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Quarta-feira

Saúde mental e teorias de transformação

Não basta estar saudável (como uma pedra), mas é parte de ter saúde sentir-se e interpretar-se como saudável

Muitos já observaram certa relação entre clima e saúde mental. Não creio que temperamento e temperatura tenham entre si outra relação a não ser
o fato de que ambos criam em nós uma posição diante da mudança e da repetição, como que a dizer o que temos que aceitar, como um fato da
vida, se está chovendo ou faz sol. Por exemplo, a maneira como eu descrevo uma pedra, se eu a chamo de stone ou de steine, se eu digo que ela
contém vanádio ou chumbo, isso não altera em nada a pedra, ela mesma, em sua substância de "pedridade". Ocorre que, em nossas experiências
de sofrimento, a "substância" de nossa saúde mental parece desobedecer a essa regra simples. Se eu digo que meu vizinho é um "louco de
pedra", se eu leio um poema que me descreve como uma "pedra largada ao sol", a versão que faço de mim e dos outros em relação a mim altera
quem eu sou e como eu sofro. Deveríamos poder substituir descrições em terceira pessoa como: "Faltam 21 gramas de serotonina em seu
cérebro" por descrições em primeira pessoa como "sinto-me triste e sem iniciativa, com dores nas costas e problemas para dormir". Mas, na saúde
mental, a descrição que o paciente faz dos sintomas altera ou constitui os sintomas eles mesmos.
Quando a Organização Mundial de Saúde redefiniu a saúde como "o mais completo estado de bem-estar bio-psico-social", em vez de "ausência de
doença", isso parte da invenção de uma nova experiência de saúde. Não basta estar saudável (como uma pedra), mas é parte de ter saúde sentir-
se e interpretar-se como saudável. Vemos, assim, como sofrer depende tanto da narrativa de sofrimento quanto de uma gramática de
reconhecimento e ainda de uma espécie de pragmática pela qual compartilhamos, derrogamos ou legitimamos "quem" pode sofrer "como". Se a
experiência real de sofrimento depende de como falamos dela e de como ele é reconhecido, existe uma espécie de luta ou conflito entre diferentes
narrativas nos ajudando a entender por que existe um corte de classe, raça e gênero que dá mais visibilidade a certas maneiras de sofrer do que a
outras.
Entendemos também por que o "clima político" afeta nossas disposições de sofrimento. Isso não ocorre por causa de alguma substância tóxica no
ar, que nos contamina com radiações de otimismo ou pessimismo, mas porque discursos políticos contêm necessariamente teorias de
transformação. Eles não querem nos convencer apenas de que a tese A é melhor do que a B, mas de que as mudanças ocorrem segundo a
causalidade C ou D — por exemplo, pela graça divina ou pelo trabalho dos homens. A teoria de que o problema do país são as "maçãs podres" e
que, na hora que limparmos a casa, tudo melhora, não envolve apenas uma concepção sobre a institucionalidade do país. Ela produz uma certa
relação com nós mesmos, com o cuidado e o destino que damos ao nosso sofrimento. Notemos como a teoria da maçãs podres é similar a pensar
que o problema da sua vida são aqueles "quilinhos a mais", ou que o que precisa mudar no seu marido é aquela "cervejinha de fim de semana"
(que quase sempre vira uma "cervejona").
A teoria da purificação pensa a transformação como eliminação do agente tóxico. O mal vem de fora, ele não depende de nós nem foi criado por
nós. Uma dificuldade no tratamento do sofrimento psíquico é que ele tende a se autoconfirmar, buscando a realidade que ele precisa para se fazer
reconhecer. Disso decorre que as pessoas que sofrem carregam também suas próprias teorias de transformação. Teorias que são ao mesmo
tempo políticas, estéticas, morais e religiosas. Se agarram a elas, como fonte segura dos problemas que têm pela frente e das soluções possíveis.
A psicanálise se distingue, neste caso, não apenas por transformar o sofrimento segundo a narrativa e as expectativas de reconhecimento que
cada um criou para si, mas alterar a própria "teoria" da transformação a qual estamos apegados.

