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EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR
TRANSDISCIPLINAR
Recriação do Educar
Epistemologia do Educar
Transdisciplinar
Sumário
Parte I
Horizonte e Campo configurador da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar
Parte II
Método e Projeto Metodológico do Educar Transdisciplinar
Referências
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Afinal, tudo é um para quem é um com tudo. Isso parece ser uma trivial
tautologia, mas é mais do que trivial e simplesmente o mesmo de coisa nenhuma. É uma
investigação criadora de si na totalidade vivente. Uma aventura humana na procura do
inesperado. E pensando com Heráclito, quem não sabe esperar o inesperado nunca
poderá encontrá-lo. E o inesperado vem ao encontro como um destino criador de outros
caminhos e de outras histórias ainda desconhecidas. Todos os caminhos são procuras,
encontros e despedidas. Os caminhos são as razões da vida vivente em suas
equilibrações criadoras. Todo caminho é único. Todo único é um caminho. Para onde
leva o caminho? Leva sempre para o lugar da fonte e para o encontro amoroso no
encontro amoroso. Por que caminhar? Porque ser humano é o caminho da pro-cura de
si-mesmo. Mas o si-mesmo não é algo como um “eu” ou um “ego”. O si-mesmo é o
caminho livre por onde passa a criança brincando de mundo e munda. A criança é o si
mesmo em sua querência amorosa. O si-mesmo é o si que só mesmo o mesmo sabe que
é mesmo si-mesmo. Ele é anterior ao mundo e às espécies, ao humano e suas crias
cibernéticas. O si-mesmo ama a si mesmo. O si-mesmo é também a si-mesma. Si-mesmo
não é uma entidade dual, como macho e fêmea. Si-mesmo é tão si mesmo que é tudo em
tudo. O Si-mesmo não é um “ego”, não é um “eu”, não é um “sujeito”, não é um
“indivíduo” de uma espécie, não é uma “coisa”. O si-mesmo é tudo que não é nada. É
tudo-nada sendo tudo e nada, aparecendo e desaparecendo sem rastros. Mas o si-mesmo
não é um si qualquer. Ele não é o que não é. Ele só é aquilo que é em seu sendo. O si-
mesmo é um sendo ser si mesmo.
O caminho em caminho da Epistemologia do Educar Transdisciplinar é um
espanto amoroso. Busca uma ciência para além da ciência regular normativa,
sistemática, universal. Procura conhecer o conhecimento do conhecimento e o
conhecimento do desconhecimento tendo em vista a transformação humana para sua
mais elevada aspiração de plenitude justa, harmonia criadora, liberdade partilhada.
Como caminho a caminho é o lugar de reunião de todo o ciclo historial até agora
cumprido pelos humanos. É também o tempo de preparação do alimento futuro para
nutrir seres humanos amantes da visa sábia e alegre. Um Seleiro e Weleiro1 em que são
1
Seleiro é uma palavra cunhada na ressonância imagética com celeiro. A diferença é o S, que faz a
conexão do alto e do baixo, do céu e da terra. E como a imagem do “celeiro” parece ter cumprido o seu
ciclo, o Seleiro é o âmbito em que se recolhe e armazena o alimento do Ser-Mundo-Outro. Um âmbito em
que o plural se dá na convergência do que amplia e germina plenitude vivente. O Seleiro pode ser
equiparado ao núcleo atômico e aí à força nuclear forte produzida pela interação e coesão de prótons e
nêutrons. A força nuclear forte une prótons e nêutrons para formar um núcleo atômico e impede a
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repulsão entre prótons, carregados positivamente, evitando assim a sua dispersão. A interação nuclear
forte entre prótons e nêutrons parece ser um vestígio de outra força forte básica, chamada a 'força de
côr', que une os quarks em grupos de três para fazer prótons e nêutrons. Por causa da força forte unir as
partículas nucleares com tanta adesão, dá-se uma libertação de quantidades enormes de energia quando
núcleos leves são fundidos (reação de fusão nuclear) ou quando núcleos pesados são desfeitos (reação de
fissão nuclear). A interação da força nuclear forte é a fonte básica das quantidades vastas de energia que
são libertadas pelas reações nucleares que alimentam as estrelas. O Seleiro, assim, é o lugar da reunião
nuclear forte, congregando também o âmbito que se poderia chamar Weleiro – algo como a força nuclear
fraca. E como se sabe, a força nuclear fraca causa a degradação radioativa de certos núcleos atômicos.
Em particular, esta força governa o processo chamado declínio beta no qual um nêutron divide-se
espontaneamente num próton, num elétron e num anti-neutrino. Se um nêutron dentro de um núcleo
atômico decair desde modo, o núcleo emite um elétron (também conhecido como uma partícula beta) e o
nêutron transforma-se em um próton. Isto aumenta (por um) o número de prótons nesse núcleo, mudando
assim o seu número atômico e transformando-o no núcleo de um elemento químico diferente. A força
nuclear fraca é responsável por sintetizar elementos químicos diferentes no interior de estrelas e em
explosões de supernovas, através de processos que envolvem a captura e decaimento de nêutrons.Um
nêutron é estável (não é radioativo), e tem vida longa, quando confinado dentro do núcleo atômico. Uma
vez que removido do núcleo atômico, um nêutron livre sofrerá decaimento beta. O processo de
decaimento beta, em reverso, ocorre nos interiores de estrelas em colapso de supernovas, quando prótons
e nêutrons se fundem juntos para criarem as vastas quantidades de nêutrons que abundam como produto
final do colapso - uma estrela de nêutrons. Um Seleiro, portanto, não desconhece o seu anti-elemento, o
Weleiro, porque não poderia constituir a coesão senão para abundar, multiplicar e potencializar a dádiva
da nutrição cooperativa e coesa. Seleiro e Weleiro são, portanto, as metáforas para a nutrição e
propagação transformadora do ser-humanidade que é feito de variadas humanidades.
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PARTE I
1
O autoconhecimento como meio universal da
ciência de si e plano de imanência gerativo da
Epistemologia do Educar Transdisciplinar
então, não é o acesso ao livre-arbítrio e sim à compreensão do arbítrio livre. Aquilo que
conhece se autoconhece. Esta parece ser uma propriedade do conhecimento: o
conhecimento compreende aquilo que conhece. O compreender está em toda parte. O
compreender é o logos que está em toda parte e em parte alguma, que tanto pode
esconder e mentir como pode desvelar e ser revelador. O autoconhecimento é, assim,
uma saga infinita do ser que é enquanto experiência de si mesmo em tudo. O tamanho
deste abismo é mesmo de assustar qualquer Buda atento. E o assustar-se é desde há
muito o pathos do conhecimento sapiencial. O falar dos gregos chamou philosophia
esse estado de espanto amoroso, que é uma busca incessante de instantaneidade vidente.
Diante de tal lampejo quem haverá de interessar-se por qualquer outra coisa?
Para que dar nome ao inominável? Por que insistimos tanto em definições
categóricas finais? Não seria possível uma ciência polilógica que tivesse diante de si
não o determinismo do antagonismo que a tudo perpassa e sim a abertura para a reunião
dos opostos que se reconhecem partícipes do mesmo sem-fundamento e assim festejam
o acontecimento do luzir e transluzir?
Temos aqui uma questão importante. Se quisermos falar de autoconhecimento é
mais importante entrar no conhecimento do que identificá-lo simplesmente por seus
contornos e vistas, fachadas e interiores. Entrar no conhecimento é interessar-se pelo
abundante e indeterminado. Tornar-se conhecimento do conhecimento e do
desconhecimento. Os sábios já deixaram muitos sinais: o conhecimento está em toda
parte e em parte alguma. Há, assim, formas distintas de conhecimento, inclusive o
desconhecimento ou a ignorância. O autoconhecimento é o avesso da retenção e do
acúmulo porque ele sempre começa do início. E todo início é promessa de meio e fim. E
o que está no meio sempre inicia e sempre finaliza. E o que está no fim sempre
recomeça do início: vazio.
Autoconhecimento é esvaziar-se do saber habitual: tornar-se insipiente e doar-se
ao acontecimento ao redor de sua coluna ereta e de sua fibra intensa e de sua coragem
livre.
A ciência nasce da necessidade imperante da vida humana em querer saber de si
e cuidar de suas metamorfoses. O conhecimento germina da dor de ignorar: é um
impulso desejante de poder-ser. A violência desta força germinante é incontornável.
Contemplemos o nascer de estrelas! Elas explodem ao infinito e implodem ao infinito.
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Que mistério é esse que nos perpassa do início ao fim? Por ventura somos já dignos de
olhar diretamente a face oculta do sendo?
As coisas só podem ser ditas por figurações. Não percamos tempo com isto.
Tudo é figuração. Tudo é representação. Muitos já disseram o mesmo. Aqui a repetição
é o começo de uma inesperada compreensão articuladora que nos dá regra, compasso e
leveza surpreendente diante da possibilidade de um educar humano transdisciplinar,
para a nossa felicidade e a felicidade de todos. O autoconhecimento não é estranho à
felicidade. Ele só não é malevolente e indisposto. No autoconhecimento a disciplina é
necessariamente uma transdisciplina. Pode-se dizer que o caráter disciplinar do
autoconhecimento é a coisa mais trivial e corriqueira da sua dinâmica pulsiva e que o
seu traço mais marcante é o transpassamento do dito e do dizer. O autoconhecimento é
sempre instante sem ocaso, porque não tem desenvolvimento e está sempre pronto para
começar de novo. O desenvolvimento é o desdobramento vital de um organismo.
Portanto, o desenvolvimento é a passagem do tempo que é infinito/finito
desenvolvimento. Todo tempo é expansão e contração, ir e vir. O tempo é pulsação de
sensibilidades memorativas. A memória do tempo é o tempo da memória. Como seria
possível uma memória sem conexão, relação, experiência, sem alteridade, interioridade-
exterioridade, causalidade, casualidade? O que é a causa senão o movimento e a relação
de forças que impulsiona algo em uma ou outra direção?
A causa, portanto, é o próprio movimento. E o movimento é sempre
necessariamente uma conexão e relação de forças, que são necessariamente processos
materiais-vitais-mentais, porque se dão na efervescência do instante do manifesto. O
que não significa dizer que o material em algum momento seja algo distinto do mental e
imaterial, e que o mental seja reduzido à compleição cerebral do ser humano. Como
falou Heráclito: Se auscultaram não a mim, mas o logos então é sábio dizer Tudo é Um.
E falou obscuramente, porque não é nada claro que tudo é um e que um é tudo, apesar
de parecer evidente. Trata-se de uma falsa evidência.
Entretanto, há aqui um conceito que é um bem da humanidade e não uma
propriedade privada. A unidade que a tudo reúne no Um é a unidade do diverso, do
disperso, da multiplicidade, da variedade, da distinção, da singularidade, da
diferenciação. Tudo se dá monadicamente, modalizando o conceito de mônada expresso
por Leibniz em sua Monadologia (1974). Esta unidade que só se pode apreender por
intuição direta, implica na reunião da dispersão e no acasalamento das polaridades. Este
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em vida, pode alcançar a compreensão articuladora do que não conhece ocaso, apesar
do ser humano experimentar a morte como condição de sua vida vivente. Isto,
entretanto, nada tem a ver com o autoconhecimento que é sempre um movimento
radical de dissolução de toda construção nascida da vivência humana e um retorno
radical ao estado de vidavivente. E este estado de natureza é a continuidade do fluxo
vital-inteligente que perpassa a espécie humana como um raio e a lança na aventura de
seu próprio devir gerador de efeitos e inevitáveis transformações.
O autoconhecimento, portanto, é a chave de abertura e o fio condutor da
Epistemologia do Educar Transdisciplinar aqui figurada. Nem melhor, nem pior do que
qualquer outra possibilidade. Mas um desabrochar que pensa a totalidade no movimento
da história e compreende o tempo como devir transformador e superação infinita do
dado, sem nunca abandonar a reluzência do instante sem ocaso e a permanência do que
permanece: a origem do solo, o solo de origem.
O autoconhecimento é o meio comum do florescimento de uma transformação
radical da natureza humana. O ser humano é depositário e portador de uma evolução
consciente que o torna co-responsável por seu meio de existência. A espécie humana
está destinada a evoluir muito além do que ela é no presente ou foi no passado. Como
disse Sri Aurobindo (1974, p. 46), “Sem uma mudança interior, o homem não pode
mais fazer face ao gigantesco desenvolvimento da vida exterior”. E a mudança interior
não pode ocorrer por uma vontade exterior, como uma indução de ação por meio de
uma mecânica de transmissão de informação. A mudança interior é o acontecimento da
mais alta aspiração do ser humano – sua busca de liberdade e maestria compartilhada. A
mudança interior faz germinar a busca humana como a criação da Luz. E esta Luz é
como a criança da Luz. A mudança interior é a abertura da criança da Luz.
Entretanto, o autoconhecimento parece ser atualmente uma representação
egocentrada, o que não corresponde ao âmbito da criança da Luz. Autoconhecer-se não
diz respeito à realização do ego coletivo em busca de sua satisfação impulsiva. A visada
de um autoconhecimento que ajuste o indivíduo ao mundo dos negócios pessoais
radicados na propriedade privada não diz respeito ao que concerne a mais alta aspiração
humana, que é uma condição de princípio e não uma quimera imaginária e fugitiva de si
mesma. O ser humano em sua presentidade está em flagrante contradição com sua
aspiração de princípio – sua propensão para a plenitude vivente. Os ideais persistentes
de plenitude dizem respeito ao programa eco-sócio-ontogenético da espécie humana.
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Eles não são produções discursivas idealistas ou realistas, mas condições ontológicas
concretas que não dependem de opiniões terráqueas ou marcianas, mas fazem parte do
que é originário do fenômeno que distingue a espécie humana das demais espécies do
planeta e do universo em sua totalidade. Isto não quer dizer nenhuma forma de
superioridade sobre outras espécies e níveis de realidade. Pelo contrário, a condição
humana não é propensa ao intervencionismo que caracteriza o atual modo de ser global
do conjunto humano vivente. Toda forma de controle hegemônico e de dominação na
base do artifício e da força é um desvio da aspiração humana em poder alcançar em suas
individuações seqüenciais a maestria de cuidar do Universo como âmbito do
nascimento, desenvolvimento e desaparecimento de deuses.
Para se poder conceber o autoconhecimento como um meio universal da
evolução da consciência humana em sua plenitude é preciso uma revolução interior
própria e apropriada. Ela é “interior” como maneira de evidenciar o desenvolvimento de
uma consciência que germina em suas potencialidades lucíferas e que transcende em si
mesma toda exterioridade construída – toda a expansão corporal do Universo. Sri
Aurobindo diz algo que ressoa na mesma compreensão articuladora, ao falar da
aspiração humana pela plenitude e a condição atual de sua negação. Diz ele (1974, p.
17-18):
acabado o primado da disciplina para que se possa realizar algo de valor. A questão é
que a disciplina não em um modelo geral e homogêneo para ser repetido
indefinidamente. Cada um haverá de desenvolver a sua própria disciplina de
aprendizagem de si. Não é possível, portanto, padronizar algo como o
autoconhecimento. Isto seria o mesmo que pretender moldar o autoconhecimento como
um programa igual para todos os casos, o que seria um contra-senso absurdo.
A ciência do autoconhecimento é o fio condutor da Epistemologia do Educar
aqui delineada em suas articulações éticas e estéticas, políticas, antropológicas,
ontológicas, ecológicas e cosmológicas. Como fio condutor, ele não pode ser
transmitido como se transmite um programa de rádio ou de televisão, mas pode ser
apontado como método para se chegar à ciência da consciência da consciência e da
consciência da inconsciência, e só faz sentido para quem se torna o mestre de si mesmo,
sem ser mais um ego ou um eu qualquer à procura de uma satisfação qualquer. O
autoconhecimento não se satisfaz com o que parece satisfazer ao imediato pragmatismo
de todo ego enraizado em seus hábitos passados. Ele é como uma flecha apontada para o
que não conhece ocaso. Por isso nunca se satisfaz com o fixo e os lugares concluídos,
sempre se projetando em novas possibilidades criadoras e amorosas, sem se tornar
rígido em sua dinâmica vital.
O autoconhecimento como fio condutor da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar é também a evidência de que não se trata de uma ciência da
intervenção e do controle operativo sobre meios determinados, e sim do
desenvolvimento da consciência da consciência de si-mesmo, que nunca é algo
atomizado na fragmentação estabelecida pela razão intelectual dominante, pois se
encontra sendo no mesmo âmbito em que tudo é em seu sendo.
Trata-se claramente de outra “ciência”, de outra “epistemologia”. Uma ciência
que não toma para si a tarefa de regular a normalidade de sua área de atuação, a partir
da negação do que se chama de “subjetividade” por convenção e por conveniência, mas
assume a tarefa de aprender a deixar ser o outro o caminho de sua vida. Uma ciência
cujo objetivo é a geração humana auto-sustentável e livre das fantasmagorias da Mente,
Vida e Matéria condicionadas (MVM), como se poderá ver de modo mais denso na
próxima sessão deste livro.
E porque a epistemologia aqui posicionada é um ato de absoluta liberdade
criadora, ela não precisa prestar contas a nenhuma instância exterior à sua
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uma flor-de-lótus, que só existe para realizar a beleza de ser o acontecimento da beleza
do florescer acima da indistinção do lodo e da estagnação do pântano.
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2
Delimitando e construindo o conceito de
Epistemologia Transdisciplinar a partir do
conceito paradigmático de ciência vigente –
um exercício fenomenológico focado na
estrutura dinâmica do conhecer
epistemológico
2
O Círculo de Viena surgiu na primeira década do século XX, sendo responsável pela criação de uma
corrente de pensamento intitulada positivismo lógico. Este movimento surgiu como reação à filosofia
idealista e especulativa que prevalecia nas universidades alemãs. A partir da primeira década do século,
um grupo de filósofos austríacos iniciou um movimento de investigação que tentava buscar nas ciências a
base de fundamentação de conhecimentos verdadeiros.
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Isso também significa que qualquer forma não pública de conhecimento não
pode ser considerada um conhecimento epistemológico válido. A ciência neste caso é o
instituído e burocraticamente funcional, semelhante às instâncias legislativa, judiciária e
executiva do estado. A ciência é um organismo burocrático com suas regras e cortes
específicos, com sua grade de classificação definida, com seus critérios hierárquicos e
seus procedimentos de verificação e validação. Nesta perspectiva, todo o saber que
escape ao crivo do positivismo lógico é considerado como metafísico e, como tal,
insignificante em relação à verdade científica. Aqui o mundo é vivido na visada
monológica e hegemônica da verdade construída empiricamente: um eterno jogo de
proposições, consolidações e deposições de paradigmas ou modelos lógicos verificáveis
em experimentos validados pelos membros do Círculo Lógico. Um jogo nitidamente de
cartas marcadas e de prepotência intelectual.
A questão da verdade é sempre uma polêmica, sobretudo porque imaginar que
possa existir uma “verdade” que só alguns especializados e privilegiados podem ter
acesso e usufruto é no mínimo desconhecer o princípio da heterogênese de todo
fenômeno vital, e pretender moldar com suas marcas e estruturas as formas singulares
abertas, impondo um determinado princípio de realidade como absoluto e indiscutível e
controlando a perpetuação (repetição) e manutenção do mesmo. É também algo assim
que David Bohm e David Peat (1995) denunciam ao dizerem:
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Lembro aqui que o termo intencionalidade é uma das palavras e conceitos fundamentais da
Fenomenologia de Edmund Husserl, que investigou justamente os atos intencionais e sua constituição
pelo reconhecimento de suas diversas camadas e preexistências materiais e simbólicas.
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e em seus diversos modos éticos. Tudo confluindo na unidade de tudo com tudo, sem
reduções, sem fôrmas privilegiadas, sem centros hegemônicos.
