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Psicologia em Pesquisa | UFJF | 1(02) | 11 - 22 | julho - dezembro de 2007

Psicologia social e saúde coletiva: Reconstruindo identidades

Social psychology and collective health: Reconstruction of identities

Silvia Gomes Aguiar*


Telmo Mota Ronzani**

Resumo

O presente artigo consiste em uma revisão bibliográfica que apresenta um breve histórico da psicologia no
campo da saúde, mais especificamente da psicologia na saúde pública. Problematiza as práticas da psicologia
tradicional neste contexto e apresenta algumas alternativas e propostas de atuação da psicologia na saúde
coletiva, centrada principalmente nas ações de políticas de saúde, prevenção de doenças e promoção de saúde,
tendo como embasamento teórico principal a psicologia social. Conclui-se que a psicologia social não é uma
teoria totalizadora das possibilidades de intervenção e entendimento do tema em questão, porém se apresenta
como um campo coerente e importante para as ações em saúde coletiva.

Palavras-chaves: Psicologia Social; Saúde Coletiva; Práticas em Psicologia.

Abstract

The present paper consists of a bibliographic revision that presents a brief history of the health field of
Psychology, more specifically public health. Questions the traditional practises of psychology in this context
and presents alternative proposals of collective health psychological practises. Specially centred on public
health policy, health problem prevention and health promotion, it is based on Social Psychology theoretical
framework. It is concluded that Social Psychology does not summarise the total of all possibilities of
intervention and understanding about the theme in question, but it presents itself as a coherent field and it is
important for actions in collective heath.

Key-Words: Social Psychology, Collective Heath, Psychological Practises

_____________________________
*
Psicóloga, Residente de Psicologia no Hospital Universitário da UFJF.
**
Psicólogo, Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora,
Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Coordenador do Pólo de
Pesquisa em Psicologia Social e Saúde Coletiva (POPSS).
Contato: telmo.ronzani@ufjf.edu.br

Introdução Cruzamentos estes que foram produzindo


diversos desdobramentos, gerando
A constituição da Psicologia como multiplicidade em termos de teorias e de
campo de conhecimento e profissão faz- práticas, na tentativa de dar conta das
se no entrelaçamento de diversos saberes diferentes demandas cotidianas
e acontecimentos de ordem social, (Saldanha, 2004).
política e econômica, como bem O psicólogo, como profissional,
demonstra a história da psicologia. no Brasil, tem uma história muito recente.

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Apesar de o ensino da Psicologia ser feito níveis primário, secundário e terciário”


desde os anos 1930, foi somente em 1962 (Spink, 2003, p. 30).
que a psicologia passou a existir como Yamamoto (2003, p. 41), a
profissão (Dimenstein, 1998). respeito da situação profissional da
Assim, há três décadas os psicologia no Brasil, comenta que o
psicólogos garantiram um espaço levantamento feito pelo Conselho Federal
institucionalizado de trabalho. Sabe-se de Psicologia evidencia duas tendências:
que com a regulamentação, o psicólogo “de uma parte a manutenção da
passou a atuar em basicamente quatro hegemonia clínica com relação às demais;
áreas: clínica, escolar, industrial e de outra, uma ampliação das
magistério, áreas que atualmente estão oportunidades profissionais,
bastante ampliadas e que não proporcionada pela abertura de novos
correspondem mais ao universo de espaços de inserção social”. Sendo que
atuação do psicólogo brasileiro. Segundo um destes espaços é o campo da saúde.
Dimenstein (1998), a própria pressão do Como diz o autor (op. cit, p. 48): “Um
mercado de trabalho passou a impulsionar dos campos onde a psicologia tem
os profissionais para outros campos de mostrado maior inserção é o da saúde.
atuação. A assistência pública, dentre (...) Os psicólogos ingressam no campo
estas novas áreas, foi para onde convergiu da saúde através de duas formas: nas
uma considerável parcela dos Unidades Básicas de Saúde, articulados
profissionais. “As quase três décadas aos demais profissionais do campo, e nos
desde que a profissão foi regulamentada Núcleos e Centros de Atenção
foram acompanhadas de um alargamento Psicossocial (NAPS/CAPS)”.
dos campos de atuação do psicólogo, Silva afirma que:
forjado pelo próprio crescimento do A psicologia clínica
contingente de profissionais assim como durante décadas foi
pelo maior conhecimento de sua atividade pensada e planejada como
e, conseqüentemente, pelo aumento da disciplina autônoma. É
demanda por seus serviços” (Spink, 2003, relativamente recente sua
p. 122). inserção em instituições de
Um marco importante sobre a saúde pública, nas
inserção do psicólogo nos serviços de diferentes instâncias de
saúde ocorreu em São Paulo a partir de serviços. Com as
1982, com a adoção de uma política modificações no sistema
explícita, por parte da Secretaria da de saúde, a psicologia, bem
Saúde, da desospitalização e da extensão como as demais profissões
dos serviços de saúde mental à rede consideradas da área de
básica. A política adotada pela saúde, que praticamente só
Coordenadoria de Saúde Mental levou à eram absorvidas em
criação de equipes de saúde mental instituições ambulatoriais e
integradas por equipes mínimas, das quais hospitalares, passam a ser
o psicólogo fazia parte, que passariam a incorporadas às Unidades
atuar nos centros de saúde. “Constituía- Básicas. Isto se torna
se, assim, uma rede de serviços possível a partir da VIII
teoricamente integrados com atuação nos Conferência Nacional de
Saúde (1986) (...) para que