Quinta-feira

Sofrimento e produtividade

Revertemos o sofrimento como algo a ser evitado para nossa aceitação tácita de que é preciso fazer sofrer

A Constituição de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde, dois anos depois, representaram um esforço do Brasil para criar uma forma de vida
em confronto ativo com o mal-estar. A criação do SUS, depois a reforma psiquiátrica e depois ainda o Sistema Único de Assistência Social (Suas)
generalizam a cobertura de saúde, antes restrita aos que trabalham. Ela incorporou a mutação do conceito de saúde, do silêncio dos órgãos e da
ausência de doença para o, assim definido pela Organização Mundial de Saúde, “mais completo estado de bem estar bio-psico-social”. A ideia de
levar saúde de forma universal, integral e equitativa para todos, em um país de natureza federativa como o nosso, não tem muitos paralelos no
mundo. Ainda mais quando se considera que este projeto ambicioso convive com patamares de financiamento que vão dos 3% aos 5% do PIB,
quando países europeus chegam a 20% e a média africana é de 9%.
Contudo, quero chamar a atenção para o momento no qual este projeto acontece e para outra mutação, talvez inesperada, que o acompanha. O
Estado de Bem-Estar Social surge no pós-guerra, no contexto do programa liberal de proteção do trabalhador. Ele responde à ancestral
preocupação do Estado com as epidemias que ameaçam a soberania nacional e o adoecimento dos trabalhadores que prejudica a produtividade
empresas. Por isso, é preciso proteger a população do sofrimento, pois ele diminui o engajamento, aumenta o absenteísmo, altera imprevistamente
a ocupação de postos ou pode manter pessoas envelhecidas indefinidamente em suas funções. Um ano depois de abolirmos a escravidão,
Bismarck criava a aposentadoria. Vinte anos depois do “verão na praia”, símbolo da realização do estado de bem-estar social, nós criamos o SUS.
Entre uma coisa e outra, infiltrou-se uma mudança inesperada. Em 1974, Myrdal, epígono da teoria liberal, dividia o prêmio Nobel com Hayeck,
teórico do neoliberalismo. Implantado pela primeira vez no Chile de Pinochet, no contexto do golpe de 1973, o neoliberalismo não é apenas a
defesa da diminuição do Estado, ele traz consigo uma nova política para o sofrimento. Por que, em vez de proteger contra o sofrimento, não
estimulamos o sofrimento como motor do aumento de produtividade? Por que não demitir 10% dos empregados de uma empresa anualmente,
apenas para criar um clima paranoico, de reality show, e, com isso, fazer as pessoas se engajarem mais em suas tarefas? Por que não praticar
uma política esquizoide que faz os diferentes departamentos de uma empresa competirem entre si, de modo a criar uma pressão para aumentar o
valor agregado de cada unidade e a redução de custos? Por que não valorizar os trabalhadores maníacos que se dedicam permanentemente com
sangue nos olhos e imunidade (natural ou artificial) ao cansaço? Por que não dar mais trabalho do que a pessoa pode aguentar fazer, para
aproveitar-se de seu sentimento de culpa, inadequação e insuficiência para extrair um extra de foco e dedicação? Por que não criar trabalhos em
regime precário ou intermitente, como o dos operadores de telemarketing ou dos caminhoneiros, de tal maneira que a métrica comparativa, a
humilhação e a agressividade contida de cada um possa se verter em mais resultados, ainda que com o efeito colateral epidêmico em termos de
depressão e suicídio?
Ou seja, o desmanche do SUS, sua asfixia planejada, não é só parte de uma época de “vacas magras”, mas depende desta reversão do sofrimento
como algo a ser evitado para nossa aceitação tácita de que é preciso fazer sofrer, desenvolver técnicas de sofrimento em estrutura de gestão, para
poder extrair mais e melhor resultados produtivos. A ironia maior é que aqueles que hoje defendem a máquina de moer carne serão os mesmos
que amanhã se queixarão por ter virado bagaço de cana.