A descrição de todos os planos e níveis de nossa constituição humana é um
exercício fenomenológico intenso, e deve ser realizado por cada um em sua busca
filosófica própria e apropriada, pois cada um é tudo e tudo é cada um. Façamos um
breve exercício fenomenológico da visão. Observemos a figura abaixo:
sensível de apreensão dos fótons (partículas, ondas) de luz segundo suas intensidades
específicas, sempre a partir de fótons. O fenômeno da refração, anáclase ou difração do
raio de luz esclarece este aspecto fundamental do ver a partir de sensores complexos
fotoelétricos (orgânicos) que fornecem os meios para a tradução cerebral do percepto
visual, utilizando as difrações, anáclases ou refrações sensíveis como correlatos da
percepção visual de coisas e objetos materiais e simbólicos, segundo a intensidade
luminosa captada pelas fotocélulas oculares. Ora, se a difração da luz pode ser descrita
como a passagem de uma onda pela borda de uma barreira qualquer ou também através
de uma fenda ou abertura de uma superfície, provocando, em geral, um alargamento ou
diminuição da freqüência do comprimento de onda e da interferência das frentes de
onda refletidas, isto também aponta para o dado de que a percepção visual é um
fenômeno fotônico. Sem fótons não há visão. E o que é mesmo um fóton e por que a
visão depende de fótons?
Os fótons da luz visível afetam os sensores da visão, mas a visão não é capaz de
ler os fótons emitidos pelos raios X. Os fótons são produzidos pelo movimento dos
elétrons nos átomos. Os elétrons se distribuem ao redor do núcleo atômico em
diferentes níveis. Quando um elétron passa para um orbital menor precisa receber
energia e quando passa para um maior precisa doar a energia recebida. Esta liberação da
energia recebida se dá em forma de fóton. A energia do fóton depende do nível da
queda dos elétrons entre os orbitais. Para a liberação dos fótons tem que haver a
combinação com a diferença de energia entre as duas posições do elétron. Caso essa
diferença seja pequena demais o fóton não terá força para deslocar elétrons entre os
orbitais. A seguinte imagem representa uma aproximação do fenômeno de produção do
fóton de luz.
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nosso olho só poder ver nos limites do espectro da luz visível. O contraste do campo de
visão é uma negação antagônica da própria visão, mas é como se a visão não pudesse
ver sem a não-visão.
Penso. Nossa consciência tem muito da visão para quem tem visão. Mas a visão
da consciência é também uma audição e um tato, um palato e um olfato. A visão é
também uma das dimensões perceptivas da consciência, e a consciência mesma é uma
visão. Mas a consciência também é audição e os demais sentidos. Além disso, a
consciência não é apenas um reflexo dos sentidos, porque ela também é afeto ativo e
conceito. De que é feita, então, a consciência da visão e de todo percepto? É a
consciência uma forma de substância corporal? Pode existir consciência sem corpo?
A fenomenologia da visão tomada como pretexto para se falar das estruturas
elementares da Epistemologia do Educar Transdisciplinar convida-nos a realizar em nós
mesmos o rigoroso movimento de investigação e vivência da consciência da
consciência e da consciência da inconsciência em todas as direções e sentidos. Assim
como nosso campo de visão é constituído de relações de similitude e diferença, de
contraste e convergências, de luz e sombra, nossa consciência é necessariamente
proporcional aos limites de nossa corporeidade. Mas, não acredito que a consciência
seja uma substância que se possa localizar em algum ponto do cérebro. Muito mais do
que substância ela é um fluxo contínuo de cheios e vazios, de idas e vindas, sempre
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imagem provoca na direção de como toda percepção visual é a produção de uma ilusão,
no sentido de um permanente busca de ordem.
Aprofundando um pouco mais o fenômeno da luz, pois no final das contas nossa
visão é produzida por sensores eletromagnéticos semelhantes aos leitores óticos das
ondas de luz, é importante destacar a historicidade do conhecimento sobre a luz para
compreendermos como a nossa consciência perceptiva é instruída pela sua história eco-
sócio-genética-noológica4. Este dado amplia nossa compreensão de que é preciso
investigar os dados imediatos da consciência para que se possa avançar em uma
expansão de consciência própria e apropriada. Nesta expansão já se compreende a
irreversibilidade temporal como um fator da evolução cosmológica, incluindo a espécie
humana como um holograma da totalidade vivente. Nesta direção investigativa, o que
importa deve saltar por cima das partes e alcançar a atenção ao instante conjugado.
Aprende-se, assim, que precisamos ionizar5 a investigação epistemológica do
conhecimento do conhecimento. Precisamos aprender a praticar a atitude investigativa
radical, pela abertura de consciência que recolhe tudo na unidade do feixe de luz como
metáfora ou holograma da criação humana em suas potências lucíferas. Ver além da
visão, perceber no percebido o imperceptível. Acolher a visão como visão. Aprender
com ela o tempo da consciência de si como abertura para o salto liberador.
Na história da ciência, a luz foi concebida inicialmente como uma espécie de
corrente constituída de partículas minúsculas, invisíveis e indivisíveis. Átomo é o nome
grego dado às invisíveis partículas que a tudo constituíam e que seriam indivisíveis,
provavelmente por Leucipo de Mileto (VI século a.C.) e posteriormente por Demócrito
de Abdera (470 a.C. – 370 a.C.) A palavra “fóton” está associada à teoria das partículas
ou teoria atomista da luz. Somente no final do século XVII o físico Christian Huygens
apareceu com a hipótese de que a luz atuava como uma onda e não como uma corrente
de partículas. Thomas Young em 1807 retoma a teoria de Huygens e consegue mostrar
em um experimento que a luz se espalha como uma onda. Isso define um raio de luz
como uma irradiação para fora, uma expansão, portanto, que se dá em ondas
eletromagnéticas que se tornam mensuráveis segundo o comprimento de suas
frequências em um determinado intervalo de tempo.
4
Esta expressão reúne os planos ambiental (eco), social, genético e mental (noológico) do fenômeno
consciência e conhecimento e da consciência e da inconsciência.
5
Com a expressão ionizar quero indicar algo semelhante ao que ocorre com a produção de íons que
caracteriza a dinâmica das partículas atômicas.
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Qualquer fonte de energia viaja como onda no meio de sua propagação. A luz é
uma fonte de energia que se propaga como uma onda, a partir de sua emissão fotónica?
A luz de uma fonte luminosa como o nosso sol viaja pelo suposto vácuo livremente em
47
Cada uma das partes do átomo é constituída de outras partículas ainda menores.
E por isso a figuração do átomo anterior é um esquema abstrato que não ajuda nenhum
iniciante nos estudos atômicos a imaginar com mais propriedade o átomo em sua
natureza pulsátil contínua e eletrostática, cujo equilíbrio permite a conjugação atômica
sem limites. A representação do átomo desse modo estático-estrutural foi uma
descoberta-invenção do físico inglês John Dalton, no início do século XIX. Inicialmente
o átomo foi imaginado como uma partícula sólida indivisível. Entretanto a descoberta-
invenção da radioatividade colocou o modelo de Dalton em questão, pois se observou
que os átomos perdem partículas em forma de radiação. Coube ao neozelandês Ernest
Rutherford a mudança do modelo inicial, ao construir um modelo de átomo em que as
partículas negativas (elétrons) giram em torno do núcleo composto de partículas
positivas e neutras, os prótons e os nêutrons respectivamente. A associação com o
sistema planetário foi inevitável. Para ele os elétrons gravitavam em torno do núcleo
50
como planetas ao redor do sol. Mas foi o dinamarquês Niels Bohr que aperfeiçoou o
modelo de Rutherford, indicando que os elétrons se encontram girando em alta
velocidade ao redor do núcleo. Para Bohr, a distância entre os elétrons e os prótons
permanece constante devido à ação de forças eletrostáticas, mantendo em repouso os
corpos portadores de carga elétrica.
Entretanto, a visão que se tem hoje do átomo é bem mais complexa. Os elétrons
não são mais associados à microplanetas que giram ao redor de um núcleo, mas sim a
objetos quânticos que não são semelhantes a pontos e nem circulam em trajetórias
previsíveis e definidas. Os elétrons não têm posições precisas e sim difusas. Por isso são
descritos como uma “função de onda” que determina a probabilidade de sua presença
num dado local e num determinado instante, o que pode não ser bem assim. A
representação atual dos elétrons o configura como nuvens ou orbitais de densidade
mediana aparentemente fusiformes. A figura abaixo expressa com propriedade essa
imagem quântica do elétron. Suas órbitas são tridimensionais e elipsoidais.
6
Muons e antimuons são partículas quânticas elementares. O muon é um lépton que decai para formar um
elétron ou pósitron. Léptons e quarks são hoje considerados as menores partículas da matéria, portanto
são tidos como "partículas elementares". Na atual configuração da física das partículas elementares
existem seis léptons identificados: o elétron, o muon e o tauon¸ cada um dos quais com seu respectivo
neutrino ou anti-elemento complementar. As diferentes variedades das partículas elementares são
comumente chamadas de "sabores", e os neutrinos ou anti-elementos têm sabor distintamente diferente de
sues opostos. A palavra muon deriva da letra grega mu (μ). Portanto, juntamente com o elétron, o tauon e
os três neutrinos correspondentes o muon é reconhecido como um lépton. Como todas as partículas
elementares, o muon tem uma correspondente antipartícula o antimuon (também chamado de positivo
muon). O antimuon é o neutrino do muon. Muons são denotadas por μ - e antimuons por μ +. Os muons
foram muitas vezes classificados como mu mesons no passado, mas a física atual abandonou essa
definição.
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momento angular giratório). Em relação à sua geometria orbital, sabe-se que os elétrons
são orbitais (p, s, d, etc.) que são os espaços de distribuição de suas cargas elétricas. A
série dos quatro números quânticos (n, 1, m, s) possibilita a identificação do “estado
quântico” dos elétrons.
A partir dessa configuração do elétron, seus níveis energéticos confinados ao seu
átomo são afetados pela interação entre o momento magnético do spin e o momento
angular orbital. Por isso ele pode ser visualizado como um campo magnético
decorrente do seu movimento orbital interagindo com o momento magnético do spin.
Isso pode ser expresso como momento orbital angular, isto é, como um dipolo (+ _) em
que a energia E = L x A x B (sendo L = força do momento angular intrínseco; A =
aceleração produzida pela força L na rotação do elétron; B = deriva do movimento
orbital). E essa história de que os elétrons têm um “spin” (ou força rotatória) é resultado
da imaginação criadora dos físicos holandeses Uhlembeck e Goudsmit, em 1925.
Entretanto, a ideia dos holandeses revelou-se relativamente falsa. De qualquer modo, a
evolução do processo descritivo das partículas elementares parece indicar para uma
infinita modificabilidade conceitual e formal em virtude da mudança dos meios e dos
sistemas de captura das informações cósmicas contidas nas partículas quânticas, o que
nos revela a dinâmica incessante da deriva cósmica da qual pertencemos. Em tudo isso
se mostra uma dimensão capital, que é a interação ou força eletromagnética dos átomos.
É desta interação que toda a matéria cósmica se origina e que toda ordem no meio do
caos insondável se torna relativamente estável.
Do ponto de visada da percepção visual, o conhecimento da estrutura fotónica da
luz e de sua constituição atômica não melhora em nada o órgão da visão que nos
constitui, mas amplia o campo de compreensão da complexidade presente em cada
partícula elementar do Universo. Nossa visão, assim, é um campo especializado bem
delimitado e regular de captura de imagens percebidas pelos atos mentais de quem
percebe. Um campo, entretanto, amplamente sofisticado e impossível de ser confinado
ao seu próprio limite porque se encontra em relação complexa com os diversos níveis
primários de constituição dos fenômenos. E o fenômeno é tudo o que “brilha”, é o
brilhante. O que brilha, entretanto, brilha para o ente que vê o brilho. O fenômeno,
assim, já tem em si a curvatura da luz no seu movimento ao redor de si mesma. O órgão
da visão fornece ao cérebro os sinais fotônicos da imagem percebida, mas sem uma
mente não seria possível compreender o brilho que brilha como o brilhante em toda a
55
sua extensão. A mente, entretanto, não é uma entidade simples de ser identificada em
seus efeitos e estruturas. A ciência da mente é uma metafísica no estrito sentido do
termo. Para tratar da mente é preciso mudar de nível quântico: sair do percepto e ir para
o conceito. Esta mudança de nível requer potência suficiente para ocorrer. Mas, antes de
tratar deste aspecto da mente mais demoradamente, gostaria de fechar o ciclo da
elucidação fenomenológica da visão brincando um pouco com a cor da luz.
A luz visível é aquela que nossos sensores óticos conseguem ver. Quando
olhamos para a luz visível do sol ela parece não ter cor, o que denominamos de branco.
Apesar de podermos ver esta luz branca, o branco não é considerado como parte do
espectro visível. Isto ocorre porque a luz não é feita de uma única cor ou freqüência e
sim de muitas frequências de cores. Por exemplo, quando a luz do sol passa por um
prisma de vidro as cores se mostram em seu espectro visível, como no arco-íris. Isaac
Newton foi o primeiro a demonstrar este fenômeno: a luz branca é uma mistura de cores
ou uma mistura de luzes com frequências diferentes. Em síntese, a união de todas as
cores do espectro visível produz a luz branca ou incolor. A ausência de luz resulta na
escuridão. O preto aparece como o contrário complementar da luz branca e pode ser
sintetizado pela cor-pigmento com a mistura das cores primárias e das cores
secundárias. Adicionando várias combinações de luz vermelha, verde e azul, se
consegue produzir todas as cores do espectro visível. É assim que o monitor dos
computadores sintetiza as cores. E é assim que nossos sensores óticos sintetizam as
cores em nossa percepção visual, distinguindo e combinando frequências primárias do
amarelo, do vermelho e do verde, pois a luz é multicolor em virtude de suas variações
de freqüência. Todas as frequências reunidas formam a luz branca. O preto reúne
igualmente a totalidade das corres por absorção. No campo visual o preto e o branco são
as frequências visuais primárias e dão a base da configuração tridimensional da imagem
por contraste. A relação figura e fundo pode ser reunida na relação entre preto e branco.
Pode-se ainda usar os termos luz e sombra para indicar o movimento primário de
composição de imagens tridimensionais. Pensando alto, o preto pode ser sombra do
branco e o branco a sombra do preto, assim como o branco pode ser a luz do preto e o
preto a luz do branco. Não há, no acontecimento visual um branco sem preto e um preto
sem branco. Uma estrutura binária elementar é suficiente para dar origem a um campo
visual tridimensional, e esta binaridade parece constituir todas as partículas elementares
que dão seguimento à composição de tudo o que tem sido desde o início ou recomeço
56
do que se encontra sendo. A estrutura binária está em toda parte e tudo o que é encontra
em si mesmo um alter-elemento antagônico e complementar, campo de toda
possibilidade gerativa sempre co-relacionada com uma totalidade de campos, pois o
elementar é de ordem quântica e pode se precipitar em possibilidades que se combinam
a partir de acervos de informações já sedimentados e gerados nas derivas cósmicas, mas
nossa visão limitada perde de vista o começo e o fim. É como se tudo girasse a partir de
seu elemento opositor e invisível, justamente por ser o contrário de suas propriedades
quânticas. Assim, o pólo positivo é sempre aquele que se encontra estabelecido e
inercial e o pólo negativo aquele que engendra um movimento pela ressonância sensível
de suas cordas energéticas contínuas.
Ora, tudo isso o que foi dito não passa de uma descrição de algo
verdadeiramente incontornável. E este é um aspecto importante da epistemologia aqui
configurada como modelagem do educar transdisciplinar. A ciência humana não pode
pretender ultrapassar os seus limites fenomenológicos, mas também não pode mais
limitar-se ao modelo positivista e intervencionista imperante e hegemônico. Precisamos
de uma ciência nova, capaz de reunir tudo em um único crisol sem a perda de sua
riqueza polilógica, polissêmica, polifônica. Esta é uma grande tarefa epistemológica que
está por ser feita e que aqui ouso esboçar e propor, no seguimento dos vários mestres da
vida abundante. Portanto, não é nenhum mérito pessoal propor o que ainda não está
posto desta forma, pois tudo jorra de uma emergência conjuntural que afirma a
diversidade e a ampliação da potência em todas as direções e sentidos. Um
acontecimento comum-pertencente impessoal, sem a perda de sua singularidade
criadora.
A elaboração de uma Epistemologia do Educar Transdisciplinar requer um
esforço surpreendente para poder tornar-se algo consistente e mediador de modelagens
humanas abertas à elevação da consciência da totalidade vivente, a partir justamente da
reunião dos opostos. Uma das tarefas desta nova epistemologia é a reunião de todas as
partes e de todos os níveis das partes em um âmbito articulado unitariamente, mas sem a
perda da diversidade. A Diferença ontológica, aliás, é um dos elementos quânticos desta
construção epistemológica. O processo de unificação que se busca não é homogêneo e
nem heterogêneo separadamente, mas é uma fusão de heterogeneidade e
homogeneidade. Não podemos perder de vista a dinâmica incessante do processo do
conhecimento humano em suas funções corporais, mentais e de consciência.
57
Inevitavelmente nos deparamos com a linguagem. Tudo o que é se comunica com tudo
o que é. Toda comunicação é linguagem. Toda linguagem é articulação de coisa com
coisa, passagem de informação, tradução do informado, elaboração do formante da
informação. A ação da forma é a correlação de formas. A informação é a passagem de
uma qualidade para outra qualidade por meio de identificadores que também são
quantificadores e qualificadores.
No âmbito dos suportes e eixos de constituição da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar se faz necessário investigar as categorias de organização da
compreensão mental que nos é peculiar. Isto exige uma ciência completa corrigida em
seus excessos de certeza e em suas articulações conceituais. Façamos, então, uma
fenomenologia da ordem e das categorias epistemológicas da ciência do educar
transdisciplinar em formação, do ponto de vista mental, pois é neste âmbito que se pode
construir uma epistemologia transdisciplinar.
David Bohm e David Peat (1989) consideram que a ordem da visão processa-se
pela percepção de diferenças como primeiros dados da visão. A partir dos primeiros
dados são construídas em seguida as semelhanças. Assim, a ordem da visão se dá pela
percepção de diferenças e pela criação de semelhanças dessas diferenças. Estendendo
essa estrutura para todos os campos das vivências intencionais é possível saltar para a
investigação do pensamento que se organiza de maneira análoga à percepção visual, por
contraste entre diferença e semelhança. Para estes autores, na investigação das
estruturas de constituição do pensamento é fundamental a identificação das categorias
organizacionais, a começar dos atos de seleção e coleção. O pensamento é um contínuo
processo de seleção e de coleção, de distinção e de agrupamento por similitude.
Peat e Bohm evocam a raiz latina das palavras seleção e coleção. Selecionar
significa “pôr à parte” e colecionar significa “pôr junto”. Para eles, formam-se
categorias quando determinadas coisas são selecionadas mediante a percepção mental
das suas diferenças, em relação a um fundo comum e geral. O segundo momento da
categorização consiste em colecionar os objetos selecionados previamente, a partir da
sua diferenciação em relação ao fundo comum. Categorizar, portanto, implica na
conjunção de selecionar e colecionar. Para categorizar é preciso selecionar e colecionar
alternadamente e simultaneamente.
Ora, selecionar é escolher, colecionar é agrupar por categorias de diferenciação.
Pôr à parte e pôr junto, distinguir e reunir, separar e juntar forma a dinâmica de toda
58
7
A apercepção é definida como a ação pela qual a mente amplia, intensifica ou plenifica a consciência
dos seus próprios estados internos e de suas representações. Trata-se de um termo inventado por Leibniz
(1646-1716) para cobrir o fenômeno da consciência das próprias percepções e impressões sensitivas. Kant
(1724-1804) usa o termo para designar a autoconsciência subjetiva que se realiza de forma pura ou
empírica. No campo da Psicologia, apercepção é definida como a articulação das qualidades apreendidas
de um objeto com experiências de conhecimento já realizadas pelo sujeito do conhecimento, o que
caracteriza um processo fundamental da aquisição do saber. Para a Gestalt, a Psicologia da Forma, a
apercepção é uma percepção bruta e imediata de uma totalidade, que antecede a percepção analítica e
minuciosa que revela seus componentes e conexões internas, por comparação ao já dado. Significa, assim,
a apreensão direta, imediata, não analítica de um fenômeno, uma intuição direta.
63
possível alcançar o sentido mental de tudo sem que já existisse esta possibilidade na
estrutura mesma das coisas?
Há a Mente, a Vida e a Matéria em uma só conjugação verbal. Mentar, Vidar e
Materiar são, assim, os verbos dinamizadores da Epistemologia do Educar. Evitamos o
substantivo porque não se fala mais de substância e sim de ação, que também se
substantiva pela própria ação conjugativa. Mas a substância é um acontecimento do
verbo e não uma entidade em si. Sem o verbo não há como pensar a substância, mas
sem a substância pode-se pensar o verbo. O verbo, assim, vem primeiro na ordem das
organizações mental, vital e material. É o verbo que materializa, vitaliza e mentaliza o
real como campo de possibilidades constituídas previamente, ou melhor, construídas em
sua raiz fenomenal.
