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O FILHO DE DEUS

Título Original: Jesus, The Son of God

Copyright © 2014 por Koilas Editora


Todos os Direitos Reservados

Preparo do Original
Antônio Carlos

Tradução
Sebastião Eduardo

Revisão
Ricardo Alexandre

Capa
Anderson Queirós
Bacon, BejamimW

O Filho de Deus: Reflexões sobre a Cristologia Primitiva/ Bejamim W. Bacon: trad.: Sebastião Eduardo. Florianópolis. Koilas. 2014.

Título original: Jesus, The Son of God

Bibliografia.

1. Cristologia 2. Acadêmico 3. Novo Testamento


Prefácio à Edição Brasileira

Sobre a pessoa de Jesus Cristo, muito já foi escrito, muito mais do que qualquer outra pessoa na
história da humanidade. Apesar disso, Ele permanece ainda muito além de ser entendido por
completo ou analisado até a exaustão. A Cristologia do NT é um campo muito amplo, e um volume
interminável de literatura já foi produzido sobre o assunto. Para agregar ainda mais informação de
qualidade ao estudioso brasileiro da Cristologia, temos muita satisfação em trazer ao leitor de língua
portuguesa um dos trabalhos mais importantes do teólogo estadunidense Benjamin Wisner Bacon,
intitulado originalmente Jesus, the Son of God.
Benjamin W. Bacon foi um prestigiadíssimo teólogo cristão americano. Nasceu em Litchfield,
Conn, graduou-se na Universidade de Yale (Divinity School, 1884) e depois de servir muitos anos
como pastor em Old Lyme, Conn (1884-1889), e em Oswego, NI. (1889-96), foi designado instrutor
de grego do Novo Testamento na Yale Divinity School e se tornou, em 1897, professor de criticismo
neotestamentário e exegese. Sendo escritor prolífero, contribuiu com diversos estudos para o Hibbert
Journal, bem como o American Journal of Theology. Ambos jornais de teologia dos quais foi editor.
Suas obras incluem:

The Genesis of Genesis (1891)


Triple Tradition of the Exodus (1894)
The Sermon on the Mount (1902)
The Story of St. Paul (1904)
An Introduction to the New Testament (1907)
The Founding of the Church (1909)
The Fourth Gospel in Research and Debate (1909)
Jesus the Son of God (1911)
The Making of the New Testament (1912)
Theodore Thornton Munger (1914)
Is Mark a Roman Gospel? (1919)
The Gospel of Mark: Its composition and date (1925)

O texto original de Jesus, The Son of God, é composto por três ensaios críticos sobre os títulos
aplicados a Cristo nas fontes mais antigas do Novo Testamento. Esses ensaios foram originalmente
publicados no Harvard Theological Review (1909-1911). Posteriormente, eles foram publicados em
forma de livro.
SUMÁRIO

Introdução

Capítulo 1
JESUS COMO FILHO DE DEUS
A Revelação Dada aos Pequeninos
A Relação do Dito com Marcos 4:11
Conhecer e Ser Conhecido por Deus
Relação do Dito das Chaves do Reino em Mt. 16:19
Criação do Dito sobre a Consciência Messiânica de Jesus
A Esperança Messiânica dos Profetas aos Fariseus
Desenvolvimento Tardio
Relação à Reivindicação de Messias

Capítulo 2
JESUS COMO FILHO DO HOMEM

Capítulo 3
JESUS, O SENHOR

Capítulo 4
A CRISTOLOGIA DE PEDRO
INTRODUÇÃO

Cristo é a figura central do Novo Testamento. Entender Sua pessoa, conforme as Escrituras nos
ensinam, não é tarefa muito simples. Para atingirmos esse objetivo nobre, portanto, faz-se necessário
uma análise dos títulos que os escritores bíblicos usaram para descrevê-Lo. No entanto, ao
perguntarmo-nos quem é Cristo, não objetivamos apenas saber Sua natureza, mas sim, Sua função,
principalmente dentro das promessas de Deus encontradas no AT.
Dos inúmeros títulos que o Novo Testamento usa para descrever a Cristo, dois são de especial
interesse nesse estudo: “Filho de Deus” e “Filho do Homem”. Como esses títulos eram
compreendidos antes do advento do Cristianismo? Qual seu valor semântico em uma perspectiva
filológica? E como os primeiros cristãos interpretaram e criaram sua Cristologia com base nas
imagens do Antigo Testamento?

O Problema da Cristologia Neotestamentária


Ao depararmo-nos com o problema da Cristologia para os primeiros seguidores de Jesus, é
imprescindível entendermos a importância que tal pensamento tinha dentro do corpo doutrinário da
Igreja primitiva. Várias indagações nos surgem, principalmente no que diz respeito a como as
primeiras comunidades cristãs viam a Sua pessoa e interpretavam Seu papel e, além disso, qual era a
base para assim o fazerem.
Evidente que, devido sua herança religiosa, seria mais do que natural enxergar Cristo dentro dos
moldes judaicos, principalmente da escatologia primitiva. Mas como chegarmos ao ponto mais
primário? Ora, interpretar Cristo e entender Seu lugar nos planos salvíficos de Deus seria o mínimo
de se esperar por partes dos primeiros cristãos, principalmente em vista das inúmeras interpretações
que surgiriam posteriormente.
Entender o desenvolvimento da doutrina até o ponto mais primário, responder as possíveis
divergências entre o Cristo do Novo Testamento com o Messianismo judaico tardio, são alguns dos
pontos que constituem o problema Cristológico.

Jesus como “Filho de Deus”


A expressão “Filho de Deus” é um dos termos cristológicos mais complicados para se estudar. A
nossas versões em português destacam sua importância messiânica ao colocar a letra “f” em
maiúscula para destacar seu caráter. No entanto, a expressão é muito comum na literatura bíblica
canônica, extracanônica e secular, tendo sido bastante usada no Egito e na literatura helenista.
No AT, o termo “Filho de Deus” é usado pelos escritores sob, pelo menos, três formas diferentes:
1) o povo de Israel, por completo, é chamado de “filho de Deus”, 2) o rei na nação sustenta também
esse título, e 3) agentes especiais enviados e comissionados por Deus para cumprir Sua vontade
também recebem esse título peculiar.
Quando analisamos o contexto de uso de textos como Os. 11:1, observamos que o título em
questão carrega um valor específico, a obrigação da obediência a Deus, sujeição a Sua vontade,
dependência dEle e proteção.
O mesmo ocorre também quando em 2 Sm. 7:14 Yahweh declara que será um “pai” para o rei, e o
rei, um “filho” para Deus. Existem aqui questões mais afetivas do que legais, embora essa segunda
esteja indubitavelmente presente. Ser o rei, “filho de Deus”, estabelece sua dependência dEle, sua
lealdade, sujeição e humildade.
Não podemos esquecer que, devido a natureza regia judaica, da escolha e da unção real para tal
cargo, a filiação também nos remete às questões de adoção e eleição de alguém escolhido por Deus
para ser executor da vontade divina.
Na literatura neotestamentária, o termo adotou um valor semântico-teológico que ultrapassou o
costumeiro. Tem-se observado que o termo “Filho do Homem” ressalta a natureza humana de Jesus
Cristo, ao passo que a expressão “Filho de Deus” ressalta sua divindade, sua natureza divina.
Embora isso seja, de fato, verdade, tal afirmação tem suas limitações. Ao observamos os usos no
Antigo Testamento, notamos que essa expressão descreve, de forma inigualável, as funções
messiânicas, ressaltando a dependência de Cristo com o Pai, Sua união divina, filiação, regência
messiânica e obediência como filho.
A importância desse título para compreendermos a obra de Cristo e sua Pessoa é de suma
importância, e o estudo a seguir nos ajudará a contemplar o significado, assim como o
desenvolvimento primitivo da doutrina e seu lugar no dogma do Novo Testamento.
Parte I –
CRISTOLOGIA PRIMITIVA
Capítulo 1

JESUS COMO FILHO DE DEUS

I. O Logion Mt. 11:25-27, Lc. 10:21-22, e seus Paralelos.

Nenhuma passagem dos evangelhos sinóticos lança tanta luz sobre o sentido de Jesus a respeito de
sua própria missão como aquela que lida com Conhecer o Pai e Ser Conhecido por Ele em Mt.
11:25-27, Lc. 10:21-22. Pertence ao elemento comum de Mateus e Lucas, desconhecido em Marcos
e, no julgamento da grande maioria dos críticos, deve ser encaminhado a uma fonte comum da alta
antiguidade. Em suma, no que diz respeito ao testemunho, as suas reivindicações de autenticidade são
insuperáveis. No que diz respeito ao conteúdo, trata-se de matéria de toda importância da doutrina da
filiação divina de Jesus, ainda parece estar sozinho entre os ditos sinóticos, além de ser comparado
apenas por declarações atribuídas a Jesus pelo quarto evangelista.
No entanto, os discursos joaninos dão todas as indicações de terem sido compostos pelo
próprio evangelista, a fim de expor, em forma de diálogo, sua própria Cristologia deutero-paulina. O
único caso em toda a tradição sinótica de qualquer coisa comparável a esta aposição de “o Filho... o
Pai”, é Mc. 13:32, Mt. 24:36: “Mas a respeito daquele dia ou daquela hora ninguém sabe; nem os
anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai.”
Mas esse dito marcano não pode ser empregado para provar a consciência sobre-humana de
Jesus, pois, na versão de Lucas do mesmo dito, em Atos 1:7, “não vos compete conhecer tempos ou
épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva autoridade”, a aposição desaparece, e, tendo em
conta a liberdade de Marcos na composição do capítulo escatológico (Mc. 13), e da sua Cristologia
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individual, como refletida no início e no final do seu evangelho (Mc. 1:1 e 15:39), é mais razoável
atribuir ao evangelista a referência ao “Filho”, em Mc. 13:32.
O dito original não tinha, então, nenhum paralelo com o nosso logion, e o último permanece
único. É a única expressão inabalável de Jesus para a qual a doutrina de Sua filiação divina pode ser
referida. E, no entanto, mesmo após a aplicação mais drástica, tanto textual como da alta crítica,
ainda permanece inabalável; e bem merece a sua descrição como “a passagem de João”, pois
constitui, embora interpretada, um verdadeiro elo entre a Cristologia dos Sinóticos e Joanina.
Somos obrigados, no entanto, por todos os sãos princípios da crítica, bem como da exegese, a
preferir essa forma de texto e interpretação que deixam o dito em harmonia com o resto da tradição
sinótica, em vez de um texto e interpretação cujas semelhanças estão todas com o Quarto Evangelho.
Essa forma e interpretação podem revelar uma raiz a partir da qual a Cristologia, desenvolvida
posteriormente, poderia surgir; qualquer outra poderia nos dar nada mais do que um bloco errático,
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em que o geólogo vê o deslocamento violento do seu menor estrato original. Harnack apresentou
recentemente a evidência textual para um exame de pesquisa. Como não é o nosso presente objeto
testar seus resultados, mas sim, apresentar uma interpretação aplicável se esses resultados devem ou
não ser aceitos, será suficiente apenas indicar por colchetes o material que ele omite e pôr sinais de
parênteses nas leituras alteradas que introduz.

Mateus 11:25-27
25 Por aquele tempo, exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e
instruídos e as revelaste aos pequeninos. 26 Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. 27 Tudo me foi entregue por [meu] Pai.
Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar.

Lucas 10:21-22
21 Naquela hora, exultou Jesus no Espírito Santo e exclamou: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste
estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. 22 Tudo me foi
entregue por [meu] Pai. Ninguém (sabe) [quem é o Filho, senão o Pai; e] também ninguém sabe quem é o Pai, senão o Filho, e
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aquele a quem o Filho o [quiser] revelar.

A partir de uma comparação destes textos emendados de Mt. e Lc. Harnack conclui que a fonte
comum (Q), representada pelo material coincidente, tem a seguinte leitura:

Naquele tempo, respondendo Jesus, disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que tu ocultaste estas coisas dos
sábios e entendidos, e revelastes aos pequeninos, sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Todas as coisas me foram entregues
pelo Pai, e ninguém jamais conheceu o Pai [ou quem é o Pai] senão o Filho, e aquele a quem o Filho faz a revelação.

Nós mesmos não estamos muito preocupados com o sentido dado à passagem pelo primeiro e o
terceiro evangelistas, como com o sentido que tem em sua fonte comum, agora comumente designada
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Q. Pode muito bem ser que, como foi recentemente declarado pela não menos importante e imparcial
autoridade de Jülicher:

O evangelista que faz Jesus exclamar: “ninguém conhece o Filho senão o Pai e da mesma forma ninguém conhece o Pai senão
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o Filho” (Mt. 11:27; cf. Lc. 10:22), certamente pressupõe nele a consciência derivada de um outro mundo e período.

Um evangelista comprovadamente dependente de Marcos, alguém que assume o comando e


melhora a “alta” Cristologia de seu antecessor e que parece mesmo ter adaptado esse mesmo logion
para a forma de uma comissão de pós-ressurreição aos apóstolos para fazerem conversões de todas
as nações (Mt. 28:18), pode muito bem ter aceitado a Cristologia paulina com todas as suas
implicações de preexistência.
Mas, o investigador das concepções pré-paulinas, o historiador da doutrina, alguém que saberia o
que o próprio Jesus sentiu estar implícito em Sua “filiação”, não se permitirá demorar mais em
informações secundárias e derivadas quando fontes primárias estão acessíveis. Marcos e o primeiro
evangelista mostram a forma de tradição corrente no período 70-90 A.D., pois somos capazes de
usar o período de 40-60 A.D. como padrão de comparação das epístolas paulinas e das declarações
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do próprio Jesus relatadas no material elaborado a partir de Q e comum em Mateus e Lucas.
Neste material mais antigo, não somos, felizmente, privados de paralelos para qualquer parte do
logion. Mesmo se admitirmos a irrefutabilidade do argumento textual de Harnack em atribuir ao
nosso primeiro evangelista, e não a Q, a cláusula “ninguém conhece o Filho, senão o Pai”; ainda
assim, as epístolas paulinas vão apresentar provas, como esperamos mostrar, de que essa suposta
adição não é invenção do evangelista, mas é, em si, uma expressão do espírito de Jesus. Além de Q e
das epístolas paulinas, temos mais uma fonte na literatura judaica contemporânea. Devemos nos valer
de todas essas ajudas a fim de determinar que expressões de sentido a respeito do “Filho” e do “Pai”
seriam entendidas pelos ouvintes de Jesus, e devem, portanto, serem entendidas, uma vez que não
tinham nenhum propósito de enganar, pois foram intencionadas por Ele mesmo.
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Harnack , muito justamente, endossa o julgamento de Pfleiderer em encontrar em 1 Cor. 1:19-21
um paralelo paulino ao nosso logion tão perto em pensamento e, em certa medida, até mesmo na
linguagem, a sugerir dependência literária direta:

Pois está escrito:


Destruirei a sabedoria dos sábios
E aniquilarei a inteligência dos instruídos.
...Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar aqueles que
crêem pela loucura da pregação.

Sobre a questão se Paulo é dependente do logion ou o Q influenciado por Paulo, há


discordâncias. Harnack rejeita a decisão da Pfleiderer em favor da segunda alternativa, porque
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“crianças” (νηπιος) “não é paulino”. E, ainda no mesmo contexto, pouco mais de uma vintena de
versículos mais adiante (1 Co. 3:1), Paulo aplica este próprio termo “crianças” (νηπιος) aos seus
convertidos coríntios como destinatários da revelação.
Importante quanto esta questão da relação de Paulo com Q possa, sem dúvida, ser, ainda podemos
deixar a questão da prioridade incerta. O ponto essencial para o intérprete é a existência da relação,
e isso se torna mais evidente, quanto mais perto se examinam os dois contextos.
Quanto à colocação do logion em Q, aceitando os resultados textuais de Harnack, não podemos ir
mais longe do que a coincidência de Mateus e Lucas permite. Como esse abrange, no entanto, todas
as evidências que temos, e como todos convergem na mesma direção, não existe risco de contradição
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para a conclusão de Harnack de que na fonte ela ficava entre as Desgraças nas Cidades
Impenitentes da Galileia e Denúncia dos Escribas que Blasfemaram contra o Espírito e exigiram
um sinal do céu.
Perseguindo a sequência um pouco mais para trás, pareceria que as Desgraças contra as Cidades
Impenitentes seguidas da Queixa contra a Geração que não estava satisfeita nem com o “choro” dos
discípulos de Batista, nem o “canto” dos seguidores de Jesus, e isso, por sua vez, viria depois da
Missão dos Doze, que foi precedida pelo incidente do Centurião, cuja fé envergonhou a
incredulidade de Israel. Certamente, não se pode deixar de perceber o motivo dominante nesta
sequência, particularmente ao passo que reaparece tão fortemente em Paulo (Rm. 9-11) e em todos os
nossos evangelistas canônicos (Mt. 4:1-25, 1-12, 13:1-23, 21:33-43, Lc. 4:16-30, 24:44-49, At.
passim, Jo. 12:20-43). O autor de Q tratou o logion como uma repreensão dos ouvidos surdos e
olhos cegos do Israel descrente, a esse respeito, seguindo o exemplo de Paulo e sendo seguido por
todos os evangelistas.
Em 1 Co. 1:18, 2:16 a carne que “glorifica diante de Deus” (1:29), não é, de fato, como em Rm.
2:17-20, o judeu que afirma “conhecer Deus” e ser “um mestre de crianças,” mas sábios na sua
própria estima em geral. No logion, como inicialmente previsto, é, de forma clara, aos “sábios e
entendidos de Israel”, os escribas, que são mencionados, e seu jugo opressivo é contrastado com o
de Jesus no convite enquadrado por Mateus como um apêndice a partir de Eclesiásticos 6:28,
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51:26ff. Apenas o compilador, a quem é devido o contexto da sequência de Q, parece ter levado em
conta as pretensões peculiares e a rejeição sinal de Israel como um todo. Com os evangelistas, bem
como Paulo, nós temos aqui uma aplicação, agora mais ampla, mais estreita, da passagem de Is.
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29:9-24, uma passagem favorita de Paulo e também usada mais de uma vez em Q. Ao representar
as “crianças” como a escolha da “boa vontade” de Deus para receber revelação, Paulo está apenas
estendendo-se até o mundo gentio espiritualmente deserdado, a certeza que Jesus tinha dado a Seu
“pequeno rebanho” de pecadores arrependidos e expulsos da sinagoga. Ele baseia-se explicitamente
na passagem de Isaías que tacitamente salienta o logion.

A Revelação Dada aos Pequeninos


A comparação da rapsódia de Paulo sobre “a palavra da cruz”, “a loucura da pregação”, com
exultação de Jesus sobre a revelação dada aos seus “pequenos”, e a conexão de ambos com sua base
comum do Antigo Testamento é muito mais do que uma mera reivindicação da autenticidade do dito.
Já se vai longe ao determinar o seu sentido, e esse, por sua vez, ao passo que se torna mais claro, vai
nos permitir detectar paralelos talvez até então insuspeitos.
O ponto fundamental de acordo entre todas as três testemunhas, o logion, a passagem isaiana e a
paulina, é a vindicação da revelação dada ao inculto, o humilde, o povo simples, contra as
usurpações de autoridade eclesiástica. No tempo de Amós, Deus escolheu como portador de Sua
mensagem um pastor, colhedor de sicômoros, em preferência ao profeta por vocação, se assim Lhe
agradou (Am. 7:14, 15). Isaías já sentiu a pressão da usurpação hierocrática, e seguiu o exemplo de
Amós em derramar desprezo sobre os profetas, “cujos olhos estão fechados”; os videntes, “cujas
cabeças estão cobertas”, e o erudito, para quem “toda a visão tornou-se como as palavras de um
livro que está selado”, para que Deus se volte para “o manso” e os “pobres”, fazendo com que os
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filhos santifiquem Seu nome, e os espíritos errantes e os ‘lábios estranhos pronunciem paz’. Desde
a extinção da voz da profecia, o estabelecimento da autoridade exclusiva da sinagoga e a lei escrita,
as usurpações do religioso profissional tinham se tornado, no tempo de Jesus, infinitamente mais
insuportáveis ainda.
A confraria dos escribas, com alguns milhares de seguidores fariseus, tinha arrogado para si só a
herança espiritual de Israel. Sentados na cadeira de Moisés com sua prerrogativa da interpretação da
lei escrita, tinham eles as chaves do reino dos céus. Eles mesmos não entravam e as massas que iriam
entrar pela porta larga do batismo de João, e a proclamação do perdão, bem como da adoção por
Jesus, eles as impediam. Fizeram com que fosse impossível para o filho ou a filha comum de Abraão
esperar qualquer “parte no mundo vindouro”, pois esta frase veio a ser a expressão corrente para
uma parte da herança nacional comum, a primogenitura dos filhos de Abraão, a esperança
messiânica. Assim, como os Gracos em Roma se tornaram os defensores dos humildes contra a
usurpação do domínio comum pela aristocracia, da mesma forma, João Batista e Jesus resistiram à
usurpação da herança espiritual comum em Israel. Para Jesus, o batismo de João era um sinal do céu
(Mt. 21:23-25). O próprio João havia sido um Elias, alguém para “restabelecer as tribos de Jacó”
(Eccl. 48:10 BJ), tendo como sua missão não apenas o Grande Arrependimento (Ml. 4:5, 6), mas a
volta dos pais para filhos e os filhos para seus pais; no sentido de restaurar aqueles que haviam sido
excluídos pela violência e injustiça, excluindo aqueles que usurparam o lugar dos filhos e filhas de
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Abraão. Tal sinal de advertência de João Batista acerca da “ira vindoura” foi “uma questão maior”
do que a pregação de Jonas para os ninivitas, e a geração que rejeitou-a estava trazendo sobre si
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mesma maior condenação (Mt. 12:41).
A base do nosso logion isaiano, o paralelo paulino, as afinidades do evangelho, o contexto e a
evidência interna do próprio logion, combinam-se para mostrar que devemos interpretá-lo à luz
dessa defesa por Jesus da causa da ovelha perdida e do filho perdido contra o irmão mais velho
invejoso. Os “cansados e oprimidos”, a quem é dado o convite “tomai meu jugo sobre vós e aprendei
de mim”, que Mateus adequadamente anexa, são aqueles que têm ido aprender dos escribas no lugar
de Moisés; os escribas que fazem o jugo da lei cada vez mais pesado e intolerável, “Atam fardos
pesados [e difíceis de carregar] e os põem sobre os ombros dos homens; entretanto, eles mesmos
nem com o dedo querem movê-los.” A Revelação aos Pequeninos para o qual o Senhor Supremo é
agradecido, é a visão e o conhecimento concedido para os puros de coração (Mat. 5:8), muito mais
do que a “chave do conhecimento” utilizada na mão do expoente profissional do Mosaísmo (Mt.
23:13, Lc. 11:52). O espírito do contexto é o da promessa de Jr. 31:34, dos dias da Nova Aliança,
quando eles não ensinarão mais cada um a seu próximo, nem cada um a seu irmão, dizendo:
“Conhece ao SENHOR, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o SENHOR.
Pois perdoarei as suas iniquidades e dos seus pecados jamais me lembrarei.”
À luz dessas passagens conectadas, é manifesto que os expositores estão certos quando apontam
que a palavra aqui traduzida como “entregue” (παρεδοθη) não é a mesma que é utilizada na
expressão de Mt. 28:18, “toda a autoridade me foi dada (εδοθη) no céu e na terra”. Na verdade, é o
termo técnico para comunicação da doutrina autoritária (παραδοσις). Se a comissão pós-ressurreição
(Mt. 28:18) está enquadrada, como parece provável em nosso logion, o evangelista ampliou o
sentido para além da intenção original. Na realidade, o logion está mais justamente em paralelo com
Jo. 7:16-17, “o meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou.” Contra as “tradições
(παραδοσις) dos escribas”, Jesus define a tradição de Seu Pai, que está “escondida aos sábios e
entendidos, mas revelada (pelo Pai) aos pequeninos.” Somos lembrados como, em uma passagem
lucana intimamente ligada, foram denunciados como líderes cegos dos cegos, os escribas e fariseus,
que exigiram-Lhe um sinal do céu; Ele disse a seus ouvintes sobre “a luz que há em ti”, como um guia
que nenhum outro pode substituir (Lc. 11:34-35). Se penetrarmos através da definição, até o sentido
intrínseco da parábola do Bom Samaritano, vamos perceber lá também uma demonstração da lei
interna contra a escrita. O samaritano permanecia em contraste com o sacerdote e o levita porque em
sua simples obediência à “justiça de Deus”, ele envergonha os expositores profissionais do
Mosaísmo. É em nome de si mesmo e seus “pequeninos”, então, que Jesus “se alegra com o Espírito
Santo”, quando agradece ao “Senhor do céu e da terra”, de que o escriba não tem o monopólio do
conhecimento de Deus. O título de “Senhor do céu e da terra” é escolhido, como Amós tinha
escolhido títulos equivalentes (Am. 9:5, 6), em protesto contra a camarilha de eclesiásticos que se
imaginavam capazes de monopolizar o conhecimento do Infinito. Paulo delineia para nós essa
suposta monopolização do “Senhor do céu e da terra”. Para Paulo, é claro que não apenas o escriba,
mas o judeu em geral, em contraste com os gentios ignorantes, que...:

Descansam na lei e nas glórias em Deus, tendo o conhecimento de sua vontade, discriminando em assuntos de casuística, sendo
instruído a partir da lei, certo de que ele mesmo é um guia de cego, uma luz deles que está na escuridão, um instrutor da tolice,
um professor de “crianças”, tendo na lei o padrão de conhecimento e da verdade.