Sexta-feira
Humanizar ou não

Nos EUA, Ajit Varki faz a diferença pesquisando com verba pública, em uma universidade estadual. E no Brasil?

Usain Bolt, considerado o homem mais rápido do mundo, corre cerca de 10 metros por segundo – aproximadamente 37 km/h. Apesar de os
humanos serem capazes de alcançar altas velocidades, não foi isso que os distinguiu de outros mamíferos predadores. Os ancestrais dos humanos
eram peculiares na maneira com que caçavam. Ao invés de depender de rápidas arrancadas, como as onças, para alcançar um antílope,
simplesmente conseguiam correr até que as presas ficassem exaustas. Essa habilidade seria especialmente útil no momento em que, há 3 milhões
de anos, o clima mudou e as florestas africanas secaram, tornando-se savanas. Os pré-humanos daquele tempo apresentaram modificações no
esqueleto que lhes conferiu pernas mais compridas e tornaram possíveis essas longas corridas.
Estudos propõem que a perda de pelos e a expansão das glândulas de suor deve ter ocorrido nesse período, fazendo com que esses corredores
pudessem refrescar-se, mantendo a temperatura apesar do intenso exercício. Como diz Dan Liberman, biólogo evolucionista de Harvard, as
"batatas de sofá", que são os humanos de hoje, têm genes de maratonista.
Um estudo publicado por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em San Diego, trouxe uma das primeiras evidências genéticas de como os
humanos adquiriram a capacidade de conquistar territórios, correr por mais tempo e eventualmente dominar o planeta. Há 20 anos, Ajit Varki
determinou uma das primeiras diferenças genéticas entre humanos e símios, um gene chamado CMAH, que trabalha na produção de um açúcar
chamado ácido siálico. Os humanos têm uma versão "quebrada" desse gene e não produzem esse açúcar. Os pesquisadores do grupo criaram
camundongos com a versão símia e outros com a versão humana do gene, e os colocaram a treinar em esteiras. Os animais com o gene humano
correram 12% mais rápido e aguentaram 20% mais tempo.
Quanto a Nike pagaria por esse aumento nos atletas que ela patrocina? As pernas dos animais "humanizados" tinham mais vasos, e seus
músculos ficavam contraídos por mais tempo, na comparação com os outros camundongos. Estima-se que essa mudança genética nos
hominídeos ocorreu entre 2 milhões e 3 milhões de anos atrás. Esse estudo é hoje exemplar pela maneira com que integra pesquisas em fósseis,
geologia, clima, e tecnologia genética de ponta.
Em outubro vou a San Diego, e já marquei de sentar e tomar um café com o colega Varki. Vou ouvir dessa e de outras pesquisas que ele faz, com
verba pública, em uma universidade estadual, com museus que são mantidos pelo governo federal dos Estados Unidos. Da minha parte, preciso
comentar com ele que o Museu Nacional brasileiro incendiou por negligência criminosa das autoridades que deveriam mantê-lo, que o governo
Temer liquidou as verbas do CNPq, e que o Brasil quer eleger alguém que elogia a ditadura militar. Quem sabe não estávamos melhores com os
genes dos primatas que nunca se humanizaram.

Sábado

O melhor antídoto

A principal mensagem dos livros de Siddhartha Mukherjee é a capacidade humana de conquistar o que não entende