Mente, Vida e Matéria se apresentam trinitariamente como um complexo
unitário. Uma é parte da outro. Na Epistemologia do Educar a Mente é o campo em
que a própria Mente é elucidada em suas revelações e invenções condizentes. E é
também a partir da Mente que a Vida e a Matéria passam a formar o campo unitário do
fenômeno em suas distinções e complementações. Entretanto, a função Mente-Vida-
Matéria diz respeito a apenas uma parcela da evolução do Universo na perspectiva
humana. É a Mente humana que concebe e descreve a Vida e a Matéria. A rigor, dever-
se-ia falar de complementações bi-polares em relação a cada um desses eixos
categoriais. Assim, a Mente tem em si uma Supramente, a Vida uma Supravida e a
Matéria uma Supramatéria. Até o presente momento a espécie humana só conhece a
Mente, a Vida e a Matéria, desconhecendo a Supramente, Supravida e Supramatéria.
Seria, então, possível caminhar no conhecimento Supra, do ponto de vista de uma
evolução da espécie? A espécie estaria no limiar de um conhecimento Supra Mental,
Vital e Material?
Imaginemos Uma Supramente. Como será possível concebê-la fora do que já se
encontra na mente condicionada? A Mente por si só não está apta a conhecer a
Supramente. E então, como é possível se falar de uma Supramente a partir da Mente
condicionada? Isto não é uma nítida falácia lógica?
A história começa a ficar diferente. A Mente condicionada por si só não é capaz
de alcançar a Supramente. É necessária, então, uma imanência da Supramente na
própria Mente. A Mente precisa receber a Supramente como uma imanência direta. A
Mente passa a buscar a Supramente como sua alteridade complementar, deixando-se
64
invadir pela Supramente. Isto também pode significar que a Supramente nunca esteve
longe da Mente. A Mente, então, se abre para a Supramente como uma flor-de-lótus. A
Supramente sempre esteve e está imanente na Mente.
De modo análogo, a Supravida encontra-se imanente na Vida, como um fractal –
se dá como um holograma absoluto, por isso mesmo é como se contivesse em si todas
as partículas elementares do Universo. Sua fenomenologia só pode ser concebida pela
Supramente, porque a Supravida não é o oposto da Vida e sim seu prolongamento
evolutivo. A Supravida é o gérmen da Vida evolutiva, porque a Vida é um
acontecimento supravital desde sempre. O gérmen da Supravida está presente na Vida
em toda a sua extensão. A Supravida governa a Vida desde sua origem.
Também na Matéria ocorre o mesmo. Há uma Supramatéria. A Matéria é toda
ela feita de uma Supramatéria atômica e quântica. O potencial dos corpos materiais é
indiscutível em relação ao seu uso energético. Mas a Supramatéria só pode ser
investigada por uma Supramente porque ela não é visível materialmente falando.
No final das contas, Supramente, Supravida e Supramatéria são as mesmas
coisas em suas diferenciações nucleares. Como em uma escala quântica, uma coisa é a
outra em um determinado nível de articulação e conjunção, sendo que cada coisa é em si
uma diferença unitária. O conceito de Mônada de Leibniz é bastante fecundo para que
se inicie a visualização deste fenômeno trinitário Supra, mas também é incompleto em
relação aos níveis não matemáticos e lógicos de constituição dos suprafenômenos. Hoje
o instrumental da física quântica é bem mais avançado do ponto de vista das relações
estruturais das partículas elementares, mas é ainda preciso uma metafísica das partículas
elementares, porque elas são Supra MVM – Mental, Vital, Material. Isto só pode
ocorrer com o advento da Supra MVM – Mente, Vida e Matéria realizando o plano
evolutivo do Universo. Mas qual plano é esse afinal?
Não se trata de uma escatologia qualquer o que se afigura como evolução da
consciência humana e a construção de uma ciência da consciência da consciência e da
consciência da inconsciência. O caráter escatológico da MVM não pode alcançar
nenhum termo final, exceto quando se compreenda “termo final” como sua constituição
evolutiva imanente. Mas não se pode, dadas as condições evolutivas da Mente humana,
conceber nenhum termo final no processo evolutivo da MVM do Universo. Por isso,
mesmo concebendo estes três eixos e seus correlatos complementares como os planos
65
tem o que disputar. O que disputa é a mente em sua regência ao modo solar. Mas a luz
do sol é apenas uma mente-vida-matéria em suas possibilidades singulares.
A Supra MVM está além da MVM, permanecendo sempre imanente a esta. Sua
imanência permite abarcar todos os degraus e graus dos estados de natureza MVM. São
muitos, assim, os níveis e os planos da Mente-Vida-Matéria e todos são abarcados
instantaneamente pela Supra MVM. Em nosso estado evolutivo só podemos chegar a
isso por aproximação. Mas o fato da aproximação já revela a imanência do
florescimento da Supra MVM na MVM.
Esse florescimento não aumenta a potência de intervenção sobre os elementos da
Natureza, mas aumenta a potência de compreensão e salto de consciência além da
representação da mente condicionada pelos processos de sua experiência fenomenal,
nos níveis mental, vital e material de sua constituição. Nesta medida, não se trata de
construir uma ciência da Supra MVM, no sentido do usufruto deste conhecimento para
alimentar a parafernália do modo de produção insustentável dominante. Não é esta a
ciência do educar aqui perfilada e desfilada. Não se trata de intervenção e sim de
florescimento. Deixar florescer em sua plenitude vivente, eis a máxima aspiração desta
ciência do educar. E deixar florescer não nega o projetar-se em possibilidades abertas ao
poder-ser.
As categorias reunidas da Mente, Vida e Matéria formam os eixos
epistemológicos para a realização de um educar transdisciplinar. O plano intuitivo e
supra-intuitivo faz a conexão de toda informação necessária para a existência dos
equilíbrios e desequilíbrios mentais, vitais e materiais, alcançando uma potenciação
Supra a partir de um enfrentamento criador originário. A Mente tem Consciência na
Vida e realização na Matéria. A consciência sem Mente não teria Matéria. A Matéria
sem Consciência não teria Mente. A Mente sem Matéria não teria Vida. A Supra MVM
deixa ser cada coisa em sua experimentação. Nada regula e comanda, por isso tudo lhe
obedece. Nunca manda ou ordena, por isso sempre faz a si-mesma além de si mesma.
Em síntese, as categorias da nova ordem configurada nesta aproximação
epistemológica que planeja um educar transdisciplinar têm a Supra MVM como
horizonte deflagrador de sua criação. A imagem a seguir apresenta o campo das
categorias com suas oposições complementares. A Intuição e a Supra-intuição formam o
método basilar desta epistemologia, a ser explicitado mais demoradamente na sessão
68
produção do ego MVM, sendo a geração de uma dádiva e não de uma falta e de uma
errância.
A intuição nos dá acesso ao que aparece em um conjunto interligado, e pode
sempre manter o princípio da simplicidade compreensiva, o que significa o primado da
unidade sobre a dispersão e a desconexão. Sua função é a de congregar partes separadas
e de reunir imagens distintas em uma mesma totalização, mesmo que sempre provisória.
Pois toda totalização MVM é sempre provisória. Entretanto, mantém sempre um
impulso de unificação em suas visadas, pois sempre totaliza pela superação de focos
específicos e ângulos parciais. Mas a intuição MVM não vai além da MVM, enquanto
que a Supra-intuição é a sua contrapartida magmática. Toda intuição se dá em um fundo
supra-intuitivo, como todo ente se dá no fundo de um supra-ente ou não-ente. Uma
Supra-intuição é como uma Não-intuição. É o pólo oposto complementar. Na ativação
da Supra MVM ocorre um salto de natureza em relação ao modo de funcionamento da
MVM.
O pólo oposto de cada uma das instâncias categoriais indicadas pode
corresponder ao jogo positivo-negativo da energia. Todo campo eletromagnético é
constituído de polaridades opostas. Bastam dois pólos para que todo o Universo passe a
existir em suas metamorfoses e permanências intermináveis.
Trata-se evidentemente de uma suposição metafísica, que pode até merecer uma
comprovação empírica qualquer, mas este acontecimento nunca pode ser capturado em
seu termo final, como se a matéria fosse feita de pequeninas partículas e como se tais
partículas fossem a causa primeira de tudo o que é material, vital e mental. A questão
parece ser de uma ordem muito mais complexa e dinâmica em sua geratividade
relacional. É preciso saltar do referencial que isola as partículas elementares de sua
totalidade conjuntural originária para que se possa conceber a unidade indivisível de
tudo. Os gregos chamaram átomos os tijolos indivisíveis da matéria. Como foi que eles
chegaram a esta compreensão? Que saltos mentais, vitais e materiais estão pressupostos
nesta intuição grega do átomo? Na época não existiam aparelhos de captura para essa
visualização, mas a própria mente vital tomou consciência de sua constituição material
primária. Hoje, com todo o avanço tecnológico existente, não se chegou ainda muito
mais longe do que o átomo na constituição da matéria-vida-mente. O átomo se tornou
subdividido ao infinito. O limite alcançado é simplesmente o limite dos instrumentos de
captura das ondas eletromagnéticas. Mas, qual pode ser o limite do que é em si mesmo
71
indivisível? Todo o Universo seria uma grande malha que se dobra em si mesma? Além
do mais, com a compreensão atômica moderna e contemporânea se chegou a delimitar
os contornos de algo que se mostra consistente e permanente em seu acontecimento.
Hoje já se sabe como medir a regularidade da matéria e dos organismos vivos. Estima-
se o tempo de vida dos átomos por processos dedutivos nascidos da indução e da
abdução. Os limites da realidade estão muito bem definidos pela observação científica
qualificada. A questão, então, é saber como sair do círculo vicioso da ciência
qualificada em relação à origem da vida e da matéria-mente.
Pensemos mais demoradamente acerca do indivisível. É inadequado pensar o
indivisível como sendo um elemento material último. É mais apropriado pensar o
indivisível como o limite de nossa visualização material. Tão pouco o indivisível é
apenas um conceito ideal. Que seja um conceito, parece não haver dúvida. O
indivisível, entretanto, é divisível até um determinado limite indivisível. Por que o
conceito de átomo haveria de ser o indivisível de um objeto material invisível aos
olhos? Por que haveria de existir um termo último na matéria? Não seria mais oportuno
pensar a matéria em sua trindade MVM, como dobra e como totalidade indivisível na
sua própria dinâmica fluídica e contínua?
A compreensão aqui divisada apreende a matéria em sua constituição trinitária
MVM. A matéria é um ente vivo e mental simultaneamente. Dependente de seu limite
originário, a matéria se constitui de aglomerados de subpartículas, que são o que são em
virtude de seus campos vibratórios derivados das interações. Por uma compreensão
metafísica, o que compõe um determinado fenômeno em sua constituição primária está
presente em qualquer fenômeno. As variações são determinadas pelas interações entre
os entes individuais. E a individuação é a forma matricial de geração da MVM. Sem
“partículas”, sem “indivíduos” não se pode compor um organismo vivo ou mesmo
apenas atômico. E os “indivíduos” possuem em si a totalidade de sua geração matricial.
Algo semelhante ocorre com a vida no planeta Terra. Ela é parte de uma deriva
cósmica única. Todos os elementos que compõem a vida na Terra estão presentes na
incompreensível extensão do Universo. Isso se sabe graças ao avanço da ciência
experimental. Como, então, conceber a vida na Terra como algo apartado do conjunto
Universo do qual faz parte? Seria de nossa parte prova de falta de “intuição” se
caíssemos vítimas da “atomização” fisicalista da vida, como se fosse possível encontrar
a causa de tudo em partículas elementares de natureza “quântica”, que já é uma forma
72
Essas palavras de Aurobindo estão cheias de uma potência que atua supra
intuitivamente, estando além das referências da MVM. Entretanto, o acesso a este
poder não ocorre por adição de informação técnica, sendo um florescimento espiritual
que está protegido por constituição do uso indevido que dele se possa fazer. O que
dizer, então, da manipulação da energia atômica, seja por fissão nuclear ou por fusão
nuclear, hoje disponível? Ter-se-ia alcançado tecnicamente a Supra MVM? A ciência
atômica atual teria alcançado o domínio da potência Supra MVM?
De certa forma, sim. Houve o alcance da grande potência atômica contida na
fissão e na fusão de átomos. O nosso sol é o resultante de uma contínua fusão atômica,
como se ele fosse uma bomba de hidrogênio em uma potência de fusão que comparada
a outras fusões maiores é de uma grandeza pequena, mas suficiente para sustentar o
desenvolvimento da vida orgânica no planeta Terra. É graças à potência atômica do sol
que há vida em nosso planeta. A fusão atômica de átomos de hélio e hidrogênio forma a
fonte da vida no espectro por nós conhecido. O conhecimento da energia atômica é
inerente às possibilidades do conhecimento da MVM. Isto ainda não significa a ativação
da SupraMVM, e sim a manipulação de uma potência Supra sem o devido
conhecimento Supra. Como um ignorante diante de uma usina nuclear, a ciência
atômica brinca com os limites da energia quântica, sem que a humanidade esteja
75
preparada para lidar com este poder. Para que serve a fissão e a fusão atômica quando a
humanidade se encontra ainda em um nível de desenvolvimento ético muito primário?
A quem beneficia este amplo desenvolvimento energético e eletrônico?
O fato é que tem beneficiado uma minoria. Há cada vez mais grupos humanos
que vivem em condições de absoluta pobreza. Seria preciso primeiro equilibrar a atual
desarmonia ecológica MVM, compreendendo uma ecologia mental, uma ecologia vital
e uma ecologia material. A potência de conhecimento disponível pelo desenvolvimento
da tecnociência mais avançada de nada serve se não puder em primeiro lugar beneficiar
a sustentabilidade da MVM planetária. Isto toca diretamente no desenvolvimento
espiritual da espécie humana, como prioridade da ciência transdisciplinar. Um projeto
de construção humana que ative a relação amorosa com a SupraMVM, e que permita o
florescimento de entes extraordinariamente livres e poéticos. É como vencer o medo.
Vencer a morte. E vencer a morte não significa deixar de viver a norte e sim sabê-la
como dobra da vida. Vencer a morte é despertar na SupraMVM. E despertar na Supra
MVM é deixar para trás todo sofrimento e apego, como a metamorfose da borboleta.
A Noologia começa com o exame dos pensamentos condicionados. Isto pode ser
feito a cada instante sem interrupções. Isto não nos trás poder algum e nem nos faz
superiores a nada. Não deixamos de ser um ser humano e nem podemos desconhecer a
fragilidade da vida humana, a profunda necessidade de acolhida e de afeto amoroso.
Somos um ser que somente pode metamorfosear-se como flor-de-lótus na presença do
amor que é uma dádiva ilimitada e o poder que tudo pode sem nada querer. Como
assim? Justamente porque o ser humano não encontraria meio para sua individuação
sem o sentido do amor. E porque há um sentido no amar e no ser amado, tudo faz
sentido para quem foi invadido pelo poder do amor. O ser humano não seria nada e não
faria sentido algum fora do amar. Porque pode amar pode ligar em si mesmo a Supra
MVM. Sem amar e fora do amor não há saída do tempo psicológico e da vida sem
sentido.
Todo poder e toda dádiva pode ser ativado instantaneamente por cada ser
humano. O poder-ser está disponível para cada um como o ar que se respira. Fazemos
parte da potência amorosa e por condicionamento temporal e psicológico nos
encontramos na indigência ontológica prisioneiros do tempo da mente condicionada. E
quando nos damos conta de que somos livres dos condicionamentos da mente
condicionada, o que acontece conosco? Acontece que nos tornamos seres livres do
76
3
Esboço de uma Ecologia Mental ou Noologia
– o autoconhecimento como meio articulador
da Epistemologia do Educar Transdisciplinar
Uma montanha é o universo inteiro.
A água é o universo inteiro.
(Ryotan Tokuda)
Ser a luz de si mesmo significa não ter medo; significa não ter
apego de espécie alguma. (...) E, mais ainda, para serdes vossa própria
luz deveis investigar a experiência.
plano que não pode se separar de sua constituição primeva. Portanto, um plano que
requer a correlação direta com a Vida e a Matéria. Mas uma noologia não se reduz ao
plano material ou àquele vital. O mental tem sua categorização própria, porque sem ele
nem a vida e nem a matéria se explicam. Porque há mente, há teoria da vida, teoria da
matéria e teoria da mente. Apenas como um compacto. A mente é o ente capaz de
computar e memorizar, acumular e distribuir, medir e estimar, antecipar e repetir,
associar e sintetizar, fundir e partir, unir e separar. A vida é o ente capaz de produzir e
multiplicar, sentir e reagir, gerar e cuidar, habitar e prolongar, renovar e transmutar,
formar e desformar. A matéria é o ente capaz de agregar e consistir, ocultar e desvelar,
nutrir e oferecer, persistir e propagar, transmitir e reunir.
São aproximações. Mente, Vida e Matéria são entes distintos, com atributos
distintos que formam em conjunto a totalidade conjuntural da existência cósmica. Como
é que uma mente humana pode alcançar essa forma de clarividência? Esse é um
mistério que requisita de todos os indivíduos humanos a ativação do amor pela via do
autoconhecimento. Como descrições de Krishnamurti (1980, p. 7-8):
A maioria de nós parece considerar a ação individual como
coisa sem importância, quando há tanta necessidade de ação à ação
coletiva. Consideramos a ação coletiva bem mais importante e de
maior significação para a sociedade do que a ação individual. Para
nós, a ação individual a nenhuma parte conduz, não sendo
suficientemente expressiva ou bastante criadora para produzir uma
positiva alteração da ordem vigente, uma revolução real na sociedade.
Destarte, cremos ser a ação coletiva muito mais relevante, mais
urgente do que a individual. Do ponto de vista técnico, mecânico,
principalmente, num mundo em que prevalece cada vez mais a
mentalidade técnica, mecânica, a ação individual tem pouca razão de
ser; e, assim, gradualmente, decresce o valor do indivíduo e o
“coletivo” se torna o mais importante.
Pode-se observar esse fato hoje em dia quando a mente
humana está sendo controlada, “coletivizada” – se assim me posso
expressar – e mais do que nunca forçada a ajustar-se. A mente já não é
livre. Está sendo moldada pela política, pela educação, pela crença
organizada, pelos dogmas religiosos. Em todas as partes do mundo a
liberdade e o indivíduo estão se tornando cada vez menos
significativos. Já deveis ter observado – não só em vossas vidas, mas
também geralmente – que a liberdade feneceu, liberdade para pensar
com independência, liberdade para descobrir, duvidar, investigar.
Os guias se estão tornando cada vez mais importantes, porque
queremos ser ensinados, queremos ser dirigidos e, infelizmente,
quando isso ocorre, é inevitável a corrupção, a deterioração da mente
– não da mente técnica, da capacidade de construir pontes, reatores
atômicos, etc.; porém deterioração da mente criadora. Estou
empregando a palavra “criadora” num sentido completamente
diferente do usual. Não digo “criadora”, com a significação de
escrever poemas, construir pontes, talhar no mármore ou numa pedra
84
uma certa visão que se está captando – pois tudo isso são meras
expressões do pensamento ou sentimento pessoal. Falamos de “mente
criadora” num sentido todo diferente; referimo-nos à mente que é livre
e, por isso, capaz de criar. A mente não sujeita aos dogmas, às
crenças; a mente que não se refugiou dentro dos limites da
experiência; a que rompeu todas as barreiras da tradição, da
autoridade, da ambição, que já não está presa na rede da inveja – eis a
mente criadora. Num mundo sobre o qual paira a ameaça de guerra,
onde se observa geral deterioração – não tecnologicamente, mas a
todos os outros respeitos – nesse mundo, parece-me, há necessidade
dessa mente criadora.
