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11/08/2015 Depoimento Sobre Hermínio Sacchetta

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O Caldeirão das Bruxas e Outros Escritos Políticos

Hermínio Sacchetta

Depoimento Sobre Hermínio Sacchetta

Conheci  Herminio  Sacchetta  por  acaso.  Um


amigo,  antigo  colega  do  curso  de  madureza,
Jussieu  da  Cunha  Batista,  trabalhava  como
jornalista em A Folha da Manhã.  Sempre  que  eu
podia,  passava  pela  redação,  para  batermos  um
papinho. Isso por volta de 1942 e 1943. Não me
lembro  exatamente  quando  fui  apresentado  ao
Sacchetta.  Ele  era  o  secretário­geral  e  ia  com
freqüência  em  busca  de  um  ou  de  outro
jornalista,  para  dar  ordens  e  supervisionar  a
produção. O Jussieu me apresentou ao Sacchetta
em  uma  dessas  idas  e  vindas.  Ele  sentia  grande
simpatia  pelos  jovens  da  Faculdade  de  Filosofia,
Ciências  e  Letras  e  abriu  o  seu  encantador
sorriso,  ao  saber  que  eu  estudava  Ciências
Sociais  e  estava  no  fim  do  bacharelado.  Passei  a  ser  incluído  no  seu
auditório de rotina e convidado para conversar com ele em sua sala. Eram
conversas rápidas, interrompidas por sua tremenda carga de trabalho e pela
variedade  de  assuntos  que  devia  enfrentar  a  cada  momento.  Daí  ao
cafezinho  fora  do  jornal,  às  conversas  mais  prolongadas  e  à  amizade,  que
durou  até  ao  fim  de  sua  vida,  foi  um  passo.  Como  Sérgio  Milliet  convidou­
me para escrever em O Estado de S. Paulo, no qual comecei a colaborar no
início de julho de 1943 (com três artigos sobre “O Negro na Tradição Oral”),
ele estrilou. “Pombas, nós nos encontramos quase todos os dias e você vai
dar a sua colaboração ao Estadão. Lembrei­lhe que ele nunca me convidara
para  escrever  na  Folha,  que  nossas  conversações  eram  intelectuais  e
políticas e não me movia o interesse de redigir artigos para vários jornais.
Mas, que estava às suas ordens. Ele fez o convite formalmente, muito sério.
O  primeiro  artigo  saiu  em  19/08/1943,  sob  o  título  “Mais  América”.  Isso
estreitou mais os contactos e a amizade.

Ele  era  um  homem  de  atração  magnética.  Não  conhecia  os  meios
termos.  Ia  direto  ao  que  fosse  central.  Como  eu,  estava  envolvido  na  luta
subterrânea  contra  a  ditadura  Vargas.  Só  que  eu  agia  ao  sabor  das

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oportunidades,  de  informações  de  colegas  da  Faculdade  de  Direito  sobre
encontros clandestinos e às vezes não confiava nos interlocutores, pois não
possuía  intimidade  ou  familiaridade  com  eles.  Os  estudantes  da  Faculdade
de  Direito  eram  os  campeões  da  oposição  a  Vargas  e  à  repressão  policial.
Misturava­me  com  eles  e  ousava  com  eles  as  escaramuças  de  rua  ou
conspirações  às  quais  comparecia  mais  gente,  inclusive  políticos
profissionais, intelectuais e burgueses radicais. O Sacchetta abriu­me outra
via de combate, mais secreta e com propósitos revolucionários. Aos poucos,
alarguei minha convivência nessa área e acabei incorporando­me ao PSR(1).
A  militância,  que  ficava  ao  meu  alcance,  não  era  intensa  e  profissional.
Contudo,  o  fato  de  pertencer  aos  quadros  da  IV  Internacional  abriu­me
novas  responsabilidades  e  esperanças,  outros  horizontes.  Vargas  e  sua
ditadura  eram  um  alvo  imediato.  A  revolução  proletária  fixara­se  como  o
objetivo  essencial.  Se  não  fizemos  uma  revolução  —  nem  contra  o  Estado
Novo  nem  contra  a  ordem  existente  —  o  meu  pensamento,  as  minhas
orientações  políticas  e  a  minha  personalidade  sofreram  uma  mutação
súbita.  O  socialismo  vago,  reformista  e  utópico,  iria  ceder  lugar  a  uma
militância política disciplinada, misturada com o contacto com trabalhadores
e  intelectuais  trotskistas  e  com  a  agitação  artesanal  contra  a  ditadura.  Vi­
me  envolvido  na  elaboração  de  um  jornal  mimeografado,  do  qual  nos
encarregávamos  Sacchetta,  José  Stacchini  e  eu  (rodado  de  madrugada  em
minha  casa),  na  sua  distribuição  e  em  uma  célula  da  qual  nós
participávamos com Alberto da Rocha Barros, Plínio Gomes de Mello e Victor
Azevedo (por pouco tempo, por ela andou Luiz Washington Vita, inquieto e
em  busca  de  seus  verdadeiros  caminhos,  que  não  se  cruzavam
definidamente  com  o  socialismo  revolucionário).  Para  Sacchetta,  eu  me
tomei  “o  Professor”.  Vivemos  várias  experiências  contraditórias  juntos,
inclusive  a  criação  da  efêmera  Coligação  Democrática  Radical  e  o
desvanecimento das esperanças de que a dissolução da ditadura nos levaria
mais longe do que a uma sub­democracia burguesa tutelada pelos militares,
sob o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra.