Uma das seções de que gosto de ler na Nature é o que publicaram há 100 anos. Recentemente, resgataram um artigo de 22 de agosto de 1918,
exaltando um avião que levou quatro pessoas da Inglaterra para o Egito. O autor maravilha-se com a possibilidade de viagens aéreas entre países,
discutindo seu grande potencial comercial. Era o fim da I Guerra Mundial, e a humanidade daria um gigantesco salto tecnológico. Contudo, cem
anos depois, existem aqueles que defendem que a Terra é plana. Como elas explicam que os hoje corriqueiros planos de voo dos aviões precisam
considerar a curvatura da Terra para traçar seu curso e velocidade, e alcançar seu destino? Vivemos num mundo altamente tecnológico, e a maioria
das pessoas não entende como as tecnologias funcionam – Carl Sagan dizia isso. Mas existe uma diferença entre não entender algo e negar-se a
aprender.
Na minha experiência, as pessoas têm curiosidade, querem compreender. Ficam fascinadas quando alguém como Siddhartha Mukherjee, o
próximo conferencista do Fronteiras do Pensamento, consegue traduzir algo complexo como o câncer. Siddhartha é biólogo por Stanford e
imunologista por Oxford, mas o que aprendeu de biologia levou-o a estudar Medicina em Harvard. Nessa época já reconhecia em si uma profunda
compaixão pelas pessoas, e chocou-se ao começar a atender pacientes oncológicos. Impressionou-se profundamente com a posição de fragilidade
em que se encontram não apenas aqueles que têm câncer, mas seus entes amados. Intuiu que o medo que a doença inspira vem do
desconhecimento que tanto o paciente, como pesquisadores e médicos, ainda tem desse que denominou o Imperador de Todos os Males.
Seu livro ganhador do Pulitzer, com esse nome, é o resultado de colocar em prática o conselho de Richard Feynman: se quiser entender algo
complexo, ensine para quem não entende nada. Pesquisou as origens conhecidas do câncer; a evolução da sua compreensão e,
consequentemente, do tratamento. O resultado é quase um romance. Siddhartha, buscando ser um bom médico, revelou-se um grande escritor.
Lendo e relendo o livro, sinto que o texto nasceu do casamento entre duas paixões, a do médico por seus frágeis pacientes, e a do cientista pelo
conhecimento. O resultado é o esclarecimento – e é esse o melhor antídoto ao paciente.
O medo nos faz tapar olhos e ouvidos, mas não muda a realidade. O conhecimento, sim. Por isso, os cientistas amam o desconhecido, ao invés de
temê-lo. O Gene, livro seguinte de Siddhartha, usa a mesma abordagem histórica e quase cinematográfica para esclarecer a todos como funciona
a genética. Nos dois livros, a principal mensagem não é o quanto não sabíamos no passado, nem o quanto sabemos hoje – mas a capacidade que
a humanidade demonstrou de conquistar o que não entende. Negar-se a aprender com essas conquistas só pode trazer sofrimento.

