Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Inúmeros estudos têm alertado para o fato de que, desde a década de 1980, os
mercados financeiros em todo mundo têm, paulatinamente, deixado de financiar as
atividades produtivas, que geram renda e emprego, para se tornar um “fim em si
mesmo”, uma espécie de circuito fechado na busca constante de ganhos meramente
especulativos. A relação desse processo com o aumento das desigualdades e com a
perpetuação de crises econômicas, como a vivida atualmente no Brasil, tem sido
sonoramente demonstrada.
Cabe lembrar que, em 2008, às vésperas da grande crise cujos efeitos ainda afetam
o mundo quase oito anos depois, o montante de riqueza em ativos financeiros (não
incluído o enorme volume de derivativos) chegava a quatro vezes o valor de toda a
renda acumulada pela produção real da economia mundial. Isso é parte do que
muitos estudiosos têm chamado de “financeirização” das economias.
Intrigante, em especial, foi descobrir, que em 2014 cerca 40% das operações de
compra e venda de ações e demais papéis no mercado brasileiro eram realizadas
por tais robôs. Mais surpreendente é pensarmos que, nos Estados Unidos, tal
percentual chega a quase 70% das operações.
É certo que estas e tantas outras mudanças que aqui menciono não são produto
apenas do desenvolvimento tecnológico, como variável única. Elas remontam à
ampla liberalização e desregulamentação dos mercados e fluxos financeiros em todo
mundo, reconfiguração na própria estrutura das economias e da relação destas com
os mercados financeiros, entre outros –algo que o livro se esforça em demonstrar ao
traçar o histórico das mudanças na relação entre mercados, política e sociedade,
dos anos 1980 até o presente.
Para melhor explicar essa relação, conceituo no livro o que chamo de “ciclo de
operação da finança digitalizada”. Um círculo em que, em resumo, o encurtamento
dos fluxos espaço-tempo, o aumento de gaps tecnológicos entre reguladores e
regulados, e a concentração dos ganhos na esfera financeira somam-se e reforçam-
se mutuamente, potencializados por uma espécie de “espiral de complexidade”
tecnológica –em que a corrida por novos avanças leva a outros, e assim por diante.
Tudo somado, a “teórica” função conferida aos mercados financeiros como
alocadores de necessidades econômicas, ao possibilitarem o encontro de
compradores e vendedores, tomadores e emprestadores de recursos para viabilizar
negócios e a produção econômica como um todo –aquela que gera consumo, renda
e emprego– perde cada vez mais relevância em detrimento de uma lógica
crescentemente especulativa a drenar e concentrar os excedentes da produção
social na esfera financeira. Excedentes estes que passam a ser retroexplorados por
meio de arbitragem na escala de milissegundos, viabilizada por avanços
tecnológicos de ponta.
23/05/2016.
A Finança Digitalizada mapeia, monitora, toma decisões e negocia ativos, compra e vende
papéis, em altíssima velocidade, sem intervenção humana, na escala dos milissegundos
(em alguns casos, aproximadamente 30 ou 40 vezes mais rápido do que uma piscada de
olho humano)
Produto, entre outros processos, da penetração das TICs nos mercados financeiros
em todo mundo (tecnologias cognitivas, que aceleram a compressão dos fluxos
espaço-tempo), a Finança Digitalizada pode ser definida como o complexo técnico-
operacional e institucional de gestão global da circulação, acumulação e valorização
do capital financeiro por meio de recursos tecnológicos automatizados de ponta, que
aceleram movimentos em todos os níveis, de modo a ampliar as margens existentes
para a exploração de ganhos financeiros com a especulação e arbitragem de papéis,
moedas e outros ativos.
Uma investigação detida a respeito dos ditames da nova Finança Digitalizada nos
mostrou que o acelerado desenvolvimento tecnológico dos últimos anos tem feito
aprofundar e fortalecer a mencionada financeirização da economia mundial.
É certo que tal dinâmica não passa a existir apenas por conta do desenvolvimento
das TICs, mas, ao mesmo tempo, não poderia, nesse quadro, ser administrado
como tal sem o apoio destas. Sem o auxílio de tais mecanismos, inúmeros ativos e
instrumentos financeiros simplesmente não existiriam ou não poderiam ser
negociados como tais nos mercados contemporâneos.
A partir dos dados levantados em pesquisa que serviu de base a este trabalho,
podemos observar que a “eletronificação” e automatização crescente do mercado
de capitais brasileiro nos últimos anos, por exemplo, é nitidamente acompanhada
por aceleração de processos, aumento substancial no número e velocidade de
negócios realizados, concentração em diferentes níveis (investidores, empresas
listadas em bolsa, corretores), aumento da proeminência de investidores e
corretores estrangeiros, e diminuição da participação de pequenos investidores no
mercado.