Mas, as expressões de Paulo pertencem a uma época em que a questão sobre a herança do Reino
havia se ampliado. A exultação de Jesus é a declaração de independência do velho espírito profético
há tanto tempo escravizado. É uma reafirmação dos direitos da espiritualmente deserdada de Israel.
Paulo é o herói dos gentios, que sem a lei, são uma lei para si mesmos. Ambos descansam,
finalmente, sobre a mesma base. Em ambos os casos, o apelo é para o despertar do Espírito de
adoção que testifica com o nosso espírito de que somos nascidos de Deus, ensinando-nos a clamar,
Abba, Pai.

A Relação do Dito com Marcos 4:11


Com este reconhecimento da produção da parte mais tardia do nosso logion, deve-se seguir um
reconhecimento de certas afinidades insuspeitas até então. Na superfície, há pouco para indicar a
afinidade desse dito com aquele atribuído a Jesus em Mc. 4:11, onde lemos: “A vós outros vos é
dado conhecer o mistério do reino de Deus; mas aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas.”
Acreditamos que este dito marcano, no entanto, é uma verdadeira variante do nosso logion.
Nosso segundo evangelista é notavelmente livre em suas citações da logia, adaptando-as aos seus
próprios fins, e muitas vezes, como em Mc. 1:15, dando-lhes uma tintura através de fraseologia
paulina.
O uso aqui do termo paulino “mistério” para a “revelação” e a adaptação do logion para uma
teoria do ensino por meio de parábolas, que é, obviamente, uma criação do evangelista, mas também
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com base em Paulo, obscureceu a relação. Não obstante, Clemente de Alexandria felizmente
preservou para nós, a partir de um evangelho desconhecido, uma ligação central. Em seu Stromata, v.
10, 69, ele declara que foi encontrado “em certo evangelho” o dito: “meu mistério pertence a mim e
aos filhos de minha casa”.
Nas Homilias Clementinas 19.20, o mesmo logion é citado em uma forma lembrando-nos do
espírito exclusivo de Mt. 7:6, “Guardai os mistérios para mim e para os filhos (υἱός) da minha
família”. Nesse ágrafo, estamos manifestamente lidando com o mesmo logion que aparece em Mc.
4:11 numa forma adaptada para a teoria do método parabólico de Marcos. A reserva do “meu
mistério” é um ponto inconfundível de conexão com o Marcos, mas a limitação na segunda metade do
ágrafo, “para mim e os filhos de minha casa”, como a antítese de “forasteiros”, mostra igualmente a
estreita ligação com o nosso logion, indicando que Marcos apenas a adaptou, a exemplo de Paulo,
para a questão mais ampla de seu próprio tempo, e incorporou isso no mesmo protesto sobre a
semente espiritual de Abraão contra as pretensões judaicas. Marcos abriu o caminho para essa
adaptação, introduzindo-a imediatamente antes do ensino em parábolas, e entre ele e a escolha dos
Doze, o dito em que Jesus declara que estes são os “filhos de sua casa”:

E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, qualquer que fizer a
vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.

É uma questão de pouca importância que o nosso segundo evangelho, em flagrante contraste com
os outros dois sinóticos, excluía inteiramente a grande exposição do ensinamento de Jesus entregue
às massas, o Sermão da Montanha, e no ponto correspondente apresente uma libertação do “mistério
do reino de Deus” para o círculo íntimo de parentesco espiritual de Jesus, enquanto que “para
aqueles que estão de fora, todas as coisas são feitas em enigmas.” Confundiríamos muito a intenção
desse mais democrático de todos os evangelistas, se concebêssemos que ele está sugerindo uma nova
aristocracia espiritual, com os apóstolos como administradores do “mistério”. Devemos entender o
círculo interno da forma como ele o define (Mc. 3:31-35). O “mistério” é dado ao crente e obediente
(cf. Jo. 7:3-5,17 com Mc. 3:31-35); a pregação ao povo judeu, em geral, é para ele uma mera
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“semeadura sobre os espinhos.”
Por outro lado, Marcos não deixa totalmente de justificar sua teoria drástica da ocultação da
revelação dos judeus incrédulos “forasteiros” a quem ele se recusa a chamar de “sábios e
entendidos”.
No final de sua discussão parentética da razão para o ensinamento de Jesus em parábolas, ele
volta ao dito do qual havia se desviado e disse: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Mc. 4:9 e
18
23), e introduz outro logion para qualificar a dureza aparente de sua doutrina, pois ele (o mistério),
não é escondido, exceto para que se torne conhecido, nem foi ocultado, exceto para venha à luz.
Na verdade, este parágrafo inteiro, Mc. 4:21-25, a partir da comparação da lâmpada que “vem”,
19
não para ser escondida, mas para ser exibida, e terminando com o aviso para a não receptividade
da qual serão privados de sua prerrogativa, só pode ser apreciada quando se lê com referência a esta
grande questão do século, entre o particularismo judaico e o universalismo cristão.
Seja qual for o sentido original, para Marcos, a parábola do solo bom e ruim e os ditos anexados
constituem um protesto contra as reivindicações judaicas de monopolizar o conhecimento de Deus e a
esperança messiânica.
Há pouca dúvida em vista dessas várias linhas de conexão, de que o nosso segundo evangelista
(Romano), em sua seção sobre a escolha e treinamento dos Doze, que se estende de Mc. 3:7 a 13,
adaptou nosso logion sobre a Ocultação da Revelação aos sábios e entendidos e a entrega dela aos
pequeninos, para o caso especial do endurecimento de Israel, o caso tão vividamente trazido para o
primeiro plano na grande epístola de Paulo aos Romanos.
Felizmente, temos em 1 Co. 1:18-31 e, especialmente com base isaiana comum, Is. 29:9-24, um
padrão para medir o grau de afastamento do sentido original. Como um guia para a ocasião original
do enunciado, a colocação de Marcos tem pouco valor. É verdade que Mateus também coloca na
mesma relação com as parábolas um dito que Lucas une ao nosso logion como parte da
congratulação dirigida “aos discípulos em particular”:

Bem-aventurados os olhos que veem o que vós vedes. Pois eu vos digo que muitos profetas e reis (Mat. “homens justos”)
desejaram ver o que vós vedes e não o viram, e ouvir o que ouvis e não ouviram.

Em Mt. 13:16-17 este enunciado é separado do logion sobre a Ocultação da Revelação anexada
a digressão marcana nas parábolas como a Ocultação do Mistério. Isso ilustra o dito, “quem tem
ouvidos, ouça” (Mt. 13:9, Mc. 4:9). Mas esse deslocamento é quase certamente devido à influência
de Marcos. Provavelmente, então, o conteúdo completo do dito, uma vez que estava na fonte comum
de Mateus e Lucas (Q), foi dado em Lc. 10:21-24, que nós damos mais uma vez na reconstrução de
Harnack:

Naquela ocasião, ele disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que tu ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos,
e revelastes aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Todas as coisas (assuntos de revelação) foram
entregues a mim pelo Pai, e ninguém reconheceu (εγνω) [o filho senão o Pai, ninguém tem reconhecido] o Pai senão o Filho e
aquele a quem o Filho o quiser dar a revelação. Bem-aventurados os vossos olhos, porque veem, e [seus] ouvidos, porque
ouvem; [em verdade] eu vos digo, muitos profetas [e reis] desejaram ver o que vós vedes e não o viram, e ouvir o que vós ouvis,
e não ouviram.

A nossa discussão anterior sobre o contexto em Q indicou uma tendência já visível mesmo nessa
compilação primitiva para aplicar o dito à questão mais ampla entre judeus e gentios.

Conhecer e Ser Conhecido por Deus


Aquilo que interessa, principalmente ao estudante moderno, neste chamado dito “joanino”, é sua
relação com a consciência messiânica de Jesus, e é altamente significativo que todas as semelhanças
da passagem, seja no Antigo Testamento, ou no Novo, tornam-na um protesto contra a deserdação
espiritual das pessoas comuns nas mãos do religioso profissional. À luz dessa circunstância, é
impossível supor que Jesus está falando ou de uma “revelação”, ou de uma “filiação”, que é sua em
um sentido exclusivo. Ele fala de si mesmo simplesmente como o líder e herói das pessoas que não
têm direito à filiação, mas a ética, cuja única pretensão de ser “filhos do Pai que está nos céus” e
“filhos do Altíssimo” repousa sobre a exposição deles daquele espírito divino de ilimitada e
altruísta bondade, que “é bom até mesmo para com os ingratos e maus” (Mt. 5:43-48, Lc. 6:27-36),
que “conhece a vontade”, como o bom samaritano conhecia. Mas, era a antiga prerrogativa de Israel,
como um povo considerado “filho amado” de Deus, “o primeiro nascido e unigênito” e que Deus
havia dito “das outras nações que também vêm de Adão, que são nada,” e tinha os comparado a uma
20
gota que cai a partir de um vaso”. De acordo com os rabinos, a evidência da prerrogativa especial
21
de Israel era que Israel tinha “conhecimento da lei”. A quem entre a humanidade, de fato, o Criador
destina a herdar o Seu mundo, se não aqueles a quem fez a Revelação de como e por que Ele a
22
criou, e de como quer que os homens devam viver nele?
Não é de se admirar se, aos olhos dos escribas e fariseus, o povo da terra, que “não conhecia a
lei”, e não se presta a orientação dos seus expositores oficiais, eram “amaldiçoados” e indignos de
qualquer “participação no mundo por vir.” O privilégio dos “publicanos e pecadores” só poderia ser
o que Paulo mais tarde havia atribuído aos “pecadores dentre os gentios,” e não “uma justiça própria,
mesmo aquela da lei”, mas o direito de ‘tornar-se imitadores de Deus como filhos amados e andando
em amor, como Cristo os amou e se entregou por eles’ (Ef. 5:1).
Aqui ninguém pensa em escrever com letra maiúscula, porque o sentido é, obviamente, “qualquer
um que é filho”. O quarto evangelista está reproduzindo Gl. 4:30, e só temos de recorrer a essa
passagem para encontrar Paulo usando ambos os elementos do dito sobre conhecer a Deus e ser
conhecido (reconhecido, reconhecido como um filho) de Deus, e, em seguida, um pouco mais adiante,
referindo-se à lei como um “jugo de escravidão.” Se, além disso, encontramos esse uso do termo
“filho” para ser justificado pela aplicação judaica contemporânea dessas ideias complementares de
conhecer a Deus e ser conhecido dEle, parecerá que tal é certamente a intenção do próprio logion, o
que quer que os evangelistas tardios possam ter feito dele.
Se aceitarmos a forma mateana de Fuller, que também é a de Lucas em todas as formas do texto,
23
exceto no Códex Vercellensis, a combinação dos ditos recíprocos é acompanhada por Paulo em sua
própria reivindicação da filiação e herdeiros dos “pecadores dentre os gentios” sem o “jugo da
escravidão”. A disposição de seus gálatas conversos em assumir o jugo mosaico das ordenanças é
recebida com uma apelação apaixonada para lembrar o Espírito de adoção que tinham recebido:

...porque sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama, Aba, Pai! De sorte que não és escravo,
porém filho; e, sendo filho, também herdeiro por Deus. ...mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecido
(reconhecido, reconhecidos como filhos) por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais,
de novo, quereis ainda escravizar-vos?

Podemos deixar a questão por resolver, se é Paulo que deu o exemplo dessa antítese ao nosso
canônico Mateus, ou o logion que o sugere para Paulo. A decisão irá depender da solução do
problema do texto. Mais importante do que a questão de saber se o dito sobre Ser Conhecido (ou
seja, reconhecido, reconhecido como um filho) por Deus, era ou não era originalmente ligado com o
que está no Conhecimento de Deus, é a questão do significado que o primeiro dito tencionava
transmitir. Qual foi aplicação atual da expressão “ser conhecido (γνωθηναι) por Deus”?
Sobre esse ponto, temos o testemunho de uma coleção da logia ainda mais antiga, aparentemente,
do que a mencionada por Papias. As Epístolas Pastorais, atribuídas a Paulo, e em algumas partes
reconhecidamente paulinas, fazem referência repetida a “ditos fiéis”, e especialmente “as sãs
palavras (λoγoι), mesmo as palavras de nosso Senhor Jesus Cristo”, como o padrão de doutrina (1
Tm. 6:3). Entre as palavras citadas dessas epístolas estão duas que, juntas, são ditas como
constituindo o “selo” da fundação de Deus, a Igreja,...

O Senhor reconheceu (εγνω) aqueles que são seus, e que todos que proferem o nome do Senhor desviem-se da iniquidade (2
Tim. 2:19, cf. Mat. 7:21-23).

O contexto mostra que o escritor tem em mente os mesmos princípios complementares como são
ilustrados na parábola da grande ceia com seu apêndice mateano do convidado desprovido da roupa
24
de casamento. O edifício espiritual de Deus tem esta base dupla: De um lado, sem nenhuma
exclusão daqueles a quem o próprio Deus aprova, “tantos quanto são guiados pelo Espírito de Deus
são filhos”; por outro lado, nenhuma inclusão dos moralmente reprovados, “pelos seus frutos os
conhecereis.” Porque...

Como ele próprio disse: Habitarei e andarei entre eles; serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.
Por isso, retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor; não toqueis em coisas impuras; e eu vos receberei.
Serei vosso Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-Poderoso.
(2 Coríntios 6:16-18)

Estes princípios complementares do paulinismo mais antigo estão consagrados no “selo” do


“fundamento de Deus”, que acabamos de citar. Os exemplos anteriores dos escritos paulinos, que
mostram qual foi o tratamento primitivo dos princípios complementares de “conhecer” e “ser
conhecido” por Deus, devem ser o nosso guia para o sentido histórico do logion ou logia, de Mt.
11:25-27, 13:16-17 = Lc. 10:21-24. Para a controvérsia dos escribas, de que ninguém pode pretender
ser um filho se não “conhece” o Deus a quem reivindica como seu Pai, e que não tem a revelação de
Sua vontade (Rm. 2:18), a resposta é dada por Jesus em palavras que repousam sobre Is. 29:14, que
os pequeninos, a quem acolhe como seu irmão, irmã e mãe, porque ouvem a vontade de Deus e
executam-na, têm um melhor e mais completo “conhecimento” do que “os sábios e entendidos”.
Essa é a boa vontade (εὐδοκία) do “Senhor do céu e da terra” e cabe a nós ficarmos felizes e nos
alegrarmos de que o conhecimento mais profundo de Deus não é intelectual, mas moralmente
condicionado. Aqueles que ‘conhecem a sua vontade’ percebem e imitam Seu espírito de irrestrita e
universal bondade, “mesmo para com os ingratos e maus.” Esses, e não os escribas, nem sacerdotes e
levitas, guardas e intérpretes oficiais da lei, são os que estão qualificados em “fazer a revelação”
para os outros, tanto quanto o farão.
Jesus exprime isso na significante e epigráfica frase tão característica dele:

...é o filho que é competente em dar a revelação do Pai, mas esse conhecimento não é do sábio e entendido, é dado para
aqueles que são simples de coração como bebês.

Relação do Dito das Chaves do Reino em Mt. 16:19


Visto que a ideia complementar de ser conhecido de Deus não é, certamente, encontrada em
ambos os evangelhos, não podemos ter certeza de que não é um reflexo daquela grande experiência
da igreja da qual Paulo tem nos dado o termo “o testemunho do Espírito de adoção”.
Dos lábios estranhos de pessoas que oraram, conforme o Espírito lhes concedia que falassem,
25
Paulo reduz o clamor “Abba, Abba”, apelando para ele como um testemunho sobre-humano de que,
através da fé, somos feitos filhos e herdeiros de Deus. Apenas isso precisa ser conhecido, caso
surgisse disputa do direito dos gentios para serem contados como herdeiros da promessa. Receberam
eles o Espírito? Se Deus já reconheceu como filho, quem se atreve a disputar o título? Neste sentido
do reconhecimento, o princípio foi admitido como decisivo em todos os ramos da igreja. Desde o
Pentecostes, que tinha sido um “selo da fundação”, pois “o Senhor reconhece os que são seus”. Mas,
a primeira luta contra o espírito judaico de exclusividade foi antes do Pentecostes. Para Jesus,
também, a própria essência de Sua missão tinha sido quebrar as barreiras artificiais que haviam
excluído os publicanos e pecadores da herança dos filhos e resistir à prerrogativa usurpada ao
“poder das chaves”.
Os escribas reivindicavam autoridade para “atar e desatar”. Em virtude da ocupação do assento
de Moisés, eles possuíam “a chave do conhecimento”, e usavam-na para impedir a entrada das
massas arrependidas no Reino. Embora preservadas em formas tardias e variantes, a expressão
atribuída a Jesus que concede esse poder usurpado das chaves a fraternidade dos Seus discípulos, ou
ao líder e representante, é um verdadeiro eco da Sua luta pela causa do povo, e o paralelo
semelhante ao dito, “o Senhor reconhece os que são seus”, deve ser encontrado em Mt. 18:18:

Em verdade vos digo que tudo que ligares na terra terá sido ligado nos céus, e tudo que o que desligares na terra terá sido
desligado nos céus.

E em Mt. 16:17-19 temos:

Sobre esta pedra edificarei a minha igreja... . Dar-te-ei (Pedro) as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido
ligado nos céus; e o que ligares na terra terá sido ligado nos céus.

Essas palavras relatadas de Jesus, antes que fossem pervertidas em decretos de um novo
despotismo eclesiástico, eram elas mesmas a declaração da liberdade e da independência do
“pequeno rebanho”. Em vez de fazer com que os pequeninos fossem excluídos da sinagoga por
aqueles que possuíam as chaves, reivindicando o poder de atar e desatar, fazendo do filho ou filha de
Abraão que resistiu a sua tirania “como gentio e publicano”, Aquele que tem a chave de Davi
restaurou-a para si mesmo. A chave do conhecimento, a chave de autoridade, a chave de admissão ou
exclusão, as chaves do reino dos céus são dadas para a própria igreja, ou para igreja, na pessoa de
Pedro como seu líder. A igreja repetiu, apenas com o nome de Pedro, a mesma tirania dos velhos
tempos dos escribas! Esses vários apelos para a frase de Jesus desse tipo mostram que Ele foi
entendido como tendo protestado contra a usurpação desse poder dos escribas, e que as referências
nos escritos paulinos a Deus como o único reconhecedor de Seus próprios filhos têm uma base
autêntica. Mesmo que a referência do filho sendo conhecido do Pai fosse considerada emprestada de
Paulo, ainda assim o próprio Jesus tinha, em substância, a estabelecido como um “selo da fundação
de Deus” de que, não o homem, mas a Senhor reconhece os que são Seus.
Na verdade, a comissão de Pedro em Mt. 16:17-19, com sua referência significativa para “as
portas do inferno”, que tinham sido fechadas sobre o líder crucificado, está intimamente relacionada
com a comissão de “Pedro e os doze”, que constitui o elemento central em todas as formas da
história da Ressurreição. Deus deu Jesus com o objetivo de se fazer manifesto a eles, a fim de que o
perdão dos pecados através do arrependimento e da fé em Seu nome pudesse ser pregado a todas as
nações, começando por Jerusalém (Lc. 24:47-49). A autoridade da Sua comissão é a autoridade para
“soltar” os pecados. Seu símbolo é o batismo. Seu selo é o Espírito derramado. Cf. Mt. 28:18, 19;
Jo. 20:21-23.

Criação do Dito sobre a Consciência Messiânica de


Jesus
Entretanto, nós estamos mais preocupados com aquela porção do logion que é, sem dúvidas,
atestada tanto por Mateus como por Lucas, que sustenta a reivindicação de que as “crianças” têm o
verdadeiro conhecimento de Deus, sem o qual ninguém pode ser considerado filho de Deus.
Aqui, mais do que qualquer lugar, se pode descobrir o segredo da consciência messiânica de
Jesus. O título “Filho do homem”, que tem sido chamado de sua “autodesignação favorita” e à qual
muitos se voltam como a principal fonte de conhecimento de primeira mão sobre esse ponto vital, é
duplamente aberto a questão. Por razões filológicas, é duvidoso se a frase poderia ter existência no
aramaico falado por Jesus. Se existisse, essa mesma existência era devido a conotações mais
externas para a qualidade sã e bem equilibrada do caráter e os ensinamentos de Jesus. A concepção
fundamental da Sua vocação não é apocalíptica, e não aparece nos ditos escatológicos, mas sim no
Sermão da Montanha. As noções apocalípticas de Sua missão e destino podem facilmente ter sido
sobrepostas sobre a Sua concepção na atmosfera superaquecida da igreja primitiva, enquanto que o
contrário é inconcebível. Jesus não era um visionário. A figura danílica se agiganta com a visão dos
profetas e videntes da pós-ressurreição, mas não na mente horizontal e espiritual do carpinteiro de
Nazaré, muito menos em oferecer uma carreira para si mesmo. A frase que é real e comprovadamente
característica dEle, o título que nos documentos mais antigos do Cristianismo é universalmente
difundido, contra quase nenhuma uma única ocorrência do termo “Filho do homem”, é o de “Filho de
Deus.” Em todo o caso, podemos dizer que tão certo quanto a concepção de Êxodo e Oseias de que
Israel é filho de Deus (para não dizer nada da ideia não etnizada semita comum) é antecedente à
figura apocalíptica de Daniel, Enoque, e 2 Esdras, assim como tão certamente é a concepção de
filiação com Deus na mente de Jesus antecedente daquela de Filho do homem, quaisquer que tenham
sido os sonhos apocalípticos para os quais Ele se voltou sob a crescente certeza de martírio. É
verdade que mal notamos esse título humilde de “filho de Deus”, exceto quando os tradutores ajudam
a nossa visão com uma letra maiúscula, ou quando, de alguma forma, o seu sentido ético simples é
transcendido, mas o que realmente diz respeito a Jesus e Paulo é “a herança dos filhos”, pela qual
26
ambos significam “filhos do Altíssimo”, “filhos e filhas do Senhor Todo-Poderoso”.
Também, é verdade que um evangelho romano, reconhecidamente da segunda geração, dá algo
mais do que um sentido ético para essa designação de “filho de Deus”, que em nosso logion Jesus
aplicou a Si mesmo apenas como representante, líder e herói, cuja filiação precisou ser vindicada.
Em Marcos, o título “Filho de Deus” já tem um sentido especial e peculiar aliado à metafísica
paulina. O resultado desse processo de transcendentalização apocalíptica aparece na visão da
Transfiguração, um apocalipse típico, em que o dispositivo rabínico do banh qol, ou voz do céu, é
empregado para expor juntamente com o imaginário característico desse tipo de literatura paulina do
autor, ou Cristologia quase Paulina. Para o autor dessa visão-história, o verdadeiro ser de Jesus foi
revelado quando os olhos de Seus amigos íntimos tinham sido iluminados para rasgar o véu de sua
carne e contemplar o Filho de Deus, não no sentido ético, mas apocalíptico, até mesmo o Amado, de
glória pré-existente. O mesmo instrumento da voz do céu e a mesma fraseologia são empregados na
narrativa preliminar que Marcos prefixa ao seu evangelho. Sua doutrina de Jesus, o Filho
preexistente de Deus, é inteligível para nós e era aceitável para os seus próprios e as gerações
posteriores.
O Evangelho de Marcos tornou-se o próprio quadro da tradição evangélica. Apesar disso, se
olharmos para as referências à filiação divina que permeiam essa outra fonte, que quase todos os
críticos admitem ser uma autoridade maior e melhor, vamos encontrar o termo “filho de Deus” tendo
um sentido bem diferente. Jesus ainda é o “filho”, mas apenas como “o primogênito de muitos
irmãos”. Esse sentimento é tão pouco “teocrático” como é metafísico. É histórico, ético e religioso.
Ele encontra suas afiliações não com a metafísica bruta do evangelho romano, nem com as
especulações mais profundas e mais sutis de Éfeso, mas no assunto familiar de disputa nas epístolas
paulinas, na demanda para a admissão à herança abraâmica de quem tem nenhum título nos termos da
lei, a questão de saber se o nosso clamor inspirado de Abba, Pai, é ou não é, sério e suficiente de
nossa filiação. Acima de tudo, ele encontra a sua confirmação no contexto comum da interpretação
judaica atual da esperança messiânica.

A Esperança Messiânica dos Profetas aos Fariseus


É um equívoco absoluto dessa expectativa nacional em sua origem considerá-la como tendo a ver,
acima de tudo, com a realeza. A passagem que nos tempos modernos é comumente tomada como sua
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própria base, a promessa a Davi de um sucessor para o trono, dificilmente encontra um eco em todo
o Novo Testamento. Na realidade, a esperança é muito mais antiga, muito mais ampla, muito mais
fundamental. Não é nenhum sucessor de Davi principalmente, mas Israel em si, que é o filho de Deus.
A passagem base é Êx. 4:22, 23, onde lemos:

Então dirás a Faraó: Assim diz o SENHOR: Israel é meu filho, meu primogênito. Digo-te, pois: deixa ir meu filho, para que me
sirva; mas se recusares deixá-lo ir; eis que eu matarei o teu filho, o teu primogênito.