Domingo

As dádivas do pensamento

Nunca o pensamento precisou tantos dos seus defensores como agora

Darcy Ribeiro dizia que a crise na educação não é crise; é um plano. Povo sem educação é fácil de assustar, convencer, manobrar. Hoje cientista
brasileira, eu tive uma boa formação, publica e gratuita. Desenvolvo pesquisa para o SUS, com verba governamental, vinda de impostos – algo que
ocorre cada vez menos. Formei estudantes que hoje trabalham em instituições de excelência em diferentes locais do mundo – no Brasil, faltam
posições para eles. O que eu aprendi, e ensino, é como usar o pensamento racional para solucionar os problemas e melhorar o mundo. Isso
funciona porque outros que vieram antes de nós fizeram assim, e graças a eles existe o tipo de vida de que desfrutamos. Sabemos que aqueles
que desprezaram e oprimiram o pensamento levaram a humanidade a episódios de destruição e pobreza.
Assistindo a reações aos vídeos de debates entre candidatos a presidência, é difícil entender como alguém consideraria votar em um candidato
que acredita que educação é um luxo e deveria ser privatizada. Ou no que defende que matar os "bandidos" erradicará o crime. Até certo ponto.
Aquilo que você acha normal revela o que você realmente pensa, mesmo que você negue. Se alguém acha normal que, em um país
majoritariamente negro, a maioria dos universitários é branca, essa pessoa acha mesmo que brancos são melhores do que negros. Se é normal
pra alguém que a maioria dos cargos de poder seja de homens, e que eles ganhem mais, sendo as mulheres 50% da população, é porque acredita
que os homens são melhores. Mas como lidar com os fatos que mostram que o que se acha normal está errado? Se a pessoa é um dos
privilegiados por essa situação, então ela sabe que, assim, continuará nessa posição. Nesse caso, não adianta nada mostrar o quanto o candidato
é racista, ou machista – está tudo bem. Mas outros não estão cientes do quanto são prejudicados, devido à falta de educação para pensar
criticamente. Uma mulher que vota em um candidato declaradamente sexista é vítima de eras de ensinamentos de que ela tem menos valor .
Nunca o pensamento precisou tanto dos seus defensores como agora. As dádivas do pensamento convivem hoje com outras características
humanas, como lealdade a tribo, ou culpar outros por seus problemas. Intelecto é uma característica humana. Pode ser subutilizado às vezes, mas
responde a estímulos – a fatos. Evoluiu para isso. E é o momento de, em todas as situações diárias, lembrar – não com ideologia ou
sentimentalismo, mas fatos – ao seu circulo de pessoas do que estas teriam de abrir mão num país que desiste de ciência, de educar, de pensar.
Água potável. Microondas. Internet. Canais de esporte. Viver mais de 80 anos. Apele: cirurgia plástica. Viagra! Há 200 anos nos dizem que a ciência
brasileira não tem valor. Mas os fatos – esses pequenos detalhes – dizem diferente. Munir-nos de fatos, e conversar racionalmente – é o que
precisamos fazer, não apenas até a eleição, mas depois dela também. Porque pensar nos permite melhorar – e isso é um fato.

Segunda-feira

O futuro velho mundo

Ainda há líderes dispostos a apostar num futuro para o planeta

O contribuinte não sabe por que é preciso investir 1 bilhão de euros para estudar o cérebro, mas, se explicarmos que é para curar o Alzheimer, ele
entende. Com essa frase o coordenador da Comissão Europeia para Pesquisa e Inovação, Carlos Moedas, anunciou o maior orçamento da história
para a ciência na União Europeia. Serão 100 bilhões de euros – sem contar com o dinheiro da Grã-Bretanha, que deixa a UE em 2019. Houve um
incremento de 33% em relação ao programa atual, de 2014 a 2020. No Brasil, o orçamento de ciência e tecnologia de 2018 foi de R$ 3 bilhões.
O novo programa europeu tem três pilares: ciência básica, inovação e estimulo à competitividade industrial focando nos novos desafios da
sociedade. Mais da metade do dinheiro vai para os dois últimos. Inovar e estimular esforços industriais para resolver problemas de saúde, inclusão
social, clima, energia, mobilidade, comida e recursos naturais. Entre 5 e 10 bilhões de euros vão para projetos "de sonho" – moonshot, como são
conhecidos, em alusão a algo que pareça impossível. Por exemplo, limpar 90% do lixo dos oceanos ou zerar as emissões danosas de carbono em
cem cidades. O programa em si é inovador não só pelo montante inédito de recursos, mas por provocar a comunidade científica da Europa a usar
seu conhecimento diretamente para a contribuição social. O futuro apoio à ciência na Europa, diz Moedas, dependerá de o público compreender o
seu valor.
Em um continente que também investe muito em educação, será interessante ver como a tradicional distância entre leigos e cientistas se estreitará.
Se há um caminho para resolver problemas daquele calibre, é este: a imersão dos cientistas nos desafios enfrentados pelas sociedades, com apoio
da comunidade. E, claro, com dinheiro para atrair as melhores mentes e os melhores recursos. Finalmente, o apoio para inovação não será feito “de
cima para baixo”: não se investirá em disseminar tecnologias inovadoras, mas estimular o surgimento de outras sequer ainda imaginadas. E,
fundamentalmente, apoiar as iniciativas de colaboração entre grupos diversificados, que pensem os negócios que serão a base da economia do
futuro. Sim, vários modelos de negócio atuais ou desapareceram ou estão em vias de extinção (locadoras de vídeo; agências de viagem; lojas de
varejo). Vem aí um mundo novo, e talvez ele venha, desta vez, do Velho Mundo.
Na mesma semana, governantes prendiam crianças imigrantes em gaiolas e retiravam-se de comissões internacionais de direitos civis. Outros
agarravam-se às últimas migalhas de apoio dos parceiros de corrupção. Foi alentador ver que ainda existem líderes dispostos a apostar num futuro
para o planeta. Governantes que entendem quem paga seu salário e se preocupam em explicar como, por que e onde gastar o dinheiro
arrecadado. Que sabem que sua posição não é um prêmio pessoal, mas uma responsabilidade a ser exercida não para que suas próprias vidas
sejam melhores, mas sim a dos filhos e netos daqueles que os elegeram.