É absolutamente necessário e urgente alterar de todo o curso
do pensamento humano, da existência humana, que se está tornando
cada vez mais mecanizada. E não vejo como operar essa completa
revolução a não ser individualmente. O “coletivo” não pode ser
revolucionário; o coletivo só é capaz de seguir, ajustar-se, imitar,
submeter-se. Mas só o indivíduo – vós – pode romper as muralhas,
destroçar todos esses condicionamentos, e se tornar, assim, criador. É
a crise na consciência que exige essa mente nova. Mas, aparentemente
conforme se observa, ninguém pensa nisso; o que sempre se pensa é
que, com mais melhoramentos – no campo técnico ou mecânico – se
criará, como que miraculosamente, a mente criadora, a mente sem
medo.
Sim, a mente criadora, a mente sem medo. O medo psicológico é o principal véu
do autoconhecimento. Uma ciência noológica tem como primeira tarefa investigar e
transcender o medo psicológico. A ecologia mental deve cuidar da raiz do medo como a
ecologia ambiental deve cuidar da raiz da ignorância em relação aos recursos naturais,
assim como a ecologia social deve cuidar da raiz da intolerância nas relações humanas.
A mente criadora, assim, sabe negar a condição de submissão imposta pelo medo. Ela
sabe dizer “Não” ao medo psicológico. Como disse Krishnamurti (1980, p. 8-9):
Como, então alcançar esse estado em que a mente pode viver sem nenhum
problema? É possível que o ser humano massa, depois de ter vivido por milhões de anos
às voltas com o conflito, possa se livrar de um tamanho determinismo? Se for possível,
como fazer isso?
Krishnamurti sugere que o tempo seja analisado, porque os problemas inerentes
à condição humana estão intimamente relacionados ao tempo. Uma noologia, assim,
86
deve começar por analisar o tempo. O que é, então, o tempo? Tempo é sinônimo de
problema e de aflição? Seguindo Krishnamurti em suas descrições (2000, p. 39), há um
bom motivo para a relação do tempo como a raiz de toda agonia do ente humano:
Qual é o projeto humano para sua inserção no tempo cósmico? O que significa
efetivamente deixar de ser no tempo psicológico e fazer-se no tempo cósmico? Isto está
ao alcance da mente humana não individualizada?
Ora, essas questões confundem a nossa mente psicológica, pois nossa psicologia
não concebe uma vida sem sofrimento e sem infelicidade. Nossa mente psicológica é
determinista e se comporta como uma vítima eterna. Qualquer questionamento que se
faça pondo em vista os processos inconscientes da mente psicológica faz com que ela
reaja e se torne fortalecida em seus apegos e medos. A mente psicológica existe na
medida em que suas fantasmações se tornam realidades incorporadas nas formas de ser
de entidades coletivas. O tempo psicológico, assim, é uma ilusão psicológica
confundida com a realidade vivida das pessoas não individualizadas. No caso, a
individualização nada tem a ver com o individualismo ou com a vida psicológica
subjetiva dos seres humanos modernos. Quando ocorre algo como a individuação de
alguém, a mente psicológica e o “tempo” deixam de existir como realidades
deterministas, e passam a ser como fantasmas de uma memória desativada, passada. Isto
ainda é muito raro? Por que isso é raro?
A questão é saber, o que podemos fazer para vencer o medo e a fantasmagoria
da mente psicológica ancestral? É preciso que queiramos em primeiro lugar investigar
isto. O que cada um de nós vai fazer em relação a este saber apropriador? É preciso que
cada um faça esta pergunta para si mesmo, e não procure respostas nos outros ou fora de
si. Mas, o que é este si mesmo? Como buscar em si mesmo as respostas para a saída da
fantasmagoria psicológica? Qualquer “eu” singular não é em si mesmo um nada
absoluto?
É comum ouvir-se dizer que o ser humano é o resultado do seu ambiente. Com
certeza isto é verdadeiro. De nada adianta afirmar-se que isto não é verídico, pois cada
um de nós é parte integrante de um complexo de causas ambientais, tanto no sentido do
meio ambiente físico e geográfico, como no ambiente social e naquele mental. Somos a
resultante de infindáveis ações passadas, desde uma origem muito remota e inalcançável
em seu ponto de início, mas alcançável em sua repetição autopoiética em seus produtos
criados segundo a modelagem de sua origem. Mas, é possível sairmos deste círculo
vicioso? Teoricamente ou verbalmente, seguramente não se consegue ultrapassar este
condicionamento que se mostra insuperável. Entretanto, se começarmos a observar os
condicionamentos de nosso tempo psicológico, se houver o exame atento de nossos
89
com a totalidade divisada e com a totalidade indivisa sobre a qual não cabe nenhuma
razão epistemológica para dominar a cena, porque está além das lógicas hegemônicas
que afirmam o princípio de Realidade a partir de suas objetivações sempre parciais.
potência de ação, seu ambiente e sua cognição, necessita também conhecer suas formas-
pensamento. Mas esse conhecimento não pode ser isolado de quiser ser um campo
transdisciplinar de relações. É preciso, então, não perder de vista o principal: nossa
mente tem uma função plasmadora ainda pouco investigada pelas ciências da cognição e
ciências cognitivas. Sem que se proceda o movimento de “redução fenomenológica
radical” não se pode alcançar a potência Transformadora no ato de aprendermos a
conhecer e a saber do funcionamento de nossa mente. O campo mental, apesar de ser
triadicamente indissociável dos planos vital e material, tem suas propriedades distintas
dos demais, pois caso contrário não seria algo consistente – durável – persistente –
insistente – instante – não seria algo Real. Uma Ecologia Mental, assim, é a ciência que
tem a tarefa de investigar os territórios da mente de modo a que se possa operar com
maestria o grande ente que é a vida inteligente e sabedora de tudo que a tudo permeia e
invade, a tudo comanda e deixa ser. A tudo ama e porque ama sempre recomeça do
princípio e quando chega ao fim volta ao princípio.
96
4
Distinção entre disciplinaridade e
transdisciplinaridade: o advento e a construção
de uma ciência e de um educar
transdisciplinares
8
São os seguintes os principais eventos e documentos: 1) Colóquio A Ciência Diante das fronteiras
do Conhecimento, organizado pela UNESCO em Veneza, em 1986, que dá origem a Declaração de
Veneza. 2) Congresso Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o século XXI,
98
b. A configuração transdisciplinar
organizado pela UNESCO, em Paris, 1991., gerou o documento Ciência e Tradição. 3) I Congresso
Mundial da Transdisciplinaridade, organizado pelo CIRET (Centro Internacional de Pesquisas e Estudos
Transdisciplinares – Paris), com parceria da UNESCO, ocorrido em Arrábida (Portugal), gerando o
documento Carta da transdisciplinaridade. 4) Congresso Internacional de transdisciplinaridade realizado
em Locarno, em 1997: “Que Universidade para o amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar
da Universidade”, organizado pela UNESCO. “A transdisciplinaridade, como o prefixo trans o indica,
diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de
toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos imperativos para isso é a
unidade do conhecimento” (Passagem da Síntese do Congresso de Locarno). 5) II Congresso Mundial de
Transdisciplinaridade, foi realizado em Vila Velha, Espírito Santo – Brasil, em 2005. Nesse Congresso o
objetivo foi criar um espaço em que as questões transdisciplinares pudessem ser tratadas em três eixos:
atitude, pesquisa e ação. Buscou-se também o resgate de princípios discutidos no I Congresso Mundial de
Transdisciplinaridade realizado em Arrábida, em 1994, e do Congresso “A Revolução da
Transdisciplinaridade” que ocorreu em Locarno, em 1997. Além desses acontecimentos que estabelecem
os horizontes históricos da transdisciplinaridade, outros eventos já foram realizados no mundo e no Brasil
e alguns outros estão sendo preparados para o futuro.
99
*
O enfoque disciplinar, na atualidade, pode ser considerado um
dos frutos mais típicos e substanciais do racionalismo científico, que
modelou, nos últimos séculos, a mente e a atitude básica do ocidental.
(...) A universidade moderna caracteriza-se por três fragmentos
101
*
A perspectiva educativa disciplinar trata do processo de
transmissão/aquisição dos conhecimentos, que são concebidos e
apresentados de forma separada e fragmentada, através das abordagens
das diferentes disciplinas. Nesta perspectiva os conhecimentos da
disciplina matemática, por exemplo, são tratados sem nenhum tipo de
relação com os conhecimentos das disciplinas história, química,
literatura, biologia, artes, geografia, literatura, física etc. Ou seja, na
ação educativa disciplinar não existe nenhum tipo de
comunicação/diálogo/relação do conteúdo de uma disciplina com
qualquer outra disciplina.
Além disso, a prática da educação disciplinar também não
trata/cuida da dimensão da vida interior psicológica do ser humano.
Nesta prática as emoções, os sentimentos, as sensações as intuições, as
percepções e as imaginações inerentes à constituição da psique do ser
humano não podem ser contempladas/cuidadas/tratadas no processo de
aprendizagem do aluno.
A abordagem educativa disciplinar, ao lidar com cada área do
conhecimento como uma disciplina específica, totalmente desvinculada
de qualquer outra e ao negar/desprezar a vida interior psicológica do ser
humano, utiliza procedimentos pedagógicos para o desenvolvimento de
um ensino que não somente prejudicam o funcionamento do cérebro do
estudante, como também mutila e adoece a sua psique. No processo de
negação da vida interior psicológica do ser humano, a ação educativa
disciplinar utiliza métodos e procedimentos didáticos sustentados por
uma pedagogia da crueldade, que não permitem o educando e o
educador vivenciarem o movimento da arte de aprender ou da arte de
autoconhecer-se. (SOARES, 2007)
*
O reducionismo e a insuficiência do enfoque disciplinar
suscitaram inteligentes alternativas reparadoras, como as abordagens
multi, pluri e interdisciplinar. Como os termos indicam, entretanto,
sempre ainda na órbita disciplinar: uma produtiva e ampliada
dialogicidade entre os muitos discursos e enfoques do mesmo
racionalismo científico. (CREMA, 1999)
tempo cronológico. A Figura abaixo apresenta o processo gerativo das três gerações
divinas:
Como diz Kerényi, “Desde o ato sanguinário de Crono, o céu nunca mais se
aproximou da terra para o casamento noturno. A geração original chegou ao fim e a ela
se seguiu o reinado de Crono.” O Grande Crono devorava todos os filhos assim que
deixavam o ventre da mãe e caíam entre os joelhos dela. Crono não queria dividir o seu
poder com mais ninguém, e como seu pai havia vaticinado que este seria vencido por
um de seus filhos, ele os engolia para não afastar-se do seu reinado.
Revoltada por não poder fazer crescer nenhum dos seus filhos, Réia arma um
estratagema contra o seu marido, e consegue enganá-lo, salvando Zeus de ser engolido
pelo pai.
Após um longo preparo e amadurecimento, Zeus destrona Crono e se torna o
Senhor do Universo. Tem início a terceira e última geração divina.
*
O que tem essa narrativa mítica a ver com os fundantes epistemológico-
filosóficos da transdisciplinaridade? Que relação é esta? Qual é a sua intenção?
Intenciono com isso enfatizar a existência de diferentes níveis de realidade que
se co-pertencem. As histórias míticas mostram-nos que quando um deus destrona o
104
outro, aquele que sai de cena não deixa de existir, apenas perde o seu poder de mando,
permanecendo ativo em seu próprio território, mesmo confinado, limitado. Na estrutura
discursiva do mito e da mitologia é possível identificar traços das estruturas gerativas
que compõem a constituição das forças viventes. Há uma relação de ascendência e
descendência direta, em que os patriarcas e matriarcas divinos vão dando lugar a outras
gerações e desenvolvimentos, mas não deixam de permanecer assentados como suportes
ou dimensões constituidoras dos próprios horizontes da nova geração. Há também a
presença do conflito, da relação de poder, do estado de guerra pelo poder. Pais e mães,
filhos e filhas lutam entre si em algum plano pela posse de uma soberania qualquer. A
estrutura narrativa mítica pode também ser compreendida como uma estrutura
arquetípica de constituição do antagonismo que parece ser a forma comum da
constituição de todas as coisas existentes ou passíveis de existência.
Os tentáculos epistemológicos e filosóficos da transdisciplinaridade levam em
conta os diversos níveis de constituição das coisas, sem perder de vista que cada nível
tem sua realidade própria e peculiar, independente do observador. Cada nível é em
algum nível ou grau interdependente de todos os outros níveis ou modos constituídos de
ser.
A abordagem transdisciplinar não elimina o conflito da disciplinaridade, mas
trabalha a partir dele.
Ser transdisciplinar é, antes de tudo, permanecer atento ao acontecimento dos
diversos níveis de realidade do real, no presente.
No nível humano comum, cada ser existente partilha do mesmo pertencimento
originário, apesar de encontrar-se em fuga para determinada direção e sentido particular,
como se a vida de todos não fosse a vida de cada um e a vida de cada um a vida de
todos. Existimos como se tudo já estivesse dado e esclarecido a partir de nossa
ignorância ou surdez.
E dada à conformação geral de nosso comum modo de ser disciplinar,
conformação inegavelmente sócio-histórica, não será incomum nos debatermos com os
muros sólidos e intransponíveis da dura disciplinaridade racional instituída e
secularizada. E isto, em primeiro lugar, em nós mesmos. A história mítica evocada faz
intuir uma luta de poder entre o instituído disciplinar e o instituinte transdisciplinar. O
disciplinar faz o papel de Crono, o Transdisciplinar o papel simultâneo das três gerações
105
5
Esclarecimentos dos postulados da
Transdisciplinaridade
c. O pensamento da complexidade
A complexidade permite compreender a estrutura em rede de tudo o que é. Tudo
o que é se interliga em diferentes níveis de Realidade. Tudo o que é constituí-se de
sistemas de sistemas de sistemas ao infinito, segundo diferentes níveis de organização.
Como afirma Morin (2000), “Pensar a complexidade é o maior desafio do pensamento
contemporâneo, que necessita de uma reforma no nosso modo de pensar”.
A teoria da complexidade que hoje aparece em cena como construção de uma
ciência transdisciplinar pode ser expressa em sua abrangência polilógica na figura
abaixo:
125
exploração cosmológica empreendida desde a invenção da luneta por Galileu não foram
encontrados sinais de vida inteligente em outros planetas. O princípio da indução,
assim, relativizado em sua função, mantendo seu valor heurístico incontestável, mas
perdendo o seu caráter de prova absoluta.
Do ponto de vista do princípio da dedução, o seu caráter de prova absoluta
encontrou na formulação teoremática de Gödel o limite da incompletude, pois segundo
Gödel nenhum sistema pode encontrar nele mesmo a demonstração absoluta de sua
validade. Tarski na sua lógica semântica anda na mesma direção, pois segundo ele
nenhum sistema possui os meios suficientes para se auto-explicar. Portanto, qualquer
elaboração científica e teórica caracterizada como metaponto de vista complexo e
articulado nunca poderá pretender o alcance da completude absoluta. Todo metaponto
de vista, por mais complexo e articulado que seja, é sempre um ponto de vista.
Em relação ao princípio de identidade, o desenvolvimento de ciências como a
microfísica e a cosmofísica chegou, do ponto de vista empírico-racional, a contradições
profundas que levaram à superação da lógica da identidade e do terceiro excluído. A
aparente dupla natureza da partícula (onda-corpúsculo), e todas as ambigüidades
relativas à origem do universo, da matéria, do tempo-espaço, levaram ao
desenvolvimento de uma lógica da complexidade ou lógica do terceiro termo incluído,
ultrapassando-se o princípio da identidade da Razão clássica.
Contudo, os três princípios da Razão clássica não perdem sua importância
histórica e sua utilização epistemológica. Eles são, entretanto, colocados entre
parênteses e são depostos de suas funções régias e absolutas. Apresentam, sem dúvida,
um determinado nível de realidade, mas não dão conta da totalidade conjuntural que a
tudo reúne na incompletude do que só se completa como passagem e doação, silêncio e
palavra, aparecer e desaparecer.
Segundo Morin, os três pilares da Razão clássica foram abalados pelo próprio
desenvolvimento das ciências contemporâneas. Ele pergunta: “Assim, como se conduzir
num universo onde a ordem não é absoluta, ou a separabilidade é limitada, onde a lógica
comporta buracos?” (2000, p. 201). Para ele esse é o problema com o qual se defronta o
pensamento da complexidade.
Com sua positividade a toda prova, Morin identifica três linhas de fuga surgidas
no início dos anos 40 do século XX, que ele chama de “as três teorias”: a teoria da
informação, a cibernética e a teoria dos sistemas. Essas três teorias despontam em uma
128
PARTE II
6
Delineamentos do método do Educar
Transdisciplinar
de toda energia do universo. Quer dizer, uma divindade que morre. Mas também recolhe
sua heterogênese finita como um movimento infinito na continuidade dos organismos
vivos autopoiéticos. No seu aparecer e desaparecer permanente, no seu viver e morrer
perpétuos os fenômenos biológicos se mantém como afirmação de um princípio
contrário ao da entropia 9, um princípio neguentrópico10, que ao invés de se “recolher”
na dispersão, se renova na ação de autoproduzir-se, negando com seu impulso a morte.
Mas a morte sempre chega para o indivíduo que pode não deixar descendentes.
Entretanto, o indivíduo tem sua perpetuação na vida da espécie que se autoproduz além
da entropia inercial dos fenômenos termodinâmicos, que, aliás, também sofrem
alterações pela presença de forças externas ao seu sistema próprio. É possível, então,
compreender uma relação circular permanente entre vida e morte, neguentropia e
entropia em todos os níveis de realidade.
Também do ponto de vista cosmológico, hoje já se admite a possibilidade de
infinitos universos paralelos, alguns em processo de expansão a partir da Grande
Explosão inicial (teoria do Big-Bang), outros em processo de retração como movimento
contrário (teoria do Big-Crunch). O antagonismo é constitutivo de tudo o que é em
todos os níveis de realidade. No plano humano, o antagonismo se mostra também em
todos os níveis de constituição dos indivíduos e das sociedades. Nos processos de
formação haverá sempre antagonismos em diversas gradações e intensidades. É preciso
aprender a lidar com os antagonismos e os diferentes níveis de realidade para se poder
conduzir o processo do educar humano de uma maneira a implicar cada um em sua
própria individuação e subjetivação.
Esta é uma regra áurea do Educar Transdisciplinar: favorecer o florescimento
dos indivíduos da espécie de tal modo que todos possam aprender o básico comum e
possam experienciar seus próprios talentos e projeções de ser em conjunção complexa e
simples simultaneamente com a totalidade vivente. Uma conquista da consciência da
consciência e da consciência da inconsciência. O passo no abismo da completude
9
Entropia, do inglês entropy (1875) VCI, acepção em física 'quantidade de energia ou calor que se perde
num sistema físico ou termodinâmico quando ocorrem mudanças de um estado a outro desse sistema',
donde, 'tendência ao estado de inércia, degradação, p.ext., desordem de um sistema'; do alemão. Entropie
'volta sobre si mesmo', vocábulo. criado por Clausius em 1865; ocorre no inglês em 1868 e em 1875,
como VCI, difundindo-se pelo fr. entropie, a partir de 1877; prende-se ao gr. entropê,ês 'ação de voltar(-
se), mudança de disposição ou de sentimento, ação de ensimesmar-se'; ver entrop. Verbete do Dicionário
HOUAISS (2001).
10
O aprofundamento do conceito de neguentropia pode ser encontrado em LUPASCO (1990), e significa
entropia negativa, a negação da entropia.
137
I
Ouvindo não a mim, mas o lógos, é sábio concordar ser
tudo-um.
II
Desse lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes
tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas
139
III
Não sabendo ouvir, não sabem falar.
IV
Ignorantes: ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta:
presentes, estão ausentes.
V
Ignoram como o divergente consigo mesmo concorda:
harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira.
VI
O contrário é convergente, e dos divergentes a mais
bela harmonia.
VII
Harmonia inaparente mais forte que a do aparente.
VIII
Natureza ama ocultar-se.
IX
Bem-pensar é a maior virtude, e sabedoria dizer coisas
verdadeiras e agir de acordo com a natureza, escutando-a.
XI
O éthos do homem: o daímon (o extraordinário).
XV
Como alguém escaparia diante do que nunca se põe?
XVIII
Embora sendo o lógos comum, a massa vive como se
tivesse um pensamento particular.
XIX
O comum: princípio e fim na circunferência do círculo.
XX
É necessário saber que a guerra é comum e a justiça,
discórdia, e que todas as coisas vêm a ser segundo discórdia e
necessidade.
