escala global, ou se encontra exercendo trabalhos
parciais, precários, temporários, ou já vivenciava a barbárie do desemprego. Mais de um
bilhão de homens e mulheres padecem as vicissitudes do trabalho precarizado, instável,
temporário, terceirizado, quase virtual, dos quais centenas de milhões têm seu cotidiano
moldado pelo desemprego estrutural. Se contabilizados ainda os dados da Índia e China, a
conta se avoluma ainda mais.
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Professor Titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP e autor, entre outros livros, de Riqueza e
Miséria do Trabalho no Brasil (coordenador, Boitempo, 2006), O caracol e sua Concha: ensaio sobre a nova
morfologia do trabalho (Boitempo, 2005); Os Sentidos do Trabalho, (Boitempo), entre outros livros.
Coordena também as Coleções Mundo do Trabalho (Boitempo) e Trabalho e Emancipação (Ed. Expressão
Popular. Colaborador de várias publicações no Brasil e no exterior. É também pesquisador do CNPq. Este
texto constará do livro Terceirização: A Perda da Razão Social do Trabalho, Druck et alli (org.), no prelo
pela editora Boitempo.
Contrariamente, entretanto, às teses que advogam o fim do trabalho, estamos
desafiados a compreender o que venho denominando como a nova polissemia do trabalho, a
sua nova morfologia, isto é, sua forma de ser (para pensarmos em termos ontológicos),
cujo elemento mais visível é o seu desenho multifacetado, resultado das fortes mutações
que abalaram o mundo produtivo do capital nas últimas décadas. Nova morfologia que
compreende desde o operariado industrial e rural clássicos, em processo de encolhimento,
até os assalariados de serviços, os novos contingentes de homens e mulheres terceirizados,
subcontratados, temporários que se ampliam.
Nova morfologia que pode presenciar, simultaneamente, a retração do operariado
industrial de base tayloriano-fordista e, por outro lado, a ampliação, segundo a lógica da
flexibilidade-toyotizada, das trabalhadoras de telemarketing e call center, dos motoboys que
morrem nas ruas e avenidas, dos digitalizadores que laboram (e se lesionam) nos bancos,
dos assalariados do fast food, dos trabalhadores dos hipermercados etc.
Se nos países do Norte ainda podemos encontrar alguns poucos resquícios do
welfare state, do que um dia denominamos estado de bem estar social - ainda que o
padecimento do trabalho e o desemprego também sejam seus traços ascendentes – nos
países do Terceiro Mundo, os trabalhadores e trabalhadoras oscilam, cada vez mais, entre a
busca quase inglória do emprego ou o aceite de qualquer labor.
Na China, por exemplo, país que cresce a um ritmo estonteante, dadas as tantas
peculiaridades de seu processo de industrialização hipertardia - que combina força de
trabalho sobrante e hiper-explorada com maquinário industrial-informacional em lépido
e explosivo desenvolvimento - também lá o contingente mais proletário vem se
precarizando intensamente, sofrendo forte redução, em decorrência das mutações em
curso naquele país. Segundo Jeremy Rifkin (2004), entre 1995 e 2002 a China perdeu
mais de 15 milhões de trabalhadores industriais. Não é por outro motivo que o PC
Chinês e seu governo estão assustados também com o salto dos protestos sociais, que
decuplicaram nos últimos anos, chegando recentemente à casa das 80 mil manifestações
em 2005. Processo assemelhado ocorre também na Índia e em tantas outras partes do
mundo, como em nossa América Latina.
Na Argentina, por exemplo, estamos presenciando novas formas de confrontação
social, como a explosão do movimento dos trabalhadores–desempregados, os
piqueteros, “cortan las rutas” para barrar a circulação de mercadorias (ajudando a
embaralhar a produção) e para estampar ao país o flagelo do desemprego. Ou ainda, a
expansão da luta dos trabalhadores em torno das empresas “recuperadas”, ocupadas
durante o período mais crítico da recessão, nos inícios de 2001, e que já atingem a soma
de duas centenas de empresas sob controle-direção-gestão dos trabalhadores. Foram,
ambas, respostas decisivas ao desemprego argentino. E sinalizaram para novas formas
de lutas sociais do trabalho. (Bialakowsky at al., 2003)
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Desse modo, fica evidenciado que, para se compreender a nova forma de ser do
trabalho, é preciso partir de uma concepção ampliada de trabalho. Ela compreende a
totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de
trabalho, não se restringindo aos trabalhadores manuais diretos, incorporando também a
totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende sua força de
trabalho como mercadoria em troca de salário.