O que havia  de  melhor  no  mundo subterrâneo  das  atividades políticas,


que  perduraram  além  da  queda  da  ditadura  Vargas,  era  o  convívio
intelectual  e  político  que  nós  mantínhamos  com  certa  assiduidade  e
intensidade.  Tornando­me  assistente  da  Faculdade  e  aluno  de  pós­
graduação  da  Escola  Livre  de  Sociologia  e  Política,  eu  enfrentava  encargos
intelectuais,  discentes  e  docentes  dispersos  e  pesados.  Não  podia  ser  um
militante devotado a todos os papéis e obrigações e, ao mesmo tempo, logo
entraram  em  cena  as  teses  (de  mestrado  e  de  doutorado),  que  iriam  ser
uma  fonte  de  atrito  constante  com  os  companheiros.  Tendo  de  trabalhar
para  ganhar  a  vida,  pois  o  salário  de  assistente  era  baixo  demais,
combinava  tarefas  no  mundo  prático  com  os  artigos  para  a  Folha  e  o
Estado, que roubavam o tempo que o pessoal queria ver investido na ação

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política. Sacchetta sempre era o meu advogado e buscava justificar­me e só
tive  um  conflito  sério,  por  isso,  com  Victor  Azevedo.  A  frente  legal  ficara
muito  débil  e  a  ação  subversiva,  propriamente  dita,  demasiado  confinada.
Contudo,  os  debates  eram  sérios  e  profundos;  a  documentação  externa,
vinda  do  movimento  internacional,  alargava  a  visão  dos  problemas  da
revolução  mundial  e  dos  seus  entraves.  Era  nisto  e  nos  lançamentos  da
Editora  Flama  que  se  concentravam  os  verdadeiros  vínculos  com  a
aprendizagem marxista e o processo revolucionário como aspiração política
decisiva. Coube­me traduzir a Contribuição à Crítica da Economia Política. O
grupúsculo  funcionava  como  uma  microuniversidade  e  impelia­me  a
descobrir  por  minha  conta  o  jovem  Marx  e  a  desvendar  a  sedução  do  seu
pensamento  científico.  Até  que,  por  iniciativa  do  Sacchetta,  atendendo  às
restrições  que  os  companheiros  faziam  ao  pouco  tempo  que  eu  podia
destinar  às  nossas  atividades  obrigatórias,  fui  liberado  da  participação
militante.  Ele  nos  convenceu  que  eu  seria  mais  útil  na  universidade  e
produzindo  como  universitário.  Não  tinha  dúvidas  sobre  a  minha  firmeza  e
lealdade. E via com bons olhos que eu servisse à mesma causa por outros
meios.