XXII
Conjunções: completas e não-completas, convergentes e
divergentes, consoantes e dissonantes, e de todas as coisas um e
de um todas as coisas.
140
XXIII
Deus, dia-noite, inverno-verão, guerrra-paz, saciedade-
fome, mas se alterna como o fogo quando se confunde à
fumaça, recebendo um nome conforme o gosto de cada um.
XXVI
Todas as coisas tocam-se a partir do fogo e o fogo a
partir de todas as coisas, como do ouro as mercadorias e das
mercadorias o ouro.
XXVIII
Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar, metade
terra, metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo
lógos, tal como era antes de se tornar terra.
XXIX
O cosmos, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos
deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo
sempre vivo, ascendendo-se segundo medidas e segundo
medidas apagando-se.
XXX
Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo.
XXXII
Heráclito diz ser o cosmo, para os acordados, uno e
igual, enquanto, dos que estão deitados, cada qual se volta para
o seu cosmo particular.
XXXIII
Os que dormem são operários e cooperadores nas coisas
que vêm a ser no cosmo.
XXXVII
Cadáveres, mais do que excrementos, devem-se jogar
fora.
XXXVIII
Morrendo, aguarda os homens o que não esperam nem
lhes parece.
XXXIX
Erguer-se sobre o que é presente e tornar-se vigilante
guardiães dos vivos e dos mortos.
XLII
141
XLIII
Transmutando-se, repousa.
XLIV
Sol: novo a cada dia.
XLVI
A natureza de cada dia é uma e a mesma.
XLVII
Caminho: em cima, embaixo, um e o mesmo.
XLIX
Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos.
L
Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio.
LII
As coisas frias esquentam-se, o quente esfria-se, o
úmido seca, o seco umidifica-se.
LXI
Um, dez mil, se for o melhor.
LXXVIII
O pensar é comum a todos.
LXXIX
Em todos os homens está o conhecer a si mesmo e bem-
pensar.
LXXXV
Uma, a coisa sábia: ter ciência do conhecimento que
dirige tudo através de tudo.
LXXXVII
Para falar com saber é necessário apoiar-se sobre a
comunidade de todas as coisas, como a cidade sobre a lei e
ainda mais vigorosamente. Porque todas as leis humanas são
alimentadas por uma lei una, a divina; pois exerce seu domínio
tão longe quanto se consente, e basta e envolve a todas as
outras.
XCIV
Para os homens não é melhor acontecer-lhes tudo o que
querem.
XCV
142
XCVI
Não encontrarias os limites da alma, mesmo todo o
caminho percorrido, tão profundo lógos possui.
XCVII
Da alma é um lógos que a si mesmo aumenta.
C
É difícil lutar com o coração, pois se paga com alma.
CIII
Recordar-se também do que esquece por onde passa o
caminho.
CVI
Eu busco a mim mesmo.
CVII
É bem necessário investigar muitas coisas para os
homens serem amantes da sabedoria.
CXXVI
O ensino dos retóricos: princípio dos embustes.
CXXIX
Comédias, tragédias e ritos sagrados: remédios.
CXXXI
O tempo é uma criança brincando, jogando: reinado da
criança.11
Depois de ter passado pela experiência de ler Heráclito como seria possível
traduzir Lógos por Razão? Entretanto, o que parece obvio é obscuro, o que parece
obscuro é claro. O pensamento de Heráclito é o lógos. Esse lógos é a Totalidade. A
Totalidade não é uma soma de partes. Totalidade é o que se reúne no mesmo sem-
fundamento. A Totalidade é a unidade de tudo. A unidade de tudo é nada em particular.
Não há partícula na unidade. A partícula é uma parte. A unidade é anterior ao tempo, à
partícula, à partição, à separação, à dispersão, à desunião. O tempo não tem unidade em
si mesmo. Por exemplo, a unidade de um tempo musical é dada pelo seu compasso.
Então, o tempo é uma partição e não uma unidade. O sentido da unidade não vem do
tempo. Tão pouco vem do espaço. O sentido de unidade vem da própria unidade em si
11
Todos os aforismos de Heráclito transcritos foram tirados da tradução de COSTA (2000).
143
mesma. O lógos de Heráclito fala dessa unidade. Mas ele fala da unidade a partir da
partição, do tempo, do espaço. A partir da vida humana de seu tempo e de seu lugar.
Heráclito fala a partir de sua pátria, que é outra forma de partição. Mas ao falar de um
lugar específico ele fala de todos os lugares sem nomear lugar algum. Ele fala da
unidade de tudo. Ele fala da diferença na unidade de tudo. Do ir e vir de ser e de não-
ser. Fala da vida na morte e da morte na vida. Fala do inaparente como vaza de todo
aparente, fundo sem fundo sobre o qual todo manifesto desponta.
O pensamento de Heráclito é uma homologia da reunião dos contrários como a
mais bela harmonia. O seu lógos é discurso da totalidade vivente. Como alguém pode
manter-se ignorante diante da sabedoria? Heráclito parece perguntar algo assim, pois
diante do que não conhece ocaso como alguém pode imaginar esconder-se?12 O lógos é
a homologia do que é em sua dinâmica vivente. O lógos é o vivente que reúne todos os
vividos e todos os vivíveis, reúne tudo no sem-fundamento, reúne tudo na partilha. O
lógos é o lugar da alétheia: a claridade a partir da qual tudo se divisa em uma mesma
jornada. E tudo se distribui segundo o lógos. A saga do ser humano é o seu discurso. Se
esse discurso é em primeiro lugar uma escuta, o discurso que o lógos é se dá como
diálogo do pensamento. O ser humano capaz de escutar o que o logos diz é o ser
humano que tem um destino na claridade do discurso. Mas, o lógos também sabe
esconder, sabe dissimular, sabe confundir, sabe mentir. O lógos sabe também que nunca
sabe o que é o lógos. Quem sabe é o ser humano capaz de escutá-lo. Escutando o lógos
é sábio concordar ser tudo-um. O saber do lógos é uma autoconsciência divina. Os
contemporâneos de Heráclito não poderiam compreendê-lo. Heráclito não foi
compreendido no seu tempo. Ganhou a fama de obscuro. É em relação aos seus
contemporâneos que ele se refere à inépcia humana de permanecer presente no presente
dos acontecimentos constelados.
Heráclito continua sendo o obscuro, porque nada do que ele ressoou como lógos
serviu de inspiração para os seus contemporâneos e para os seus pósteros no sentido de
um coligar-se à totalidade vivente. Toda dispersão, toda desordem se reúnem no âmbito
em que o discurso é um ressoar da mais bela harmonia no instante sem ocaso. Heráclito
ressoa o que é em seu sendo um fogo sempre vivo. A velocidade do raio. Uma
disposição para aprender com o lógos aquilo que no discurso se pode ouvir como
12
Veja-se o Fragmento de Heráclito.
144
harmonia dos contrários: o encontrar-se diante da clareira da unidade que a tudo reúne
em seu sem-fundo.
Heráclito diz: “O tempo é uma criança brincando, jogando: reinado da criança”
(o último fragmento). O tempo está lançado como o reinado da criança. Deixar a
criança brincar no tempo da criança. Incluir a criança no jogo cósmico. Deixar ser a
criança-tempo em seu brincar criança. O tempo é uma criança brincando! A medida do
educar transdisciplinar.
Heráclito aponta como medida o extraordinário. O tempo é uma criança
brincando. O tempo é uma criança aprendendo. O tempo, reinado da criança brincante.
O seu lógos é inclusivo. Entretanto não é estúpido: “Cadáveres, mais do que
excrementos, devem-se jogar fora”. Para que serve um cadáver? Para que ser o que
perdeu a vida?
O lógos inclusivo de Heráclito é o mais rigoroso: “Bem-pensar é a maior
virtude, e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza,
escutando-a.” A inclusão implica em uma decidida atitude de rigor, pois bem-pensar é
algo que requer escuta e discernimento.
É, pois, o discernimento que se deve buscar no educar transdisciplinar, o
discernimento que se pode aprender através de práticas dialógicas bem plantadas e
articuladas como investigação permanente da totalidade conjuntural. O aprender no
educar transdisciplinar é um movimento que vai do côas à ordem e retoma o caos para
plasmar toda ordem nova. Não há aplicação de modelo e sim modelagem no educar
transdisciplinar.
A lógica do terceiro incluído permite articular outra concepção de avaliação,
pois avaliar não pode significar averiguar se alguém aprendeu o que se considera
conteúdo programático obrigatório, mas sim o modo como se aprende a aprender na
linha do tempo, em que tudo o que é tende para uma resolução e transformação
inevitável. O que está cheio se esvaziará, o que está no alto ficará embaixo, o quente se
torna frio, o pequeno se torna grande, o que é vivo estará morto, o que é morto voltará a
viver da morte. A vida do desse lógos é uma vida por inteiro em que não é preciso
tomar partido. Essa é a característica da consciência enquanto fenômeno: ela é um meio
lingüístico que reúne as polarizações antagônicas, apesar de poder também como
consciência, repartir-se e tornar-se polarizada. É o que acontece no desenvolvimento
humano atual, a maioria das pessoas não desenvolve a totalidade dos recursos potenciais
145
disponíveis, como indivíduos de uma espécie tão complexa como a humana, por falta de
condições e de ambiente cultural que promova o florescimento de indivíduos
conscientes da consciência e da inconsciência. Indivíduos em movimentos de
subjetivações, em que toda a espécie e suas relações com a totalidade vivente se vê
recolhida em uma serenidade abissal, e se aquieta na simplificação das complicações,
deixando ser a plenitude vivente
A vida do cosmo e da espécie humana é perpassada pelo lógos, na concepção de
Heráclito. Entretanto, lógos é uma palavra grega. Acontece que o mundo é maior do que
a fronteira e o território simbólico grego. Há em outras culturas humanas outras palavras
que confluem como lógos?
desaparecem. A visada de Lao Tsé reúne tudo no Tao. Mas o Tao não é acessível em
sua completude ao modo de ser da espécie humana. O Tao é a origem de todas as “dez-
mil-coisas”. Lao Tsé ideogramou, “escreveu” o que se pode traduz como Escritos do
Curso e sua Virtude. A visada do Tao Te Ching é o caminho sábio. Sábio é o caminho
que sabe aonde vai e por onde pisa. Sábio é o caminho que vai e nunca volta, e mesmo
assim sempre voltando ao início como a confluência de todo rio para o mar e o jorrar de
toda fonte.
Sábio é o caminho que como nascente brota de sua ambiência própria e jamais
deixa de ser nascente e jorrar na aparente gratuidade da fonte. Procurar ouvir um pouco
de Lao Tsé no que deixou ideogramado e ficou conhecido como Tao Te Ching é uma
oportunidade de investigarmos mais a fundo o sentido da Lógica do Terceiro Incluído,
necessária para uma condução da vida humana harmonizada à totalidade vivente.
I
147
portanto
no imanifesto se contempla seu deslumbramento
no manifesto se contempla seu delineamento
II
sob o céu
conhecer-se o que faz o belo belo eis o feio!
conhecer-se o que faz o bom bom eis o não bom!
portanto
o imanifesto e o manifesto consurgem
o fácil e o difícil confluem
o longo e o curto condizem
o alto e o baixo convergem
o som e a voz concordam
o anverso e o reverso coincidem
por isso
esvazia os corações
sacia as entranhas
enfraquece as vontades
vigora os ossos
nunca deixa o povo com saber e desejos
não deixa o sábio ousar atuar
IV
abismal!
parece o progenitor das dez mil coisas
abranda o cume
desfaz o emaranhado
harmoniza a luz
congloba o pó
profundo!
parece algo lá existir
13
Fiz questão de incluir a escrita ideográfica chinesa com os versos de Lao Tsé, para lembrar da
existência de mundos culturais muito diferentes do nosso modo de pensar e de escrever
149
suave e multíflua
parece lá existir
contudo opera fio a fio
VII
VIII
XIV
retorna a não-coisa
XV
XVI
as dez-mil-coisas confluindo
eu assim as contemplo no refluxo:
XXII
assim
o homem santo abraçando o uno
torna-se modelo sob o céu
XXIII
portanto
quem os fomenta ?
céu e terra
portanto
quem segue o curso une-se ao curso
quem segue a virtude une-se à virtude
quem segue a perdição une-se à perdição
XXIV
portanto
quem no curso nelas não incorre
XXV
Silente! apartado!
fica só não muda
tudo pervade nada periga
portanto
o curso é grande
o céu é grande
a terra é grande
o mediador é grande
XXVI
que fazer?
é senhor de dez mil carros
e por ele desleixa o império?
LXXXI
154
Lao Tsé é um desses personagens históricos que são tão extraordinários que se
confundem ao mito e aparecem como não tendo existido como pessoa. De qualquer
modo, se existiu ou não existiu Lao Tsé, o escritor do Tao Te Ching, não é isso o que
importa. Existem até notícias de que ele, cujo nome real seria Erh Dan Li, nasceu no sul
da China na região de Ch‟u por volta de 604 a.C. Lao Tsé seria um apelido de infância,
pois teria nascido velho. Lao Tsé pode significar “velho sábio”, ou “o aprendiz velho”,
ou “o jovem-velho sábio”. Teria sido contemporâneo de Confúcio (Kung Fu Tsé) e
chegou a ser seu discípulo. Tornou-se um alto funcionário, vivendo como o guardião
dos arquivos do tribunal imperial, e atraiu muitos seguidores com sua sabedoria, embora
sempre haja se recusado a fixar suas ideias por escrito, por temer que as palavras
pudessem ser convertidas em dogma formal. Assim, ele não estabeleceu nenhum código
rígido de comportamento, preferindo ensinar que a conduta de uma pessoa deve ser
governada pelo instinto e pela consciência. Dizia que nenhuma tarefa deveria ser
14
Todas as citações de Lao Tsé aqui transcritas foram tiradas da tradução Mário Bruno Sproviero, meio
eletrônico, registro Mirandum Plus 1 ISSN 1516-5124. Disponível em:
http://www.hottopos.com/tao/dao_de_jing02.htm. Trata-se de uma tradução bilíngüe.
155
apressada, que tudo deve acontecer no seu devido tempo. Acreditava que a simplicidade
era a chave para a verdade e a liberdade,
Era desse modo que encorajava seus seguidores para observarem mais a natureza
do que os ensinamentos de mestres de sabedoria, pois a natureza não toma partido e os
mestres são todos partidários. Convidava a todos a empreenderem o caminho sábio,
pelo menos a mirar-se por ele. Dizia que cada um tem que despertar o seu próprio
mestre, tornar-se liberto de toda servidão. Lao Tsé desejava que a sua filosofia
permanecesse apenas como um modo natural de vida estabelecido sob uma base de
compreensão e despojamento, serenidade e respeito.
Conta-se que aos 80 anos, desiludido com as pessoas da sua terra, Lao Tsé se
dirigiu para o Tibete, na fronteira ocidental da China, sendo acompanhado de um
garoto. Uma das versões mais difundidas conta que um guarda da fronteira o
reconheceu e lhe lembrou que possivelmente todos os seus ensinamentos logo cairiam
no esquecimento se alguma coisa não ficasse gravada, e só permitiu que ele deixasse a
China após escrever seus ensinamentos básicos, para que pelo menos parte de seu
conhecimento pudesse ser preservada para a posteridade. Atendendo ao pedido do
guarda, de uma só vez Lao Tsé redigiu (reza a lenda que escreveu numa grande pedra) a
coletânea dos 81 versos que se tornariam a síntese de sua sabedoria e do pensamento
Taoísta Chinês. O Tao Te Ching é, pois, o Livro do Tao, o Livro do Caminho Sábio.
Há muitos sentidos para o significado do nome Tao Te Ching. Suas palavras
isoladas significam: Tao (Infinito, a Essência, a Consciência Invisível, o Insondável, o
como, de como as coisas acontecem), Te (que significa força, virtude, mas de uma
forma não ligada aos nossos valores ocidentais), Ching (livro, escrito, manuscrito).
Literalmente, portanto, significa "O livro de como as coisas são" e na realidade é este o
seu objetivo, mostrar como as coisas no universo são segundo o Tao. Também significa
"O Livro que Revela Deus" e "O livro que leva à Divindade".
Coerentemente com a sua maneira, Lao Tsé não o escreveu por princípios
doutrinários, e sim para exprimir em versos (aforismos) o inexprimível, de forma tal que
pudessem ser compreendidos por qualquer pessoa diante de diversas situações. O
pensamento de Lao Tsé pode ser expresso perfeitamente na figura do Tei Gi (abaixo).
156
Lao Tsé chama a atenção para a não glorificação dos que realizam grandes
feitos, pois a glorificação leva à competitividade entre as pessoas. Para ele, a presença
de ladrões é proporcional à riqueza acumulada. Mostrar coisas desejadas para as pessoas
levam-nas a tornarem-se competitivas. O governo sábio esvazia o coração das pessoas e
enche suas barrigas, enfraquece suas ambições competitivas e fortalece seus “ossos”. As
pessoas precisam da consistência que as torne aptas a seguir o caminho do Tao. Por
isso, é preciso não ensinar o Tao e sim tornar possível pelo agir que ele se faça
aprendente. A ganância e a astúcia não devem ser incentivadas nas pessoas, pois o qeu
se precisa aprender é comum a todos, apesar de ser diferente e único em cada um, em
cada parte do todo que também é o todo na parte. O melhor governo é aquele que menos
age. Quanto menos se age menos controle é necessário. O ser humano não foi feito para
dominar a natureza e sim para habitá-la como aquele que a sabe cuidar e preservar em
sua finitude.
Para Lao Tsé a melhor imagem para o Tao parece ser o “vazio”. Do vazio tudo é
extraído e mesmo assim ele não se enche nunca, não se exaure. O Tao parece ser a fonte
de todas as coisas. Nele os cortes são cegos, os nós são desatados, os brilhos são
embaçados, une-se ao pó. O Tao é tão indistinto que parece existir. De quem o Tao é
filho? Sua imagem é anterior à imagem das divindades.
No verso 22 do Tao Te Ching pode-se ouvir: Aquele que conhece o outro é
sábio. Aquele que conhece a si mesmo é iluminado. Aquele que vence o outro é forte.
Aquele que vence a si mesmo é poderoso. Aquele que conhece a alegria é rico. Aquele
que conserva o seu caminho tem vontade. A humildade é o caminho da inteireza. Para
permanecer ereto é preciso curvar-se. Para permanecer pleno é preciso esvaziar-se. Para
permanecer novo é preciso gastar-se. O sábio brilha porque não se exibe. Não fazendo-
se notar é notado. Não elogiando-se tem mérito. E por que não compete e não está
competindo, ninguém no mundo pode competir com ele.
O caminho do Tao, o caminho do Big-Bang e do Big-Crunch. O caminho além e
aquém de todo caminho. Um Terceiro sempre incluído.
Da ciência antiga chinesa há também o I Ching, o Livro das Mutações, que
sintetiza a calculabilidade de um conjunto de possibilidades infinitas, em um recorte
finito, partindo da unidade e abarcando a multiplicidade e a diversidade. A origem de
todas as coisas repousa no “vazio”. Do “vazio”, céu e terra são gerados ao mesmo
tempo. Céu e Terra são o pai e a mãe de todas as “dez-mil-coisas”. A simbólica do I
158
idosas são afastadas da convivência com os outros porque não têm mais valor. E
Channa repetia o que era sabido de todos e dizia que assim sempre havia sido, que esta
era a lei da vida. Mas Siddhartha não se satisfez com o que ouviu de Channa. Um
pouco mais adiante se deparam com um homem cheio de chagas e pus cuja expressão
era de muito sofrimento. Inquieto, volta a perguntar à Channa o que se passava com
aquele homem. Channa responde que o homem estava doente por falta de cuidados com
a saúde e bom alimento, por isso sofria das fraquezas da carne, e que todos estavam
sujeitos a passar pela mesma coisa.
Continuando a caminhada, se deparam agora com um cortejo fúnebre. Havia
muito sofrimento na expressão dos que acompanhavam o cortejo. Adivinhando a
pergunta de Siddhartha, Channa disse: - É a morte. Confuso, quis abandonar o local,
mas uma nova cena chamou-lhe a atenção. Tratava-se de um homem esfarrapado e
esquálido, um pedinte. O olhar desse homem impressionou Siddhartha. Era sereno e
profundo. O olhar sereno de um homem livre, vencedor do sofrimento. Channa logo
falou que se tratava de um homem santo, pois vestia um manto amarelo e tinha a cabeça
raspada, e que homens assim haviam entendido o significado da vida.