Terça-feira

O alfabeto do futuro

Os cientistas, mesmo numa época de tantos retrocessos, não deixam de sonhaNa mais nova série do universo Star Trek, desenvolvida neste ano
para a Netflix, um dos personagens centrais desenvolve a capacidade de agir como um "motor" especial, transportando a nave através do
tempo e do espaço. (Atenção: a partir daqui, spoilers!) Ele teve o seu DNA, seu material genético, misturado com o de um ser alienígena.
De algum modo, o novo ser híbrido adquiriu essa habilidade, podendo levar a nave Discovery (em inglês, "descoberta") onde – e quando –
ninguém jamais esteve.Enquanto alguns acham que ficção científica é o mesmo que fantasia, outros criam DNA alienígena em nosso
planeta. Nosso DNA é um texto em código, em que estão escritas nossas características. Esse código tem quatro letras (as bases A,T,G e
C). Elas trazem informações para centenas de milhares de proteínas, que formam os seres vivos. Combinações de três letras, AGC, por
exemplo, querem dizer o aminoácido serina; CGA quer dizer arginina. Do código, inferimos a sequência dos aminoácidos; e a sequência
nos dá cada proteína. As plantas fazem os aminoácidos a partir do ar; nós comemos as plantas, e refazemos alguns aminoácidos para
montar nossas proteínas. Assim tem sido desde que a vida surgiu na Terra: os mesmos aminoácidos, as mesmas proteínas, o mesmo
DNA.Isso até alguns anos atrás, quando cientistas desenvolveram novas letras e novos aminoácidos. Na semana que passou, o químico
Floyd Romesberg, do Instituto Scripps, na Califórnia, achou um jeito de incorporar esse novo DNA em um ser vivo. Ele e seus colegas
manipularam células da bactéria Escherichia Coli para incorporar dois tipos novos de bases – ou letras – em seu DNA. As bactérias leram
então essa nova informação e a traduziram, incorporando aminoácidos sintéticos para formar uma proteína fluorescente. Essa é a biologia
sintética, expandindo as fronteiras do que conhecemos como vida.Os cientistas chamaram isso de DNA alienígena, um nome descolado,
mas que não fica longe da verdade. As novas bases e os novos aminoácidos são sintéticos. Mas o fato de que hoje já funcionam em uma
bactéria evidencia o que poderia acontecer com esses compostos se fossem originários de outro planeta. O híbrido Tenente Stametz
de Star Trek faz a nave viajar no tempo-espaço; a bactéria híbrida californiana fica fluorescente.Um ser tão pequeno levando a
humanidade a desbravar mais uma fronteira. Num futuro próximo, isso nos possibilitará criar novos e melhores medicamentos e alimentos,
tratar doenças genéticas e, certamente, fazer outras coisas que sequer imaginamos. Penso no grupo da Califórnia, penso nos meus
colegas cientistas no Brasil e no resto do mundo. Esses indivíduos, mesmo numa época cheia de retrocessos e crueldades que
testemunhamos diariamente, não deixam de sonhar. E o mais bonito é, apesar de todas as dificuldades, trabalhar para ir sempre além do
sonho. Quisera todos pensássemos assim: em frente a algo que parece imutável, pensar diferente e, literalmente, reescrever o alfabeto.

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