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se chegasse a um Sistema abandonar os enfoques centrados em um


Único de Saúde que indivíduo abstrato e a-histórico tão
possibilitasse uma atenção freqüentes na psicologia clínica
integral à saúde (1992, p. tradicional” (Spink, 2002, p. 30).
25). Mais recentemente, surgiu no
cenário da psicologia a psicologia da
Spink (2003) acrescenta ainda, em saúde, que tem se orientado mais pelos
acordo com os autores anteriormente problemas vinculados ao
citados, que, até recentemente, o campo desenvolvimento da saúde humana do que
da atuação da psicologia se resumia a pela doença (Rey, 1997).
duas principais dimensões: em primeiro O desenvolvimento da psicologia
lugar, as atividades exercidas em da saúde estimulou o trabalho do
consultórios particulares. Uma atividade psicólogo no âmbito da prevenção e da
exercida de forma autônoma, como promoção da saúde, assim como sua
profissional liberal e, de forma geral, não participação em equipes
inserida no contexto dos serviços de interdisciplinares, tanto em instituições de
saúde. A segunda vertente compreendia saúde quanto em sua atuação no trabalho
as atividades exercidas em hospital e comunitário, tornando-se um espaço
ambulatórios de saúde mental. importante de prevenção e promoção de
No campo da saúde, a autora saúde. O desenvolvimento de uma
considera que importantes transformações psicologia comunitária orientada pelo
ocorreram entre os anos 1970 e 1990 e trabalho nas áreas de saúde,
possibilitaram a inclusão do psicólogo independentemente das orientações
nas ações de saúde. Primeiro houve uma teóricas às quais se filia, na verdade
ressignificação da causalidade na representou um questionamento aos
explicação da doença, passando a ser estanques rígidos definidos nas pesquisas
vista como um processo e, especialmente, e nas práticas psicológicas (Rey, 1997).
como um fenômeno complexo e Segundo Bock (2001, p. 30), o
transdisciplinar, que precisa ser abordado termo psicologia da Saúde aparece a
de forma integradora englobando as partir do Seminário Internacional da
dimensões biopsicossocial. A nova Saúde realizado em Cuba e relatado no
linguagem abriu espaço para ação e Jornal do Psicólogo, nº 11/84. Esta
explicação de cunho psicológico. As expressão ‘psicologia da Saúde’ também
mudanças foram lentas, mas o espaço foi é usada por Spink (2003) como um novo
sendo conquistado, por exemplo, nos campo do saber. Para Spink (2003), falar
hospitais (Spink, 2003, p. 153). da psicologia da saúde como novo campo
A psicologia, embora intimamente do saber parece ser, à primeira vista, uma
relacionada ao conceito de saúde temeridade. Afinal, os aspectos
(definida pela Organização Mundial de psicológicos da saúde/doença vêm sendo
Saúde como bem-estar físico, mental e discutidos desde longa data, e os
social), como disciplina, chega psicólogos já há muito vêm marcando
tardiamente à área da saúde. Chega tarde presença na área de saúde mental.
neste cenário e “chega miúda, tateando, Entretanto, mudanças recentes na forma
buscando ainda definir seu campo de de inserção dos psicólogos na saúde e a
atuação, sua contribuição teórica efetiva e abertura de novos campos de atuação vêm
as formas de incorporação do biológico e introduzindo transformações qualitativas
do social ao fator psicológico, procurando na prática que requerem, por sua vez,