Foi a partir da visão tida desse monge que Siddhartha vislumbrou a existência de
uma saída que conduzisse ao despertar. Despertou nele o desejo de descobrir o mistério
daquela serenidade que vira no monge pedinte. Sua intenção passou a ser descobrir o
segredo da serenidade e oferecê-la ao mundo dos sofrimentos como cura. Quis logo
informa seu pai de sua decisão. O rei, entretanto, impediu-o de sair do palácio.
Paralisado como prisioneiro em sua própria casa, passou a meditar atentamente no que
havia visto no seu passeio com Channa.
Após longa meditação, compreendeu que os ignorantes, apesar de naturalmente
fadados ao envelhecimento, desprezam os velhos por pura estupidez. Pois, se todos
passarão pelo estado de envelhecimento e decrepitude física, não é correto ter repulsa ou
desprezo por aquilo que é próprio da condição humana. A partir dai passou a considerar
o sofrimento humano como sendo causado pelo próprio homem em seu modo de ser. O
sofrimento é a condição humana a partir da qual se pode libertar do sofrimento. Há,
portanto, um caminho de conhecimento ser percorrido para se alcançar a libertação.
Siddhartha visualiza o caminho do conhecimento para se alcançar a vitória sobre a
condição humana dada. Começa a se delinear em Siddhartha o sentido do
164
Existe uma esfera onde não é terra, nem água, nem fogo, nem ar... que
não é nem este mundo e nem outro, nem sol e nem lua. Eu nego que
esteja vindo ou indo, que permanece e que seja morte ou nascimento.
É simplesmente o fim do sofrimento. Essencialmente todos os seres
vivos são Budas, dotados de sabedoria e virtude, mas como a mente
humana se inverteu através do pensamento ilusório, não o conseguem
perceber.
vos confiei a nenhum refúgio exterior a vós. Apegai-vos fortemente à verdade. Que ela
seja vossa bandeira e vosso refúgio. Aqueles que assim o fizerem atingirão a meta
suprema”.
O que foi apresentado são impressões da vida e do pensamento de Buda. Serve-
nos como ampliação do horizonte compreensivo da lógica do terceiro incluído, que é
um dos pilares do Educar Transdisciplinar. A vida de Siddhartha que se tornou Buda é
um dos acontecimentos mais radicais da história da espécie humana, mas ele mesmo
deixou claro que não se pode pretender eliminar o sofrimento enquanto existir um “eu”.
É preciso, pois, aprender a deixar de ser um “eu” para nos tornarmos livres de todo
sofrimento. É isto possível sem que se deixe de ser humano?
A senda do Buda Sakyamuni é muito radical. Buda convidou seus seguidores ao
abandono do mundo humano do sofrimento, pela cessação do desejo, da ira e da
ignorância. De que modo, então, o seu caminho óctuplo pode ser observado com
precisão na condução do educar transdisciplinar? É possível praticar o caminho óctuplo
sem que seja preciso que nos tornemos budistas?
Apropriamo-nos do caminho óctuplo como aprendizagem de si mesmo, além de
si mesmo: uma transdisciplina. Uma disciplina que reúne tudo em uma totalidade
vivente-morrente. Neste ponto, o si mesmo é o ponto chave. Não é o “eu” mesmo, mas
o si mesmo o que ganha relevo. O sentido próprio e apropriador da aprendizagem e da
desaprendizagem corretas: aprender a ser-não-ser, aprender a pensar-não-pensar,
aprender a viver junto-não viver junto, aprender a fazer-não-fazer.
O que, entretanto, os pilares para a Educação no século XXI têm a ver com o
caminho óctuplo budista e com a inclusão do anti-elemento antagônico em cada um dos
casos assinalados do aprender?
O caminho óctuplo é a forma de Buda indicar a senda do autoconhecimento
passa a passo. É preciso, em primeiro lugar, reconhecer nosso estado de ser
condicionado ao passado. A Compreensão correta nasce do reconhecimento de que
aquilo que chamamos de “eu” é a origem de todos os pensamentos condicionados ao
movimento kármico. O esquema abaixo sintetiza o espectro da compreensão correta.
169
ao movimento como o fluxo no refluxo, o silêncio na palavra. Toda ação correta é ação
que deixa ser o fluxo como é.
Tudo isso dá um nó de marinheiro em nossos pensamentos condicionados sobre
o agir e se resolve no quinto passo do autoconhecimento: o correto modo de vida. O
que é uma vida correta? Trata-se sempre da vida vivida e da vida vivente. Como
vivemos? O que fazemos com a nossa vida? Que formas de relações temos com os
nossos semelhantes e com os dessemelhantes, que compõe igualmente nosso meio de
vida? Como é um modo de vida correto, uma vida correta?
A vida é como água, a tudo se conforma. E por se conformar a todas as formas,
transborda e submerge todo obstáculo. Na perspectiva budista, o modo de vida correto é
o que se abstém dos desejos, não por negá-los, mas por não mais acreditar neles. Nãio
deixar-se comandar por eles cegamente. A ignorância torna-nos desviantes na condução
do viver conjugado, pois somos inconscientes de nossa ação imediata no imediato
existir mental, social e ambiental. Cada um de nós é um modo de vida correto em estado
latente. Encontrar o modo de vida correto é encontrar-se na totalidade do vivente. O
aqui e o agora é o modo de vida correto. Viver inteligentemente, não acumular, não
apegar-se, não... Isso não para merecer um paraíso eterno, mas por comunhão ao que é
um fogo sempre vivo. Viver o instante é saber que tudo se degrada, acaba, morre,
passa... renasce. É, pois, aprender a viver de maneira radicalmente livre, inteiramente
co-responsável pelo viver e pelo morrer. O viver correto é o viver em paz consigo, com
os outros e com a totalidade conjuntural. A medida do viver correto é o extraordinário.
Mirar-se no extraordinário é almejar tornar-se aquilo que se é: um modo de vida correto.
O modo de vida correto é ação correta, palavra correta, pensamento correto e
compreensão correta, simultaneamente. Viver corretamente é compreender, pensar, falar
e agir corretamente. O que dá no mesmo. Viver corretamente, portanto, é tornar-se
pacificador sem perder a tensão justa. E para ser pacificador é preciso ser muito forte e
muito poderoso. O poder e a força necessários para um viver correto não advém de
nenhuma causa pessoal ou privada, mas do encontro derradeiro com o viver correto. A
compaixão é também um traço do modo de vida correto. Mas a compaixão não é para
fracos e oprimidos, ela é para aqueles que recolhem a força e o poder como dádivas de
bem-aventurados que requisitam a atenção correta no cuidado e zelo amoroso com o
vivo e o vivente. O viver correto não precisa restringir-se à vida monástica, pois todo
ser humano tem em si o viver correto. A questão não é apenas moral, de hábitos, de
172
reúne em forma de versos todos os ensinamentos do Buda, de uma forma tão sublime
só ao alcance de uma vivência própria e apropriada. Trata-se de uma explicação da vida
no todo e nos detalhes mínimos. O Sutra de Lótus elucida com êxito a energia
fundamental da vida – a energia vital da sabedoria inata em todas as vidas humanas,
dando expressão à força da benevolência que emana no seu íntimo. O Sutra de Lótus
elucida o potencial infinito da vida através de imagens e descrições de acontecimentos
surpreendentes. Sakyamuni descreveu a sua iluminação ensinando-a através de
descrições da Cerimônia do Sutra de Lótus. Pela sua inteireza e força própria o Sutra de
Lótus é o auge dos ensinamentos de Buda.
Pela sua grandeza e beleza, apresento abaixo dois capítulos do Sutra de Lótus,
Hoben (Meios), Juryo - Jigague (Revelação da Vida Eterna do Buda), como forma de
convidar a todos a terem acesso direto à sublime arte do Buda de incluir tudo em tudo,
sem perder de vista a causação advinda de todo desejo-ação consciente ou inconsciente.
***
Qual é a razão disso? Um buda é aquele que serviu a centenas , a milhares, a dezenas de
milhares, a incontáveis budas e executou um número incalculável de práticas religiosas.
Ele empenha-se corajosa e ininterruptamente e seu nome é universalmente conhecido.
Um Buda é aquele que compreendeu a Lei insondável e nunca antes revelada, pregando-
a de acordo com a capacidade das pessoas, ainda que seja difícil compreender a sua
intenção.
***
Qual a razão disso? A razão está no fato de o Buda ser plenamente dotado dos meios e
do paramita da sabedoria.
***
***
Sharihotsu, o Buda é aquele que sabe como discernir e como expor os ensinos
habilmente. Suas palavras são ternas e gentis e podem alegrar o coração das pessoas.
Sharihotsu, em síntese, o Buda compreendeu perfeitamente a Lei ilimitada, infinita e
nunca antes revelada.
175
***
Chega, Sharihotsu! Não vou mais continuar pregando. Por quê? Porque a Lei que o Buda
revelou é a mais rara e a mais difícil de compreender.
***
***
Como um meio hábil aparento entrar no nirvana para salvar todas as pessoas. Mas, na
realidade, não entro em extinção. Sempre estou aqui ensinando a Lei.
Sempre estou aqui. Porém, devido ao meu poder místico as pessoas de mentes
distorcidas não conseguem me ver mesmo quando estou bem perto delas.
***
Quando essa multidão de seres vê que entrei no nirvana, consagra muitas oferendas às
minhas relíquias. Todos abrigam o desejo único e ardente de contemplar-me. Quando
esses seres realmente se tornam fiéis, honestos, justos e de propósitos pacíficos, quando
ver o Buda é o seu único pensamento, não hesitando mesmo que isso custe a própria
vida, então, eu apareço junto à assembléia de discípulos sobre o Sagrado Pico da Águia.
***
Nesse momento, digo à multidão de seres: Eu sempre estou aqui, jamais entro em
extinção. No entanto, como um meio hábil, algumas vezes aparento entrar no nirvana. E
outras vezes, não. Quando em outras terras há seres que desejam respeitosa e
sinceramente crer, então eu também, junto a eles, pregarei esta Lei insuperável. Porém,
não compreendendo minhas palavras, todos aqui insistem em pensar que eu morri.
Quando vejo os seres afogados em um mar de sofrimentos eu não me exponho, para
dessa forma fazer com que anseiem contemplar-me.
Então, quando seu coração se enche de ansiedade, finalmente apareço e ensino a Lei para
eles.
***
Assim são meus poderes místicos. Por asamkhya de kalpas, sempre estive no Pico da
Águia e em muitos outros lugares. Enquanto os seres presenciam o final de um kalpa e
tudo é consumido em chamas, esta minha terra permanece segura e tranqüila, sempre
cheia de seres humanos e seres celestiais. Vários tipos de gemas adornam seus
corredores e pavilhões, jardins e bosques. Árvores preciosas dão flores e frutos em
profusão, sob as quais os seres vivem felizes e tranqüilos. As divindades fazem repicar
176
os tambores celestiais interpretando, sem cessar, a música mais diversa. Uma chuva de
flores de mandara cai, espalhando suas pétalas sobre o Buda e a grande assembléia.
***
***
Mas os que praticam os caminhos meritórios, que são nobres e pacíficos, corretos e
sinceros, todos me vêem aqui em pessoa, ensinando a Lei. Às vezes para essa multidão
exponho que a duração da vida do Buda é imensurável; e para aqueles que o vêem
somente após um longo tempo exponho o quanto é difícil encontrar-se com ele.
***
O poder de minha sabedoria é tamanho que seus raios iluminam o infinito. Minha vida,
extensa como incontáveis kalpas, é resultante de uma prática muito longa. Homens de
sabedoria, não abriguem nenhuma dúvida sobre isso! Livrem-se das dúvidas
definitivamente, pois as palavras do Buda são sempre verdadeiras.
***
O Buda é como um excelente médico que se vale de meios hábeis para curar seus filhos
iludidos. Embora na realidade esteja vivo, anuncia que entrou no nirvana. Porém,
ninguém pode acusá-lo de mentiroso. Eu sou o pai deste mundo e salvo aqueles que
sofrem e os que encontram aflitos.
***
Devido à ilusão das pessoas, apesar de eu estar vivo, anuncio que entrei no nirvana. Pois
se me vissem constantemente, a arrogância e o egoísmo tomariam conta de seu coração.
Ignorando as restrições, entregariam–se aos cinco desejos, e cairiam nos maus caminhos
da existência. Estou sempre ciente de que são as pessoas que praticam o Caminho e as
que não o praticam, e, em resposta às suas necessidades de salvação ensino-lhes várias
doutrinas.
***
Medito constantemente: Como posso conduzir as pessoas ao caminho supremo e fazer
com que adquiram rapidamente o corpo de um Buda? 15
15
As notas e comentários introduzidos nesta tradução do Sutra da Flor de Lótus da Lei Maravilhosa para
a língua portuguesa falada no Brasil são da autoria e inteira responsabilidade de seu tradutor Marcos
Ubirajara de Carvalho e Camargo. http://www.saindodamatrix.com.br/archives/siddhartha.htm. Veja-se
ainda a tradução em
http://www.marcosbeltrao.net/viewer/sutradolotus.html
177
quantidade. Agimos como se fôssemos um grupo maioral. Não sabemos agir de acordo
com o mais apropriado, porque na maioria das vezes o mais apropriado é uma questão
de escolha e de modo de ser, e a maioria não aprendeu a fazer escolhas além do que a
maioria considera viável e verdadeiro. Somos prisioneiros dos nossos hábitos mentais
ancestrais, e não aprendemos ainda a dizer não à força da maioria. O que fazer, então,
para se ultrapassar a condição determinista dualista e separatista? Como agir a partir da
lógica inclusiva e dialógica, deixando para trás todo conflito e ressentimento passado?
Pelo fato de agirmos motivados por nossos interesses particulares, conformados
segundo um plano coletivo dado como “público”, em virtude de uma “força maior”, não
se sabe viver uma vida inteiramente presente. A quantidade da força determinando o
poder de decisão de um grupo parece ser a lei imperante. A maior força, porém, não é a
força mais apropriada para a existência colaborativa e para a reunião comunitária. O
desafio agora é a comunidade baseada na diferença como diferença. Quero dizer, uma
comunidade baseada em um cuidado radical com a totalidade MVM-SupraMVM16. Uma
comunidade de iguais na diferença de suas situações e singularidades. Uma reunião das
diferenças a partir da não-dualidade. Ausência de antagonismo e afirmação pessoal.
Presença de harmonia e afirmação comum-pertencente.
Não se trata, entretanto, de desconhecer a força operante do antagonismo, da
dualidade, da reatividade, do desamor, da alienação. Pelo contrário, trata-se do
reconhecimento de que somos seres sociais formados por condicionamentos históricos e
por limites já prefixados no modelo de nossa programação atômica, biológica e
psíquica. Tais condicionamentos formam a nossa situação prévia de entes participantes
da experiência de humanização/desumanização do planeta. As normas e preceitos
condicionados formam o conjunto de couraças a serem perfuradas pelo movimento de
individuação presente. A dualidade imperante é o sinal do enrijecimento das funções
SupraMVM, no sentido próprio do florescimento da abundância livre.
O antagonismo parece constituir tudo o que existe. Sem antagonismo nada
poderia ser por princípio. Entretanto o antagonismo somente é antagônico na
perspectiva humana da mente dual e excludente de uma ação cujo agir não se posiciona
na dualidade, mas floresce no contínuo harmônico MVM. Chamei esse âmbito da
harmonia dos contrários e complementares de SupraMVM, reconhecendo o Supra como
16
A expressão MVM-SupraMVM será daqui para frente usada toda vez que se estiver falando de lógica
inclusiva, e designa a unidade do Mental, Vital e Material e do Supramental, vital e material em uma
unidade não atomizável ou redutível às partes particulares. Uma expressão além da física.
181
ainda inaceitável que algo seja uma banana e uma maça ao mesmo tempo no campo das
precipitações – saindo do campo das probabilidades para o campo dos acontecimentos
pontuais. Sabe-se o conjunto de probabilidades de um jogo de regras finitas, mas não se
pode saber com precisão qual o próximo valor resultante de uma combinatória que
configura apenas uma das situações prováveis, como jogar dados. Na regra do jogo o
somatório das faces dos dados voltados para cima na referência ao observador define o
caso. A questão, entretanto, não é a negação do sistema binário que é o fundamento de
todo cálculo e de toda operação de comando binário, como entrar e sair, ativar e
desativar, “1” e “0”. Esta dualidade digital, entretanto, não é a mesma coisa da
dualidade psicológica e mental, porque para operar qualquer possibilidade de ação é
preciso determinar o modo de configuração do fluxo da ação, em uma programação
algorítmica específica. Assim é evidente como toda ação depende de uma sequência
finita de regras e raciocínios atinentes a um número finito de dados, o que permite
resolver problemas de classes semelhantes, como o encadeamento de ações necessárias
para o cumprimento de uma tarefa que pode ser repetida e ensinada, a partir da
experiência. O nosso viver comum é feito de trajetos e percursos previamente
computados e organizados por uma sequência finita de regras e passos. Todo o tempo a
mente está calculando e computando dados e regras, repetindo a repetição de padrões
oriundos das experiências vividas.
Nossa vida diária é feita de repetições de padrões acionais já incorporados. Para
levantar-nos da cama, há necessidade de uma ação específica ativadora de todas as
funções vitais. Toda manhã ao acordarmos agimos de um modo já padronizado.
Cumprimos programas de ação já atualizados pela experiência passada. Sim, há uma
parte mecânica em nossas vidas. Há sequências de ações que funcionam de modo
aparentemente instintivo. Somos sim máquinas biológicas e psíquicas de grande
complexidade. Mas somos também algo que não é máquina e nem condicionamento,
não é tempo e nem espaço, entretanto é a condição de todo tempo e de todo espaço, de
todo aparecer e de toda aparência. Somos um ente que partilha da gênese da totalidade
não-dual de tudo o que é e de nada que não-é como termo final de uma sequência finita.
Partilhamos da infinitude na finitude. Somos finitos e infinitos. Como assim, finitos e
infinitos?
A lógica inclusiva não nega a lógica exclusiva, mas a compreende como uma
programação prática atuante em um contexto finito de ações e reações. A lógica
183
inclusiva não é neutra no complexo da ação. Não se trata de “ficar em cima do murro”,
como se diz comumente. Quando não se é nem de esquerda e nem de direita, significa
que não se é nada? Ser de centro resolveria o impasse? Nem de lado nem de centro, a
questão não é bipolar e sim transpolar. Não ser nem de direita e nem de esquerda
significa não dualizar-se. Ser não-dual não é deixar-se levar para qualquer lado. Pelo
contrário, significa justamente não deixar-se levar pelo antagonismo dos pólos em
conflito. Mas como isso é possível, se vivemos dos condicionamentos MVM?
Bem, é possível pela transcendência dos condicionamentos MVM através da
ativação da SupraMVM. Fácil como abrir os olhos e ver o que se presenta. Tão difícil
como a saída de uma criança do ventre de sua mãe, apesar de parecer natural. A
transcendência, entretanto, não se contrapõe à imanência, pois é sempre a
transcendência em relação a um determinado limite que se impunha como “verdade”
incontestável. Toda transcendência se da na imanência de sua efetuação. Assim, não é o
transcendente inalcançável como objeto ideal que se tem em mira e sim o transcendente
na imanência de sua potência MVM-SupraMVM.
Jogo de palavras ao vento? Tudo depende da perspectiva. De qualquer modo na
perspectiva aqui divisada a MVM-SupraMVM é uma expressão do que pode ser indicado
com diversos nomes sem que seja preciso aceitar nenhuma das formulações como a
mais verdadeira. Não há no movimento evolutivo-involutivo do Universo nenhuma
formulação MVM mais verdadeira do que a outra, apesar de haver predominância de
umas sobre outras. Afinal, o que significa a superioridade ou inferioridade das
organizações culturais? O “mais verdadeiro” é sempre o que se encontra aberto ao
instante pleno. Existiria por ventura uma estrela mais estrela do que qualquer outra
estrela, um ser humano mais ser humano do que qualquer ser humano, um leão mais
leão do que qualquer outro leão?
A lógica inclusiva só pode ser operada por uma mente liberta de todo
condicionamento passado. Como isso é possível? Como seria possível superar o
antagonismo bipolar nas relações humanas corriqueiras e por qual motivo se faria isso?