29/11/2016
O Paradoxo do Bitcoin
Edemilson Paraná
O Bitcoin é uma moeda digital alternativa, criada em 2009, com base em um texto
apócrifo, assinado por Satoshi Nakamoto, ente cuja verdadeira identidade nunca foi
revelada.
Mais um produto dos humores políticos “libertários” que ganham terreno no mundo
pós-crise de 2008, tem como ideia-força retirar do par bancos-governos o poder de
emissão e gestão do dinheiro. Utopia tecnocrática de uma moeda sem política, a
ideologia econômica que o ampara faz parecer fichinha qualquer palavrório sobre a
necessidade de “autonomia” do Banco Central.
Mas sua engenhosidade não é, por isso, menos fascinante. Trata-se de algo inédito:
uma moeda gerida de maneira descentralizada e anônima, sustentada por
criptografia robusta. Sua administração algorítmica está baseada em um livro
público, aberto e, portanto, auditável que registra todas as transações.
Essa moeda digital demorou algum tempo para deixar de ser apenas mais um
intrigante e promissor experimento hacker e cair de vez nas graças dos investidores.
Mas assim que isso ocorreu, sua evolução vem sendo surpreendente.
Mas se essa nova mania tem feito muita gente esfregar as mãos de entusiasmo, já
começa também a causar preocupação em grandes gurus das finanças, instituições
financeiras, governos e reguladores. Algo que ocorre nem tanto devido à magnitude
de seu volume financeiro, mas sobretudo por conta de sua trajetória acentuada de
crescimento e pelo risco que configura para os mercados em geral.
Por razões teóricas e práticas, que não cabem ser aqui aprofundadas, muito indica
que, concernente aos aspectos monetários, o futuro do Bitcoin parece pouco
promissor. É mais provável que siga sua trajetória antes como um reluzente ativo
financeiro do que como uma moeda no sentido pleno do termo. Mas mesmo neste
caso, trata-se de algo bastante incerto e arriscado.
Vinculado a este problema, cresce em alta velocidade (por razões econômicas, mas
também técnicas) o número de milionários Bitcoin e a consequente concentração
econômica em seu ambiente, em proporção muito maior do que a verificada em
qualquer outra moeda existente.
Para piorar, sua gestão começa a dar mostras de relevantes problemas de
segurança da informação, e emergem dúvidas sobre o real poder da elite de
técnicos sob a qual é sustentado seu funcionamento pretensamente horizontal,
neutro e impessoal.
No entanto, uma das características que mais vem chamando a atenção dos
mercados é sua altíssima volatilidade –o quanto seu preço varia em um dado
período de tempo.
Essa assustadora montanha russa de variações dificulta sua adoção como moeda,
uma vez que poucas pessoas se sentiriam confiantes para fazerem dívidas,
comprarem produtos básicos ou receberem seus salários em um ativo que pode cair
pela metade ou duplicar de valor no espaço restrito de um mês ou pouco mais. No
entanto, essa mesma volatilidade configura, para especuladores, um grande atrativo,
já que ganhos consideráveis podem ser obtidos em um curto espaço de tempo,
explorando tais oscilações.
Eis, então, um dos segredos por trás do boom das cryptomoedas. Do ponto de vista
estrutural, a rápida valorização do Bitcoin é apenas mais uma ponta do iceberg da
financeirização generalizada a que as economias vêm sendo submetidas nas
últimas décadas.
Eis, pois, seu paradoxo. Antes do que uma nova fonte de perturbações, a corrida do
Bitcoin é mais um produto da instabilidade sistêmica vinculada à submissão
crescente da reprodução da vida social ao objetivos, temporalidades e modos de
funcionamento da Finança.
02.out.2017
Sobre o autor:
Edemilson Paraná (pseudônimo de Edemilson Cruz Santana Junior). Doutor em Sociologia pela
Universidade de Brasília (UnB), com período sanduíche na SOAS (University of London). Atuou como
pesquisador-bolsista no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no projeto Sistema Monetário
e Financeiro Internacional (2015-16). É autor do livro A finança Digitalizada: capitalismo financeiro e
revolução informacional (Insular, 2016).
https://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2016/05/23/40-das-operacoes-na-
bolsa-brasileira-sao-feitas-por-robos/
http://brasildebate.com.br/crise-risco-e-aceleracao-social-na-era-da-financa-
digitalizada/
https://www.poder360.com.br/opiniao/economia/corrida-por-bitcoin-e-produto-de-
instabilidade-e-submissao-as-financas/