Deus primeiro adotou seu povo:

Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei a meu filho. (Os. 11:1).

Se, nos últimos tempos, Ele tornou-se um Pai para o rei deles, isso foi para o bem do povo. O
professor F.C. Porter nos lembrou muito bem que os profetas não representam a si mesmos como
criadores, mas, como críticos da esperança messiânica. A esperança em si era tão antiga quanto
Israel. Ela participou de sua primeira forma pura da concepção semita comum da divindade de uma
terra como progenitora da sua população.
Javé, porém, ao contrário das divindades vizinhas, não tinha gerado Israel, mas “adotado”,
28
quando ainda era um escravo no Egito. Isso criou a relação ética e espiritual. “Apenas vós tenho
conhecido (reconhecido)”, é a palavra de Javé através de Amós, mas esse reconhecimento foi de
livre escolha do “Senhor do céu e da terra” que dirige todas as nações e rege sobre elas pela lei da
justiça. Amós se tornou o primeiro grande crítico dessa esperança nacional, submetendo-a a
condições éticas. Ele etnizou a doutrina da eleição.
No tempo de Jesus, a esperança messiânica, apesar de todas as suas transformações e
aperfeiçoamentos, não perdeu, de forma alguma, seu significado fundamental. As experiências da
monarquia tinham cristalizado em torno da figura teocrática do filho de Davi as experiências de
desintegração nacional e a mistura com o mundo tinha vestido essa figura com atributos mitológicos e
ampliado o programa de sua atividade. Acima de tudo, a vida sob a lei não modificou profundamente
a concepção de suas condições. Mas, mesmo no tempo de Jesus, a esperança messiânica permaneceu
fundamentalmente o que sempre tinha sido. Israel é filho e herdeiro de Deus, Israel deve possuir a
terra de Deus, que é o mundo. A destruição de Jerusalém por Tito só provoca gemido em um patriota
e clamor em um crente:

Ó Senhor, disseste que por nossa causa fizeste neste mundo... . E agora, ó Senhor, olha para estas nações que são reputados
como nada, sendo senhores sobre nós e nos devorando. Mas nós, o teu povo, que chamas de primogênito, teu unigênito e teu
amante (amado?) fervoroso, são dados nas mãos deles. Se o mundo agora for feito por nós, por que não possuímos por
herança nosso mundo? Quanto tempo deve durar isso?
(2 Esdras. 6 56-59).

Muitas eram as formas sob as quais a antiga crença na adoção e a herança sobreviveu, a partir do
clamor dos Zealotes pela hegemonia nacional até a demonstração acadêmica do filósofo de que o
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homem verdadeiramente sábio é o “herdeiro das coisas que pertencem a Deus”. Desses muitos
desenvolvimentos, estamos preocupados com apenas um, o religioso. O Farisaísmo tinha se retirado
do movimento nacionalista contra a helenização forçada de Antíoco Epifânio, tão logo esse
movimento degenerou-se em uma mera luta pelo autoengrandecimento por parte dos sucessores de
Simão, o Macabeu. Os fariseus se tornaram os puritanos do primeiro século a.C., eliminando a
ambição mundana do programa messiânico. O chamado de Israel era para ser o povo da lei.
A justiça, “até mesmo aquela que é da lei”, era para ser sua obra e ambição no mundo. Sua
recompensa era estar em um novo céu e uma nova terra, onde habita a justiça. Esse foi o movimento
mais profundo e frutífero dos tempos no seio de um povo cujo gênio nunca tinha sido religioso. Sua
mais pura expressão aparece no chamado Salmos dos Fariseus, mais próximo do sentimento de todos
os escritos não canônicos aos cânticos de Lucas.
No verdadeiro farisaísmo, do tipo que produziu os mais nobres e maiores dos seguidores de
Jesus, a filiação no sentido religioso tornou-se a essência da esperança messiânica e a verdadeira
prerrogativa de Israel. Pois, ser o filho de Deus por conhecer e fazer a Sua vontade é o ideal do
fariseu para o seu povo. O Cristo, quando vier, “deve tomar conhecimento deles que todos eles serão
os filhos de seu Deus.” (Sal. de Salom. 17:30). Em muitas gerações mais tardias, nós temos o mesmo
ideal na mesma fraseologia do filho de Sirach.
O Grande Arrependimento de Mal. 4:6 tornou-se aqui uma volta em reconciliação mútua, não de
meras famílias terrenas, mas “do Pai (Deus) com o filho (Israel), e do Filho para o Pai”, restaurando,
assim, as tribos de Israel (Eccl. 48:10). Um século mais tarde do que o Sirach, o autor de Sabedoria
de Salomão delineia “o homem justo”, em traços que reconhecem nenhuma limitação étnica, mas tem,
na realidade, Israel – o Israel farisaico – a se encaixar na descrição.

Cerquemos o justo, porque ele nos incomoda; é contrário às nossas ações; ele nos censura por violar a lei e nos acusa de
contrariar a nossa educação. Ele se gaba de conhecer a Deus, e se chama a si mesmo filho do Senhor! Sua existência é uma
censura às nossas ideias; basta sua vista para nos importunar. Sua vida, com efeito, não se parece com as outras, e os seus
caminhos são muito diferentes. Ele nos tem por uma moeda de mau quilate, e afasta-se de nossos caminhos como de manchas.
Julga feliz a morte do justo, e gloria-se de ter Deus por pai. Vejamos, pois, se suas palavras são verdadeiras, e experimentemos
o que acontecerá quando da sua morte, porque, se o justo é filho de Deus, Deus o defenderá, e o tirará das mãos dos seus
adversários. (Sab. de Salom. 2:12-18)

Um anterior contemporâneo da mesma escola de Alexandria afirma como testemunho dos sábios
sacerdotes egípcios que os judeus...

...são homens de Deus, nome que não pertence aos outros, mas apenas para quem adora o verdadeiro Deus. Pois esses outros
são homens de comida, bebida e vestuário, uma vez que todo o seu pensamento é levado para essas coisas. Mas, aqueles que
são da nossa fé, não dão ouvidos a essas coisas, mas em toda a sua longa vida estão preocupados com a busca das obras de
Deus. (Aristeu 140, ca. 90 a.C.)

Esses escritores judeus de Alexandria do século I a.C. parecem, de fato, não estar “longe do
reino de Deus”, com o seu ideal de destino e prerrogativa de Israel. Mas, temos que descer para o
escrito de um fariseu palestino quase contemporâneo com o próprio Jesus para uma maior
aproximação do Sermão da Montanha, em uma expressão da esperança messiânica. Ele espera por
nada menos do que o derramamento de um espírito de justiça, o Espírito de Deus que, comunicando a
Sua natureza, faz com que Israel, de fato, Seu filho assim exaltado, como nos escritos paulinos, esteja
“sobre todos os anjos e espíritos”.

E Moisés prostrou-se com rosto ao chão orou e disse: O Senhor meu Deus, não abandone seu povo e sua herança de modo
que eles andem no erro de seus corações, e não os entregue nas mãos dos seus inimigos, os Gentios, para que estes os
governem e os façam pecar contra ti. Permita que tua misericórdia alcance teu povo, e crie neles um espírito justo, e não
permita que o espírito de Beliar os governe para os acusar diante de ti, e desviá-los de todos os caminhos da justiça, de modo
que eles pereçam diante de tua face. Mas eles são teu povo e tua herança, os quais tu tiraste, com grande poder, das mãos dos
egípcios. “Crie neles um coração limpo e um espírito santo e não permita que eles sejam enredados em seus pecados de agora
até a eternidade.” E o Senhor disse a Moisés: “Eu conheço a obstinação deles e os seus pensamentos e sua teimosia. Eles não
serão obedientes até que confessem seus próprios pecados e os pecados de seus pais. E depois disso, eles se tornarão a mim
em toda a justiça e com todo o coração e com toda alma, e eu circuncidarei o prepúcio do coração deles e o prepúcio do
coração de seus descendentes. Eu criarei neles um espírito santo e os purificarei de modo que eles não devem se afastar de
mim daquele dia até a eternidade. E as almas deles se unirão a minha e aos meus mandamentos, e eles cumprirão os meus
mandamentos, e eu serei o Pai deles e eles serão meus filhos. E eles serão chamados filhos do Deus vivo. E cada anjo e cada
espírito deverá saber, sim, eles deverão saber que eles são meus filhos, e que Eu sou o Pai deles em retidão e justiça e que Eu
os amo.
(Jubileus 1:19-25)

É um puritanismo deste tipo nobre que é representado em sua degeneração pelo sistema-sinagoga
de escriba e fariseu no tempo de Jesus. Após a queda da reação dos Macabeus contra o fanatismo
nacionalista dos Zelotes, de um lado, e do mundanismo dos saduceus, do outro, havia voltado o
espírito religioso sobre a ortodoxia da lei escrita. O fariseu tornou-se um seguidor cego do escriba, o
30
seu guia de cego. A insistência na letra da lei deificada, cujo ideal era a separação do impuro,
levou a exclusividade a um grau inigualável até mesmo pelo puritanismo da Escócia ou da Nova
Inglaterra.
Para o “povo da terra”, os “publicanos e pecadores”, o camponês comum, ou pescador, ou
artesão galileu meio-pagão, o ideal mosaico de separação era totalmente inviável, suas prescrições
eram “um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós” (At. 15:10), as interpretações dos
escribas de suas exigências eram “fardos pesados e difíceis de suportar que eles mesmos não
tocavam com seus dedos”. O pobre homem, o analfabeto, o artesão comum e o pai de família viam-se
sob esta tirania odiosa e hipócrita, gradualmente excluídos de compartilhar o mundo vindouro.
Ele também era filho de Abraão, mas por decreto dos escribas, viu-se privado de sua herança de
Abraão em favor do pequeno círculo dos fariseus (os “separados”), cuja justiça legalista era muitas
vezes mercenária e externa. Havia apenas duas classes, a chaberim, ou devotos consistentes da lei,
uma casta religiosa que se retirava do contato profano, até mesmo de seus parentes e correligionários
de menos rigorosa observância, e os am ha-aretz, os excluídos que não tinham “parte do mundo por
vir.”
O centro religioso de importância não pode permanentemente oscilar esse extremo social. A
reação, quando veio, foi correspondentemente completa e profunda. João Batista e Jesus reviveram o
antigo espírito profético da democracia religiosa. Eles lideraram uma rebelião do israelita simples
contra a usurpação da herança de Abraão pelos escribas e fariseus. Como outro Elias, João levou a
31
um “grande arrependimento”, o sinal que era o novo rito do batismo, autoevidente em significado,
desconhecido para a prescrição legal. Os publicanos e os pecadores se reuniram com ele, os
escribas e fariseus permaneceram indiferentes. Seu martírio não poderia restringir o movimento. No
carpinteiro de Nazaré, ele encontrou um novo e maior líder, que buscou as ovelhas perdidas da casa
de Israel, na Galileia, e defendeu o filho perdido contra o irmão mais velho de má vontade.
Aos seus seguidores pescadores, ele ensinou a lançar as redes para os andarilhos espalhados do
32
reino. Como um administrador para um órfão defraudado de sua herança, Jesus exigiu restauração
para os “pequeninos” de sua parte legítima na herança espiritual de Israel. Ele insistiu sobre o
conteúdo completo desta herança e sobre o que é de primordial importância, as espiritualidades,
antes das temporalidades.
O conflito com o poder enraizado dos escribas e fariseus era uma guerra violenta. Desde os dias
de João Batista – o Elias que devia vir como um “restaurador das tribos” para “admitir aqueles que
33
tinham sido injustamente excluídos e excluir aqueles injustamente admitidos” a herança de Israel –
o reino dos céus havia sofrido violência e os homens estavam preparados para levá-lo à força. Jesus
foi implacável em Sua injúria contra esta classe e essa apenas, e não se esqueceu de nos dizer o
porquê. Disse-lhes que a lei e os profetas, como a carta de seu monopólio, podiam durar apenas “até
João”. Ele previu (Mt. 23) que eles não iriam poupá-lo, e não o fizeram.
Foi sua defesa neste conflito que deu primeiro a Jesus o direito de ser chamado de Filho de Deus.
Foi por causa de seu pequeno rebanho que Ele exigiu isso, e foi por eles que o defendeu com a
própria vida. A filiação com Deus era o elemento vital daquela herança religiosa do qual o sistema-
sinagoga, o legalismo do escriba e fariseu, procurou roubar o israelita simples pela sua usurpação da
chave do conhecimento e sua pretensão de fazer a vontade do Pai. Por isso é que Jesus agradece ao
Senhor infinito do céu e da terra, de que o conhecimento dEle não é monopólio do sábio e entendido,
que não é o erudito da lei que O conhece, mas os pequeninos, as crianças; estes têm o espírito dos
filhos da bondade, até mesmo para com os ingratos e os maus. Esse conhecimento, essa luz interior,
Ele afirma ter em sua própria pessoa, a tradição, não das autoridades mortas, mas do Pai, e ele
afirma que os que são qualificados para dar “revelação” são aqueles que são filhos neste sentido.
Um bom samaritano é um professor melhor do que um sacerdote ou levita egoísta e covarde. Mais
do que isso, Jesus também contesta a usurpação dos escribas do poder de “ligar e desligar”, de
admitir e excluir. Quem é o filho? João Batista havia dito, “Deus é capaz de destas pedras suscitar
filhos a Abraão”, e os publicanos, assim como os pecadores, se arrependeram com as suas palavras.
Ninguém negou o direito dos fariseus ao nome. Mas Jesus prometeu a salvação do publicano
arrependido, “porquanto também este é filho de Abraão”. Qual tem o melhor título para a herança
dos filhos de Deus? Jesus coloca a questão na forma de parábola dos dois filhos.

E que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Chegando-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na vinha. Ele
respondeu: Sim, senhor; porém não foi. Dirigindo-se ao segundo, falou-lhe a mesma coisa. Mas este respondeu-lhe: Não quero;
depois, arrependido, foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram eles: O segundo. Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos
digo que os publicanos e as meretrizes vos precedem no reino de Deus.
(Mateus 21:28-31)

Quando Paulo coloca isso como sinal de filiação, de que a pessoa deve ser “guiada pelo Espírito
de Deus” (Rm. 8:14), ele está adaptando o antigo princípio da fundação da igreja, de que “o Senhor
(pelo selo do Espírito) confessa os que são seus”, para o teste mais estritamente ético de Jesus, “todo
aquele que faz a vontade de meu Pai, esse é meu irmão, irmã e mãe”. Em um escrito anterior, Ele
34
enuncia o Seu princípio de uma forma mais primária. No paralelo de Gálatas com Rm. 8:15, ele
define o divino “reconhecimento” como sendo o ato de enviar aos nossos corações o Espírito de Seu
Filho, nos ensinando como filhos o clamor Abba, Pai. Aquele que receber o Espírito Santo é um
filho. De acordo com Jesus, “todo aquele que faz a vontade,” seja publicano, prostituta, ou
samaritano, é “conhecido de Deus”, e “fazer a vontade” é exemplificado, não nos fariseus com o seu
jugo de escravidão, mas naqueles cuja disposição interior é parecida com o Pai. Paulo não estava
entre os primeiros, mas era um seguidor de Jesus, como dizia ser, na satisfação das pretensões de
autoridade enraizadas e tradicionais pela autoevidenciação do testemunho do Espírito, o que torna
louca a sabedoria dos sábios e dá a sua revelação às crianças. Por nenhum outro curso concebível
era possível atender a autoridade dos escribas, pois, para eles, os conhecimentos de grau
preeminente eram, de fato, o poder. A menos que Ele estivesse pronto a abandonar a causa dos
deserdados “pequeninos”, cujo líder e herói tinha se tornado desde que João foi trancado na prisão,
Jesus não tinha alternativa a não ser manter que “ninguém conhece o Pai, senão o Filho”. Em
oposição à “violência” que fez da chave do conhecimento um instrumento para a exclusão do reino
dos arrependidos “publicanos e as meretrizes”, enquanto ninguém, exceto portadores submissos do
jugo da lei, tal como interpretada por eles mesmos, foram reconhecidos como filhos, Jesus não tinha
alternativa senão apelar para o ato de atar e desatar, para o que tem validade no céu. Este é o
princípio implícito, se não diretamente expresso, no dito “ninguém sabe quem é o Filho (quem é um
filho), senão o Pai”.

Desenvolvimento Tardio
Nossa fonte mais antiga e confiável tem este único caso em que Jesus parece reivindicar honras
messiânicas para si mesmo. Nós concordamos que este pode muito bem ser chamado de “a passagem
joanina”, pois constitui um ponto de partida para manifestar as interpretações teológicas posteriores
e metafísicas do título “Filho de Deus” que atingem o seu ponto culminante no Quarto Evangelho.
Mas, a metafísica não é de Jesus. Na passagem do Q, historicamente interpretada, não existe um traço
disso. Não há sequer o sentido exclusivo em que o nosso segundo evangelista em dois ou três casos
empregou o título. Jesus está simplesmente defendendo a causa dos deserdados filhos e filhas de
Abraão, quando afirma que se alguém...

Professa ter conhecimento de Deus,


e se chama filho (παις) do Senhor,...
e se vangloria de que Deus é seu pai,

Ele deve ser “filho do Altíssimo” porque tem esse tipo de espírito que o Pai se manifesta. Ele
continua o trabalho daquele que havia dito: “destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”, ao
passo que o próprio João conscientemente continuou a mensagem de Amós, o profeta da eleição
ética. Jesus fala simplesmente como líder, defensor e representante dos “pequeninos”, quando
agradece ao “Senhor do céu e da terra” pela revelação que é “entregue” para aqueles que têm olhos
para ver e ouvidos para ouvir, ainda que esteja “escondido aos sábios e entendidos”. Não há
nenhuma pretensão nisso a uma dignidade sobrehumana, ou mesmo messiânica, de Sua pessoa, e a
expressão não foi assim entendida por Seus ouvintes. No entanto, logicamente que levaria a isso,
caso o conflito com a oligarquia dos escribas e fariseus fosse mantida. E assim se deu.

Relação à Reivindicação de Messias


Um ponto fundamental da tradição petrina incorporada em nosso segundo evangelho (Mc. 8:29) é
a apresentação de Jesus por Pedro, com o apoio dos onze discípulos, do título “o Cristo”. Isso foi
durante uma pausa temporária no conflito. A grande colisão em Cafarnaum com “os escribas que
tinham descido de Jerusalém” havia surgido na saída de Jesus da cena de sua popularidade inicial e
na interrupção permanente de seu ensino público na Galileia.
Restava, além de Samaria, da qual Ele não sentiu a chamada para evangelizar, apenas Judeia
além do Jordão e Jerusalém. Em direção a esses, voltou o rosto, tendo Jerusalém como Sua meta. As
chances contra Ele e Seu pequeno rebanho seriam agora dobradas. Se Jesus propôs reivindicar para
eles plenos direitos no templo, bem como na sinagoga, então teria que fazer um desafio à aliança da
hierarquia sacerdotal com a oligarquia dos escribas já hostis.
Não é à toa que Jesus previu para si um destino como o de João. Mas, a consistência permitiu
outra alternativa. Ele tinha, ou que abandonar a causa dos filhos deserdados, ou apresentar Suas
reivindicações às portas do templo em si, protestar contra os abusos da camarilha dos sumos
sacerdotes e exigir uma restauração do templo para os usos de uma casa de oração por todas as
pessoas. Em que outro papel poderia se tornar um herói das ovelhas perdidas da casa de Israel,
contra os pastores infiéis que se serviram do rebanho, e não como o verdadeiro Pastor da visão de
Ezequiel?

...suscitarei sobre elas um só pastor, e ele as apascentará; o meu servo Davi é que as apascentará, ele lhes servirá de pastor. Eu,
o Senhor, serei príncipe no meio delas; eu, o Senhor, o disse.
(Ezequiel 34:23-24)

Se os fariseus não haviam liderado o caminho no que diz respeito ao cancelamento de todo o
significado político da esperança messiânica, Jesus nunca poderia ter consentido em ser chamado de
Cristo. De fato, o título é, para Ele, o mínimo aceitável de todas as descrições possíveis de Sua
missão. Apesar de Seu maior empenho para evitar ser forçado à falsa posição de um líder Zelote da
agitação nacionalista, é fornecida aos seus inimigos a sua melhor oportunidade para a deturpação, ou
melhor, a própria armadilha em que eles realmente planejaram Sua morte.
Palpável, manifestamente, era a coroa de espinhos que Pedro estava, ignorantemente, oferecendo-
lhe em Cesareia de Filipe. E, no entanto, em certo sentido, ele deve aceitá-la ou ser infiel à confiança
que o Deus dessas ovelhas perdidas e filhos perdidos tinha imposto sobre Ele. Sua herança era a
herança de filhos. Jesus não tinha a liberdade de combinar com os usurpadores uma peça. Eles não
tinham nenhum outro líder ou representante. O conhecimento da filiação tinha sido entregue a Ele.
Agora, para esses “pequeninos”, também tinha chegado algo mais do que a Revelação do Pai, e de
sua própria filiação que Ele tinha despertado neles. Eles receberam agora uma revelação por sua
própria conta. Jesus veio, não de carne e sangue, mas do próprio Pai, quando já perceberam que a
vindicação de sua filiação dependia dEle como “o Filho”, o Cristo.
O movimento do farisaísmo tinha tido este grande mérito, de que havia mudado a perspectiva da
esperança messiânica. Israel foi o primeiro a tornar-se filho de Deus, conhecendo e fazendo a Sua
vontade revelada. Posteriormente, receberia sua herança. O espírito de exclusividade, admitindo a
participação na herança, não aqueles cuja filiação foi evidenciada por um espírito semelhante ao do
Pai, mas apenas aqueles que se submeteram ao jugo das prescrições legais, tinham mostrado a
incapacidade fatal do método de obtenção dos fariseus da esperança messiânica, mas tinham deixado
o próprio ideal em formas mais amplas e em proporções mais nobres do que nunca. O método dos
fariseus era o mesmo dos puritanos de todas as gerações.
Pelo que, saí vós do meio deles e separai-vos, diz o Senhor; e não toqueis coisa imunda, e eu vos receberei; e eu serei para vós
Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-Poderoso.
(2 Coríntios 6:17-18)

Este ideal da esperança messiânica não é apenas um título que pode ser aplicado adequadamente
para a personalidade que se torna seu líder. Tal líder deve designar-se “o Cristo, o Filho do Deus
vivo”.
R. H. Charles chamou a nossa atenção para um fenômeno que confirma a observação de longo
alcance do professor Porter, de que os profetas não são criadores, mas críticos da esperança
messiânica. É que os títulos múltiplos aplicados ao Messias na literatura desse período,
particularmente a literatura apocalíptica, onde a figura do Messias desempenha uma parte tão
importante, títulos como “o Eleito”, “o Justo”, “O Santo”, o “Amado”, “o Servo”, “Herdeiro” são,
em quase todos os casos, derivados dos títulos conferidos a Israel como o povo de Deus. O Messias
é o “eleito” como representante e cabeça do povo eleito; “o Justo”, como cabeça e representante do
“justo”; o “Santo” como representando do “povo dos santos do Altíssimo”; “o amado” — e podemos
legitimamente adicionar, tendo em vista a passagem citada acima, Segundo Esdras, “o unigênito” —
como representando o povo a quem Deus “chamou sua amada, seu unigênito”; “herdeiro”, como
representando sua reivindicação à herança da criação de Deus. É assim também com o título “o
Filho”. Pois para alguém cujo ideal da esperança messiânica vem de passagens citadas do
Eclesiástico, Aristeu, Sabedoria, o Saltério de Salomão, e Jubileus, que compartilha o ideal
profético tão alargado e aperfeiçoado pelas experiências do exílio, o retorno, a revolta dos
Macabeus, e a reação farisaica contra os Asmoneus posteriores, não há título tão expressivo da obra
a ser alcançada por esse amigo de publicanos e pecadores como “o Filho”. Não é porque em algum
sentido peculiar e metafísico ele usurpe a natureza de Deus, mas porque “ele assume a descendência
de Abraão” para trazê-los para a sua herança, porque ele é “feito em todos os pontos semelhante aos
irmãos” porque é “o primogênito de muitos irmãos”.
É neste sentido que Jesus, o Filho de Deus, estava disposto também a tornar-se o Cristo pelo bem
dos Seus irmãos e companheiros. Quando nos voltamos para Suas próprias palavras, a reivindicação
aparece em sua verdadeira luz histórica como um sacrifício de Sua vida para ganhar de volta para os
deserdados “pequeninos” de Israel seu “direito de serem chamados filhos de Deus”. A lógica
invencível de Paulo aplicou o princípio aos filhos deserdados de toda a humanidade e fez Jesus
conhecido como “o Salvador do mundo”. Quando, uma geração depois, o discípulo romano de um
discípulo se compromete a se relacionar com “o evangelho de Jesus, o Cristo, o Filho de Deus”, ele
manifesta a disposição que devemos esperar.
O que ele está ansioso para provar é que Jesus foi dotado com esta distinção em Seu próprio
direito por uma voz do céu, que ele contendeu por isso e foi vindicado nisso por uma vida de
milagroso poder e bondade, e uma Ressurreição sobrenatural dos mortos. Felizmente, mesmo Paulo,
ansioso para exaltar a divindade de seu Redentor, e pronto com uma doutrina de sua descendência de
glória messiânica pré-existente, não perverte a doutrina da “filiação” em algo que se refere a Cristo
em distinção a nós, mas lealmente apresenta aquilo pelo qual ele possui em nosso benefício, e como
nosso representante:
Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam
debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de
seu Filho, que clama: Aba, Pai. Assim que já não és mais servo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro de Deus por
Cristo. Mas, quando não conhecíeis a Deus, servíeis aos que por natureza não são deuses. Mas agora, conhecendo a Deus, ou,
antes, sendo conhecidos por Deus, como tornais outra vez a esses rudimentos fracos e pobres, aos quais de novo quereis
servir? Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão.
(Gálatas 4:4-9, 5:1)
Capítulo 2