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novas perspectivas teóricas. É isto, pois, sido um importante campo de


que nos permite afirmar que estamos nos conhecimento e prática para construir
defrontando com a emergência de um formas diferenciadas de intervenção na
novo saber. saúde.
Os fatores conjunturais (a maior A psicologia social, tendo como
aceitação da psicologia e o crescimento arena de atuação a complexa relação entre
do número de profissionais), associados à a esfera individual e a social, tem
postura crítica de certos segmentos da necessariamente uma vocação
profissão, levaram à definição de novas interdisciplinar, sendo suas fronteiras
áreas de atuação, buscando estender os permeáveis às contribuições de uma
serviços psicológicos às camadas mais variedade de outras disciplinas afins
pobres da população e, neste afã, ampliar (Spink, 2003). “Cabe à psicologia social
o referencial teórico de modo a focalizar recuperar o indivíduo na intersecção de
os problemas sociais mais amplos sua história com a sociedade. Abandonar,
subjacentes à problemática individual. portanto, a dicotomia indivíduo-
“Nesse processo, muitos psicólogos sociedade” (Spink, 2003, p. 40).
deslocaram suas atividades dos A psicologia (social) comunitária
consultórios particulares, inserindo-se utiliza-se do enquadre da psicologia
diretamente na comunidade ou nas social, privilegiando o trabalho com os
instituições voltadas ao atendimento das grupos, buscando colaborar para a
camadas desprivilegiadas da população” formação da consciência crítica e “para a
(Spink, 2003, p. 122). Num processo de construção de uma identidade social e
revisão dessas práticas e a busca por individual orientadas por preceitos
melhores formas de responder às eticamente humanos” (Freitas, 1996, p.
necessidades dos diferentes locais de 73).
atuação, foi gerando novos campos de Segundo Ronzani & Rodrigues
saber e ampliou sua inserção na saúde. (2006), “a psicologia comunitária
constitui um importante campo teórico-
A Psicologia Social como alternativa para prático para o trabalho em APS, uma vez
a nova prática que pode possibilitar uma maior
aproximação das questões de relevância
Na fomentação de uma nova social das comunidades” (p. 8). Costa e
política pública de saúde, abrem-se Lopez (1989) afirmam que é através da
espaços de trabalho para a psicologia, que atuação da Psicologia Comunitária que
passa a problematizar a aplicação das programas de saúde podem ser aplicados
práticas tradicionais em novo cenário de ao âmbito local de cada comunidade. A
atuação. Outras ferramentas de Psicologia da Saúde e a Psicologia
intervenção – mais apropriadas para a Comunitária estabeleceriam, assim, uma
efetiva inserção na área – devem ser relação na qual esta última se converteria
construídas para o trabalho na Saúde em um instrumento de implementação
Pública, a fim de que possam contribuir dos programas que envolvem conceitos
com as transformações propostas pelo da primeira. Seria através da Psicologia
Sistema Único de Saúde (SUS). A Comunitária, propõem Costa e López
Psicologia Social da Saúde, que (1989), que os programas de saúde se
compreende, em seus pressupostos, uma tornariam ágeis e integrados ao tecido
intervenção mais local e coletiva, tem social em que os processos de saúde,