Esta confissão não busca colocar­me como o personagem principal. Ela
revela  o  Hermínio  Sacchetta  de  corpo  inteiro,  em  sua  mente  e  em  seu
coração.  Um  homem  generoso  e  severo,  altruísta  na  dedicação  à  luta  de
classes,  à  revolução  proletária  no  Brasil  e  no  plano  internacional.
Prendíamo­nos a uma utopia e ele mais que qualquer outro. Ela constituía a
razão de ser de sua vida. Sedutor como pessoa e, ao mesmo tempo, capaz
de exercer uma tirania desconcertante sobre alguém que se convertesse em
alter  ego  (como  sucedera  com  Stacchini).  Quase  consciente  de  seu
narcisismo, porém tão íntegro e espontâneo na exteriorização do egotismo,
que  tudo  se  reduzia  a  um  “charme”  pessoal.  Adorava  o  “Velho”,  sem
queimar  nenhum  incenso  no  altar  dessa  veneração.  Na  melhor  tradição
socialista,  situava  a  cultura  acima  de  todos  os  valores.  Admirava  com
sinceridade  o  talento  e  incentivava  os  jovens  com  afinco.  Sonhava  com  a
autonomia  ideológica  dos  trabalhadores,  com  a  auto­emancipação  coletiva
que  iria  alterar  os  rumos  da  civilização.  Compensava  suas  incertezas
através  de  um  dogmatismo  sem  ranços  doutrinários,  pois  ele  nascia  da
convicção  inabalável  de  que  a  luta  de  classes  e  a  revolução  socialista
iniciariam  a  era  de  um  humanismo  de  novo  tipo.  A  sua  cultura  teórica
estava  abaixo  de  sua  responsabilidade  de  dirigente  e  de  suas  tarefas
práticas.  Mas  estava  muito  acima  da  média  dos  militantes  comunistas  da
época e do atrasado campo político que a situação histórica nos reservava.
Trotsky  e  o  trotskismo  brotavam  do  íntimo  de  sua  personalidade,
objetivando­se como um refúgio e uma reação compensatória diante de um
ambiente  de  dominação  burguesa  tosca  e  de  brutalização  dos  oprimidos,
subaltemizados  e  superexplorados.  Não  eram  uma  simples  fuga  do  real  ou

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uma  alternativa  ao  estalinismo.  Constituíam  uma  espécie  de  caminho  real,
que permitia enfrentar a tragédia sem ceder um passo à violência destrutiva
dos  de  cima,  sem  perder  a  confiança  na  classe  revolucionária,  tão  fraca  e
tão  pouco  preparada  para  desempenhar  suas  tarefas  históricas  de
demolição da ordem e de construção de uma nova sociedade.

Esse  homem  defrontou­se  com  a  ética  do  revolucionário  nas  piores


condições imagináveis. Lançou­se a várias aventuras e a muitas realizações
admiráveis.  Foi  destroçado  pela  máquina  repressiva  de  “preservação  da
ordem”, primeiro pela valorização e decapitação do talento, mais tarde pelo
braço comprido da ditadura militar. Adivinhava­se o seu drama interior, as
frustrações,  a  tortura  mental  que  o  dividia.  Todavia,  nunca  demonstrou
qualquer  renúncia  às  idéias  e  às  posições  assumidas.  Também  nunca
revelou  o  desalento  que  se  generalizava.  Permaneceu  inteiriço,  sempre
jovial  e  decente  no  trato  humano  —  e  sempre  pronto  para  “o  último
sacrifício”,  que  não  teve  a  felicidade  de  fazer.  A  morte  colheu­o  antes  que
novas  esperanças  denunciassem  que  a  repetição  do  passado,  pela  qual
atravessamos,  não  era  o  fim  de  sonhos  e  ilusões.  Esses  anos,  que  vão  da
década de 1940 ao término da década de 1960, talvez tenham sido os mais
fecundos  de  sua  auto­superação  e  de  sua  plenitude  —  os  anos  do  maior
ardor  revolucionário,  embricados  a  expectativas  aparentemente  sólidas  de
uma promessa socialista no futuro próximo. Caímos em um ardil da história.
Mas  Hermínio  Sacchetta  preservou  o  seu  domínio  interior  e  a  força  que
projetava a sua imaginação para a frente, sem dobrar­se às vicissitudes que
o  feriram  e  amarguraram.  Enfrentou­as  com  serenidade  e  venceu­as  pelo
amor  próprio,  nascido  do  superego  e  do  orgulho  de  um  marxista
revolucionário inquebrantável.