JESUS COMO FILHO DO HOMEM

Em uma discussão sobre as grandes passagens cristológicas dos Evangelhos Sinóticos, vimos que o
messianismo de Jesus era eminentemente ético e religioso. Sua atitude para com as expectativas
atuais da redenção de Israel assemelhava-se às dos profetas em ser crítico ao invés de criativo. Ele
etnizou e espiritualizou uma esperança que em suas origens e em suas manifestações populares
indisciplinadas tiveram pouco para diferenciá-la das expectativas entretidas por adoradores pagãos
de suas divindades tribais ou nacionais.
No que diz respeito às esperanças políticas dos Zelotes, ou nacionalistas, este partido é
universalmente reconhecido. A proibição de Jesus da aplicação do título de Cristo a si mesmo (Mc.
35
8:30) é comumente explicado como sendo devido à Sua falta de vontade de ser entendido como
alguém reivindicando o messianismo no sentido político.
Quanto ao tipo de messianismo farisaico, ou pietista, então em grande parte afetado pelos
apocalípticos, muitos críticos influentes estão se esforçando para convencer o mundo moderno de
que a atitude de Jesus era mais simpática do que crítica. Os apocalípticos, desde Daniel, tinham dado
uma guinada transcendental à crença antiga, e os fariseus, uma vez caracterizados por um tipo mais
ético e dentro do pietismo, agora estavam degenerando em um legalismo mais formal, enquanto
forçavam a carga das exigências mosaicas exigidas pelos escribas sob pena de exclusão da
participação no espiritual “mundo vindouro”. Esta doutrina de um “mundo vindouro” messiânico
transcendental foi uma inovação reconhecidamente emprestado do apocalipse.
36
A alegação de J. Weiss e sua escola é que Jesus era fundamentalmente um Apokalyptiker, em
plena simpatia com esta tendência, especialmente representada em João Batista, o divulgador do
movimento. Nossa própria tentativa foi a de mostrar que a pregação do “reino” de Jesus não envolve
menos verdadeiramente uma atitude crítica em relação ao transcendental mundanismo dos fariseus,
do que para o mundanismo do saduceu ou zelote. Afirmamos que, com toda a sua simpatia para com a
revolta de João Batista contra hierocracia, com todo o seu endosso de advertências do juízo iminente
de João Batista, Jesus explicitamente diferenciou a Sua mensagem da de João, também, enfatizando o
Seu próprio tipo mais suave, mais místico de messianismo. As origens disso podem, de fato, ser
encontradas na literatura mais antiga do farisaísmo, e nos escritos semelhantes da escola de
“sabedoria”.
O ensinamento de Jesus, portanto, sobre o destino humano, que se reflete na esperança
messiânica, é mais profundo e mais antigo do que o farisaísmo. Ele não se identifica com seita ou
partido. É preciso reter a antiga esperança de Israel antes que sofra suas aplicações especiais,
primeiro à instituição da monarquia davídica, em seguida, à substituição pós-exílica do sobrenatural
pelas esperanças nacionalistas. Jesus retorna ao princípio elementar do messianismo, a velha crença
popular de que Israel é (potencialmente) o filho de Deus. Ele concorda com os fariseus de que esse
ideal deve ser realizado pelo “saber” do filho e “fazer a vontade” do Pai. A diferença reside, em
parte, em sua concepção daquela “vontade”; pois para o escriba e seu seguidor cego, o fariseu, a
vontade de Deus é um preceito escrito para ser obedecido, enquanto que para Jesus é uma disposição
interior a ser adquirida. Nesse sentido, Ele se aproxima dos escritos sapienciais. A diferença está
também no resultado que se visa, o que para o escriba e fariseu é uma recompensa adicionada à
filiação, já para Jesus consiste na própria filiação com o que a bênção possa implicar (Q; Mt. 5:45,
Lc. 6:35). Nesse sentido, ele está mais em antagonismo com os apocalípticos do que em simpatia,
novamente, e se assemelha aos da escola de “sabedoria”, embora Ele próprio não seja um homem
das escolas, mas do povo.
Se esta interpretação do messianismo de Jesus estiver correta, resta-nos explicar como os crentes
em seu messianismo devem ter dado a interpretação intensamente transcendental e apocalíptica
refletida na mais antiga tradição evangélica. Tanto Paulo quanto os Sinóticos estão saturados com o
tipo de Escatologia característica da Sinagoga. Em ambos os casos, a esperança messiânica é
preeminentemente transcendental. Como isso pode ser, se o próprio Jesus não tinha ensinado assim?
A resposta, em termos gerais, será que a crença no messianismo de Jesus não nasceu das declarações
de Seu tempo de vida, tanto quanto com as experiências de êxtase de Seus seguidores após Sua
morte, e que essas foram condicionadas sobre as formas predeterminadas de pensamento dos
discípulos.
No início, não foi sequer imaginado que Jesus tivesse feito Sua própria pessoa e trabalhado o
assunto de Seu ensino. Isso encontramos apenas no evangelho teológico tardio emanado de Éfeso, a
sede do paulinismo. Em todos os escritos anteriores, sejam históricos ou epistolares em forma, a
doutrina da pessoa e obra de Cristo é declaradamente baseada, não em Seu ensino lembrado, mas em
fenômenos psicológicos na experiência de Paulo e outros, principalmente após a morte de Jesus;
37
Paulo era um fariseus completamente apocalipsista.
É um fato muito significativo que, enquanto as duas últimas testemunhas, Paulo e a tradição
evangélica, estejam unidas (como não poderia deixar de ser) em sua convicção fundamental de que
Jesus tinha sido ‘manifestado como o Filho de Deus, com poder pela ressurreição dentre os mortos’
(Rm. 1:4), ou, nas palavras de Pedro, tinha sido “feito Senhor e Cristo” (At. 2:36), eles diferem
muito em títulos pelos quais expressam suas concepções de seu Ser e Ofício. O título de “Senhor” é
aquele que na utilização de Paulo expressa a natureza e a função do Cristo.
Não é peculiar a ele, pois já vimos que se empregou uma passagem petrina típica. Também não é
de cunho paulino, pois encontramos Paulo citando até mesmo uma exclamação aramaica do qual faz
parte (Maranatha, “Vem, Senhor”), e a frase, “Jesus é o Senhor” é repetidamente referida como
expressando o consenso de fé apostólica. Apenas indireta e incidentalmente temos a evidência,
mesmo do conhecimento de Paulo, do título distintamente apocalíptico do Filho do Homem. Sua
citação do Salmo 8 em 1 Coríntios 15:27, e sua doutrina do “homem celeste” nos fazem suspeitar do
fato que, em seu pensamento, ele aplicou à Cristo, na sua própria maneira distinta, esse título
apocalíptico. Mas, a partir de seus escritos, por outro lado, não devemos achar que o título já tenha
sido aplicado a Jesus.
A tradição evangélica, por outro lado, exibe de uma forma totalmente peculiar a si mesma. O
título “Filho do Homem” não ocorre em nenhum escrito do Novo Testamento, exceto nos de Mateus,
Marcos, Lucas e João, e estes são notoriamente interdependentes.
Se, como muitos sustentam, a sua ocorrência frequente nos evangelhos pode ser explicada em
nenhuma outra teoria, exceto a do próprio Jesus, nosso ponto de vista de Seu ensino escatológico vai
exigir ajuste para o fato. Mas, também serão obrigados a responder por sua não aparição fora dos
quatro escritores evangélicos interdependentes. Se, por outro lado, nós avançamos com alguma outra
teoria para explicar sua ocorrência aqui, o nosso ónus da prova não será claro. Nós não rejeitaremos
o combinado testemunho dos quatro evangelistas de que Jesus aplicou o título a Si mesmo, a não ser
que lidemos de forma abrangente com essa questão da interdependência literária das fontes, pois
nenhum estudante cuidadoso vai admitir que a participação comum nesse recurso pudesse ser devido
à coincidência acidental. Vamos encarar a situação. O termo peculiar só pode ter impregnado os
quatro evangelhos pela transmissão de uma fonte comum muito tardia. Essa fonte comum primitiva,
capaz de afetar todos pelo uso do título “Filho do Homem” como uma autodesignação de Jesus, é o
documento Q, apenas o Evangelho de Marcos estando, como alguns sustentam, fora do alcance de sua
influência.
Nenhuma outra fonte definitivamente conhecida por nós ocupou um lugar primitivo e autoritário o
suficiente para produzir esse resultado. Se, então, o pedido do título é uma influência da tradição
primitiva, em vez de um verdadeiro registro de uso e da consciência de Jesus, a evidência para essa
conclusão deve ser procurada no documento Q.
Esse documento foi restaurado com mais cuidado por Harnack do que por qualquer predecessor
no campo, a partir do coincidente material não marcano de Mateus e Lucas. Harnack escolheu o
agradecimento ao Pai (Mt. 11:25-27, Lc. 10:21-22) e o discurso do Tropeço dos Judeus em Jesus
(Mt. 11:2-11, 12-13, 16-19, Lc. 7:18-28, 31-35, 16:16) como o mais importante em todo Q pelo seu
38
conteúdo cristológico. Depois de já ter discutido o significado da primeira dessas passagens,
podemos agora tomar o último como nosso ponto de partida para uma reflexão sobre a questão da
verdadeira origem e significado do título Filho do Homem.
Na restauração de Harnack, a passagem diz o seguinte:

Porque veio João, nem comendo, nem bebendo, e dizem: Tens demônio. O Filho do homem veio comendo e bebendo, e dizem: Eis
um homem glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores. Mas a sabedoria foi justificada por seus filhos.

Harnack conclui sua discussão sobre a Cristologia de Q com um comentário justo e significativo:

Mesmo com a aplicação mais conservadora de considerações psicológicas, é evidente que a consciência da filiação de Jesus
deve ter antecedido sua consciência de messianismo e aberto o caminho para ele.

39
Nós vemos isso como significando que das duas passagens supostamente fundamentais de Q, o
próprio Harnack reconhece uma distinguida pelo uso do título “Filho”, como mais característica do
que aquela que emprega o título de “Filho do Homem”. Jesus, sem dúvida, tinha a consciência de
filiação. Ele provavelmente encontrou nisso a solução da esperança messiânica acarinhada pelo
povo. Inferiu ele, a partir da atual liderança imposta pelas circunstâncias sobre o possuidor dessa
consciência, tal contínua liderança no “mundo por vir”, como a escatologia corrente esperava da
figura apocalíptica do Filho do Homem? Quais motivos temos para aceitar a autenticidade do
segundo título?
É dificilmente concebível que, em uma fonte tão antiga como Q, o título “Filho do Homem” deva
ser colocado várias vezes na boca de Jesus, caso esse realmente não pertença, de alguma forma, ao
seu vocabulário. Mas essa admissão, enquanto que abandona a linha de argumentação filológica dos
aramaístas, afirmando que em aramaico a expressão “Filho do Homem” seria impossível, não é de
forma equivalente a uma admissão de que Jesus aplicou o título a si mesmo. Pois, em primeiro lugar,
não é apenas provável, mas demonstrável, que até mesmo os nossos registros mais antigos, incluindo
o próprio Q, inserem o título, em muitos casos sem autoridade, e, por outro, entre os casos
reconhecidamente autênticos de uso próprio do termo de Jesus, há vários onde o significado é mais
característico dele se “Filho do homem” for entendido como se aplicando a nenhum outro exceto sua
própria personalidade glorificada.

Podemos assumir essas duas proposições em ordem:

1. É certamente notável que Harnack, em uma nota de rodapé na mesma página em que ocorre a
classificação do discurso sobre o Tropeço dos Judeus (nº 14, 15), com o Agradecimento de Jesus
pela sua Revelação (nº 25), as duas passagens cristológicas mais importantes de Q, expresse o
seguinte parecer sobre a ocorrência do título “Filho do Homem”:

É claro que, em casos individuais, é totalmente sem garantia positiva que Jesus tenha se referido a si mesmo como “o Filho do
Homem” em ditos onde Q representa-o assim designando a si mesmo. É mais do que duvidoso, por exemplo, que Jesus deveria ter
40
usado a expressão no No. 15; enquanto no início do mesmo discurso (No. 14, “bem-aventurado é aquele que não tropeçou em
mim”, etc), ele tenha manifestamente evitado bastante cada autodesignação messiânica.

Em outras palavras, o próprio Harnack admite a inautenticidade provável do termo na passagem


que promove como a mais importante! Pois, nós só podemos escapar do argumento linguístico de
Lietzmann, Wellhausen, e N. Schmidt, de que o título tal como “Filho do Homem” não teria sentido
no aramaico falado por Jesus, se supusermos que a expressão etimologicamente sem cor, equivalente
a “ser humano”, homo, Mensch, havia adquirido uma conotação mais específica através da sua
aplicação em Daniel e posteriores apocalipses. Seu emprego, então, por Jesus, seria tanto
enigmático, ou distintamente messiânico, no sentido transcendental.
Ambos empregos chamariam a atenção do público para a sua personalidade de uma forma
reconhecidamente contrária à política do silêncio observado por si mesmo e imposta a seus
discípulos (Mc. 8:30). Mesmo aqueles, portanto, que sustentam que esta era a “autodesignação
favorita” de Jesus, são cautelosos em admitir seu emprego, senão na intimidade do círculo
apostólico, e, posteriormente, para a revelação do Messias em Cesareia de Filipe.
A passagem de Q, considerada por Harnack como a mais manifestamente importante, não reúne
nenhuma dessas condições. Aqui, portanto, a ocorrência do título deve certamente ser atribuída ao
redator de Q. Para ele, a aparência de Jesus em sua obra de pregação e cura na Galileia,
contrastando como fez com a advertência de julgamento de João Batista, foi a vinda do Filho do
Homem. O próprio Jesus, quer tenha realmente olhado para o seu trabalho como cumprindo a
41
esperada vinda do Filho do Homem, não poderia ter, assim, declarado publicamente isso e, ao
mesmo tempo, mantido a incógnita que impôs aos seus discípulos. Uma vez que estamos a lidar com
a discussão de Harnack da Cristologia de Q, e já que estamos claramente dentro do limite de suas
próprias conclusões, quando inferimos da passagem em consideração que Qr manifesta uma
disposição para inserir o título “Filho do Homem” sem mandado histórico, podemos chamar
propriamente atenção aqui para uma observação mais significativa do mesmo crítico distinto:

A Cristologia como Q entendia dá um retrato perfeitamente consistente e simples. Q não tem outra concepção do que essa: Jesus
era o Messias, ordenado na filiação divina do seu batismo, e todos os seus ditos concordimente repousarão sobre este
conhecimento. Se, no entanto, a narrativa introdutória for removida em pensamento, uma concepção essencialmente diferente
aparece como resultado (p. 169).

Isso se aproxima muito da controvérsia de Wernle no estudo mais completo aplicado à questão
até Harnack, de que devemos distinguir um Q1 e Q2, atribuindo a uma mão tardia (Q2) as narrativas
42
iniciais referentes a João Batista, juntamente com alguns outros elementos. Manifestamente, as duas
partes sobre o batismo de Jesus por João, e o tropeço dos judeus em João e Jesus, têm em comum não
apenas a característica da obra do Batista, mas o objetivo comum, não aparente em Q como um todo,
de fixar a personalidade de Jesus em um plano maior.
Além do desconto a ser feito no motivo desse admitido Tendenz de Q2 ou Q1, também devemos
exigir consideração para o efeito de uma disposição mais geral dos tempos ilustrados, não só no Q,
mas a partir das epístolas paulinas até o período da logia de Oxirrinco, ou seja, a disposição de
atribuir a Jesus “ditos fiéis”, ou outros ditos correntes e apotegmas com mais ou menos afinidade
com o seu ensino, em particular os “ditos de sabedoria”, como os de Lc. 13:34-35, que em Mt.
23:37-39 são atribuídos diretamente a Jesus, com a supressão da derivação real da “sabedoria de
Deus”. O logion de Oxirrinco, “eu estava no mundo, e na carne fui visto por eles”, etc, é outra queixa
da Sabedoria divina, semelhante a Baruque 3:37, da mesma forma colocado na boca de Jesus. Existe
uma forte razão textual para isso em relação a Mc. 2:27 também, que não consta dos paralelos nem
no texto β, mas é encontrada como sendo um dito rabínico em Joma (fol. 85). Essa categoria de
aforismos que foi incluída entre os ditos de Jesus desde os primeiros tempos por causa das
semelhanças de fraseologia, ou conteúdo, deve, a nosso juízo, ser considerada, pelo menos, algo cujo
mais forte título, ao lugar que ocupa, é o seu emprego da expressão “Filho do Homem”.
É o dito de Q: “As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não
tem onde reclinar a cabeça” (Mt. 8:19-20, Lc. 9:57-58.). O próprio modo de seu emprego aqui (em
antítese com os pássaros e os animais) é tão diferente de qualquer outro dos empregos atribuídos a
Jesus, e o tom melancólico de autopiedade tão oposto à garantia reconhecida de sua recepção
hospitaleira em Mc. 10:29f (cf. Lc. 8:3, 10:38-42, 22:35), que não podemos considerar o dito como
43
autêntico. Parece ser um aforismo atual contrastando a impotência do ser humano individual, uma
criança abandonada e desviada quando deixada sozinha no meio da natureza, com a autosuficiência
de pássaros e animais. Apenas um jogo de palavras sobre a expressão “Filho do Homem”, pode ser
isso, de alguma forma, aplicado a Jesus. Mesmo se a sua autenticidade for admitida, há a mesma
razão, neste caso, como naquela do dito contrastante, de que são incompatíveis um com o outro. Os
críticos concordam que a interpretação de Mateus do sinal de Jonas com a Ressurreição é também
flagrantemente contraditória do contexto para ser considerada autêntica.
Eles estão muito geralmente dispostos, no entanto, a aceitar a explicação de Lucas de que o sinal
44
de Jonas é a pessoa de Jesus. Na realidade, só temos de colocar os dois lado a lado no contexto
idêntico para ver que ambos são suposições; Lucas é apenas menos inconsistente do que Mateus com
a transmissão geral do discurso de Jesus. Nós damos o contexto em uma tradução do texto de Q de
Harnack.

Mas ele disse: Uma geração má e adúltera busca um sinal, e nenhum sinal lhe será dado, salve o sinal de Jonas.
Pois, assim como Jonas esteve no ventre do monstro do mar três dias e três noites, assim o Filho do Homem estará no coração da
terra três dias e três noites.
Pois assim como o próprio Jonas era um sinal para os homens de Nínive, assim será o Filho do Homem para essa geração.
Os homens de Nínive se levantarão no juízo com esta geração, e a condenarão, porque se arrependeram com a pregação de Jonas,
e eis que uma questão maior do que Jonas está aqui.

Um olhar sobre Mt. 21:23-32, caso não seja também incorporando ao material de Q, permanece
em todo caso em essência paralela com a história da exigência galileia por um sinal do céu, o que vai
mostrar que na concepção de Jesus o grande sinal dos tempos era o arrependimento das massas no
“batismo de João”. Era para ele um cumprimento da promessa (Ml. 4:6) do grande arrependimento a
ser operado por Elias antes do Dia do Senhor. Ao permanecer insensível a este movimento dos
publicanos e pecadores, os escribas e fariseus haviam rejeitado o sinal “do céu”. Assim, os dois
exemplos dos ninivitas e da rainha do Sul condenam “essa geração” pela sua rejeição do “choro” de
João e “cântico” de Jesus. Ela é comparada a “crianças no mercado local”, porque não cedem à
ameaça nem súplica. Se, então, nós temos em Mt. 11 e Mt. 21 tradições duplicadas do mesmo
incidente, ou enunciados paralelos de Jesus em ocasiões semelhantes, em ambos os casos, eles
determinam para nós o sentido da resposta comparando desfavoravelmente os homens dessa geração
com os homens de Nínive. É apenas na segunda parte da comparação poética, que lhes compara
desfavoravelmente com a “Rainha do Sul”, que Jesus se refere à sua própria pregação como “uma
45
questão maior” do que a sabedoria de Salomão.
Na primeira parte, ele se refere à pregação de João Batista. Tanto as explicações interrompidas
sobre o sinal de Jonas, portanto, quanto as de Lucas e Mateus, estão incorretas e, se estiverem
46
incorretas, então certamente são inautênticas. Jesus não se referiu por esta expressão a sua própria
personalidade, nem a sua ressurreição, mas ao “batismo de João”. Dispensar aqueles casos cuja
relação verdadeira não atesta um autêntico uso por Jesus do título “Filho do Homem” em sua
aplicação a si mesmo, mas, pelo contrário, uma disposição por parte dos transmissores da tradição
de se multiplicar casos inautênticos, chegamos a um número relativamente pequeno de resíduos cujo
primeiro valor é de explicar a Tendenz observada. Jesus realmente empregou a frase, caso contrário,
a Tendenz seria inexplicável. Mas, ele a emprega em sua aplicação a si mesmo? A resposta
satisfatória exige a consideração de todos os casos autênticos, sem exceção, antes de todas as
ocorrências indiscutíveis em Q. Elas são as seguintes:

47
(1) Mt. 12:32, Lc. 12:10.
(2) Mt. 24:27, 37, 39, Lc. 17:24, 26, 30.

O primeiro trecho é um dos principais pontos de discórdia entre Wellhausen e os críticos que
continuam a manter a prioridade de Q a Marcos. Na visão de Wellhausen, a comparação das
variantes em Mt. 12:31, 32, respectivamente, derivada a partir de Mc. 3:28 e Q (cf. Lc. 12:10),
mostra a prioridade de Marcos a Q. Ele diz:

Em Mc. 3:28 temos: Todas as blasfêmias serão perdoadas aos filhos dos homens, exceto a blasfêmia contra o Espírito Santo. Em Q
(Lc. 10:12), pelo contrário: Enunciados contra o Filho do homem são perdoados, apenas aqueles contra o Espírito Santo não são.

Estivesse Wellhausen correto, Q seria condenado em mais um exemplo de introduzir o título


“Filho do Homem” com nenhuma autoridade melhor do que uma perversão de Mc. 3:28, aumentando
assim a probabilidade de que é a partir da modificação posterior que o uso peculiar permeou a
tradição evangélica. Mas, sobre essa questão, estamos obrigados a assumir o ponto de vista dos
adversários de Wellhausen. “Filho do Homem” é o original, “filhos dos homens”, a forma derivada.
Essa não é uma mera inferência a partir da conclusão forçada sobre nós pelas evidências da
prioridade de Q em todas as outras instâncias de relação com Marcos; é evidente a partir do contexto
desse discurso particular. De acordo com os três relatores do enunciado em questão, deve-se
explicar a natureza peculiar hedionda do delito cometido apenas (a declaração: “Ele expulsa por
Belzebu”), que o excetua até mesmo do perdão divino. De acordo com Q (Mt. 12:32; Lc. 12:10), isso
ocorre porque, embora aparentemente dirigida apenas contra Jesus, tinha realmente em referência o
Espírito de Deus, porque não é Jesus, pessoalmente, que realiza as curas e exorcismos, mas “o
Espírito de Deus”; dessa forma, o crime é imperdoável. Essa é precisamente a distinção que Marcos,
de acordo com todo o espírito do seu evangelho, como mostrado em casos repetidos, recusa a
admitir. A diferença apontada por Jesus entre seus exorcismos, realizados “pelo Espírito (Lc.
“dedo”) de Deus”, sem qualquer hipótese de poder especial, ou dom residente em si mesmo, e os
exorcismos de “seus filhos” (Mt. 12:27f; Lc. 11:19f) — um elemento vital de todo o argumento — é
omitido por Marcos. O resultado — o resultado pretendido, tanto quanto podemos julgar — é fazer
com que pareça que a blasfêmia de Jesus, por calúnia de suas obras de poder, é idêntica à blasfêmia
contra o Espírito Santo, e, portanto, imperdoável.
Em Q a ofensa é imperdoável, porque não é contra Jesus, mas contra o Espírito Santo. Em
Marcos, a ofensa é imperdoável porque é contra Jesus, e isto é equivalente a uma ofensa contra o
Espírito Santo. É quase necessário indicar qual dessas duas construções de expressão de Jesus tem o
selo de originalidade e autenticidade. No entanto, a construção marcana posterior teria encontrado
um obstáculo insuperável, se a linguagem de Q – “todo aquele que blasfemar o Filho do Homem será
perdoado” – tivesse sido deixada inalterada. A alteração em Mc. 3:28 para “todos as blasfêmias
serão perdoadas aos filhos dos homens” é indispensável para a concepção de Marcos, e, portanto,
provavelmente foi feita por esse motivo.
Temos, então, ao estabelecer neste caso a originalidade em Q do título “Filho do homem”,
provado a sua autenticidade como um título aplicado por Jesus a si mesmo? Pelo contrário, toda a
força do argumento de Jesus depende da distinção entre sua própria personalidade como em um nível
comum com outros homens e da dignidade sobre-humana do “Espírito de Deus”. Em outras palavras,
o termo “Filho do homem” está sendo usado aqui, não no sentido transcendental do apocalipse, mas
no sentido normal do Antigo Testamento, de um mortal do comum em contraste com Deus. O artigo,
se foi usado na expressão de Jesus, teria que ser entendido como genérico, em alemão, die Lästerung
gegen den Menschen wird vergeben, que em português deve ser traduzido: “blasfêmia contra um
homem pode ser perdoada”. Esse, por todas as evidências do contexto, é o verdadeiro significado
das palavras de Jesus. Se houver aplicação de um título especial para o próprio Jesus na passagem
de Q, não se atribui a Jesus, mas é criação do próprio compilador.
(3) As únicas ocorrências do título “Filho do Homem” em Q ficam em um único contexto, e, sem
dúvida, referem-se a figura apocalíptica transcendental, danílica e libertadora. Damos a passagem na
reconstrução de Harnack (nº 56):

Se, então, eles vos disserem: Eis que ele está no deserto, não saiais; eis que está em seus aposentos, não acreditem. Porque, como o
relâmpago, sairá do oriente e se mostra até o ocidente, assim será também a vinda do Filho do Homem; onde estiver o cadáver, aí
os abutres se juntarão.
Como foram nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do Homem. Porque assim como os homens eram nos dias antes
do cataclismo, comiam, bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam,
até que o cataclismo veio e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do Homem.
Haverá dois no campo, um será tomado e outro deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho, uma será tomada e outra
deixada.