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adoecimento e morte se dão, e é


justamente nesse nível que a intervenção A autora explica o que seria a
preventiva deveria ocorrer. Entretanto, o Psicologia Social da Saúde:
que se deve tentar obter da comunidade é A primeira característica é o
que a mesma analise e modifique seus compromisso com os direitos
comportamentos tentando torná-los sociais pensado numa ótica
favoráveis à saúde. Assim, a Psicologia coletiva. Foge, portanto, das
Comunitária seria um ponto de ligação perspectivas mais tradicionais da
entre o sistema de saúde e a comunidade, psicologia voltadas à compreensão
numa configuração dinâmica e móvel. e processos individuais ou intra-
A Psicologia Social da Saúde individuais. Dialoga com teorias e
configura-se como um campo de autores que pensam as formas de
conhecimento e prática que trata das vida e de organização na
questões psicológicas com enfoque mais sociedade brasileira
social, coletivo e comunitário voltado contemporânea. Tende a pesquisar
para a saúde. Segundo Marín (1995, apud e atuar em serviços de atenção
Camargo-Borges e Cardoso, 2005), primária, em contextos
caracteriza-se pela interlocução da comunitários, em problemas de
Psicologia Social – com seus saúde em que pesam a prevenção
conhecimentos e técnicas – com o âmbito à doença e a promoção da saúde
da saúde e destaca a interação como ou onde há necessidade de
ponto fundamental do processo saúde- acompanhamento continuado
doença. A interação refere-se tanto ao (como as doenças crônicas e a
homem e seu ambiente quanto aos saúde mental). Tende ainda a atuar
diversos atores sociais presentes no na esfera pública (2003, p. 27).
cuidado com saúde. O autor ainda salienta
que todas as atividades da Psicologia Ainda a mesma autora coloca que
Social da Saúde centram-se mais na busca a Psicologia Social da Saúde tem como
de uma saúde integral e não somente na características principais a atuação
saúde mental. centrada em uma perspectiva coletiva e o
Para Spink (2003), a psicologia comprometimento com os direitos sociais
social da saúde é como um campo e com a cidadania. Rompe, portanto, com
ampliado de atuação do psicólogo nas enfoques mais tradicionais centrados no
instituições de saúde. Essa ampliação indivíduo. A atuação se dá principalmente
ocorreria, principalmente, em relação ao nos serviços de atenção primária à saúde,
referencial de trabalho utilizado e focaliza a prevenção da doença e a
exercido, pois, segundo a autora, a promoção da saúde, e com extrema
intervenção deve ser contextualizada, ou importância o incentivo dos atores sociais
seja, é importante compreender toda a envolvidos para a geração de propostas de
história e o contexto da instituição na qual transformação do ambiente em que
será implementada uma ação, assim como vivem. Trata-se, portanto, de um processo
as pessoas que compõem essa instituição. de transformação crítica e democrática
Faz-se necessário compreender que cada que potencializa e fortalece a qualidade
organização tem sua realidade local, sua de vida (Spink, 2003).
cultura de relações e as histórias A Psicologia Social da Saúde
específicas das pessoas que recorrem a objetiva trabalhar dentro de um modelo
esses serviços. mais integrado, reconhece a saúde como

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um fenômeno multidimensional em que de seu contexto, ou seja, a


interagem aspectos biológicos, partir da compreensão de
psicológicos e sociais e caminha para uma pessoa, pertencente à
uma compreensão mais holística do determinada família,
processo saúde-doença-cuidado. Dessa inserida numa comunidade
maneira sua inserção na atenção primária específica, e assim por
pode ser útil para contribuir na diante (Camargo-Borges e
transformação das práticas em saúde Cardoso, 2005, p. 30).
rumo à integralidade (Camargo-Borges e
Cardoso, 2005). Traz conceitos potentes e Assim, a Psicologia Social da
propostas de ação que muito se Saúde viria ao encontro da Atenção
aproximam aos pressupostos de trabalho Primária à Saúde (APS), especificamente
da atenção primária. Vemos que os dois do Programa de Saúde da Família (PSF),
discursos se organizam em torno de eixos no objetivo de construir um modelo de
que apostam na construção do fazer atenção à saúde pertinente à realidade
conjunto, coletivo e valorizam a local e gerador de interlocuções entre
localidade e as interações dela equipe de saúde e comunidade. Nesse
decorrentes. sentido, a parceria pode ser útil para
pensar discursos, na saúde, que propiciem
Os pressupostos da a construção de espaços viabilizadores de
Psicologia Social da Saúde acolhimento e a construção do vínculo,
ecoam, nesse modo de contribuindo para a reflexão e a
organização do trabalho, à problematização dessas práticas que se
medida que têm como propõem coletivas.
ponto fundamental também
a contextualidade e a A prática do psicólogo na atenção
interação com ações primária
construídas coletivamente
a partir das Martinez Calvo (1994) coloca que
imprevisibilidades do a promoção de saúde se origina nas
cotidiano. Assim, tanto a ciências que se ocupam do
ESF (estratégia de saúde comportamento social.
da família) como esse Se nas propostas da atenção
campo da psicologia primária objetiva-se trabalhar com
privilegiam o processo de promoção, o interesse para a psicologia é
produção de conhecimento evidente. As ações promocionais,
e a construção das segundo Calatayud, necessitam apoiar-se
intervenções a partir das em conceitos puramente psicológicos, tais
práticas sociais, dos como: hábitos, atitudes, motivação,
processos interativos e da interações pessoais e familiares e
cultura. A proposta, habilidades. Faz algumas recomendações
portanto, é a de que para o trabalho dos psicólogos: 1)
qualquer entendimento do identificar os problemas que requerem
processo saúde-doença- atenção prioritária; 2) para esta
cuidado possa ser identificação, as informações sobre a
analisado e referido a partir comunidade são a fonte para a tomada de