Hoje, que se pensa sobre ele ligando­o à sua atividade política e ao seu
significado  histórico,  duas  coisas  merecem  reflexão  prioritária.  Primeiro,  as
distinções que se erguem ao confronto entre o trotskismo intelectualista e o
militante.  As  figuras  que  marcaram  o  primeiro  eram  de  tal  peso,  que
ofuscaram  os  que  se  dedicaram  ao  último.  Não  obstante,  foram  estes  que
desencadearam  o  movimento  no  meio  operário  e  entre  os  jovens,  os
estudantes e as mulheres, que aplicaram as técnicas acessíveis de agitação
e  propaganda,  que  recorreram  à  luta  direta  contra  as  duas  ditaduras.
Também  intelectuais,  timbravam  por  reproduzir,  em  um  meio  acanhado  e
tosco,  as  aspirações  do  revolucionarismo  profissional  de  vanguarda.
Falharam, porém ficou o exemplo. Segundo, Hermínio Sacchetta suscita um
problema  específico  de  interpretação  da  história  política.  Os  cientistas
sociais  distinguiram,  sob  vários  ângulos,  a  personalidade­status,  a
personalidade  básica,  a  personalidade  democrática,  a  personalidade
autoritária etc. Poder­se­ ia acrescentar outros conceitos. O que importa, no
caso, é a pergunta: o que leva um homem a resistir, ao longo de sua vida,
a  todas  as  provações  e  “evidências  negativas”,  preservando  intocável  sua
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integridade política?

Penso  que,  sob  o  capital  industrial  e  as  pressões  destrutivas  da


opressão  ditatorial,  a  resposta  de  conteúdo  político  possui  uma  natureza
psicológica.  Não  existia,  para  os  trotskistas,  um  nicho  autoprotetivo  e  as
defesas das solidariedades de um forte movimento coletivo. A pessoa ficava
largada  a  si  própria,  ao  seu  potencial  ou  propensão  de  identidade  abstrata
com  uma  utopia  revolucionária.  Esta  aparece,  pois,  como  o  equivalente  do
“nós  coletivo”,  a  fonte  imediata  dos  dinamismos  psicológicos  de
autopreservação  e  de  auto­afirmação.  Mas,  há  um  contraste  a  salientar.  O
burguês típico se protegeria através de dinamismos psicossociais centrados
na situação de interesses, ou seja, na ideologia strictu sensu. O marxista de
extrema­esquerda, sob as incompreensões, as difamações e os ataques que
afetaram os trotskistas, dependia da formação de um horizonte intelectual e
político  centrado  na  pureza  da  utopia.  Ela  devia  ser  vivida  nos  limites
extremos  de  tensão  com  a  ordem  social  vigente  e  com  o  vir  a  ser
representado  como  gestação  da  sociedade  nova.  Portanto,  o  socialismo
potencial,  contido  na  variante  firmemente  revolucionária  da  personalidade
democrática,  explica  a  vitória  sobre  traumas,  frustrações  e  decepções  que
“desmontariam” o equilíbrio do eu nos casos comuns de in­ conformismo ou
de rebelião destituídos de idêntica polaridade utópica.

Lembro­me  de  um  encontro  pungente  com  Hermínio  Sacchetta,  na


esquina da rua 7 de Abril com a rua Conselheiro Crispiniano. Ele me tratou
com cortesia exagerada, como o Professor, e disse algumas amabilidades ao
Vladimir,  seu  filho,  a  meu  respeito.  Eu  repliquei.  Ele  estava  ressentido  e
arrasoado. Tivera de arcar com as conseqüências de uma demonstração de
coragem,  descrita  por  Jacob  Gorender,  que  a  ditadura  militar  punira  com
severidade  atenuada.  Mas  fora  despojado  do  seu  emprego  e  enfrentava
grandes  dificuldades  financeiras  e  profissionais.  Apesar  da  insegurança,
estava  erecto,  como  sempre,  mantinha  o  seu  ar  varonil  sem  arrogância  e
demonstrava  fé  na  ciência  e  no  porvir.  Não  era  o  movimento  proletário
revolucionário que o sustinha. Mas o socialismo como chama interior, como
convicção  de  que  muitos  precisam  tombar  —  e  é  normal  e  necessário  que
tombem — para que “a revolução triunfe”.

Florestan Fernandes

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Notas de rodapé:

(1) Partido Socialista Revolucionário (retornar ao texto)
Inclusão 21/04/2014

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