Se houver qualquer fundamento válido em Q para considerar o título “Filho do Homem” como
uma “autodesignação de Jesus”, deve ser encontrado nessas três ocorrências conectadas da frase “a
Vinda do Filho do Homem”. Quis Jesus dizer com isso do seu próprio retorno em glória, ou se refere
ao Executor do juízo divino de quem João Batista havia soado o aviso?
A transmissão geral do ensino aqui em questão é o mesmo do capítulo apocalíptico de Marcos,
em que expressões paralelas foram retomadas. Jesus reprova a busca pelos horóscopos e
calculadores do fim do mundo e do juízo vindouro. Vaidosas e fúteis são suas previsões. A vinda do
Filho do Homem é um grande evento divino, só comparável aos julgamentos poderosos visitados na
terra nos dias de Noé, ou nas cidades da planície, nos dias de Ló. O que os escritores do Antigo
Testamento se referem como o Dia de Javé é agora mencionado como o dia da vinda do Filho do
Homem. Devemos, certamente, permitir a efetivação no uso popular de uma equivalência entre a
figura transcendental de Daniel (com os apocalipses mais recentes dependentes dele) e Aquele que
Vem de João Batista. Mas, não há qualquer indicação de que o equivalente, “Jesus é o Filho do
Homem”, tenha entrado na mente do falante no discurso acima, ou mesmo qualquer mente anterior a
do compilador dos ditos. Até que possa ser mostrado (1) que Jesus se considerava o Messias, e (2)
que ele também considerou esse ofício como envolvendo seu retorno como executor do juízo divino
na vinda do Filho do Homem, a passagem — a única em que temos razão para pensar que Jesus
empregou o título como aplicável a uma figura transcendental — permanece totalmente sem força
para provar a tese em apoio do que é apresentado. A prova real de que Jesus entreteve sonhos
fantásticos de apocalipse como se aplicando a sua própria personalidade em um estado ressuscitado,
reduz-se, assim, a nada.
Há evidências em abundância de que o compilador de Q na forma empregada pelos nossos
evangelistas adotou a equivalência, “Jesus é o Filho do Homem”, e não fez nenhum escrúpulo de,
ocasionalmente, substituir o título pelo pronome pessoal que lhe pareceu apropriado. Há aqui uma
possível explicação para a prática que se espalhou por todos os evangelhos. Não há evidências
suficientes de que Jesus alguma vez tenha aplicado o título a si mesmo.
Temos dois possíveis critérios para determinar se esta explicação possível da propagação do uso
também é a verdadeira.
(1) Marcos, caso seja dependente de Q, é reconhecidamente assim em um sentido diferente e, em
menor grau do que Mateus ou Lucas. Devemos esperar, então, encontrar o título “Filho do Homem”
menos à vontade (por assim dizer) em Marcos do que Q. (2) Em Atos, especialmente nos discursos
de Pedro, temos de comum acordo um tipo muito inicial de Cristologia, se é certo que não tem traços
de um tipo de tradição evangélica totalmente afetada por Q. Consideremos brevemente esses dois
critérios.
(1) Os fatos sobre o emprego marcano do título são brevemente resumidos na p. 38 da introdução
ao meu comentário intitulado Beginnings of Gospel Stories, como se segue:

“O título Filho do Homem não parece caracterizar os elementos fundamentais de Marcos (P). Ele ocorre em suplementos editoriais
derivados de Q e mesmo assim em um sentido adaptado”. As limitações de espaço, claro, impedem a citação aqui das provas em
que essa declaração é feita, mas uma referência para os casos individuais como discutido no volume citado será suficiente. O título
não parece, a partir desses, que seja estranho para Marcos, mas exótico. Ocorre somente nas passagens onde existe evidência
independente da influência de Q.

(2) Não há ocorrência do título Filho do Homem ao longo dos discursos petrinos de Atos, ainda
que esses estejam tão amplamente preocupados com a doutrina da humilhação e exaltação de Cristo.
Como é bem conhecido, a sua única ocorrência no Novo Testamento fora dos quatro evangelhos é no
discurso de Estevão, Atos 7:56, reconhecido por Harnack e muitos outros como derivado de uma
fonte diferente. Mesmo aqui, não são as palavras do próprio discurso, mas de seu narrador, que
sugere a equivalência, “O Filho do Homem é Jesus”. Na teoria de que essa foi “a autodesignação
favorita de Jesus”, o fato marcante de sua ausência completa dos discursos de Pedro em Atos
permanece tão inexplicável quanto o silêncio igualmente ininterrupto de Paulo.
Chegamos à conclusão de nossa análise dos dados. Uma avaliação justa de todas as provas
documentais, pelo menos, obriga-nos a admitir um grande desconto a partir da sua impressão prima
48
facie. O suposto consenso de testemunhas pode facilmente reduzir-se ao testemunho de uma, e a
evidência dessa uma, o compilador de Q, não é totalmente consistente com o seu próprio material ou
com a evidência indireta de outros. Contra isso, está a incongruência da concepção com outros
ensinamentos de Jesus, e o caso com o qual o apocalipsismo entusiasta da igreja primitiva pode
passar de certas palavras sobre a “Vinda do Filho do Homem” para o equivalente, “o próprio Jesus é
o Filho do Homem vindouro”. A preponderância da evidência parece se inclinar em direção a uma
origem para essa equivalência não na mente sã e sóbria de Jesus, mas nas expectativas exaltadas e
visionárias de uma igreja em chamas com as expectativas momentâneas do fim.
Capítulo 3

JESUS, O SENHOR

Em discussões sucessivas sobre o título “Filho de Deus”, o que parece ter sido a própria
autodesignação de Jesus, e “Filho do Homem”, que parece ter sido aplicado a ele após sua morte,
pela comunidade de língua aramaica primitiva de crentes em sua segunda vinda, temos procurado
separar o primitivo da tradição secundária. Nós particularmente enfatizamos o fato de que em seus
princípios distintivos, ao próprio ensinamento de Jesus, atribui-se a forma primitiva do ideal
messiânico — Israel, como filho de Javé; não o teocrático tardio — o herdeiro de Davi ao trono
como o Filho de Deus, nem o ainda mais tardio apocalíptico — o libertador sobrenatural vindo sobre
as nuvens do céu, como cumprimento da promessa. De acordo com este ponto de vista do ensino de
Jesus, nossos primeiros documentos, as epístolas paulinas, fazem da filiação, no sentido ético e
religioso, a essência do Evangelho. Desde a publicação do nosso argumento, nossas conclusões
foram confirmadas pelo importante documento recém-descoberto, as Odes de Salomão. A
confirmação é especialmente forte, se a visão de Harnack for aceita, de que as odes, em sua forma
original, são judaicas, ao invés do ponto de vista de seu descobridor, J. Rendel Harris, que as
considera como cristãs. As odes dão provas irrefutáveis da existência do Judaísmo do primeiro
século, ou pelo menos nos círculos cristãos primitivos, de uma doutrina de filiação no sentido ético e
religioso em estreita conformidade com o que pedia o elemento distintivo na consciência messiânica
de Jesus. O ideal do odista para Israel é um ideal de filiação espiritual. Pelo conhecimento e pelo
amor do Amado, “o Altíssimo e Misericordioso”, a Israel é garantida não só a filiação de Deus, mas
a imortalidade, uma habitação eterna na presença de Deus.
O ponto também foi enfatizado contra aqueles que consideram o título “Filho do Homem” como
“a autodesignação favorita de Jesus”, e que, em coerência lógica, faz da escatologia apocalíptica a
nota dominante em sua mensagem, que das três grandes fontes de evidência, (1) as epístolas paulinas,
(2) tradição petrina, consagrada em Atos e as bases de Marcos, (3) os preceitos mateanos do Senhor,
apenas a terceira dá evidência independente da circulação do título, e esta fonte, correspondente ao
documento Q dos críticos, é, se não a mais recente, certamente não a mais antiga das três. Para o
evangelho paulino, o título Filho do Homem é completamente desconhecido. Para o petrino, na
medida em que somos capazes de reproduzi-lo, é igualmente desconhecido. Sua ocorrência é
estritamente limitada à fonte aramaica que circulou na parte da igreja que olhava para Tiago, irmão
do Senhor, como “o bispo dos bispos”, e escritos diretamente afetados por essa influência da Judeia,
como nossos evangelhos canônicos, incluindo uma ocorrência em Atos. Na literatura pós-canônica
49
antiga, achamos usado apenas por Hegésipo, em seu relato sobre o martírio de Tiago, pelo
50 51
Evangelho segundo os Hebreus, e pelas chamadas Tradições Mateanas.
Resta-nos mostrar, como o último elo da nossa cadeia de evidências para a prioridade da forma
ética e religiosa do messianismo cristão, que não há lugar nos evangelhos de Pedro e de Paulo sobre
este ponto; mas que, na Cristologia deles, a doutrina de que “Jesus é o Senhor” ocupa o lugar tomado
na tradição mateana pela doutrina: “Jesus é o Filho do Homem”.
Nas epístolas paulinas e nos discursos petrinos de Atos, encontramos muitas expressões que
lançam luz sobre a verdadeira origem do culto de Jesus como um ser sobrehumano. Ocorrendo como
o fazem de forma completamente estereotipada, em alguns documentos, dos quais pelo menos são
muito mais antigos do que Q e nenhum dos quais trai qualquer conhecimento do título “Filho do
Homem”, eles certamente justificam a inferência de que a doutrina “Jesus é o Senhor” não é um mero
substituto para a forma danílica “Jesus é o Filho do Homem”, nem uma consequência dela, mas que
os dois representam tipos bastante paralelos e independentes da Cristologia. “Jesus é o Filho do
Homem” pode ser considerado, por assim dizer, como uma tradução para o dialeto e fraseologia da
Palestina da doutrina que os cristãos de língua grega expressavam na confissão: “Jesus é o Senhor”.
Temos visto, na discussão anterior, que Paulo não hesita em empregar tais termos aramaicos
como Abba, Maranatá, Amen. Ele certamente não evita abordar os gentios convertidos como
“homens que conhecem a lei”. Não é, portanto, fácil supor que ele evitou o título “Filho do Homem”,
a “autodesignação favorita de Jesus”, porque não poderia ser entendido em grego sem uma referência
a Daniel 7.12-14. Tanto quanto não poderia a frase hebraica ben ’adam em aramaico; ainda assim,
encontrou uso ali na forma de bar enash, e, depois de ter feito a transição do hebraico para o
aramaico, o que certamente poderia, se tivesse havido ocasião, passou igualmente para o grego. Na
verdade, sabemos que, em última análise, isso aconteceu, mas não nos dias de Paulo. Era um termo
bastante diferente que ele toma emprestado do aramaico. De fato, ali jaz uma pista importante para o
início real da Cristologia em que a palavra de ordem, Maranatá, nos leva a Paulo em um período tão
primitivo que o aramaico ainda é a língua geral da igreja. O lema da igreja que ecoou por Paulo não
é barnash atha, “o Filho do Homem virá”, mas maran atha, “o nosso Senhor vem”. É, de fato, como
veremos, o título κύριος o equivalente grego do aramaico mar que é destaque onde quer que a
questão diga respeito à autoridade divina de Jesus.
Só um título como esse, indicativo do direito de ordenar a obediência em todas as coisas, pode
ser expressivo da fidelidade cristã. Dessa forma, o achamos em mais de uma passagem, onde é
claramente escolhido para expressar esse sentimento de lealdade. Primeiro de tudo, a passagem
paulina onde ocorre essa palavra de ordem em aramaico (1 Co. 16:22) é, por si só, importante, não
apenas porque a Primeira Carta aos Coríntios é a melhor escrita autenticada do Novo Testamento, e
cerca de vinte anos mais antiga do que o nosso mais antigo evangelho, mas porque, nessa ocasião,
Paulo cunha uma frase destinada a ser distintiva do cristão genuíno. Lado a lado estão o título grego e
o equivalente aramaico: “Se alguém não ama o Senhor (τòν κύριον), seja anátema. Maranatá”. A
própria frase de Paulo é aqui reforçada pela frase tomada das assembleias primitivas, estimulada
pelo entusiasmo das “visões e revelações do Senhor” em conjunto:

Que ecos longos e altos,


O poderoso Maranatá feriu o ar.