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decisões; 3) trabalhar em equipe com grupos para adolescentes, gestantes,


profissionais de outras disciplinas, grupos com familiares das gestantes,
compartilhando conhecimentos; 4) grupos com mães a respeito das
estimular a participação dos membros da necessidades do primeiro ano de vida da
comunidade, levando em conta sua criança, entre outros.
opinião na definição das prioridades e as
estratégias, tornando-os multiplicadores 2) Saúde das crianças
(Calatayud, 1999). Alguns problemas freqüentes que
Segundo Calatayud (1999), há um afetam as crianças e que podem ser
conjunto de temas que geralmente abordados pela psicologia:
aparecem como prioritários para a • ambiente doméstico prejudicial;
psicologia na atenção primária, “e este • maus-tratos à criança;
caráter prioritário se deve ao fato de que • dificuldades de aprendizagem.
são temas que mais afetam o estado de
saúde das pessoas, os quais se recebem a Tais dificuldades podem ser
correta atenção, podem conduzir a abordadas, segundo Calatayud (1999),
melhorias importantes na saúde da através de grupos com as crianças, para
população” (Calatayud, 1999, p. 169). que elas coloquem suas dificuldades,
Como veremos adiante, cada um intervenção junto aos familiares,
destes temas relaciona-se com aspectos identificação de ambientes familiares
biológicos, sociais e psicológicos. Estes prejudiciais, entre outros.
últimos nos servirão de pauta para guiar o
trabalho do psicólogo na atenção 3) Adolescentes
primária. Os adolescentes constituem um
grupo que abre espaço para várias
1) Saúde Reprodutiva possibilidades de trabalho. Podem ser
Alguns problemas que afetam a abordados os seguintes temas, através de
saúde reprodutiva e podem ser abordados grupos, palestras, ou, se necessário,
pela psicologia: individualmente: início da vida sexual,
• práticas sexuais que conduzem a gravidez indesejada, drogas, álcool,
gravidez indesejada, ou contágio de dificuldades familiares etc.
doenças sexualmente transmissíveis;
• gravidez na adolescência; 4) Idosos
• aborto induzido; Também os idosos são citados
• comportamento de risco para o pelo autor como um grupo potencial de
bom desenvolvimento da gravidez trabalho. Vários aspectos podem ser
(álcool, drogas, etc.); abordados. Entre eles: distância dos
• preparação insuficiente da familiares, solidão, morte do cônjuge ou
gestante e da família para os cuidados amigos, aumento das limitações físicas,
físicos e emocionais do recém-nascido; tempo ocioso, diminuição da auto-estima,
• insuficiente conhecimento de depressão etc.
comportamentos paternos que propiciem Pelo que vimos até o momento,
a satisfação das necessidades psicológicas podemos considerar que existem diversos
do bebê no primeiro ano de vida. pontos em comum entre os princípios
Segundo o autor (op. cit., p. 172), norteadores do PSF e aqueles que devem
tais questões podem ser trabalhadas com também subsidiar o trabalho do