Nossos condicionamentos não nos permitem descolar de nossas crenças
subjacentes e imaginamos que os nossos limites são os limites de nossa linguagem. Isso
nos faz acreditar que os limites de nossa realidade são incontornáveis, pois estaríamos
irremediavelmente determinados pelos limites da linguagem. Entretanto, os limites da
linguagem não são os limites da realidade e sim os limites do “eu” particular ou da
184
c. Teoria da Complexidade
agora um aglomerado de situações que precisam de projetos para seguir adiante em seus
processos de desenvolvimento humano. Hoje a educação já pode ser concebida em uma
clave nova. Sim, é preciso educar em muitas frentes, em muitas dimensões, em muitos
níveis diferentes de constituição. Mas sem a fragmentação que é um efeito da
racionalidade tecnocientífica dominante e servindo aos meios de produção do capital
selvagem. O que está em questão é a efetiva “qualidade da vida humana”. Ora,
qualidade de vida não é algo que se pode medir facilmente, pois requer efetivos
processos de desenvolvimento que implicam em investimentos e construções
organizacionais apropriadas.
O mundo globalizado é e não é uma Babel. Há desequilíbrios profundos e
profundos processos de equilibração. O tempo todo há equilibrações que renovam a
manutenção da vida, em todos os níveis de constituição. Acontece que em muitos
aspectos se perdeu a medida da equilibração natural, o que estressa o organismo
terrestre como um todo, precipitando catástrofes naturais e culturais. Há de se conceber
uma nova forma de condução da vida planetária, que tenha início na mudança de
mentalidade dos indivíduos pelo educar que implique a todos no conhecimento
necessário e suficiente para a transformação da vida que garanta a dignidade de todo ser
humano. Trata-se de um projeto de longa duração, que requer total dedicação e
disposição investigativa aberta e cuidadosa.
No mundo atual das redes e das conexões rápidas é preciso aprender a lidar com
múltiplas linguagens e processos diversificados de socialização e humanização, pois o
conjunto da humanidade atual vive a era da competitividade tecnológica e desconsidera
os processos alternativos de produção dos meios de subsistência que lidam com a
temporalidade cíclica da natureza. Isto hoje parece quase impossível, porque se imagina
que se possa abstrair do estado geral em que se vive hoje no planeta. A respiração é
ofegante e insegura. A ansiedade intranqüiliza a quase todos. Quais são as alternativas
para se curar a doença que assola a humanidade? Ou será que a humanidade está
completamente segura e feliz pelos resultados que alcançou?
Não querer reconhecer a urgência de uma teoria da complexidade que possa dar
conta do atual estado de coisas por que passa o mundo, por força também da ação
humana em seu modo de vida capitalista, é querer esconder o real estado de perigo da
condição planetária por força do próprio modo de produção insustentável. O campo do
187
a ser medida por desempenhos e por quantidade produtiva. Perdeu-se de vista o próprio
do ser humano como ser intrinsecamente livre – livre a partir de sua própria origem e de
suas possibilidades. Entretanto, nenhuma outra espécie do planeta é tão escravagista e
tão violenta como a espécie humana. Apesar de o fundamento humano ser a sua
liberdade ontológica, a maioria vive como se não pertencesse à liberdade.
A tarefa emergente do educar não é a de moldar pessoas para que se adaptem ao
mundo do trabalho, ensinando-lhes operações de manuseio e intervenção, de retenção e
de multiplicação serial do modelo projetado. O educar não pode ser uma fôrma definida
em seus contornos e limites. Uma forma ele será sempre, mas não uma fôrma. Na fôrma
os pães saem sempre no mesmo formato, em uma forma há sempre limites espácio-
temporais, mas não há como reter o fluxo criador do fluxo. No educar transdisciplinar
não se trata de moldar ninguém para que corresponda ao modelo prefixado. Trata-se de
criar as condições necessárias e suficientes para o florescimento de formas humanas
convergentes na unidade indivisa de tudo, sem perder de vista a diversidade e a
multiplicidade dos fenômenos. Este ato requer uma compreensão fenomênica que reúna
a totalidade manifesta através de linhas, planos e volumes de contato por meio de
coordenações de coordenações em que as partes partilham do todo e o todo partilha das
partes.
Precisamos, então, delimitar os planos de coordenações necessárias para a
construção do educar transdisciplinar. O método transdisciplinar reúne a totalidade
manifesta para dispor as linhas de ação do desenvolvimento de organismos vivos. O
objeto intencional é a aprendizagem multirreferencial que dê conta do desenvolvimento
humano auto-sustentável. É preciso partir da diversidade, acolher a singularidade,
aprender com o antagonismo. Não há mais a homogeneização da fôrma como meta, e
sim a formalização da heterogênese como critério de valor comum. Nesta perspectiva,
cada um tem que ser cuidado em seus talentos próprios. E todos têm talentos das mais
variadas formas. A formação de cada um será diferente sem deixar de homogeneizar-se
no plano necessário da empatia e da sensibilidade ressonante. A heterogênese, assim,
não está negando a homogênese, que agora se dá no plano afetivo comum. A
homogênese, deste modo, não é uma redução e sim uma amplitude unificada,
harmonizada em suas disparidades e oposições. Uma homogênese inclusiva e não
excludente. Uma heterogênese que tem a sua homogênese no âmbito da reunião de tudo.
189
17
As informações sobre Dogen foram tiradas da dissertação de mestrado de Ivone Maia de Mello,
defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, em
2005, em que tive a honra de participar da banca final, o que me permitiu em 2006 acolhê-la como
orientanda do doutorado em educação da UFBA, trabalhando o esmo autor, Dogen, o que tem sido um
exercício dialógico com outras formas de pensamento,. E esta tem sido a linha de condução de minha
pesquisa acadêmica tendo como foco conhecer o conhecimento em sua polilógica criadora.
191
movimento inerente à existência humana. O ser humano como organismo vivo depende
do seu meio ambiente para existir. Entretanto, essa dependência é algo tão natural que é
impossível ser sem mundo. Não se pode conceber uma coisa sem a outra, como não se
pode conceber os frutos sem as árvores, os peixes sem a água, as montanhas sem a terra.
O ser humano é o que tem sido em virtude das condições favoráveis de seu meio de
vida. Pela sua inteligência e engenhosidade, a espécie humana foi inventando meios de
relação com a natureza ambiente como forma autopoiética, autoprodutiva. A simbiose
se dá em um plano de imanência gerado na relação interdependente de campos de força.
O ser humano sendo o que é graças ao ambiente vital, não está sujeito a ter que
submeter-se a padrões externos ao seu próprio ser vivente. Isto só ocorre por um
processo de alienação, que é um processo de anulamento da inteligência criadora que
emana do agir humano em suas propriedades conjuntivas. A alienação torna o humano
tal e qual um pinto de criadouro. Mas em sua própria existência o ser humano é o meio
de ressonância de grandezas muito além da mera biologia. É tudo uma questão de abrir
os olhos e ver, desobstruir os ouvidos e ouvir, desinformar o palato e degustar, despertar
o tato e tocar, acordar o olfato e cheirar. O ser-espécie humano tem sido um meio de
múltiplas experimentações e de inumeráveis acertos e erros. A espécie agora reclama
um plano de compreensão de suas próprias possibilidades, dentro de seus limites e de
suas condições. Chegou à hora de reunir todos os povos do planeta em uma assembléia
permanente de reconhecimento e de investigação conjunta acerca da vida vivente.
Chegou à hora de a espécie reconhecer o seu lugar na deriva cósmica em curso.
Entretanto, é possível sair do estado de alienação e servidão em que nos encontramos e
alcançar um estado de plena liberdade? Quais seriam as condições para a efetivação
desta possibilidade?
Com palavras atribuídas ao Buda Sakyamuni, Se o telhado não for bem
construído ou estiver em mau estado a chuva irá entrar na casa; assim a cobiça
facilmente entra na mente, se ela é mal treinada ou fora de controle. A pessoa que
protege sua mente da cobiça e da raiva desfruta da verdadeira e duradoura paz.
De qualquer modo é preciso saber o sentido próprio da proteção da mente em
relação à cobiça e à raiva, para que se evite uma abstração indevida e se imagine que
com atos mecânicos oriundos da vontade do “eu” se possa alcançar uma proteção
efetiva contra a cobiça e a raiva. É fundamental não perder de vista a compreensão
192
correta. Sem ela não se pode sequer imaginar a possibilidade de uma vitória livre sobre
o eu psicológico, sem as deformações da mente condicionada.
Na perspectiva da complexidade são muitos os níveis de realidade constituintes
das emergências vitais. Todo fenômeno é a emergência de uma consciência em
diferentes níveis de realidade. Uma consciência é a reunião de inumeráveis conexões de
campos de força. Não há, portanto, consciência individual e sim emergência da
consciência em indivíduos que são reuniões de campos de força. Toda consciência é
consciência de alguma coisa. Está é a máxima de uma fenomenologia que compreende a
consciência como intencionalidade, quer dizer como fluxo de sentido que sempre se
encontra em uma situação determinada em seu próprio modo de visada do sentido.
A complexidade, assim, orienta o educar transdisciplinar em seu movimento de
criação permanente de novas singularidades coordenadas pela diferenciação e
complementação conjuntural. Projeta uma compreensão de método que requisita o
renovado ato criador da simplicidade abundante. Sem criação não há método certo! E o
método certo não é aquele que se exprime em uma fórmula acabada, e sim aquele que
segue o fluxo do acontecimento integrador do sentido em seus diversos sentidos e
direções. Deste modo, também a imagética tem o seu lugar na comunicação dos
processos que requisitam a experiência própria e apropriada da cosnciência da
consciência e da incosnciência. A imagem abaixo apresenta uma imageação que recolhe
a totalidade em um quaternário que se pode chamar de, como o fez Heidegger (2001),
Quadratura do Simples. Para uma mente aberta ao acontecimento do sentido em sua
instantaneidade todas as formas de dizer o inaudito são aproximações ressonantes. O
que importa é a ressonância em suas modulações. A simplicidade do quaternário aponta
para o âmbito em que tudo se reúne na simplicidade do simples. Daí todo o complexo
em sua impermanência necessária. A imagem abaixo reúne as forças do céu e da terra,
do extraordinário e do ordinário, dos deuses e dos homens, dos imortais e dos mortais
em um mesmo âmbito: o comum-pertencer. A complexidade requisita de todos nós a
simplicidade do TUDOUM. Apenas uma imagem recolhe a potência do Simples.
193
194
7
PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS DO
EDUCAR TRANSDISCIPLINAR
Foquemos nossa atenção no planeta Terra. A próxima imagem realiza este foco.
Estamos diante da imagem que temos de nosso planeta. Pelo que conhecemos, a Terra é
197
Felizmente na imagem acima aparece também a Lua, pois a Terra não seria tal
sem a Lua. Mesmo nessa imagem tão precisa e unitária, possuímos uma representação
mental da Terra como se tudo estivesse em perfeita harmonia. Mas no âmbito do planeta
são muitas as situações e condições específicas de equilibração e desequilibração.
Matematicamente podemos medir e representar a Terra de muitas maneiras,
topologicamente, pela geometria diferencial, pela teoria dos números, pela teoria dos
grupos, pela teoria do caos, por equações diferenciais, pela aritmética, pela geometria
etc. Todas estas formas atuais da Matemática afirmam uma ciência dos padrões. A
Matemática está sendo definida como ciência dos padrões. A capacidade de
matematização é capacidade de padronização por abstração. Assim, nossa mente
epistêmica tem se ocupado com o estudo dos padrões e tem desenvolvido uma ciência
dos padrões através de metodologias particulares. Tudo reduzido a sequências que
podem ser matematizadas de diversas formas, os padrões podem ser reais e imaginários,
qualitativos e quantitativos, estáticos e dinâmicos, sensíveis e ideais, funcionais ou
estéticos, aplicados ou puramente possíveis. Assim, tudo parece reduzir-se a padrões
numéricos, de forma, de movimento, de comportamento, de previsão etc. Toda
metodologia, assim, haverá de se referir a padrões, segundo o modo matemático de
concatenação lógica das operações de mensuração e de cálculo.
Estudar padrões de número e contagem, de forma, de movimento, de raciocínio,
de possibilidade, de conjunto de dados estatísticos, de linguagem etc. Tudo isso é
198
probabilidade. Todo “um”, assim, é verbo em ação. Todo “zero” é tudo-nada, ação-não-
ação, potencial-virtual-atual.
No comportamento do ser humano há níveis de Realidade que podem ser
expressos em tendências comuns e podem ser projetados como signos de funções
gerativas. Os esquemas abaixo apresentam figurações metodológicas de diferentes
saberes correlacionados aos diversos campos do complexo humano. E como a
metodologia é sempre uma forma-padrão que tem a função de ordenar o campo da ação,
como a trama e o tear na tecelagem, os esquemas abaixo apresentam campos modelares
do Educar Transdisciplinar na deriva do saber viver com sentido e das dimensões
intuitivas aprendentes.
200
201
18
A referência maior ao diálogo como jogo cuja regra é ganhar-ganhar vem de David Bohm (2001),
que desenvolveu uma dialógica referencial para todos os que trabalham dialogicamente.
203
aprender a viver junto, aprender a fazer, aprender a ser (com exceção do primeiro
termo essas são as expressões dos quatro pilares da educação para o século XXI 19). O
que se pode traduzir de maneira unitária como aprender a aprender com arte de
maneira própria e apropriada. O esquema abaixo reúne as dimensões aprendentes em
torno do campo/eixo do aprender a ser-sendo: a polilógica aprendente – metodologia
da complexidade aprendente.
19
Consulte-se o famoso “Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para
o século XXI”, organizado por Jacques Delors (2004).
207
sensibilidade e invenção poética, sua ciência como ciência experimental regular, sua
atitude ética diante do nada, sua forma de relação com o seu meio de vida, sua morada
terrena em conjunto. É como se estivéssemos diante de muitas humanidades que
coexistem em níveis de realidade distintos, mas apenas um modelo hegemônico quer
definir o encaminhamento futuro da humanidade. Uma maquinação preocupante caso
não possa ser utilizada como meio promotor do vivervivente heterogenético.
Só uma revolução para que possa ser de modo liberador sempre. Não há mais
errância cega e sim vivência consequente. Tudo conflui para o florescimento pleno dos
seres humanos em uma escala articulada como conjugação de âmbitos comuns e suas
variações criadoras.
Assim como se está aprendendo a viver ecologicamente e a conhecer com mais
vagar as leis da natureza no plano ambiental, é preciso considerar a diversidade em si
mesma, sem a projeção redutora de seus aspectos e efeitos. Assim, socialmente e
mentalmente temos pela frente um grande desafio relativo aos limites comuns do que é
de todos e não é de ninguém. A humanidade haverá de resolver os seus próprios
problemas e dilemas sociais e mentais. Mas é preciso desconstruir a visão antropológica
baseada em uma prepotência racionalista, para que seja possível constituir um educar
transdisciplinar fundado na abertura criadora da espécie humana, em suas florações
epocais cíclicas. Há, assim, a necessidade de projetos que se antecipem à modelagem
humana necessária à sua plena transformação Mental, Vital e Material, tendo em mira a
elegância do cantar e do dançar sem finalidade. A Idade da Guerra chegou ao fim! O
que, fazer, então, se o hábito da guerra irá perdurar e reproduzir-se como um vício ou
um vírus?
Como fazer para que o Educar não alimente o modo de ser do êxito pessoalista e
egoísta? De que vale o ego humano, senão como caixa de ressonância? A complexidade
do Educar Transdisciplinar opera como método na modelagem da ação aprendente. Mas
isso é como um instrumento musical que será tocado por pessoas diversas de maneiras
distintas. O instrumento pode ser o mesmo, mas toda execução feita por seu intermédio
terá uma qualidade sonora única e incomparável, por mais que na mente sempre opere
por comparações e contrastes.
A complexidade operada na metodologia do educar transdisciplinar permite
projetar as condições essenciais da aprendizagem na educação transdisciplinar nas
quatro conjugações verbais seguintes:
210
diferencia o ente humano de outros entes naturais, não como uma posse e um comando,
mas como um pertencimento e uma partilha amorosa.
216
8
A AVALIAÇÃO NO EDUCAR
TRANSDISCIPLINAR: DESENHO
METODOLÓGICO DA AVALIAÇÃO
POLILÓGICA TRANSDISCIPLINAR
Isso requer uma compreensão articuladora que dê conta de algo como atitude
filosófica. Compreendo como atitude filosófica o mesmo que atitude aprendente.
Concebo o avaliar como filosofar, pois acolho filosofia como filosofar. O esquema
abaixo congrega planos configuradores da atitude filosófica ou atitude aprendente. Uma
maneira de apontar para o que não se pode reduzir ao plano simplesmente intelectual ou
mental. A atitude aprendente, assim, aparece em todos os seus níveis divisados de
226
Entretanto, o que é o que vale? O que vale é o que afeta e repercute, ressoa. Entretanto,
o que é hoje o que vale? Parece valer o que se pode provar documentalmente. Mas, no
âmbito da complexidade vertical da espécie humana o avaliar é algo pertencente ao
modo de fazer e julgar do ser humano. Avalia-se o que? O que é objeto de avaliação?
Avalia-se, o desempenho em programas específicos, a capacidade de investigar, o modo
de operar de quem aprende o que se está avaliando?
Meu intuito é o de ressignificar o verbo avaliar, porque tornou-e importante
saber o que se vai aprender a avaliar. Há de qualquer modo um aprender. Não se avalia
o que não está em obra. Avalia-se a obra em andamento? Qual obra, aquela de cada um
em sua singularidade e unicidade absoluta ou aquela determinada por uma modelagem
coletiva ideologizada? Ora, o avaliar aqui ressignificado, reformado não tem em vista
esquemas formais reguladores e sim o processo gerativo daquele que é avaliado. O
campo da avaliação polilógica é cada indivíduo em sua individuação compartilhada. Por
isso mesmo se pode pensar o avaliar como uma suspensão do juízo afetado, o que
significa que o julgamento se transforma em apreciação atentiva – apreciação presente.
O avaliar nessa perspectiva é uma abertura dialógica interrogante e afetiva, na medida
do acolhimento do outro em sua alteridade insondável. Sem uma disposição para
apreciar o outro em sua construção própria o avaliar polilógico não serviria para nada.
Considero o avaliar polilógico como algo no serviço de algo muito elevado e radical.
Projeta-se um outro ambiente para o educar transdisciplinar. Vamos direto ao ponto:
avaliação polilógica não significa mais averiguação ou exame do processo de adaptação
do aprendiz ao programa a ele oferecido de aprendizagem.
Para ampliar o campo da polêmica inevitável diante da proposta apresentada,
apresento um jogo epistemológico sucinto para apresentar uma gramática mínima do
avaliar polilógico. Parto do uso corrente do verbo avaliar, segundo sua dicionarização.
O conceito preliminar de avaliação – o preconceito usual: etimologia e
significados prévios do verbo Avaliar:
3ª - ter força, ter crédito, exceder (em alguma coisa), levar vantagem, estar em
voga; prevalecer; ter bom resultado, sortir efeito; ser eficaz; cumprir-se; ter
influência, contribuir para; ser capaz de, poder;
4ª - Ser bom, eficaz (ter medida), ter esta ou aquela virtude, ser medicinal;
5ª - Valer (em relação ao dinheiro); valer um preço;
6ª - Ter esta ou aquela significação, significar.
Em uma síntese esquemática e gramatical, o avaliar aparece em sua composição
afônica. O “a” suspende a ação de valorar para dar valo, reconhecer o valor, fazer
valer. O “a” ao suspender não altera o sentido da palavra “valorar”: avalorar,
avaliar. Mas o “a” provoca uma desaceleração do valorar. Avaliar aparece, assim,
como ato retroativo e reflexivo do valorar? Avaliar é, portanto, investigar o valor de
alguém em seu acontecimento onto-sócio-genético-ambiental? Mas, para que isso –
em qual regime produtivo? Qual é, portanto, o projeto humano para o qual faz
sentido avaliar no sentido criador?
Ora, quando já se viu algo como ter amor no processo avaliativo instituído? O
que significa, por exemplo, “valorar o que vale”? E o que quer dizer “corresponder ao
outro”? E “potencializar” o que? “Partilhar” com quem? “Ter estima” de que?
“Valorizar o outro” por que, para que? “Acolher a diferença” em nome de quem?