Outra passagem desta mesma epístola é ainda mais indicativa do papel desempenhado pela
palavra em testes primitivos de lealdade. Quando se tornou necessário distinguir as reais das
pretensas declarações do Espírito, o teste que Paulo ofereceu foi o seguinte: “Ninguém pode dizer
que Jesus é o Senhor senão pelo Espírito Santo” (1 Co. 12s). Isso é, sem dúvida, destinado não como
uma piedosa exclamação normal, mas como uma confissão solene. O princípio estabelecido é
manifestamente falacioso, a menos que o enunciado da confissão seja entendido como uma promessa
de fidelidade e obediência.
Ou, se for necessária mais uma prova de que o título Senhor englobava — pelo menos para as
igrejas paulinas — o elemento distintivo da fé cristã, tomemos a passagem em que Paulo formula o
conteúdo essencial da fé comum, por escrito, aos crentes em Roma — e estes não eram meros
convertidos seus, para que possam supostamente representar apenas um tipo especial. A forma em
que a confissão é extraída é esta: “Se você confessar com a tua boca que Jesus é Senhor e creres no
teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” (Rm. 10:9). Uma vez mais, a
expressão externa da fé comum dos crentes tem a forma da confissão, Jesus é o Senhor.
Essas passagens são selecionadas das maiores epístolas paulinas porque é evidente, a partir de
sua natureza, que o autor não está inventando um novo título, mas de propósito emprega aquele que
tem mais aceitação universal, tanto nas igrejas de língua grega como nas de língua aramaica, e que
expressa mais plenamente em uma única palavra o conteúdo completo da fé comum. Essa palavra é
κύριος, o título imperial expressivo da soberania completa, propriedade e domínio. Quando usada de
forma absoluta, a sua referência poderia ser nada menos do que o senhorio supremo sobre o mundo
criado. Quando usada com o genitivo do pronome (“meu Senhor”, “Senhor”, etc), ela expressa uma
relação de lealdade pessoal, para o qual o abstrato “Filho do Homem” deu pouca oportunidade. Se
em qualquer lugar, então, certamente na frase, “Jesus é Senhor”, temos a própria fraseologia do que
foi cunhado como “confissão do (ou no) Nome”. Sim, porque este domínio, ou soberania, de Jesus
não só deve ser mantido fielmente contra o império, mas “anjos e principados e potestades nos
52
lugares celestiais” devem ser sujeitos a ele.
Voltemos nossa atenção, por um momento, para o documento mais tardio. Um escritor que, em
nome de “Pedro”, incentiva as igrejas paulinas da Ásia Menor a firmeza sob perseguição, insta
heroísmo para “glorificar a Deus neste nome” (de Cristo), mas interiormente a “santificar em seus
corações a Cristo como Senhor”. Isso foi depois da morte de Paulo, e contra um déspota imperial que
havia dirigido seus decretos emitidos na forma de “dominus et deus noster”. Mas para Paulo,
também este nome, Senhor, marcava a prerrogativa de Cristo contra os potentados terrestres e
celestes. Todo joelho se dobrará, dos seres no céu, ou seres na terra, ou os seres debaixo da terra, e
toda língua deve juntar-se na confissão suprema de “que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus
Pai”. Esse, então, é “o nome que está acima de todo nome” dado a Jesus por causa de sua
exemplificação suprema do princípio: “Aquele que se humilha será exaltado” — o nome do Senhor.
Não será sem importância, para a nossa necessidade de mais investigações sobre as origens desta
confissão Cristológica primitiva, perguntar onde Paulo descobre o nome do Senhor dado dessa
forma. Em resposta, precisamos apenas nos voltar para a passagem paralela sobre a exaltação de
Jesus em 1 Co. 15:25, onde umas poucas palavras, citadas da Escritura que Paulo tem em mente,
revela o fato de que ele está pensando no famoso salmo messiânico: “Disse o Senhor ao meu Senhor:
53
Assenta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés”. E só precisa de
uma maior comparação com Rm. 14:10f., onde a mesma passagem fundamental (Is. 45:23) é usada
como em Fl. 2.11 para provar que esse dobrar dos joelhos e confissão da língua devem ser “diante
do tribunal de Cristo”. Em outras palavras, essa é a forma paulina da doutrina de Jesus como o Filho
do Homem.
Não obstante, com isso começamos uma transição de passagens que apenas meramente
evidenciam a prática das igrejas paulinas para outro grupo que evidencia tanto a prática e a sua
origem, e que não aparece na literatura paulina apenas, mas naquela que tem o melhor título para
representar-nos o tipo petrino de doutrina.
Não podemos dizer que seja o caso com Primeira Pedro, uma epístola que até Zahn reconhece
como sendo paulina em conteúdo, embora tendo — na sua mente de forma legitima — o nome de
Pedro. Devido a esse caráter paulino de Primeira Pedro, temos simplesmente colocado sua exortação
às igrejas paulinas para “santificar em seus corações o Jesus como Senhor” no grupo de evidências
paulinas.
Segunda Pedro, por outro lado, é, de modo geral, reconhecido como sendo espúria e tardia,
merecendo nenhum lugar em séria comparação petrina com a tradição paulina. O caso é diferente,
porém, com os discursos colocados na boca de Pedro pelo autor de Atos. Esses são admitidos como
apresentando, se incorporados a partir das fontes anteriores, ou compostos pelo evangelista, um tipo
peculiar e muito primitivo da Cristologia, facilmente distinguida da paulina por não ter qualquer
traço da concepção da preexistência de Jesus, ou do significado expiatório da Sua morte. Aqui está,
pelo menos, um tipo primitivo e independente de Cristologia, com direito a ser designada “petrina”,
se pelo mesmo ela for apresentada sob o nome e a autoridade de Pedro e, na realidade, é diferente da
mateana, de um lado, e paulina, de outro. Não deveria surpreender-nos que a afinidade mais próxima
desse tipo de Cristologia seja com o Evangelho de Marcos em seus contornos mais fundamentais, os
menos afetados pela acomodação às ideias de Paulo, ou a influência da fonte Q, pois a marcana é
também um tipo crível relatado como descansando sobre o ensinamento de Pedro. No entanto, o
ponto principal da nossa referência à Cristologia de Atos é que o autor fundamenta a fé da igreja
sobre a mesma base confessional como faz Paulo, e apela para a mesma escritura. O ponto de partida
da história “de Lucas” sobre a propagação do evangelho é a demonstração de Pedro para as
multidões reunidas no Pentecostes, em parte, a partir dos fenômenos de “dons espirituais”, e, em
parte, com base no Salmo citado em 1 Co. 15:25, que Deus tinha dado a Jesus o nome de Senhor.
Para o autor dos discursos petrinos de Atos, uma demonstração é vital, e tudo o mais fica
dependente disso. É a demonstração da coincidência das Escrituras proféticas e a experiência
presente que Deus tem “feito a esse mesmo Jesus, a quem vós [seus compatriotas] crucificastes,
Senhor e Cristo”. Na concepção de “Lucas”, isso marca o início da igreja cristã. Seu capítulo
preliminar (At. 1) apenas recapitula o fim da carreira terrena de Jesus, glorificado como tinha sido
com a promessa de uma entronização logo a seguir. Até Pentecostes, Jesus não tinha sido Senhor ou
Cristo. Ele havia sido o Servo de Javé, enviado para abençoar Israel, por desviá-los, a cada um, das
suas maldades (At. 3:26). O Pentecostes é o dia da coroação do Servo. De agora em diante, como
Senhor, ele ocupa “o trono de glória”. “Os céus devem recebê-lo”, diz Pedro, “até os tempos da
restauração de todas as coisas”. Então Deus, em sua misericórdia, vai enviá-lo como o Cristo. É a
fase nacionalista da Cristologia, ao invés da apocalíptica, ou transcendental, que aqui aparece como
o traço distintivo suplementar para a paulina.
Os novos cumprimentos das Escrituras recorridas, além de Sl. 110:1, são as promessas do
derramamento do espírito de profecia (Jl. 2:28-31), as promessas de um herdeiro para o trono de
Davi (Sl. 13:11, 2 Sm. 7:12f.) e o “profeta como Moisés” (Dt. 15.18). De fato, a Cristologia
nacionalista mostra a influência do apocalipse. O mesmo tem sido, por assim dizer,
transcendentalizado. Mas o único traço real da doutrina do Filho do Homem, “vindo com as
nuvens”, está na promessa dos anjos ao testemunhar a Ascensão: “Vós o vereis da mesma maneira
vindo novamente” (At. 1:11). A diferença real da Cristologia paulina não é que o autor volte para a
doutrina apocalíptica de um filho preexistente, ou transcendental, do homem. Pelo contrário, ele nem
mesmo adota a doutrina de Paulo da Encarnação.
Como Pfleiderer tem de forma tão justa e discriminadamente apontado, a Cristologia da fonte
“petrina” de Atos é uma doutrina de apoteose, a apoteose do Servo Sofredor. “Pedro” meramente
complementa a doutrina paulina de que “Jesus é o Senhor”, adicionando uma expressão da esperança
nacional, de que em breve ele irá reaparecer como “o Cristo”. A pregação de Pedro para os gentios é
representada em At. 10:36-43, onde a mensagem do evangelho é resumida em uma declaração
preliminar como a doutrina de que Jesus Cristo “é o Senhor de todos” (πάντων Κύριος).
Certamente, se a nota dominante no ensino de Jesus foi a doutrina danílica transcendental do Ser
aparecendo sobre as nuvens, e se Filho do Homem era sua favorita autodesignação, é surpreendente
que “Pedro” devesse estabelecer os alicerces da fé da igreja nestes discursos sucessivos, e nunca
empregar o título ou aludir às previsões. A doutrina do senhorio está aqui. Ela é complementada
agora pela doutrina de uma obra preliminar do Ser-Cristo, Jesus, o Servo enviado para efetuar o
grande arrependimento, o profeta como Moisés, poderoso em obras e palavras diante de Deus e
todos os povos, o filho e herdeiro de Davi, o qual pouco, ou nada, aparece em Paulo.
A doutrina do Dia do Juízo Vindouro está presente, como também em Paulo (compare At. 10:42
e 17:31 com 1 Ts. 1:10). Apenas a fraseologia empregada e as escrituras mencionadas não dão mais
motivo, do que em Paulo, para pensar no título Filho do Homem, ou mesmo de qualquer doutrina
apocalíptica de Jesus, como o ponto de partida da Cristologia petrina.
Para julgar, então, por estas duas vertentes da tradição primitiva, a paulina e “petrina”, não foi
uma autodesignação de Jesus, mas a manifestação dele como Senhor, que se tornou o ponto de partida
da fé. Este resultado está em conformidade total com a discussão aprofundada e acadêmica do
54
professor S. J. Case sobre “KYPIOΣ como um título para Cristo”, em que ele refuta a ideia
corrente de que a deificação de Jesus foi resultado do uso de κύριος na Septuaginta, como uma
tradução do nome divino hebraico, bem como a aplicação a Jesus de passagens do Antigo Testamento
em que o termo ocorria. A prática existe, mas não é primitiva, nem a confusão poderia ter ocorrido
em uma comunidade de língua aramaica, ou entre aqueles que estão familiarizados com as Escrituras
Hebraicas.
55
É mais visível em escritores, como o autor de Hebreus, cujo único conhecimento com as
Escrituras parece ter sido através do grego. Nem a direção da oração para Jesus, nem a aplicação
das Escrituras a ele, que originalmente se referia a Deus, dá garantia suficiente para a teoria em
questão. Como o caso assinala, a oração dirigida a Jesus, sempre excepcional e progressivamente
mais rara, ao passo que nos aproximamos dos primeiros tempos — implica apenas “que Deus e
Cristo têm posições semelhantes em relação aos homens”, não que Jesus seja tratado como Deus. Em
particular, o supremo dom messiânico, potencialmente, inclusive de todos os outros, é o dom do
“Espírito”. Como penhor da adoção como filhos e herdeiros, e como “garantia” da imortalidade, é
considerado naturalmente como o objeto todo-inclusivo da oração (compare Lc. 11:13 com Mt.
7:11). Mas o Espírito, enquanto em última análise, o “dom de Deus” (At. 8:19, Jo. 4:10), é de uma
maneira especial e peculiar o dom de Cristo. O “derramamento” do que é garantido por sua exaltação
ao trono messiânico (At. 2:33 Ef. 4:7-12), que é condicionado por Sua ida para o Pai (Jo. 16:7ff,
20:17, 22.).
Então, a oração, em geral, poderia muito bem ser “em nome” de Jesus; a oração pelo Espírito,
particularmente, como poderíamos mesmo esperar, seria dirigida às vezes ao ressuscitado “Senhor”.
Se existem casos nos primeiros tempos de oração assim abordada, elas certamente não implicam em
uma confusão entre a Sua pessoa e a da Divindade Suprema. Neste ponto, o argumento filológico do
Professor Case é conclusivo. Na realidade, a tentativa de explicar a apoteose de Jesus por causas
literárias cai pouco aquém do absurdo. A adoração de Jesus não se originou no scriptorium. Foi um
produto da experiência real dos homens, a maioria dos quais tinha pouco a ver com os escribas.
Depois de ela ter começado, a apologética escritural entrou em jogo e exerceu uma importante, talvez
dominante, influência sobre a forma e modo de seu desenvolvimento, e isso se reflete nos fenômenos
filológicos. Como Case apontou novamente, quando Paulo “escreve μαραναθα aos Coríntios, é
perfeitamente claro que ele está passando adiante uma frase que se originou com os cristãos de língua
aramaica”. Além disso, o título incorporado, mar ou maran, não foi tomado da Escritura, mas a
partir do uso comum da vida no cotidiano. É o equivalente exato do grego κύριος, ὁ κύριος ἡμῶν que
Paulo e “Pedro” substituíram por ele. Nós certamente “podemos acreditar que Jesus foi chamado de
56
‘Senhor’, mesmo durante sua vida terrena”. Não foi esse uso, no entanto, que deu importância ao
título, mas a experiência daqueles, onde depois de sua morte, sentiram que tinham recebido uma
manifestação da soberania que Deus lhe deu. Podemos, em primeiro lugar, ser tentados pelo apelo
57
coincidente em tantas diferentes passagens, como Sl. 110:1, a pensar nesse Salmo em si, seja na sua
forma original, ou como empregado por Jesus, segundo Mc. 12.35f., como tendo dado origem à
condenação. É verdade que ainda há muito a indicar que nem mesmo Paulo foi o primeiro a bater em
cima dessa escritura como um texto-prova em apoio do senhorio. Seu uso apologético, sem dúvida,
foi colocado sobre a doutrina e foi utilizado para apoiá-la.
Mas aqui, como em outros lugares, a condenação veio primeiro e a prova textual foi descoberta
depois. Case está certo em dizer: “Não houve qualquer similaridade de uso entre jhvh e mar que
levasse ao costume [de aplicar a língua falada do Antigo Testamento a Javé para Cristo], pois em
aramaico este não existia; mas a prática foi devido a uma necessidade apologética por parte daqueles
que diziam que Deus tinha exaltado o seu Messias para um lugar de senhorio celeste”. Nossa
verdadeira questão em conformidade é a seguinte: O que foi que produziu a convicção da exaltação
de Jesus ao “trono de glória” nas mentes dos discípulos primitivos, uma exaltação para a qual o
termo adequado aos da fala aramaica parecia ser maran e aos da fala grega ὁ κύριος ἡμῶν? A julgar
pela coincidência entre At. 2:32f e Ef. 4:7-11, os fenômenos do Pentecostes foram aceitos como
símbolos de uma soberania conferida a Jesus. Os dons espirituais eram provas para seus seguidores
que se encontraram, assim de repente, “revestidos de poder do alto”, visto ter ele sido exaltado e
58
entronizado. Fundamentalmente, o argumento de Paulo e de “Pedro” é o mesmo. O fenômeno do
dom do Espírito Santo é o dado a ser explicado. Ambos voltam à escritura comum: “Disse o Senhor
ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita”. Dessa forma, a apologética varia. De acordo com
“Pedro”, isso é o que foi dito pelo profeta Joel sobre os “últimos dias”. De acordo com Paulo, isso é
ao que se refere o salmista quando descreve o triunfo do Senhor sobre seus inimigos: “Subiu ao alto,
levou cativo ao cativeiro e deu dons aos homens”. A exaltação, ou ascensão, é provada pelos
fenômenos visíveis e audíveis. As citações bíblicas são textos apologéticos que comprovam isso.
Depois de tudo, vem a narrativa do transporte visível do corpo glorificado de Jesus através das
nuvens, enquanto os anjos explicam o significado da ocorrência de espanto aos que ficam ali
59
parados.
É entre os textos comprobatórios das Escrituras citados após o evento, e não entre as causas da
crença, que temos que considerar o argumento na boca de Jesus pelo nosso evangelista mais antigo
Mc. 12:35-37. O leitor vai encontrar em meus comentários sobre a passagem no volume intitulado
Beginnings of Gospel Story (pp. 160f., 175) as razões para considerar esse quarto Colóquio no
Templo como um complemento pelo evangelista para a série que precede a introdução sucessiva das
questões discutíveis dos fariseus, saduceus, e escribas. O colóquio anexado introduz o princípio
distintivo do cristão, o Senhorio de Cristo.
Jesus debate com os judeus incrédulos a doutrina de sua própria ascensão à “mão direita de
Deus”. A passagem na qual ele é representado defendendo-a é a mesma que, no momento da escrita
de Marcos, tinha sido um locus classicus na tradição paulina (e provavelmente na petrina também)
para provar a conexão do Jesus ressuscitado com os fenômenos dos “dons espirituais”. Se fosse
possível inverter a relação literária de Marcos e das epístolas paulinas, ou mesmo olhar para o
colóquio anexado de Mc. 12:35-37, como de igual antiguidade com a série precedente nos versículos
13-34, haveria melhor razão para a ideia tradicional de que o próprio Jesus foi o autor da
apologética baseada em Sl. 110:1. Na realidade, o texto prova muito. Sua verdadeira aplicação é a
entronização, a ascensão e o estar “à mão direita de Deus”. É Paulo e “Pedro”, então, que o usam
corretamente, e Marcos, juntamente com seus dependentes companheiros evangelistas, quem o
60
apresenta mal à propos.
A nossa tentativa de traçar a história da doutrina de Jesus como Senhor indica, então, que sua
61
origem foi, em nenhum sentido, da palavra literária. A convicção do Senhorio foi algo vital e
fundamental para todo cristão, não importa qual tipo especial fosse sua crença. Ele poderia ser
conhecido como um cristão porque confessava “Jesus como Senhor”. Mas, a convicção não
repousará sobre a interpretação errada do Antigo Testamento grego.
Isso foi uma consequência e não uma causa. Ela não descansou principalmente sobre passagens
do Antigo Testamento, apesar de ter sido afetada por essas. Nem sequer descansa sobre as
expressões lembradas de, ou títulos aplicados a, Jesus, embora o fato de que Ele tinha sido
comumente chamado de mar ou κύριος (Cf. Jo. 13:13), sem dúvida, teve o seu efeito, bem como o
fato de que tinha falado da “vinda”, ou “Dia”, do Filho do Homem. A crença repousava sobre uma
grande experiência, a ocorrência de um único dia, definido, uma ocorrência que todos os cristãos
daquele tempo em diante consideravam como “uma designação com o poder de Jesus, como o Filho
62
de Deus”, um dia para sempre memorável, como o dia da coroação do Jesus ressuscitado. Podemos
apontar para esse dia?
Num certo sentido, já apontamos isso. Mesmo se Atos não fizer de Pentecostes a ocasião que faz,
devemos saber das alusões de Paulo a um derramamento do Espírito vivenciado por cada crente em
algum grau, e pela igreja como um todo, desde o início, que uma grande manifestação do tipo tinha
marcado a sua origem. Devemos pensar, naturalmente, daquele dia em que, como Paulo relata, uma
grande assembleia de “mais de quinhentos irmãos de uma só vez” tinham visto o Senhor.
Mas isso não é, de forma alguma, tudo. Poucas coisas podem fornecer evidência histórica tão
forte como uma instituição, a observância, ou rito, diretamente rastreáveis a um determinado evento.
Tal observância, ou instituição, pode, em nosso julgamento, ser certamente atribuída ao dia de
Pentecostes e para esse evento. A instituição existe hoje. Sua existência é atestada nos documentos
mais antigos do Novo Testamento, embora aconteça que seu nome distintivo não seja mencionado até
o Apocalipse de João, escrito cerca de 95 d.C. Em Ap. 1:10, o dia que, nas epístolas paulinas (1 Co.
16:2), no documento de viagem de Atos (At. 20:7) e nos Evangelhos, é conhecido simplesmente
como “o primeiro dia da semana” e aparece meramente como um dia semanal de assembleia, é
chamado de “dia do Senhor” (ὁ κυριακός ἡμέρα).
Em nossa opinião, uma análise estritamente crítica da evidência vai mostrar que o “dia do
Senhor” originalmente comemorava o dia da entronização de Jesus “à direita de Deus”. Foi o dia em
que “Deus o fez Senhor e Cristo”. No momento em que nossos evangelhos foram escritos, o dia
passou a ser considerado como a comemoração da Ressurreição de Jesus. De fato, Paulo coloca a
própria “ressurreição” (o retorno do Sheol?) como tendo ocorrido “no terceiro dia”, que (a
crucificação tendo ocorrido em uma sexta-feira) faria cair no “primeiro dia da semana”. Essa,
portanto, é a data em que os nossos evangelhos colocam a visita das mulheres ao sepulcro e a
constatação de que estava vazio; e, de aceitação comum, a observância semanal do “dia do Senhor”
supõem-se comemorar esse evento. Por que deveria ser a observância semanal, quando a celebração
da ressurreição era anual, e, por que deveria cair no dia em que (de acordo com as formas
posteriores da tradição) as manifestações da ressurreição começaram, em vez do dia da vitória real
de Cristo sobre “aquele que tinha o poder da morte”? A teoria comum não explica.
É fato, então, que a observância do “dia do Senhor” começou com uma fixação desse “primeiro
dia da semana”, como aquele em que Jesus “ressuscitou dentre os mortos”, seja com Paulo, como
uma inferência a partir das “Escrituras”, ou com os evangelistas, a partir do relato das mulheres e
outros fenômenos relacionados com o sepulcro vazio? Atrevemo-nos a dizer que as objeções a
aceitar isso como a origem da observância são absolutamente insuperáveis. Tal observância só
poderia começar em comemoração a algum grande e alegre, mas acima de tudo, perfeitamente
definido e indiscutível evento.
As experiências das mulheres e as inferências de Paulo das Escrituras não eram ocorrências
desse tipo. Mesmo se fosse possível saber qual “escritura” Paulo tem em mente quando relata a fé
comum de que Jesus “ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”, não conseguimos imaginar
a comunidade primitiva sentando-se em conferência e dizendo: “Ide, agora. Precisamos de um dia
para comemorar o triunfo de Jesus sobre as portas da morte; faça-se, então, o primeiro dia da
semana, pois, de acordo com Oseias, deve ter sido no terceiro dia”. (Os. 6:2).
A crucificação ocorreu no sexto dia da semana. Vamos, então, substituir o ‘primeiro dia da
semana’ pelo sábado e instituir, portanto, um memorial semanal da Ressurreição. Igualmente
inimaginável é a origem de tal observância do relato de “algumas mulheres que foram cedo ao
túmulo, e, quando não o encontraram, relataram que tinham tido uma visão de anjos que disseram que
ele estava vivo”. Admitido até mesmo a confiabilidade dessas tradições tardias ignoradas por Paulo,
por que comemorar esse dia, em vez do dia em que ele “foi visto por Cefas?” Na verdade, todo o
grupo de tradições — que se centra sobre a sepultura encontrada vazia pelas mulheres e outros “no
terceiro dia” — é absolutamente excluído como representando a observância do “dia do Senhor”,
porque manifestamente vem à luz em um tempo muito depois que a observância do dia do Senhor
tornou-se bem estabelecida. Tivesse a igreja primitiva desejado celebrar o início das manifestações
do Senhor, certamente teria tomado o dia da manifestação a Pedro. Mas isso, de acordo com tudo o
que podemos aprender sobre o assunto, realizou-se no Mar da Galileia, as meras condições físicas
tornando praticamente certo que não era tão cedo como o “terceiro dia”. Nossa única testemunha
direta (Evangelho de Pedro 14:58-60) afirma, de fato, que o retorno de Pedro para a Galileia não
ocorreu até “o último dia dos pães ázimos”, uma semana depois da crucificação. Na verdade, a
igreja primitiva não tentou datar a ressurreição com a descoberta do túmulo vazio, nem pelo grupo
ligado às aparições em Jerusalém, todos os quais se preocupam com as disputas posteriores sobre a
natureza do corpo da ressurreição.
Duas características de recapitulação de Paulo da história da ressurreição, como proclamada não
por ele mesmo sozinho, mas por todas as autoridades, são fatais para a suposição de que o grupo das
tradições do sepulcro não tinha nada a ver com a origem da observância do Dia do Senhor: (1) A
ausência completa de sua lista de provas de qualquer uma dessas tradições, (2) o fato de que a
ressurreição (isto é, o retorno do Sheol “revestido” com o “corpo de glória” celestial) é datada “no
terceiro dia” por causa de certas “escrituras”, e não por outro motivo atribuído. É pouco provável
que as passagens na mente de Paulo incluíssem Os. 6.2, natural como isso possa parecer, pois os
escritores do Novo Testamento nunca fazem uso dessa passagem em particular. Não parece provável
que Paulo se baseie em Jn. 1:17 como o autor de Mt. 12:40. Mas, embora seja difícil dizer quais
determinadas passagens das Escrituras Paulo tenha em mente, não é impossível afirmar o que ele quis
dizer com “o terceiro dia”, e que isso não tinha referência, de forma alguma, à sucessão dos dias da
semana, mas àqueles do mês, ou melhor, a festa da Páscoa e pães ázimos.
A Primeira Carta aos Coríntios foi escrita em Éfeso, aparentemente no meio da celebração de
uma Páscoa (cristã). Nos capítulos 5-7 de Coríntios, somos exortados a “pôr de lado o fermento
velho,... pois Cristo, nossa Páscoa, foi sacrificado por nós”. Da mesma maneira, o capítulo sobre a
ressurreição empresta a imagem do serviço do templo. A morte de Cristo, sepultamento e
ressurreição, são comparados com o trigo enterrado no solo, mas restaurado novamente na colheita.
O primeiro dia de Páscoa — Mazzoth (14 Nisã) era o dia em que o cordeiro era sacrificado. “No
terceiro dia”, no ano da crucificação, era o dia das Primícias (απαρχη 16 Nisã), quando o primeiro
feixe de trigo da colheita era oferecido a Deus. Quando, no meio dessa comparação, Paulo escreve:
“Mas agora Cristo ressuscitou dos mortos e foi feito as primícias (απαρχη) dos que dormem”, e nos
mesmos pontos de conexão para o seu enterro e ao fato de ter sido levantado “no terceiro dia”, o
significado da data não pode ser outro senão o fato de sua coincidência com o ritual das Primícias,
assim como a crucificação coincidiu com o abate do cordeiro pascal. O fato de que, no ano
específico em questão, esse passou a ser também um “primeiro dia da semana”, foi no máximo uma
63
consideração secundária.
Somos guiados por esse vislumbre na comemoração de Paulo da morte e ressurreição para uma
compreensão sobre qual evento a igreja primitiva realmente tentou comemorar e quando eles
realmente dataram-na. A crise na vida de Pedro referida na oração de Jesus, “Simão, tu és... quando
estiveres de volta, fortalece teus irmãos”, foi digna de ser comemorada pela igreja, porque, sem
dúvida, foi a crise de seu próprio nascimento. Se a igreja pensou em celebrar o início da fé na
ressurreição, deve ter notado e observado o dia em que, na Galileia, cerca de dez dias ou mais
depois da crucificação, até onde podemos julgar, o Senhor ressuscitado “apareceu a Cefas”. Não
aconteceu assim; ou porque esse humilde início foi ofuscado pelo tardio, o triunfo mais espetacular,
ou, por algum outro motivo, o Pentecostes era encarado como o verdadeiro aniversário da Igreja, e a
experiência de Pedro era apenas vagamente conectada com a festividade. O que a igreja estava
decidida a comemorar, mesmo tão cedo quanto o tempo de permanência de Paulo em Éfeso, foi a
vitória de Jesus sobre os portões do inferno.
Esse triunfo do Príncipe da Vida (archgon thV zwhV) sobre o príncipe das trevas e da morte
foi comemorado, no entanto, em um festival anual coincidente com a Páscoa dos judeus, e, de fato,
com as festas equinociais das muitas seitas que faziam do novo nascimento vernal da natureza um
símbolo de sua esperança da ressurreição. No tempo de Paulo, o ritual judaico ainda era respeitado
com a proximidade suficiente para justificar a marcação de uma correspondência separada da
crucificação com o abate do cordeiro em 14 de Nisã, e a ressurreição com a elevação do feixe para
aceno em 16 de Nisã. Não obstante, um século mais tarde, esse refinamento desapareceu.
Os quartodecimanos ainda estão comemorando a Páscoa cristã na Ásia, onde Paulo tinha
64
celebrado com eles, mas é apenas o único grande dia da Páscoa que é lembrado. A morte e
ressurreição são celebradas juntas em 14 de Nisã, o dia em que as pessoas [isto é, os judeus] tiram o
fermento. “A grande controvérsia surge porque, em Roma, e no Ocidente, onde o sistema
65
hebdomadário tornou-se supremo, os homens desejam insistir que “o mistério da ressurreição” não
deve ser celebrado em qualquer outro dia, exceto “o dia do Senhor””. A Ásia e o Oriente
permanecem firmes na autoridade do precedente apostólico, e repetidamente reiteram a natureza e o
significado de sua observância.

O décimo quarto dia é a verdadeira Páscoa do Senhor, o grande sacrifício, o Servo de Deus, sacrificado no lugar do cordeiro [da
Páscoa], aquele que foi amarrado, tem amarrado o homem forte [isto é, Satanás, que tinha o poder da morte,... cf. Mt. 12:29 e Hb.
2:14f], e aquele que foi julgado julgará os vivos e os mortos,... que foi enterrado no dia da Páscoa, e uma pedra colocada sobre o
66
túmulo.

Mas, ao mesmo tempo, podemos estar perfeitamente certos de que foi a vitória de Cristo sobre o
poder do Seol que foi celebrada pelo quartodecimanos na quebra anual de jejum no décimo quarto
dia de Nisã, e enquanto a maior importância foi dada à determinação exata da verdadeira data desse
único dia, é igualmente certo que a antiga observância Oriental não tenta determinar a partir das
tradições das manifestações, das descobertas da condição vazia do túmulo, das previsões bíblicas,
ou não, quanto tempo depois da crucificação esse triunfo conhecido como a ressurreição, ou o
retorno do inferno, havia ocorrido. Na verdade, uma carta de Basilides, bispo das paróquias em
Pentápolis, consulta Dionísio de Alexandria quanto à hora em que a rápida comemorativa da paixão
do Senhor deve ser encerrada pela festa da ressurreição, alguns dos irmãos, pensando que deviam
fazê-lo ao cantar do galo, outros “a partir da noitinha”. “Ele estava perplexo”, diz Drummond,
“quanto a fixar uma hora exata; pois, enquanto isso seria ‘reconhecido por todos’ que deviam
começar suas festividades após o tempo da ressurreição de nosso Senhor, e humilhar suas almas pelo
jejum até aquele momento, o Evangelho não continha nenhuma declaração exata da hora em que ele
67
levantou-se”. Dionísio, na sua resposta, não tem a pretensão de resolver essa questão do momento
exato da ressurreição, mas recomenda uma tolerância latitudinariana de diferença no modo de
observância.
É perfeitamente claro, a partir desse e de outros relatos da antiga comemoração da morte e
ressurreição de Jesus, que as duas foram comemoradas juntas, e que não foi feita nenhuma tentativa
de chamar tais inferências como os modernos fazem a partir da história das mulheres no sepulcro em
relação ao dia e hora em que Jesus tinha sido (na linguagem paulina) “revestido” com o seu “corpo
de glória”. Se, por um tempo, uma memória permanecia da correspondência paulina entre os
Primeiros Frutos em 16 de Nisã e uma escritura (Os. 6:2?) prevendo a ressurreição no “terceiro dia”,
isso logo desapareceu.
A referência de Clemente fica isolada. A igreja do segundo século, pelo menos no Oriente,
pensou e comemorou a morte e ressurreição de Jesus como praticamente simultâneas. Na verdade, o
Evangelho de Pedro faz com que até mesmo a ascensão ocorra a partir da própria cruz,
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imediatamente após o grande clamor. Dr. Erwin Preuschen vai até mesmo ao ponto de dizer:

No Oriente, o domingo não era conhecido como o dia da ressurreição e, portanto, não houve celebração semanal desse dia [mas cf.
At. 20:7 e Ap. 1:10], mas, no Ocidente, a quarta-feira e sexta-feira eram regulares como dias de jejum, e o domingo foi
comemorado como o dia da ressurreição. É duvidoso se o Ocidente possuía ainda um dia especial no ano para a comemoração da
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morte e ressurreição do Senhor.

Não podemos concordar com esse estudioso de que o sistema hebdomadário da igreja originou
no Ocidente e era desconhecido pelo Oriente. É essencialmente judaico no caráter, e teria sido mais
pronunciado entre as primeiras igrejas, onde a prática da sinagoga foi assumida com menos
alteração. O próprio documento em que Dr. Preuschen parece basear sua declaração a respeito dos
70
jejuns semisemanais é quase certamente de origem siríaca, e os jejuns no quarto dia da semana e da
preparação (παρασκευη) são expressamente colocados contra aqueles “hipócritas” sobre “o segundo
e o quinto” dias (Cf. Lc. 18:12).
O sistema hebdomadário da igreja certamente se originou na sinagoga, ainda mais porque essas
obras são levadas a distinguir seu festivo “primeiro dia” do festivo “sétimo dia” dos “hipócritas”, e
seu quarto dia e sexto dia de jejuns de seus jejuns no segundo e quinto dia da semana. Mas,
Preuschen está totalmente correto em dizer que a observância do “dia do Senhor” não teve origem na
71
tradição romana de Marcos e nos Evangelhos Sinóticos, como nós, do Ocidente, estamos
acostumados a supor.
Seu apelo aos ritos imemoriais da observância quartodecimana por parte de todas as igrejas mais
antigas, de forma explícita, e com razão justificada, como era por tradição e prática apostólica, é
conclusivo quanto a esse ponto. A inferência de Preuschen da história da longa controvérsia é a
seguinte:
Os cristãos da Ásia Menor devem ter celebrado o mistério da ressurreição no dia em que o jejum [i.e., o jejum anual que comemora
a Paixão] foi quebrado, e esse dia não era domingo, mas o décimo quarto dia de Nisã, em torno do qual a controvérsia girava. Essa
conclusão se justifica pelo relato de Epifânio sobre as quartodecimanas (i.e., aqueles que comemoraram a morte do Senhor, no dia
14), no qual ele relata que o jejum e a celebração da ressurreição ocorreram no mesmo dia... .

Os cristãos da Ásia Menor apelaram para uma antiga tradição apostólica, segundo a qual Jesus
ressuscitou na noite do dia de sua morte, e a oposição dos Ocidentais foi dirigida principalmente
contra a comemoração da morte e ressurreição no mesmo dia. Em certo sentido, a presente
declaração requer correção. Não foi a “ressurreição” de Jesus, no nosso sentido da palavra, que os
quartodecimanos comemoraram “no mesmo dia” que a crucificação (melhor, depois de uma vigília
correspondente a vigília da Páscoa, que se estendia, em muitos casos, “até o cantar do galo”), nem
eles sustentam que Jesus “levantou-se” (isto é, que manifestou a sua presença aos seus discípulos na
terra) no décimo quarto dia. Eles aceitavam os mesmos evangelhos que nós, e estavam indignados
com a acusação de ir contra eles. Sustentaram provavelmente, assim como Paulo fez, e talvez em
função das mesmas “escrituras”, que “ele foi levantado (ἠγέρθη) no terceiro dia”, isto é, no décimo
72
sexto dia, ou o dia dos Primeiros Frutos.
O que o festival quartodecimano comemorava era, como Apolinário claramente (embora um tanto
retórico) atesta, a “amarração do homem forte”, isto é, a vitória da igreja sobre “as portas do
inferno”, realizada quando Cristo, “através da morte, superou aquele que tinha o poder da morte, e
73
livrou aqueles que, pelo medo da morte, estavam todo o tempo sujeitos à escravidão”. É a
verdadeira doutrina pré-cristã oriental da “Agonia do Inferno”, que lhe é subjacente e se reflete em
termos inconfundíveis na quinta de Heads Against Caius de Hipólito:

O herege Caius [c. 180 d.C.] alega [com base em Apocalipse 20.2f.] que “Satanás já havia sido preso, de acordo com o que está
escrito [em Mt. 12.29], que Cristo entrou na casa de um homem forte, e amarrou-o, e despojou-o de seus vasos”.