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psicólogo, como, por exemplo, o de experiências, com vistas ao


atendimento da demanda de acordo com desenvolvimento das potencialidades das
as necessidades dos indivíduos (e não de pessoas para atender às próprias
cima para baixo); a busca do resgate da necessidades, proporcionando, além da
autonomia, da auto-estima e da cidadania; melhora do quadro clínico, a da sua
a ênfase na criação de vínculo entre o qualidade de vida; atuar junto aos
profissional e o cliente; a valorização dos profissionais da equipe do PSF, para
saberes individuais e grupais; o respeito integrar esforços, estimular a reflexão e a
às diferenças; a relação de compromisso e troca de informações sobre a população
co-responsabilidade dos profissionais atendida e facilitar a avaliação e a
com os usuários; a visão do humano evolução clínica.
como ser integral e não exclusivamente O psicólogo pode abarcar ainda,
biológico; a valorização de ações de além do atendimento individual,
prevenção, promoção e manutenção da avaliação da demanda, estudos de caso e
saúde, e não somente cura e reabilitação; o incentivo para facilitação da
o enfoque centrado nas potencialidades comunicação entre a comunidade e a
para o crescimento e não apenas na equipe de saúde, já que muitas vezes os
erradicação do sintoma ou da doença; a pacientes revelam dados nem sempre
valorização do contexto social, histórico, acessíveis à equipe. O teatro informativo
cultural, ambiente familiar e psicológico pode ser utilizado para fornecer
dos indivíduos, além da dimensão informações sobre o que é a psicologia e
orgânica e fisiológica (Soares, 2003). o trabalho do psicólogo, tais como seus
A finalidade do PSF, como já objetivos, a questão do sigilo, a
visto, é o acompanhamento da clientela, composição dos grupos, esclarecimento
dentro do seu contexto sociocultural, de sobre as concepções errôneas a respeito
forma a aproximar a família, a da psicoterapia e do psicólogo. A visita
comunidade e os profissionais, com vistas domiciliar é outra atividade que auxilia na
principalmente à promoção da saúde para divulgação do trabalho, ajuda a conhecer
melhoria da qualidade de vida da um pouco da realidade das pessoas
população. A inserção do psicólogo na atendidas e, quando necessário, a prestar
equipe de saúde da família também deve assistência psicológica a pacientes
visar à promoção da saúde da população, impossibilitados de sair de sua residência
no que concerne à atenção para os (Cardoso, 2002, pp. 05-06).
aspectos psicológicos, tanto em termos de
prevenção quanto de promoção (Cardoso Dentro desta mesma idéia,
& Santos, 2000). Ronzani acrescenta que:
Cardoso (2002, p. 4) aponta como
objetivos gerais da atuação do psicólogo uma das funções do
no PSF, independente da clientela psicólogo pode ser o
atendida, os de atuar junto à comunidade, acolhimento dos novos
fornecendo e difundindo informações pacientes, fazendo
sobre saúde mental; identificar pessoas encaminhamentos, quando
portadoras de doenças orgânicas crônicas necessário, intervenção
com comprometimentos emocionais que psicossocial,
demandem assistência psicológica; desenvolvendo oficinas
possibilitar espaço terapêutico de trocas terapêuticas, atendendo a

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pacientes graves, fazendo atuação, bem como as