Avaliar agora mudou de figuração, por mais que se procure reagir a isso:
“Apesar de tudo, se move!” Avaliar, assim, lida com o nome e a nomeação em uma
atribuição de valor, no ato de a-valorar, estimar o que vale. Avaliar pressupõe uma
tríade: Avaliador, Avaliado, Avaliação. De modo dialógico, há uma relação de agentes,
em que não há o que ensinou e aquele que aprendeu e sim o que se aprendeu em um
processo dialógico construtivo.
Nessa perspectiva de avaliação ninguém é excluído do processo. O que se avalia
não é a adequação a um modelo predefinido e formalizado, mas a efetividade do
florescimento singular. De maneira ampla, cada um aprende na medida de sua expansão
e de sua conexão com suas circunstâncias existenciárias. Cada um é holograma da
totalidade vivente em seu próprio e único lugar.
232
Isso projeta também a triunidade do aprender que se vai avaliar: a reunião dos
termos capacidades, competências e habilidades em uma articulação polilógica. Pode-
se, assim, tirar partido dos termos capacidade, competência, habilidade. Na síntese dos
elementos operada pela intuição MVM-SupraMVM, capacidade é poder-ser,
competência é saber-ser, habilidade é aprender-fazer-ser. Reunindo a triunidade do
aprender, sem potência não pode haver ser, sem saber não pode haver competência, sem
aprender e fazer não pode haver habilidade. Assim, a triunidade do aprender se abre
para uma polilógica acional. Trata-se de uma ação de poder, de saber e de aprender a
fazer. Poder é capacidade, saber é competência, aprender-fazer é habilidade. Reunindo
capacidade, competência e habilidade se pode projetar um único feixe: aprender que é
um poder e um saber.
236
alcance de um modo de ser altivo, digno, feliz, sem perder de vista a concreta e
árdua condição humana.
Trata-se de realizar a avaliação polilógica tendo-se presente que não se irá com
isso aquilatar o chamado “rendimento” relativo à aquisição de um dado conhecimento
técnico ou conteudístico.
Nesse sentido, o exercício tem por fim a concretização vivencial de uma
possibilidade em construção: a realização do avaliar como ato de aprendizado amoroso
do ser-no-mundo-com, estruturando-se em quatro campos complementares: o
ontológico, o epistêmico, o ético e o estético.
Atitude fenomenológica..
251
sendo de cada educando em suas dimensões constitutivas. Dele se avalia o ver, o sentir,
o perceber, o conhecer, o pensar, o conviver, o crer, o habitar, o morar, o dialogar, o
ouvir, o falar, o escrever, o construir, o realizar, o fazer-com. A avaliação polilógica,
assim, não é um meio de certificação da aquisição de conteúdos de conhecimentos
linearmente concebidos, mas o meio de reunião em que se exercita o diálogo aprendente
em si mesmo.
O importante nesta avaliação não é medir a aquisição de conhecimentos
específicos, e sim cuidar para que o outro em formação possa florescer em seu
autodesenvolvimento compartilhado. As dimensões aprendentes indicadas constituem
os planos de imanência de uma compreensão articuladora do desenvolvimento humano
em sua univocidade múltipla, em sua diferença radical. Nesta medida, é preciso sempre
aprender o caráter aberto e imprevisível da avaliação transdisciplinar: aprender a
aprender a ser.
Os horizontes da avaliação polilógica ou transdisciplinar são, assim, o ver, o
conhecer, o pensar, o viver juntos, o fazer, o ouvir, o falar, o escrever, o ser.
Configurados destes modos, tais horizontes indicam os campos de atividades das
práticas aprendentes, isto é, apontam para a arte de aprender em suas múltiplas
valências e dimensões. O aprendizado de si mesmo, a arte de aprender a ser, comporta
os múltiplos níveis/planos/dimensões do real e da realidade. Isto muda os rumos da
educação humana daqui para frente, que deve aprender a cuidar da totalidade
conjuntural do ser humano em sua abertura para o ser-no-mundo-com.
O ser humano deve aprender a ser-sendo: deve aprender a ver, a perceber, a
sentir, a conhecer, a pensar, a conviver, a fazer. Este dever indica para a possibilidade
do ser humano realizar a sua reunião com a totalidade conjuntural, agindo a partir de
uma atitude aberta ao comum-pertencimento de tudo. O ser humano não é o ente mais
importante do universo. Ele é um ente entre tantos outros entes. A visão de mundo
antropocentralizada dá lugar a uma visão cosmodifusa. Esta visão põe para o ser
humano sua co-responsabilidade com o todo da vida-vivente.
Partindo-se do pressuposto de um ser que sempre é-sendo, o objetivo geral da
avaliação polilógica é configurar uma rede de sentidos e significados para a
fundamentação e prática de uma educação transdisciplinar, como ponte epistemológica
para a vivência avaliativa da arte de aprender. Como se pode, entretanto, avaliar o ser
em seu desenvolvimento nesta perspectiva transdisciplinar? A resposta é simples: se
253
bom resultado, sortir efeito; ser eficaz; cumprir-se; ter influência, contribuir para; ser
capaz de, poder; 4ª - Ser bom, eficaz (ter medida), ter esta ou aquela virtude, ser
medicinal; 5ª - Valer (em relação ao dinheiro); valer um preço; 6ª - Ter esta ou aquela
significação, significar.Avaliar, assim, aponta para o ter afeto, ter estima. valorizar o
outro, acolher a diferença, corresponder ao outro, valorar o que vale, reconhecer,
potencializar, atualizar, dialogar, partilhar, ter amor.
O horizonte aqui delineado, a pré-compreensão considerada, aponta para o éthos
da avaliação polilógica: abertura para o aberto na proveniência do ser.
Com essa ressignificação do conceito de avaliação, é necessário reconhecer que
o que se faz regularmente com o que se chama de avaliação educacional, não avalia nas
dimensões propostas, mas EXAMINA e CLASSIFICA segundo as normas de um
determinado regime de signos, de uma determinada regulação burocrática instituída e
hegemônica – monologicamente autocêntrica e excludente. Para sermos coerentes, o
que aqui estamos chamando de AVALIAÇÃO pressupõe uma outra forma de
racionalidade: a compreensão polilógica dos sentidos implicados. Pressupõe um educar
completamente outro, um educar com-a-vida, UM EDUCAR FLUXANTE.
Reunindo o sentido, compreendemos por avaliação polilógica uma relação-
vivência dialógica própria e apropriada, um correlacionar-se com o advento dialógico.
Advencial, a avaliação é um encontro com o sentido mostrando-se no outro. O outro
receberá sempre do outro a emanação de sua florescência. Neste ser passagem consiste a
avaliação. Avalia-se o fluxar no acontecimento dialógico. A avaliação é o advento da
dialogicidade comum. Avalia-se o acontecimento do outro no caminho de sua vida,
conjuntamente. Avaliação polilógica é deixar ser o outro o caminho de sua vida.
Isso pressupõe uma revolução humana necessária. Revolução no nosso modo de
ser. Esta revolução não pode ser pensada senão a partir das circunstâncias de cada
realização. Uma utopia, sem dúvida. Portanto, algo que só se realiza no instante eternal
do tempo presente, o desconhecido enquanto acontecimento: abertura para o aberto.
O diálogo é o lugar da avaliação polilógica, diálogo da mente velha
condicionada com a mente nova criadora: reconhecimento do modo de ser-no-mundo e
efetuação da vida abundante; compreensão do instituído e do instituínte, do ente e do
ser, do tempo e do instante, do lugar e da morada. Diálogo como confluência do ser e do
ente unidos no mesmo sem-fundo, pois o ser dispõe para o ente sua abertura originária.
O diálogo acontece na apropriação do ser e do pensar: comum-pertencimento de tudo.
255
Assim, a diferença ontológica rasga o véu do ser em sua constituição própria: sua
abertura germinal.
Ser-no-mundo é a condição para o acontecimento apropriador do diálogo:
avaliação do acontecimento em seu fluxar. O diálogo dialoga. O diálogo é uma
realização do encontro do ente com sua abertura para o ser. O diálogo é uma escuta
primordial. O diálogo é atentivo e amoroso em sua disposição para o acontecimento na
confluência do simples encontrar-se ouvinte do que diz o lógos, em sua intensividade
própria. Dialogar é escutar o lógos em seu alternar-se e ater-se ao simples fluxar de
tudo. Dialogar é ser-com intensidade abertura para o aberto. Avaliar é o mesmo que
dialogar no mais implicado sentido do termo.
256
9
REUNINDO TUDO EM UM ÚNICO CRISOL
1.
Aquele que se apega, morre. O que se solta, vive. No soltar-se e no
apegar-se consiste a vida e a morte, o nascer e o morrer.
2.
O fenômeno é a consciência da consciência e a consciência da
inconsciência: superfície e profundidade, extensão e intensidade.
3.
O ser que somos enquanto existimos é vida-morte sem cessar. Mas
o que cessa nele é a compreensão da compreensão e da incompreensão: o
alcance da Unidade na dispersão cósmica da luz no fundo sem fundo
velado.
4.
A Unidade, entretanto, não é algo que se confunde com o
fenômeno enquanto aparecer e aparência na instantaneidade do evento.
A isto se chama Diferença. Diferença e Unidade são o mesmo no sentido
de que Tudo é Um, Um é Tudo.
5.
Em cada Diferença a Unidade, em cada Unidade a Diferença.
Tudo o que é provém de si mesmo na superfície e na profundidade.
6.
Aquilo que é, é sempre sendo de múltiplos modos fenômeno:
aparecer e aparência, profundidade e superfície, ir e vir, subir e descer.
7.
257
8.
Nietzsche alcançou o sábio: pensou por imagens – Zaratustra e
Dioniso são os seus personagens imagéticos, secundariamente conceituais:
o gesto criador em si mesmo encarnado no humano como
transpassamento, ultrapassagem, morte na vida, vida na morte: cântico e
dança, música e poesia, palavra e oração – metáfora: vida produzindo
sentido através de mudanças, transposições de algo propriamente dito
para uma figuração propriamente dita em infindáveis vórtices
desejantes, amantes, amados. Por que não?
9.
A produção de atos mentais complexos e abstratos é uma
característica da espécie humana desde sua configuração epocal presente.
10.
Para pensar propriamente é preciso ousar. Para ousar, entretanto,
é preciso pensar. Mas, para pensar propriamente é preciso escutar. Para
escutar é preciso não-pensar. Para não-pensar, deixar-se suspender no
TudoUm: um Todo suspenso no Nada. Um Nada percebido no Todo de
quem percebe. Quem percebe?
11.
Pensar e não-pensar se copertencem: um está sempre onde o outro
não alcança. Ambos se delimitam um no outro, um pelo outro: metáfora
da Diferença Ontológica.
12.
Quando Um se torna Dois tudo se reflete em tudo: diferenciação,
multiplicidade, conjugação, relação, geração, potenciação.
13.
A inteligência é a sensibilidade consciente da consciência e da
inconsciência: o amar polifônico – reverência à Vida Abundante.
Abertura para o aberto: mirar-se no extraordinário.
258
14.
O ser humano busca o absoluto porque ele mesmo é filho do Desejo
inteligente da Vida. O seu esquecimento sensível é sua mortificação
paralisante.
15.
A pergunta pelo ser humano e sua finalidade abrangente é a
questão fundamental: buscar-se a si mesmo – eis a sina do ser humano
como potência vivente. Quem somos nós, então? Como alguém pode
alcançar o verdadeiro e o falso sem o alcance de si mesmo?
16.
Desnudar-se significa abrir-se ao mistério do ser em si mesmo. Será
isto inconsistente, portanto, ilusório, no sentido do efeito imaginoso do
real, “subjetivo”?
17.
Todo fenômeno é fenômeno implicado: o ser humano em sua
compleição ontológica – ser como se é percebido; perceber como ser
percebido: alteridade radical: princípio, meio e fim, e não antes princípio
ou fim.
18.
Princípios do Educar Transdisciplinar (uma possibilidade):
19.
A diversidade realiza a unidade de tudo o que é. O que é, por ser
UNO, é sempre diverso. A diversificação do UNO não se opõe ao
mesmo, mas o realiza como o VAZIO PLENO. O múltiplo do diverso é
sempre a impermanência do UNO, pois qual é a forma do sem-forma?
20.
O UNO ama a impermanência das formas. A unidade mesma é
vazia de formas. A realização do Diverso e do Múltiplo não se opõe ao
UNO. UNO e MÚLTIPLO dá no mesmo. Isto, entretanto, não os
confunde.
21.
Os fundamentos filosóficos da transdisciplinaridade são os modos
de acesso ao ser do ente em sua totalidade. O filosófico diz respeito ao
modo como somos constituídos como seres abertos no comum-
pertencimento de tudo. O filosófico é o modo próprio do
autoconhecimento que se vai construindo polilogicamente, isto é, pela
ultrapassagem continuada da “mente velha condicionada”. Filosófica é a
atitude incondicional de amar a Vida-sendo, amar o Saber-Ser na
conjuntura do Simples: comum-pertencimento de tudo. Conjunção de
corpo e alma, ente e ser, mundo e humanidade aprendente.
22
Autoconhecimento próprio e apropriado. Tudo é um no todo das
partes. A vida abundante da espécie humana em sua ambiência vital é o
chamado comum. A vida humana reclama dignificação e cuidado. O que
precisa ser cuidado é justamente o ser humano que é também capaz de
não-ser humano. Os outros entes por serem “naturais” sabem se cuidar
260
23.
Quais são nossos maiores desafios para a realização de uma prática
transdisciplinar? Educar Transdisciplinar – o que é isto?
O significado amplo e específico da expressão requisita a
compreensão do processo histórico da educação disciplinar moderna. É
preciso que cada um tenha presente o funcionamento efetivo do modelo
vigente de educação, modelo praticado diariamente em nossas atividades
pedagógicas. É preciso que cada um reconheça sua própria prática
docente marcada pela fragmentação característica do modo de produção
da civilização moderna e contemporânea. O reconhecimento das
condições efetivas de nossa existência é o primeiro passo do
autoconhecimento: aprender sendo. Sendo o que? Sendo plenitude
vivente: transformação amorosa.
24.
A questão aqui não é individual e sim conjuntural (coletiva). O
foco não é a deficiência do professor isolado e nem a do aluno, mas a
realidade total na qual estamos inseridos historicamente como seres
humanos concretos. Por que o mundo se encontra tão dividido e
fragmentado em setores e regiões materiais e simbólicas? O que se passa
com nossa educação escolar? O que é necessário para tirá-la da inércia
em que se encontra imersa e acomodada? Será que uma bomba de
nêutrons seria suficiente para perfurar a inércia instituída?
25.
Só uma mudança radical de atitude em relação à vida e ao
trabalho humano podem promover a mudança trans-formativa
necessária para a modelagem humana benquerente. É preciso,
entretanto, encontrar-se disposto a aprender a aprender a ser-sendo – uma
disposição amorosa fundamental.
26.
O transdisciplinar implica em uma mudança de atitude – uma
mudança ontológica – mudança na ordem do modo de ser em relação a si
mesmo, ao outro e ao mundo. Trata-se de aprendermos a conhecer o
caminho radical do desenvolvimento humano autossustentável, que nos
religue ao todo da vida e unifique nosso ser, fazendo-nos co-responsáveis
261
27.
Transdisciplinar é a atitude de transpassamento do disciplinar – a
transformação da atitude dualista e fragmentadora em atitude aberta ao
aprender a aprender unitário e simples, plural e complexo.
28.
Afinal, o que significa aprender a aprender? Em que sentidos e
direções? O que se deve aprender na escola e na vida? Aprender
disciplinas isoladas, conteúdos dissociados das realidades vividas pelos
seres humanos? Por acaso se deve aprender a ser, aprender a conhecer,
aprender a perceber, aprender a viver junto, aprender a fazer? Mas como
aprender a aprender? Quem vai ensinar?
29.
Como é na prática este aprender a aprender? Como é que isto
implica em uma mudança de atitude radical do professor em relação ao
que deve ser “ensinado” nas aulas das diversas disciplinas do currículo
instituído?
30.
O Educar Transdisciplinar não concebe mais disciplinas isoladas
na composição da prática docente e sim uma rede de saberes e
conhecimentos unificados pela atitude comum a ser aprendida e
realizada por todos: a atitude investigativa potencializadora do aprender
a aprender a tornar-se o que se é.
31.
Só se pode aprender aprendendo. É sempre bom lembrar-se desta
obviedade. O educar é um aprender a saber-fazer próprio e apropriado. No
Educar Transdisciplinar não há mais o professor que ensina. Não há
mais a figura daquele que se limita simplesmente a “transmitir” os
conhecimentos formalizados que ele aprendeu em sua formação
disciplinar. O professor disciplinar dá lugar ao educador transdisciplinar.
Ele não “ensina”, mas oportuniza a aprendizagem dos conhecimentos de
sua área de atuação, estabelecendo relações com os outros saberes a
partir da atitude aprendente radical.
262
32.
Sem a pretensão de “ensinar” e sim com a disposição de deixar o
outro aprender de maneira própria e apropriada, o educador é aquele
que, de repente, aprende a aprender. Para isto ele precisa, em primeiro
lugar, autoconhecer-se. Autoconhecer-se significa desenvolver-se
plenamente: tornar-se aquilo que se é.
33.
O educador transdisciplinar é investigador do conhecimento
abrangente a partir de si mesmo – tendo a si mesmo como campo de
realização do aprender a aprender a ser-sendo.
34.
O educador transdisciplinar não repete o que aprendeu
mecanicamente, para que o outro repita sem compreensão aprendente
própria, mas ressignifica constantemente a abordagem do que deve ser
aprendido essencialmente por todos os educandos.
35.
O educador tem que ser ele mesmo um caminho de
autodesenvolvimento sustentável, caso queira oportunizar o
aprendizado do educando sob sua responsabilidade, dando-lhe acesso ao
desenvolvimento de si mesmo, a partir de uma determinada área do
conhecimento histórico.
36.
Educar, assim, significa cuidar para que o outro possa seguir
desenvolvendo-se e florescendo plenamente: possa aprender a aprender
com Arte.
37.
Sem continuar sempre aprendendo ninguém pode educar ninguém:
faltar-lhe-á a vitalidade aprendente para potencializar no outro a
possibilidade do aprender a aprender.
38.
O Educar Transdisciplinar se articula e organiza a partir da
atitude aprendente fundamental: Disposição amorosa para o saber de si,
do outro e do mundo.Essa disposição amorosa compreende o instituído e
o instituinte, o constituído e o constituinte, o já feito e o por fazer, o
conhecido e o desconhecido, o atual e o potencial, a vida e a morte, a
263
39.
No Educar Transdisciplinar há também o saber dizer não: Não
será aplicado nenhum regime normativo relativa à avaliação
educacional, e sim a realização de uma desconstrução crítica dos
processos avaliativos vigentes, visando com isso subsidiar um processo
avaliativo polilógico, o que pressupõe uma revolução no âmbito da
educação formal, a partir de uma revolução de nossa relação com a vida-
sendo em sua totalidade, pelo encontro de nosso lugar no mundo.
40.
Citando Andrei Tarkovski no filme Stalker:
“Que se cumpra o idealizado.
Que acreditem.
Que riam das suas paixões.
Porque o que consideram paixão, na realidade, não é energia
espiritual,... mas apenas fricção entre a alma e o mundo
externo.
41
Princípios Axiais para a organização transdisciplinar:
264
42.
265
43.
A atitude Transdisciplinar pressupõe um ethos comum e harmonioso –
sem perder de vista a visada de Heráclito (Frag. VI): O contrário é
convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia.
44.
Uma compreensão: Transdisciplinar é a realização conjuntural efetiva
– a conjunção intencional do comum-pertencimento compartilhado,
interativo, integrador.
46.
Para que educar?
47.
48.
49.
Contextualizando:
Como dar continuidade ao que foi construído como morada para um
educar transdisciplinar?
50.
51.
“O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem
nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo,
acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.”
Heráclito, Fragmento XXIX
269
Referências
AUROBINDO, Sri. A evolução futura do homem. A Vida Divina sobre a Terra. São
Paulo: Cultrix, 1976.
BOHM, David; PEAT, David. Ciência, Ordem e Criatividade. São Paulo: Gradiva,
1995.
LUPASCO, Stéphane. O Homem e suas Três Éticas. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém.
Tradução de Mário da Silva. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.