Assim, torna-se absolutamente claro que a celebração da Páscoa entre as igrejas orientais, como
tomada da sinagoga através das próprias mãos dos apóstolos, tornou-se na interpretação cristã a festa
da redenção de fato, como antes — redenção da escuridão e da escravidão ao Sheol. O imaginário é
perfeitamente familiar para nós a partir das epístolas de Paulo, e deve ter sido pelo menos tão
familiar para cada comungante na “Ceia do Senhor”. A mera data em que se soube que o túmulo
estava vazio, ou quando as pessoas foram retiradas de sua incredulidade desesperadora, seja por
“visões de anjos” ou “manifestações do Senhor”, foi para a mente oriental cristã uma questão de tão
somente secundária importância.
Ele se ressentia da tentativa de Roma e do Ocidente de impor-lhe um atraso na quebra de seu
jejum até “o dia do Senhor”, e negou a validade do argumento deles, ou seja, de que as tradições de
Jerusalém sobre o sepulcro, que desde os dias do evangelho do Marcos romano tinham começado a
substituir os da Galileia como dadas por Paulo (1 Co. 15:1-11), mostrou “que o mistério da
ressurreição do Senhor dentre os mortos” havia ocorrido em um determinado dia e hora e, portanto,
“deve ser comemorado em nenhum outro dia do que o dia do Senhor”.
Nossa investigação prolongada na celebração apostólica primitiva da ressurreição será
justificada pela importância do resultado. Não precisamos prolongá-la por uma consideração,
embora interessante historicamente, ou forte em corroboração, das tentativas posteriores de
harmonização. Nós só podemos direcionar o leitor à explicação dos curiosos cálculos dos “três
dias” no siríaco Didascalia de Preuschen que trata a escuridão das três horas no dia da crucificação
como uma “noite”. Devemos também passar a sua explicação análoga da igualmente curiosa
fraseologia de Mt. 28:1.
Em nossa opinião, a pergunta já justifica plenamente a declaração com a qual começamos, de que
pelo menos tanto quanto as antigas igrejas orientais, ou aquelas de fundação apostólica ou paulina,
que estão em questão, “todo o conjunto de tradições que se centra sobre a sepultura, encontrada vazia
pelas mulheres e outros “no terceiro dia”, é absolutamente excluída como representando a
observância do dia do Senhor”. A datação deles daquele dia em particular é uma consequência, não
uma causa da prática.
Mas, isso deixa a própria prática ainda a ser explicada. Além disso, como acabamos de ver, o
sistema hebdomadário, longe de ser uma mera inovação ocidental, como Preuschen parece sustentar,
está enraizada na mais antiga observância apostólica. A inovação do Ocidente consiste meramente
em uma perversão do seu significado. As três características que devem orientar-nos para um
julgamento mais confiável sobre a origem do “dia do Senhor” são: (1) sua origem judaica, (2) sua
observância hebdomadária e (3) o seu caráter festivo.
Começou, sem dúvida, como uma comemoração de algum evento sinal na história da igreja. No
entanto, vimos que a ressurreição foi, por outro lado, comemorada, e os meros relatos das
“manifestações”, mesmo aquelas feitas a Pedro, que nos primeiros tempos foram de longe as mais
importantes, não foram entendidas como determinantes da data do triunfo do Senhor sobre o Sheol.
Uma “manifestação”, no entanto, realmente permanece fixa na memória da igreja, não só por
causa do significado que desde o início parece ter sido ligado a ela, mas porque, como a tradição
mais credível assevera, coincidiu na data com a anual “Festa das Semanas” judaica. Se algum dia
poderia ser apontado, em toda a história da Igreja, como sendo digno de comemoração perpétua
como “dia do Senhor”, seria o dia em que, segundo a crença apostólica, Ele foi entronizado “à mão
direita de Deus”. Os fenômenos que acompanharam o primeiro “derramamento do Espírito” são
argumentados de maneiras diferentes tanto por “Pedro” como por “Paulo”, em provar a exaltação de
Jesus ao senhorio supremo (At. 2, 33, Ef. 4.7-10). Ambos os apóstolos veem nele o cumprimento da
ode da coroação, Sl. 110:1: “Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu
ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés”. Tão vital foi essa convicção para a igreja primitiva
que se tornou incorporada na primeira confissão batismal: “Ele subiu ao céu e está sentado à mão
direita de Deus”.
Mas, é capaz de provar que esse dia supremo da “demonstração do Espírito e de poder” foi
realmente um “primeiro dia da semana”, e, nesse caso, não havendo qualquer razão que devesse ser
comemorado como uma observância semanal, em vez de anual? Ambas as questões podem ser
respondidas afirmativamente. Lv. 23:1-21 dá o “estatuto perpétuo” das festas da colheita de trigo,
introduzidas pela lei da Páscoa em 14 de Nisã (ver. 5). Os versículos 9-14 dão o “estatuto perpétuo”
das Primícias, “no dia seguinte após o sábado” (16 de Nisã). Em seguida, vem o “estatuto perpétuo”
de Pentecostes, que celebrava a conclusão das sete semanas da colheita de trigo:
A partir do dia seguinte ao sábado [da semana da Páscoa], o dia em que vocês trarão o feixe da oferta [Primícias] ritualmente
movida, contem sete semanas completas. Contem cinquenta dias, até um dia depois do sétimo sábado, e então apresentem uma
oferta de cereal novo ao Senhor... vós proclamareis uma reunião sagrada e não realizareis trabalho algum. Este é um decreto
perpétuo para as suas gerações, onde quer que morarem.

Esta lei de Pentecostes, ou “Festa das Semanas”, é a base do sistema hebdomadário judaico. A
lua nova de Nisã fixou o calendário anual, cuja primeira grande festa era a Páscoa na lua cheia. O dia
16 de Nisã com o seu ritual do feixe das primícias foi o ponto de partida para o período da colheita
de trigo das sete semanas, culminando em Pentecostes, o que, portanto, por interpretação, sempre cai
74
“no primeiro dia da semana”. Além disso, constitui uma espécie de segundo sábado que, como
sabemos, foi o modo de observância do “dia do Senhor” nas comunidades cristãs primitivas. Dessas
comunidades nada é mais certo do que a sua devoção assídua ao sistema festivo da lei. A Páscoa e o
Pentecostes, longe de serem interrompidos, tiveram sua importância redobrada. A festa-resgate,
como vimos, tornou-se a festa da nova e maior redenção por meio da morte de Cristo, a
comemoração da quebra das barras do Sheol. O Pentecostes também continuou em honra redobrada,
sendo observado ainda nas igrejas paulinas (1 Co. 8:16, At. 20:6, 16). E, não somente isso, mas o
período de intervenção das sete semanas da colheita de trigo continuou por muito tempo, assim como
entre os judeus, sendo um período de festa contínua, “a alegria da colheita”. Drummond diz,
resumindo as declarações de Eusébio:

Tão cheio de alegria era o momento [da Páscoa] que eles festejavam durante sete semanas inteiras, até que “outra grande festa”,
75
Pentecostes, chegasse.

Sem dúvida, o que quer que existisse quanto ao novo significado atribuído pelos crentes judeus
primitivos para a festa de Pentecostes como uma celebração anual foi o dia em que aquele que tinha
“se tornado as primícias dos que dormem” entrou na plena posse da herança e esse fato tinha dado a
certeza de um banho de garantia (ἀρραβών) sobre os seus seguidores. Mas o que dizer do significado
de outrora sobre o dia para os judeus piedosos, como fundação do sistema hebdomadário? É
provável que não houvesse para os cristãos, nos anos seguintes, nenhum significado especial no
período de regozijo que foi marcado por eles acima de seus companheiros judeus, pelo fato de que
tinha sido preenchido com as manifestações sucessivas do Senhor ressuscitado?
Segundo a tradição, essas manifestações tinham seguido em rápida sucessão a partir do momento
em que há cerca de dez dias após a crucificação, o Senhor “apareceu a Cefas” até Pentecostes em si.
Foi o período durante o qual “ele apresentou-se vivo depois de sua Paixão, com muitas provas,
76
aparecendo-lhes por um espaço de quarenta dias”. Se a observância inicial cristã desse período
festivo seguiu a mesma analogia como as outras observâncias que assumiram a partir da religião de
seus pais, seus familiares, e sua própria infância, seria quase inevitável que essas “manifestações”
devessem seguir a ordem hebdomadária e começassem a ser datadas uniformemente no “dia do
Senhor”. Se, então, nós olharmos para Paulo, e não para a relativamente tardia tradição do editor
romano do nosso segundo evangelho canônico, em busca de uma explicação sobre a observância
primitiva do “dia do Senhor”, vamos encontrá-la na generalizada e primitiva observância oriental de
um festival da colheita do trigo, que, entre os judeus pelo menos, cobria um período de sete semanas,
começando e terminando – no ano da crucificação – no “primeiro dia da semana.”
Que as inferências sobre o primeiro dia do Senhor foram baseadas nas Escrituras, em vez de na
tradição, fica claro a partir de 1 Co. 15.4. Quando finalmente a tradição tardia abandonou a narrativa
da Galileia mais antiga e começou a construir na forma de Jerusalém primeiramente conhecida por
nós no Evangelho de Marcos romano, era inevitável que a ressurreição “no terceiro dia” devesse ser
interpretada não com referência a Páscoa e as Primícias, mas com referência ao “dia do Senhor” de
um sistema de hebdomadário cristão estabelecido.
Nosso estudo da instituição primitiva do “dia do Senhor”, complicado como o curso do
argumento deve ser, leva a uma conclusão completamente em harmonia com base em critérios
literários e filológicos. A Cristologia primitiva não descansava tanto nas Escrituras, nem mesmo
sobre as frases capturadas dos lábios de Jesus, como na experiência da igreja. Primeiro, veio a fé
despertada de Pedro, depois dos Doze. Os irmãos de Pedro foram “fortalecidos” com a convicção de
que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos. Mas, a experiência que criou o Cristianismo foi o
“batismo do Espírito”, em que foi dada a garantia de sua exaltação “à mão direita de Deus.” Por isso
ele foi “manifestado como o Filho de Deus com poder”.
Para o crente judeu e grego igualmente, isso implicava que Deus em breve enviaria Jesus de volta
para julgamento como “o Cristo”. Pois é no ensino de Paulo, assim como no de Pedro, que “todos
devemos comparecer perante o tribunal de Cristo”. E, no que diz respeito ao conteúdo doutrinário,
não mais estava implícito quando os cristãos de fala semita declararam que Jesus tinha se
manifestado como “o Filho do Homem”. Faz, no entanto, uma grande diferença para os modernos se,
pelos cânones rígidos da crítica, somos obrigados a afirmar que essa Cristologia dos apocalípticos,
descansando como o faz sobre os desenvolvimentos mais mórbidos do judaísmo posterior, tem a sua
base em elementos fundamentais do ensinamento do próprio Jesus, ou se podemos sustentar, de
acordo com o argumento trazido agora à sua conclusão, que a doutrina de Jesus como “Filho do
Homem”, e a doutrina de Jesus como “Senhor”, são desenvolvimentos paralelos da experiência
comum. Essa experiência acreditamos ter sido o dom do Espírito de adoção que nos ensina a clamar,
‘Abba, Pai’. Historicamente falando, não poderia haver nenhuma outra mediação do Espírito para a
humanidade do que por meio daquele que nos ensinou, de uma vez por todas, pela palavra e pela
ação, em sua vida e em sua morte, o que é ser um “Filho de Deus”.
Parte II –
CRISTOLOGIA DE PEDRO
Capítulo 4