visitas domiciliares e dificuldades de adaptar-se
proporcionando suporte às dinâmicas condições de
familiar, especialmente perfil profissional
para aqueles portadores de (Dimenstein, 1998, p. 71).
transtornos mentais
(Ronzani, 2001, p. 40). A inserção em instituições
públicas ou na comunidade parece ser
Duran-Gonzáles (1995 apud bastante problemática tanto no que se
Ronzani, 2002) apontam que o refere às dificuldades externas, relativas à
profissional de APS deve estar capacitado falta de recursos, quanto à ausência de
para proporcionar mudanças de atitudes modelos de atuação, apontando aí
da população; entrar em contato com carências de uma formação acadêmica
indivíduos que possam influenciar mais voltada ao modelo clínico
diretamente nas práticas de saúde da hegemônico (Spink, 2003, p. 122).
população. O psicólogo então se torna um O conhecimento e as técnicas dos
ator importante na medida em que pode quais lança mão a Psicologia da Saúde
promover a participação da comunidade são freqüentemente oriundos da clínica e
no autocuidado e ainda ser o ponto de naturalmente passam por uma série de
intersecção entre a população e a equipe adaptações que se configuram em uma
de saúde. verdadeira reconstrução da atividade e da
identidade do psicólogo e da Psicologia.
Da formação à ação. As implicações da atuação ou reinserção
do psicólogo no campo da saúde são de
Pensar a atuação do psicólogo nas natureza complexa e envolvem desde um
Unidades Básicas de Saúde não é uma treinamento específico para atuar neste
tarefa fácil. O tempo de inserção destes campo — treinamento que não tem sido
profissionais é relativamente pequeno; há observado na grande maioria dos cursos
um contingente reduzido de profissionais de graduação — até o equacionamento
atuando na área — apesar de vir mais otimizado possível de uma
aumentando gradativamente — existem resistência que é exercida por outros
poucas pesquisas mais sistemáticas, tanto profissionais, tradicionalmente atuantes
nacionais quanto locais, sobre a atuação na área, em frente da “a aparente
do psicólogo neste campo específico de inutilidade da atuação dos psicólogos no
trabalho (Dimenstein, 1998). campo da promoção da saúde e da alta
demanda para a atuação no modelo
Nas palavras de Dimenstein, clínico” (Spink, 1992).
é possível apontar que tais Essa resistência não é pequena e
dificuldades encontradas também não parte exclusivamente dos
pelos psicólogos para a profissionais já firmemente estabelecidos
realização da Psicologia no campo da saúde, mas também do
nas Unidades Básicas de próprio psicólogo que não (re)conhece as
Saúde no país advêm tanto possibilidades de sua atividade (Silva,
da inadequação da sua Oliveira e Franco, 1998).
formação acadêmica para o As perguntas que se impõem são:
trabalho no setor, quanto Como se configura a prática deste
seu limitado modelo de campo? É possível uma atuação junto à

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comunidade? Que papel terão as práticas Dessa forma acreditamos que,


usualmente utilizadas na Psicologia ainda hoje, os psicólogos buscam um
Clínica? Yamamoto (1996) faz a mesma modelo para “fazer psicologia” nos
pergunta: O arsenal teórico-prático de que serviços de saúde. Reconhecemos que o
dispõe a Psicologia pode ser aplicado em trabalho é complexo e requer do
novos campos que a Psicologia desbrava? psicólogo um embasamento amplo de
O autor nos assegura que as respostas a várias áreas do conhecimento. É um
essas questões não são simples e ressalta modelo que está continuamente sendo
que não basta mudar de cliente; é feito, uma identidade sendo formada:
importante que, além de mudar de cliente,
o psicólogo realize uma revisão daquilo Acreditamos que podemos
que teoricamente embasa sua atividade ser mais úteis ao campo da
(Yamamoto, 1996, apud Silva, Oliveira e assistência pública à saúde
Franco, 1998). a partir do momento que
Considerando, então, que a nossa cultura profissional
formação básica do psicólogo privilegia a passe a fornecer modelos
atuação clínica, centrada no indivíduo e mais ampliados de atuação,
localizada no consultório, é comum a os quais não se revelem
mera transferência do referencial teórico como barreiras à troca de
obtido na graduação, para o contexto saberes com outros
institucional. profissionais, e que o
Spink (2003, p. 134) sustenta que psicólogo possa se
a pratica em instituições requer uma reconhecer como um
expansão do referencial teórico utilizado trabalhador da saúde,
em dois sentidos: preocupado com a
a) expansão do referencial contextual, ou promoção do bem-estar da
seja, a busca de dados que permitam população (Dimenstein,
melhor localizar o psicólogo e outros 1998, p. 77).
atores envolvidos na dinâmica social e/ou
institucional; Discutir a formação necessária
b) “expansão do referencial teórico, no para a inserção institucional do psicólogo
sentido de conseguir trabalhar com na área da saúde exige um momento
alteridade, ou seja, com a perspectiva de anterior de reflexão sobre as
um “outro” definido culturalmente como especificidades desta prática. Ao procurar
diferente do eu”. entender e pensar a formação do
O que está em pauta no primeiro psicólogo para a prática em instituições,
caso é a compreensão das determinações estamos, na verdade, buscando subsídios
sociais mais amplas que afetam a relação para a sua inserção em uma organização.
profissional do psicólogo e as pessoas ou Entretanto, esta organização é
grupos que recebem algum tipo de sobredeterminada por normas gerais, que
intervenção. Já no segundo caso, o que estão intimamente ligadas às
está em pauta é a aceitação de uma representações coletivas que, com o
realidade multiforme, cuja definição, ou passar dos anos, atingem o estatuto de
mesmo a percepção, é fruto de uma normas universais ou leis (Spink, 2003).
sociedade determinada e, dentro desta, de A compreensão do processo de
classes e segmentos sociais específicos. institucionalização destas normas e,