Ela incorpora, como vimos anteriormente, tanto o núcleo central do proletariado
industrial, os trabalhadores produtivos que participam diretamente do processo de criação
de mais valia e da valorização do capital (que hoje transcende em muito as atividades
industriais, dada a ampliação dos setores produtivos nos serviços) e abrange também os
trabalhadores improdutivos, cujo trabalhos não criam diretamente mais valia, uma vez
que são utilizados como serviço, seja ara uso público, como os serviços públicos, seja para
uso capitalista.
Podemos também acrescentar que os trabalhadores improdutivos, criadores de anti-
valor no processo de trabalho, vivenciam situações muito aproximadas com aquelas
experimentadas pelo conjunto dos trabalhadores produtivos. A classe trabalhadora hoje
incorpora tanto os trabalhadores materiais, como aqueles e aquelas que exercem trabalho
imaterial, predominantemente intelectual.
Abrange, também, o proletariado rural, que vende a sua força de trabalho para o
capital, de que são exemplos os assalariados das regiões agro-industriais e engloba o
proletariado precarizado, o proletariado moderno, fabril e de serviços, part time, que se
caracteriza pelo vínculo de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em expansão na
totalidade do mundo produtivo. Inclui, ainda, em nosso entendimento, a totalidade dos
trabalhadores desempregados.
Naturalmente, em nosso desenho analítico não fazem parte da classe trabalhadora
moderna os gestores do capital, pelo papel central que exercem no controle, gestão e
sistema de mando do capital. Estão excluídos também os pequenos empresários, a pequena
burguesia urbana e rural que é proprietária e detentora, ainda que em pequena escala, dos
meios de sua produção. E estão excluídos também aqueles que vivem de juros e da
especulação.
Compreender, portanto, a classe-que-vive-do-trabalho, a classe trabalhadora hoje,
de modo ampliado, implica em entender este conjunto de seres sociais que vivem da venda
da sua força de trabalho, que são assalariados e desprovidos dos meios de produção. Como
todo trabalho produtivo é assalariado, mas nem todo trabalhador assalariado é produtivo,
uma noção contemporânea de classe trabalhadora deve, em nosso entendimento, incorporar
a totalidade dos trabalhadores assalariados.
A classe trabalhadora, portanto, é mais ampla do que o proletariado industrial
produtivo do século passado, embora este ainda se constitua em seu núcleo fundamental.
Ela tem uma conformação mais fragmentada, mais heterogênea e mais complexificada.
Essa nova morfologia do trabalho, que aqui tão somente indicamos alguns pontos
centrais, não poderia deixar de afetar os organismos de representação dos trabalhadores.
Daí a enorme crise dos sindicatos, para ficar somente neste exemplo. Se muitos analistas
diagnosticaram um caráter terminal neste organismo de representação de classe, esse não é
o nosso entendimento. Aqui queremos tão somente registrar que a nova morfologia do
trabalho significa também um novo desenho das formas de representação das forças
sociais do trabalho. Se a indústria taylorista e fordista é parte mais do passado do que do
presente (ao menos enquanto tendência), como imaginar que um sindicalismo verticalizado
possa representar esse novo e compósito mundo do trabalho?
Uma conclusão se impõe, à guisa de provocação: hoje devemos reconhecer (e
mesmo saudar) a desierarquização dos organismos de classe. A velha máxima de que
primeiro vinham os partidos, depois os sindicatos e, por fim, os demais movimentos
sociais, não encontra mais respaldo no mundo real e em suas lutas sociais. O mais
importante, hoje, é aquele movimento social, sindical ou partidário que consegue chegar as
raízes das nossas mazelas e engrenagens sociais, tocando suas questões vitais. E, para fazê-
lo, é imprescindível conhecer a nova (e ampla) morfologia do trabalho, bem como as
complexas engrenagens do capital.
-BIBLIOGRAFIA
HUWS, Ursula (2003) The Making of a Cybertariat (virtual work in a real world), Monthly
Review Press/The Merlin Press, Nova Iorque/Londres.
NOGUEIRA, Claudia. (2006) O Trabalho Duplicado, Ed. Expressão Popular, São Paulo.
_________________. (2004) A Feminização no Mundo do Trabalho, Ed. Autores
Associados, Campinas.