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portanto, a compreensão do pano de congruente com a demanda da atenção


fundo que formata o cenário no qual se primária.
desenvolve nossa prática é obviamente
um ingrediente importante para um Referências
desempenho profissional consciente e
conscientizador. Bock, A. M. (1999). Superando as
A inserção do psicólogo no campo concepções tradicionais: o ponto
da saúde tem se mostrado, nos diferentes de vista das entidades. In A. M.
estudos já realizados, (Campos, 1992; Bock. Aventuras do Barão de
Spink, 2003; Ronzani, no prelo) difícil, Munchausen na psicologia. São
tanto por questões externas quanto por Paulo: EDUC/Cortez.
falta de modelos de atuação, o que se
relaciona também com o modelo da Calatayud, F. M. (1999). Introducion a la
formação hegemônico mais voltado para psicología de la salud. Havana:
a clínica. Editora Paidos.
A formação acadêmica está longe
de contribuir com uma inserção inovadora Cardoso, C. L. (2002). A inserção do
e mais coerente com as práticas sociais e psicólogo no Programa de Saúde
com o SUS, mas há também incertezas e da Família. Psicologia, Ciência e
dúvidas diante das mudanças, da Profissão, 22 (1), 2-9.
invenção. O Departamento de Psicologia
da Universidade Federal de Juiz de Fora Camargo-Borges, C., & Cardoso, C. L.
(UFJF), em especial o Pólo de Pesquisa (2005). A psicologia e a estratégia
em Psicologia Social e Saúde Coletiva saúde da família: Compondo
(POPS), vem há algum tempo se saberes e fazeres. Psicologia e
preocupando com a formação crítica e Sociedade, 17 (2), 26-32.
inovadora na área de psicologia e saúde,
proporcionando experiências junto aos Costa, M., & López, E. (1989). Salud
serviços de APS de Juiz de Fora e região, Comunitária. Barcelona:
bem como produzindo pesquisas junto Ediciones Martínez Roca.
com alunos de graduação e pós-
graduação. Alguns resultados positivos já Dimenstein, M. D. B. (1998). O
podem ser observados na formação dos psicólogo nas Unidades Básicas
alunos, aumentando a preocupação em de Saúde: desafios para a
desenvolver ações contextualizadas e formação e atuação profissionais.
criativas junto aos problemas da Estudos de Psicologia, 3 (1), 53-
população brasileira. Mas ainda há um 81.
longo caminho a percorrer para uma
consolidação ainda maior dessa área. Freitas, M. F. Q. (1996). Psicologia na
Objetivamos aqui demonstrar Comunidade, Psicologia da
várias frentes de trabalho que podem ser Comunidade e Psicologia Social
assumidas pelo psicólogo no campo da Comunitária. In R. H. F. Campos
saúde coletiva. A psicologia social da (orgs.). Psicologia Social e
saúde é apresentada como referência que Comunitária: da solidariedade à
não se esgota como ferramenta de autonomia. Petrópolis, Rio de
compreensão e intervenção, mas é Janeiro: Vozes, 54-81.

Aguiar, S. G. & Ronzani T. M. 21


Psicologia em Pesquisa | UFJF | 1(02) | 11 - 22 | julho - dezembro de 2007

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Psicologia social e saúde coletiva: Reconstruindo identidades 22

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