A CRISTOLOGIA DE PEDRO

Asérie anterior de estudos sobre três dos principais títulos aplicados pela Igreja primitiva ao seu
Senhor ressuscitado só abriu o caminho para o grande problema, um problema ainda antecedente ao
77
da Cristologia de Paulo. Estudos importantes e esclarecedores foram feitos nos últimos anos em
traçar o desenvolvimento da interpretação de Paulo sobre a pessoa e a obra de Cristo. Sua
Cristologia mostra-se uma verdadeira doutrina da encarnação já totalmente equipada com a ideia de
preexistência. Ela tem afinidades inconfundíveis com as tendências especulativas do judaísmo
posterior, incluindo elementos mal representados, em sua totalidade, na literatura sinótica. Por outro
lado, a Cristologia dos discursos petrinos de Atos não tem absolutamente nenhum vestígio de
qualquer doutrina da preexistência. É uma doutrina de apoteose. Ela só pode ser conciliada com a
Cristologia de Marcos (adotada por evangelistas posteriores), por meio do dispositivo exegético do
Christus Futurus. O “profeta” que foi “feito” Cristo e Senhor pela ressurreição (At. 2:32-36), não
era o Cristo de antes, mesmo na terra, nada sendo dito da preexistência.
É claro que, ao se tornar um cristão, Saulo de Tarso simplesmente transferiu para a pessoa do
Jesus glorificado os atributos que, como um fariseu culto e progressista, tinha aprendido a vincular a
pessoa do Messias esperado. Um elo importante parece ter sido a identificação do “Espírito”
78
exibido em vários dons carismáticos dos crentes primitivos, com a personalidade de Jesus. O
espírito de sabedoria, profecia e serviço na Igreja não poderia ser outro do que o “espírito de Deus”
manifestado nas excelências do Antigo Testamento. Desse, a transição foi fácil para a posterior
identificação com a Sabedoria de Deus, hipostatizado na literatura sapiencial. Cristo tornou-se,
assim, o primogênito da criação, pelo qual são todas as coisas e em quem todas as coisas
79
consistem. Como “o espírito”, ele era a agência orientadora, esclarecedora e redentora manifestada
80
na formação do povo de Deus, a “rocha espiritual que eles beberam.”
Mas Paulo também identifica esse Cristo preexistente com o “segundo Adão” ou “homem
celestial”, feito à imagem de Deus e destinado a ter o domínio sobre toda a criação (Gn. 1:26-28).
Isto, em função da categoria rabínica da preexistência, seria implicado na concepção de Cristo como
“o herdeiro”, o “Filho do amor de Deus”, o “Senhor”, a quem os anjos e os principados e potestades
foram, ou devem ser, sujeitos. Todas as coisas são assim “para”, bem como “através” dele. Nenhum
estudioso qualificado sustentará que essas doutrinas têm sido obtidas por Paulo pela aceitação direta
dos ensinamentos de Jesus. A única questão que pode ser levantada é quanto e até onde elas são
diretamente devido as atuais ideias helenísticas, refletindo formas populares da doutrina estoica do
Logos criativo, ou se elas podem ser completamente consideradas na Cristologia paulina (e, até certo
ponto, mesmo pré-paulinas) pela influência indireta de ideias platônicas e gregas posteriores, de
modo notoriamente prevalecente entre os fariseus.
Pois somos informados que o próprio Gamaliel foi o herói mais ilustre desses estudos gregos.
Por nascimento, por temperamento e por formação, Saulo de Tarso, o mais progressista dos fariseus
(partido progressista na direção do messianismo transcendental), foi o homem, de todos os homens, a
entreter na forma mais extrema desse tipo de Cristologia pré-cristã, onde seus escritos mostram
realmente a sua distinção mais acentuada a partir dos elementos não paulinos do Novo Testamento.
Os resultados mais recentes da ciência do Novo Testamento, explorando os labirintos da mitologia
helênica teosófica, mostraram o precedente abundante que existe na especulação judaica e helenística
mais tardia para o elemento pré-cristão da Cristologia de Paulo. Os estudos de R. H. Charles,
Bousset, Volz, e outros deixaram claro, por exemplo, como essa doutrina de Israel (e pela inferência
lógica ao representante de Israel, o Messias) como herdeiro da criação, destinado ao domínio sobre
todo o universo de seres criados, os próprios anjos incluídos, está enraizada na promessa de Adão
“que era o filho de Deus” (Gn. 1.26-28; cf. Lc. 3,38).
Mas havia outros elos entre a Cristologia paulina e pré-paulina além de uma identificação do
“Espírito” com a personalidade de Jesus, e além dos conceitos correntes do messianismo
transcendental. Embora nem as epístolas paulinas, nem os discursos petrinos, mostrem familiaridade
com o título “Filho do homem”, não pode haver dúvida de que já estava em uso.
81
A aplicação de Paulo de Sl. 8 ao Cristo glorificado sugere o fato, e pode até ser que os títulos
“Segundo Adão” e “homem celestial” (ἄνθρωπος επουράνιος) estejam relacionados com o danílico.
Nós temos questionado se o próprio Jesus alguma vez empregou o título “Filho do homem” de outra
forma, exceto de maneira geral, objetiva e com referências impessoais ao agente vindouro do juízo
divino, especialmente em frases estereotipadas como “o dia do Filho do homem”; mas os primórdios
de sua aplicação a ele pessoalmente é coeva com a fé no seu regresso como juiz do mundo — uma
82
constante do evangelismo primitivo. Se Paulo não chegou a ouvir a aplicação do título para Jesus
dos lábios de Estevão, ele deve ter ouvido de outras pessoas, mesmo antes de sua conversão, e o
próprio uso deste título implica, no mínimo, uma doutrina potencial da preexistência enquanto
passagens tais como Mc. 2:10, 28 e Mt. 11:19-Lc. 7:34 (Q) fazem tal doutrina logicamente
inevitável.
Na perspectiva histórica do desenvolver da Cristologia, a aplicação do título Filho do homem
para Jesus, individual e pessoalmente, não pode, portanto, ser antecedente à Cristologia dos
discursos petrinos de Atos, pois a preexistência é aqui excluída. Jesus é “feito” Senhor e Cristo, pela
ressurreição, e, portanto, não foi como antes. Além disso, esse tipo de adocionismo é imovelmente
estabelecido como a Cristologia primitiva pelo apoio de Paulo em sua afirmação mais geral da fé
comum (Rm. 1:4). O verdadeiro lugar do título Filho do homem, portanto, na ordem do
desenvolvimento histórico, é entre a Cristologia da fonte petrina de Atos e a Cristologia de Paulo.
Ele forma um elo e nada mais, embora a ligação seja de importância vital.
A explicação confiável das origens da Cristologia do Novo Testamento depende, então, de um
traçado adequado da interrelação entre o messianismo farisaico helenizado que Paulo herdaria da sua
formação rabínica, e a Cristologia imperfeitamente desenvolvida que veio a ele pelo contato com os
crentes anteriores. Nossos documentos do Novo Testamento são todos mais tardios do que essa
fusão, embora os elementos ainda sejam distinguíveis. A Cristologia paulina já composta, a petro-
paulina, e a joanina são os três grandes fatores dos quais, por meio da prevalência sucessiva agora
de um adocionismo judaico-cristão, agora de um docetismo helenístico ou monarquianismo, a Igreja
finalmente desenvolveu sua Confissão de Niceia.
Nossa preocupação atual não é com a Cristologia dupla e triplamente complexa da literatura pós-
paulina, nem mesmo com esse elemento da paulina que Paulo trouxe de fontes pré-cristãs, ou não
cristãs, mas apenas com o que veio a ele de crentes mais primitivos. Esse é o problema vital.
Comece com a aplicação de Paulo para a pessoa e a obra de Jesus das categorias das religiões
helenísticas da redenção, tão comuns no mundo de onde veio, e haverá pouca dificuldade em explicar
o desenvolvimento subsequente. Mas isso não está começando longe o suficiente. A verdadeira
questão é: Como veio Paulo a aplicar esses atributos extraordinários ao Profeta Nazareno, a quem os
publicanos e pecadores tinham começado a considerar como Messias e Senhor desde a Sua
crucificação?
Uma mente tão lógica e crítica como a de Paulo, tão insistente em provar até mesmo o conteúdo
material da visão profética no tribunal sóbrio da razão e da consciência, não poderia ter encontrado
satisfação completa e duradoura na atribuição desses atributos transcendentes a Jesus de Nazaré sem
convincente razão. Devemos dar o devido valor ao fato inquestionável de que Saulo, no curso de
suas perseguições, tinha encontrado um tipo exaltado de Cristologia na pessoa de muitas vítimas,
como Estevão, preparadas para dar o testemunho do martírio pela sinceridade e seriedade de sua fé,
e igualmente pelo fato de que, embora houvesse grandes diferenças entre Paulo e aqueles que eram
apóstolos antes dele, não há provas de que, em relação à Cristologia, eles não concordassem
substancialmente. De fato, enquanto Paulo em canto algum menciona Estevão, ou qualquer outra
vítima específica de seus dias de perseguição, ele menciona em íntima linguagem clara e inequívoca
que a experiência que fez dele um novo homem em Cristo Jesus não era sem precedentes. Existe
ainda uma semelhança forte o suficiente para sugerir uma dependência psicológica real entre a sua
83
própria visão do Jesus glorificado de pé em defesa de seus seguidores perseguidos, e o apóstrofe
de Estevão (relatado em At. 7.54-60 como tendo lugar na presença de Paulo) ao Filho do homem, o
84
“justo juiz” “em pé à mão direita de Deus.”
Em todos os eventos, Paulo admite que a experiência pela qual foi regenerado e comissionado
com seu apostolado e seu evangelho não era primária. Deus, que “energizou-o para um apostolado
85
aos Gentios”, já havia energizado um apostolado mais limitado em outros. Sua experiência foi
86
simplesmente a última de uma série, e não de um tipo diferente de seus antecessores. O evangelho
87
comum que todos pregaram foi a manifestação de Deus, de Jesus ressuscitado como “Seu Filho”. O
primeiro a passar por essa experiência tinha sido Pedro. Deus havia “energizado em Pedro um
apostolado da circuncisão”.
O reconhecimento deste fato evoca um novo problema psicológico antecedente ao de Paulo.
Nossa nova pergunta deve ser como aqueles que eram “apóstolos” e crentes “antes dele”, começando
com Pedro, chegaram a ter a experiência expressa em sua Cristologia, uma Cristologia que, como
vimos, permanece ao período dos escritores sinóticos ainda claramente distinguíveis do paulino, na
ausência característica do fator helenístico. Para a Cristologia sinótica, embora mais desenvolvida
do que a dos discursos petrinos de Atos, ainda é, fundamentalmente como vimos, uma doutrina de
apoteose, contra uma de encarnação. Os aspectos cosmológicos e especulativos ainda estão faltando.
A preexistência, se de alguma forma implícita, aparece apenas na autoaplicação, imputada a Jesus,
do título “Filho do homem”. Mesmo as narrativas do nascimento virginal excluíram ao invés de
favorecê-lo.
Nossa busca, então, não é mais a paulina, mas a pré-cristologia paulina. No entanto, os
documentos contemporâneos estão faltando. O primeiro e mais fundamental dos evangelhos já
emprega a história de Pedro no interesse da doutrina paulina. Não temos nem o registro direto
petrino, nem a tradição mateana. O próprio Paulo é a nossa principal testemunha, pois o próprio
Paulo faz ocasional referência direta a Cristologia petrina, e por outro lado, como vimos, os
elementos da Cristologia paulina, assim como a doutrina da preexistência, podem ser identificados
como distintamente seu próprio.
Esse é, então, o problema Cristológico do nosso tempo. É relativamente fácil entender como um
helenista por nascimento, superando até mesmo a doutrina farisaica mais avançada de seu tempo, no
processo de transcendentalização da esperança messiânica, em um processo cósmico da redenção,
angustiante para a distração de sua alma na antítese estóica da carne e do espírito, e que trouxe ao
extremo do desespero pela descoberta súbita da falta de esperança de redenção e vida pelo caminho
farisaico do legalismo, devesse ter sofrido reação violenta do ponto de vista de suas vítimas, se
essas vítimas pensavam no “Senhor” ou “Cristo” em quem confiavam, como cumprindo as funções de
um Redentor pessoal. Mas que razão temos para supor que eles assim o fizeram? Como poderia a
pré-cristologia paulina ter vindo a ser suficientemente paulina, a considerar a descoberta repentina
de Paulo que continha a solução de uma profunda necessidade de sua alma?
Os dados disponíveis para a determinação da natureza da pré-cristologia paulina cai de uma só
vez, de acordo com a franqueza relativa da evidência fornecida, em duas classes: (1) referências e
implicações de Paulo e (2) as declarações e as implicações da não tradição paulina.
1. As tentativas recentes de uma escola extrema de monistas idealistas para extirpar dos
reconhecidamente autênticos escritos paulinos todas as referências explícitas ao Jesus histórico,
como o relato em 1 Co. 11.23f da instituição da “Ceia do Senhor”, “na noite em que o Senhor Jesus
foi traído”, e até mesmo as referências ao evangelho apostólico comum da crucificação e a
ressurreição em 1 Co. 15, fundada na “aparição para Cefas”, não são apenas arbitrárias e violentas,
mas logicamente autodestrutivas.
A maravilha de ser explicada é a conexão de tal pensador, escritor e teólogo como Paulo, de suas
concepções helenísticas transcendentais hipotéticas, seu messianismo pré-cristão, a sua ideia, de
onde quer que seja derivada, de um Redentor-Deus passando pelo avatar da encarnação, conflitando
com os poderes das trevas, glorificação, com a personalidade do Nazareno crucificado. Remover as
figuras de ligação de Pedro e os crentes pré-paulinos não elucida esse problema, só agrava-o. Toda a
violência crítica e exegética utilizada em defender a originalidade absoluta de Paulo, a disposição de
ignorar a influência da Galileia sobre a paternidade de sua Cristologia, é, do ponto de vista do
historiador, completamente mal aplicada e ilógica. Um desejo de realmente compreender o dogma na
sua origem e desenvolvimento deve levar apenas ao procedimento inverso.
Devemos pesquisar os escritos paulinos para cada pedaço de referência ou alusão a esse fator de
tradição anterior que emana dos discípulos galileus de Jesus, pois isso só pode explicar
88
historicamente o extraordinário pied-à-terre da metafísica paulina. Um ponto de transição histórica
é indispensável para explicar a fixação do messianismo abstrato pré-cristão de Paulo à pessoa do
profeta galileu crucificado; precisamente, tal como encontramos na experiência de Pedro, em
primeiro lugar, um companheiro e discípulo do Nazareno, admitidamente em face da tragédia, mais
ou menos por simpatia com seu mestre no que diz respeito às expectativas messiânicas; mas depois
passando por uma grande “conversão”, a partir do qual ele emerge como líder e representante de um
novo tipo de doutrina cristológica. O importante é que, nesta nova Cristologia de Pedro, Paulo não
reconhece nenhuma diferença essencial da sua. Aqui, então, é o ponto de transição psicológica. Se
não houvesse nenhum Pedro para explicar a Cristologia paulina, deveríamos ter que inventar um.
Os próprios escritos de Paulo não são desprovidos de implicações sobre essa Cristologia
antecedente a Pedro. O próprio fato de sua perseguição “a igreja de Deus” (Gl. 1:13) é inexplicável
89
se, para Saulo, o legalista, sua doutrina não estivesse em conflito fundamental com a doutrina
legalista da Salvação. Embora a sua Cristologia possa ter sido ofensiva, isso não é apresentado quer
por Lucas e Paulo, como o motivo principal da perseguição. Sem dúvida, a frase “obrigando-os até a
blasfemar” (At. 26:11), bem como a imposição da pena de morte, pode ser melhor explicada por uma
Cristologia considerada punível nos termos da lei de Dt. 13. Mas isso não é destacado. A narrativa
de Lucas é singularmente livre da ideia representada em Mc. 14:60-64 (um acréscimo editorial) de
que os discípulos de Jesus foram acusados de blasfêmia por causa disso.
Quando a perseguição farisaica irrompe em breve, se não desde o início, sob a liderança de
Paulo, seu motivo é “a controvérsia suscitada por causa de Estêvão”, e as acusações iniciais contra
Estêvão referem-se à prerrogativa judaica. Sua doutrina se opõe ao “templo” e “a lei.” A
blasfêmia(?) do seu apelo ao “Filho do homem” é incidental. Assim, para Paulo também, a questão
90
suprema entre a antiga fé e a nova não é cristológica, mas “a lei” como base da justificação. No
caso de Pedro, tanto quanto em sua própria, não havia, em sua mente, qualquer escapatória da
alternativa:
Lei, ou Cristo. Fidelidade a ambas era impossível sem a infidelidade à outra. Este é o ponto de
todo o argumento retrospectivo de Gl. 2:15-22. É verdade que Pedro, em Antioquia, ainda estava
despreparado para admitir essa alternativa. Mas, de acordo com Paulo, era algo que ele deveria ter
percebido como verdade desde o início, e em vista a posição básica que ocupa no pensamento de
Paulo, faremos bem em pensar nisso como governando a sua ação como perseguidor, bem como
aquela ação mais tardia, como um cristão que reverteu sua aplicação. Paulo perseguiu, tanto quanto
podemos julgar de suas próprias expressões, porque a doutrina da graça que encontrou em suas
91
vítimas “frustrava a justiça que vem da lei”, a morte de Cristo fazia da Lei algo “de nenhum efeito”.
Em ambos os lados, portanto, o assunto em questão pertence a uma religião de redenção pessoal. “A
fé de Cristo” tornou-se para os indivíduos, mais ou menos conscientemente, uma substituta para
Mosaísmo como campo de aceitação com Deus. Se isso for fato, é um fenômeno de importância
histórica fundamental.
Como deve ser explicado? Um testemunho visível permanece certamente pré-paulino, e ainda
assim não menos certamente de origem pós-crucificação que enfaticamente confirma a nossa
inferência sobre o motivo da perseguição de Paulo, e lança luz sobre as expressões estranhas do
credo que ele imputa a Pedro. O rito distintivo pelo qual os membros da nova seita se destacam
como uma irmandade, aguardando a chegada do Messias e a instituição do reino divino, foi uma
adaptação do “batismo para remissão dos pecados” de João. Devemos realmente inocentar o círculo
primitivo de crentes de qualquer intenção consciente de se separar do corpo geral de filhos piedosos
de Abraão. Eles eram israelitas sem dolo e totalmente destinados a permanecerem tais. Para a mente
deles, a formação de uma fraternidade de crentes em Jesus como o Messias, selado a ele por esse
rito de iniciação, apenas enfatizava mais a sua fidelidade a “esperança de Israel” testemunhada na lei
e nos profetas. Foi uma segregação segundo o mesmo tipo que a do fariseu, cujo nome de
“separatista” significava a sua retirada em um chaber, (ou seja, a “vizinhança”) de observadores
meticulosos de cada ordenança mosaica e toda tradição interpretativa dos escribas.
O Farisaísmo denotava uma “retirada” puritana da prática mais frouxa, meio pagã, do “povo da
terra”. Se os Essênios podiam retirar-se em seu celibato ascético, empregando purificações próprias
e os fariseus podiam formar irmandades de legalistas mais rigorosas, mantendo-se afastados da
multidão mista, por que os crentes em Jesus ressuscitado como o Messias vindouro não deveriam se
diferenciar por um “batismo de arrependimento para a remissão dos pecados”?
Para o fariseu, porém, os casos podem não parecer paralelo. Sua “separação” foi com o
propósito de uma observância mais rigorosa da lei. Aqueles de quem ele se retirou foram, em grande
parte, da própria classe de “publicanos e pecadores” que agora aspiram a uma “partilha no mundo
vindouro” por outros métodos extralegais. Sua consolidação pode, até certo ponto, ser uma reação
provocada por si mesmo, mas era uma consolidação no sentido oposto. O rito de iniciação adotado
por eles na própria formação de sua irmandade chocante com Jesus, sob a convicção de que tal era a
ordem do espírito de Jesus, e explicitamente selando-os com o seu nome, poderia parecer para o
fariseu consistente nada menos do que uma tomada do reino dos céus pela violência.
Os publicanos e os pecadores receberiam, neste plano, a recompensa do fariseu por mera “graça”
ou favor de Jesus. Logicamente, então, como Paulo claramente viu tanto antes como depois de sua
conversão, o batismo deve tornar-se no todo, ou em parte, um substituto para o “jugo da lei”. É
evidente que a adoção do rito era, na realidade, uma relembrança da advertência de João Batista
para preparar-se pelo arrependimento, independentemente da linhagem abraâmica, ou a prerrogativa,
para o dia iminente de Javé. Porque Deus, na exaltação de Jesus, tinha “dado certeza a todos de que
ele tem determinado um dia de julgamento”. O arrependimento e o batismo eram as medidas
imediatas a serem tomadas. Nem Pedro, nem nenhum que tinha estado com ele e, como Pedro, tinha
sido desleal, sentiu-se pronto para estar diante do tribunal até que tivesse procurado o perdão, e o
perdão não foi procurado pelo motivo de sua relação com Israel, ou a lei, mas com base na sua
relação com Jesus. Eles já não eram reconhecidos como de Abraão, mas de Cristo. O batismo havia
se tornado uma circuncisão “em nome de Jesus”.
Nada, assim tão total e adequadamente, explica a perseguição de Paulo como a prática do
batismo. Melhor do que qualquer outra coisa, a sua aprovação marca a transição entre a condição
dos discípulos de Jesus, como membros do antigo Israel, e sua condição de membros do povo de
Deus não segundo a carne. Aquele que foi batizado em nome de Jesus, confessando os seus pecados,
reconhecia que ele, assim, procurou “ser justificado de todas as coisas das quais não poderia ser
92
justificado pela lei de Moisés”.
Sua fé em Jesus como o Cristo, e a autoentrega a Ele, tornou-se para o discípulo batizado um
novo “Caminho”, uma forma de “graça”, um meio de redenção pessoal além da redenção nacional de
Israel. Logicamente, então — embora isso fosse menos evidente para as mentes inexperientes, como
a de Pedro, do que para a lógica rigorosa de Paulo — o batismo, com a fé que isso implicava, deve
inevitavelmente ser encarado como um meio de “justificação (perdão), além das obras da lei”.
Temos aqui uma pista para a imputação aparentemente injustificada feita por Paulo em Gl. 2.15-18,
de seu próprio evangelho distintivo da “justificação pela fé, sem as obras da lei” para seu
antagonista, Pedro. Assim, um testemunho claro e inconfundível, totalmente independente de Paulo,
que vem até nós da Igreja pré-paulina é o rito do batismo em nome de Jesus “para o perdão dos
pecados”. Esta era a marca distintiva e visível daqueles que Paulo havia perseguido como um
fanático pela lei. Eles fizeram da lei algo de nenhum efeito. Não se poderia esperar de um fariseu ver
93
qualquer outro significado no rito do que precisamente este. Certamente, Paulo tinha razão em
apontar para a Pedro, em Antioquia, que não se pode colocar a sua confiança em um terreno de
aceitação com Deus sem, ipso facto, removê-lo do outro, e esta doutrina petrina da graça é o novo
fator que marca a transição da Cristologia de Pedro. Para a mente de Paulo, pelo menos, a
“conversão” de Pedro havia sido um reconhecimento “de que um homem não é justificado pelas
94
obras da lei, mas somente pela fé em Jesus como o Cristo”.
Não precisamos lembrar novamente daquilo que Paulo tantas vezes designa, ou significa, como a
fórmula expressiva da fé primitiva e comum, a confissão de Jesus como “Senhor”. Que isto era
elementar na Cristologia de Pedro não precisa de mais provas. Não temos, de fato, nenhuma
referência específica em Paulo para indicar que a definição do termo de Pedro não foi diferente da
sua. No entanto, não pode ser um mero acidente que nossas fontes petrinas fundamentais coincidam
com Paulo na construção sobre Sl. 110.1 como o fundamento da doutrina.
Quer seja o discurso no dia de Pentecostes (At. 2:34), ou do relato de Marcos da tradição
petrina, apresentando Jesus como confundindo os escribas com o testemunho da Escritura para seu
próprio senhorio (Mc. 12:35-37), ou ainda alusões de Paulo ao sentar de Jesus “à direita do Pai”
(Rm 8:34; 1 Co. 15:25-28, Fl. 2:9-11), não pode haver dúvida de que esta soberania na mente de
Pedro, assim como na de Paulo, era universal e abrangente da autoridade angélica e demoníaca, bem
como humana. Temos certamente pouca razão para supor que o controle de “espíritos” em “nome de
Jesus” era uma evidência menos convincente desta soberania para a mente de Pedro, do que a de
Paulo. Na grande batalha com a teosofia gnóstica da idade subapostólica, é essa doutrina do senhorio
(κυριότης), que constitui o centro da fé ortodoxa. Os documentos tardios paulinos e os deutero-
paulinos estão cheios de insistência sobre esta superioridade do Filho aos anjos, sua preeminência
absoluta como “Rei dos reis e Senhor dos senhores”. Podemos imaginar que, neste ponto, a
Cristologia de Pedro teria diferido da de Paulo? Pelo contrário, a resistência a um tipo primitivo do
arianismo, o que caracteriza a Cristologia do Novo Testamento, bem como a dos Pais do segundo
século, é uma herança direta do messianismo judaico.
Apoia-se, como vimos, na doutrina do Filho como Senhor e Herdeiro da criação com base em
Gn. 1.26-28. Certamente, o escritor que, uma vintena de anos depois da morte de Paulo e Pedro,
escreve em nome de Pedro, não fez nenhuma injustiça ao grande Apóstolo da circuncisão, ao fazê-lo
aplicar a terminologia paulina de “Jesus Cristo, que foi para o céu e está à direita de Deus, estando
95
os anjos e os principados e potestades sendo feitos sujeitos a ele”.
Com respeita ao título “Filho de Deus”, devemos realmente reconhecer a diferença. É verdade
que, por implicação, Paulo olha para trás para a antecipação de Pedro de sua própria vocação e
apostolado, como tendo sido também uma “manifestação do Filho de Deus nele”. Tanto em Gl. 1:16,
27, e 1 Co. 15:3-11, a identidade substancial em significância da “manifestação” é indispensável
para o argumento. Também é verdade que, ao dirigir-se aos romanos, uma igreja fundada
independentemente de seus próprios esforços, e falando em termos mais gerais do evangelho aceito
em comum, Paulo se refere a ela como a doutrina de que Jesus havia sido “designado Filho de Deus
96
com poder pela ressurreição”. Mas, nesta mesma conexão, ele despreza suavemente aquele aspecto
da filiação que é destacado no discurso pentecostal de Pedro. Lá, o ponto de partida é o juramento
que Deus fez a Davi, “que alguém do fruto de seus lombos deve sentar no seu trono”. Só no fim a
natureza transcendental do cumprimento é esclarecido. O resumo de Paulo do “evangelho de Deus”
inverte esta relação. Apenas “segundo a carne” era Jesus “da descendência de Davi”. A “filiação” é
trazida para qualquer relação com a promessa teocrática de 2 Sm. 7:12 e as “fiéis misericórdias de
Davi”.
Mas seria fácil exagerar a importância desta diferença. Ela pode ser totalmente explicada pela
diferença de ocasião. Na sinagoga de Antioquia da Pisídia, Lucas faz Paulo repetir os argumentos de
97
Pedro, enquanto o tratamento descuidado de Marcos da doutrina da filiação davídica ilustra bem
como a Cristologia petrina poderia ser modificada por Roma. Deturpação consciente certamente não
há, tanto no caso de Marcos, como no de Lucas. Pedro e Paulo eram realmente um na crença de que
Jesus, segundo a carne, tinha sido “da descendência de Davi”, embora Marcos ignore isto. Eles
também eram um na convicção de que, fazendo-o Senhor e Cristo, Deus já estava cumprindo a
promessa feita a Davi. Só que, como vimos razão para acreditar, para Paulo, as implicações de
filiação eram mais amplas e profundas do que são inerentes à aplicação teocrática do termo.
Se a doutrina do Espírito de Pedro realmente coincidiu com a de Paulo, a ponto de identificar o
espírito de profecia das Escrituras com o Cristo preencarnado, como 1 Pd. 1:11 implica, não se pode
inferir com rigor de qualquer escrito de Paulo. Tudo o que se pode ser dito é que o uso de fórmulas
do tipo trinitário, e o apelo no argumento antijudaico às manifestações do Espírito, como a prova
suprema da adoção divina, deixam claro que nenhuma diferença foi sentida, em princípio; no entanto,
Paulo pode ter se sentido obrigado a distinguir entre os dons permanentes, superiores, éticos e mais
espetaculares, procurados de forma superficial. A doutrina da união mística com Cristo pela infusão
do Espírito está também intimamente relacionada com a experiência religiosa distinta de Paulo para
esperarmos vestígios de algumas partes do Novo Testamento não diretamente dependentes do ensino
paulino. Mas quem pode pensar que Paulo ficou sozinho na identificação dos derramamentos
98
pentecostais como um trabalho “do espírito de Jesus”? Paulo, pelo menos, não está consciente de
qualquer desvio da convicção “daqueles que eram antes dele” nessa identificação rica.
2. Se agora nos voltarmos das implicações e alusões dos escritos paulinos para o testemunho da
tradição mais tardia em relação à Cristologia de Pedro, acharemos isso frutífero, mesmo nos
documentos que temos menos razões para considerar como influenciados pelo paulinismo, em
corroboração dos resultados já atingidos.
É verdade que vamos resolver apenas a metade do problema ao mostrar como a Cristologia de
Pedro pode parecer em harmonia com a de Paulo do ponto de vista de cada apóstolo. É igualmente
indispensável entender como isso poderia harmonizar-se com as lembranças dos seguidores íntimos
de Jesus, devendo ter tido uma associação pessoal e relação íntima com ele. E aqui tocamos, de fato,
sobre o ponto mais importante de toda a nossa empreitada, o ponto de transição psicológica na mente
de Pedro.
É inútil se referir a psicologia religiosa de Paulo até uma experiência psicológica antecedente,
embora comparativamente desconhecida, de Pedro, a não ser que de alguma forma possamos esperar
dar uma explicação a nós mesmos para esta experiência primária. E, se merece ser chamado de
“explicação” de tal experiência, ao apresentá-lo sem rodeios ao “ato de Deus”, sobrenatural e
inescrutável, tal “explicação” não explica nada. É absolutamente estéril, deixando a mente tão sem
ajuda, ou iluminada, como antes. Ou não há justificativa para a tentativa de compreender, ou então a
tentativa deve começar com o reconhecimento de que, embora a experiência de Pedro, como todos os
outros eventos, grandes e pequenos, foi um ato de Deus, isso também, como todos os demais atos de
Deus, mas principalmente como afetam nossos interesses mais vitais, exige inquérito reverente para o
modo de agir de Deus, até o limite dos recursos mentais.
O que sabemos da experiência de Pedro quando Deus manifestou-lhe o Jesus glorificado, como
“Cristo” e “Senhor”, é escasso, na verdade, e ainda assim o suficiente para determinar o seu carácter
transitório, ou reconstrutivo, no sentido já descrito. Pedro mudou de ideia do Cristo. Certamente, se
podemos depender de alguma coisa em toda a esfera da tradição do evangelho, podemos depender
disso. Toda a história da viagem a Jerusalém começa com isso, toda a história da tragédia final gira
em torno do mesmo. A passagem que devemos considerar fundamental entre os remanescentes da
tradição petrina é o relato de Lucas da perspectiva de Jesus sobre a reação a se seguir após a
deserção e a negação de Pedro. “Eu roguei por ti, Simão, para que a tua fé não desfaleça, e tu,
99
quando voltares (ἐπιστρέψας), fortaleces (στήρισον) teus irmãos”.
Os termos aqui empregados (ἐπιστρέψας; στήρισον), quer tratemos da predição como totalmente
autêntica, ou a um grau maior ou menor colorida pelo acontecimento, representam uma tradição
perfeitamente uniforme quanto à parte de Pedro na fundação da irmandade cuja pedra angular era a fé
de que Jesus tinha sido divinamente libertado do poder do Seol, e logo reapareceu como o Redentor
de Israel. Este é um título para Pedro de primazia.
Antes da tragédia do Calvário, há pouco de caráter confiável para distingui-lo de outros membros
do grupo dos primeiros discípulos. Ele não é mais velho do que André, nem foi chamado antes de
Tiago e João. Ele não é o “primeiro”, exceto neste último, eclesiastizado Evangelho de Mateus. Sua
diferença é que ele tornou-se a rocha em que a Igreja foi fundada quando o poder de oposição era “os
portões do inferno”. Tiago e João aparecem com ele nas referências de Paulo como companheiros
“pilares”, mas se voltarmos para a tradição mais antiga, não há rivalidade ou ambiguidade sobre o
assunto.
Pedro foi o primeiro a promulgar “o evangelho de Deus” de que Jesus havia sido “designado
100
como o Cristo, o Filho de Deus”, pela ressurreição. Suas datas principais, então, sendo depois do
Calvário. É verdade que há aqui uma discrepância entre as implicações de Paulo e da tradição
sinótica. Marcos, em conformidade com a sua tentativa sistemática de antecipar a filiação divina de
Jesus, faz a sua cristandade começar no Seu batismo, os demônios reconhecendo-O a partir de seu
primeiro exorcismo. Na visão de Marcos, Pedro fala apenas da convicção de todo o círculo íntimo
dos discípulos ao fazer o reconhecimento definitivo em Cesareia de Filipe: “Tu és o Cristo”. Este,
então, já é uma prolepse drástica, pois Marcos certamente não faz distinção na confissão da
cristandade como tencionado por Pedro em Cesareia de Filipe, e a cristandade como entendida no
101
sentido cristão pleno. Mateus vai ainda mais longe.
Não é apenas a confissão de Pedro levada, como em Marcos, ao início da viagem a Jerusalém e a
Gólgota; até mesmo a fundação da igreja é levada junta também para o início. Jesus já a constrói na
fé de Pedro e já a faz vitoriosa sobre os portões do inferno, embora o conflito com os portões do
inferno ainda esteja por vir, e a negação de Pedro, bem como sua “volta”, são todas tão
verdadeiramente eventos do futuro, como o Christus Futurus a quem ele reconhece, e a ecclesia
futura cujas chaves são colocadas em sua mão. Não é preciso do paralelo com Jo. 21:15-19 para
provar o anacronismo deste desenvolvimento sobre a história de Marcos.
A primeira confissão de Pedro, apesar da censura que é admitida como tendo incorrido, deve ser
considerada a mais próxima possível para tomar o lugar daquela experiência mais tardia, o relato
que tenha sido tão singularmente eliminado da história evangélica. É mais um passo na mesma
direção já tomada por Marcos em introduzir aqui a história da Transfiguração, uma revelação do
(glorificado) Cristo a Pedro. É um fato notável que o Apocalipse de Pedro coloca a transfiguração
depois da ressurreição.
Nós não temos nenhum motivo em razão desta disposição de nossos evangelistas em direção a
prolepses para negar a historicidade da primeira confissão de Pedro. Os evangelistas que tão
assiduamente procuram destruir a distinção entre a atribuição de Pedro a Jesus de uma cristandade
“de acordo com as coisas que são dos homens”, e seu posterior reconhecimento do Filho de Deus
glorificado, não são susceptíveis de ter inventado a história da repreensão. Nem podemos explicar
psicologicamente a experiência mais tardia, sem a primeira. A traição, a rejeição, o abandono de
Jesus por seus seguidores são fatos a serem considerados.
Eles certamente implicam uma falta de harmonia entre os ideais dele e os seus. Os evangelistas
afirmam que isso já foi superado pela potencial inculcação da doutrina de Jesus sobre o Filho do
homem. Na opinião deles, Jesus havia explicitamente substituído esse pela concepção de seus
discípulos de um Messias sem morte e ressurreição antecedentes; apenas “seus corações foram
endurecidos”, eram como homens que “tendo olhos não veem, e tendo ouvidos não ouvem”. Mas a
partir desta teoria marcana, dominante como se tornou, a crítica moderna é obrigada a fazer
importantes desconsiderações. A consternação dos discípulos na tragédia é incompatível com estas
previsões explícitas, ainda mais sua suposta incredulidade no relato da ressurreição. Tanto a
Cristologia petrina em sua forma primitiva e paulina são destituídas, como vimos, do título Filho do
homem, e repousam sobre uma outra concepção de cristandade do que a danílica e apocalíptica.
Na realidade, o título “Filho do homem” tem sido mostrado como algo conectado em origem com
a apologética da cruz. Precisamente, como a teologia rabínica reconcilia, por meio de uma doutrina
de que o Messias nasce primeiro como homem entre os homens e, posteriormente, arrebatado para os
102
céus, as ideias conflitantes de um Filho de Davi, ou um profeta como Moisés, ressuscitado em
Israel com a figura transcendental de Daniel trazido “sobre as nuvens”, ou novamente, como 2 Esdras
encontra a mesma dificuldade pela representação que após um trabalho preliminar em forma humana,
103
o Messias morre e é imediatamente ressuscitado em forma sobrehumana, assim, a apologética dos
primeiros cristãos recorre a figura danílica não só impessoal e objetivamente, como Jesus tinha feito,
mas como uma explicação da tragédia do Calvário.
Como Jesus poderia aparecer nas nuvens do céu para o juízo, a menos que primeiro fosse
arrebatado das limitações da sua vida terrena? Mas, mesmo em forma modificada em que a teoria
“consistentemente escatológica” recebe nas mãos de J. Weiss, é difícil conciliar com a conduta dos
Doze. Se Jesus realmente adotou esta resposta “escatológica” para as objecções deles às suas
previsões de seu martírio, pareceria que deveriam ter deixado de ser seus seguidores, ou então
continuarem com pelo menos uma esperança parcial de seu rápido regresso em glória como o Filho
do homem sobre as nuvens do céu.
O curso dos acontecimentos implica que os discípulos de Jesus acompanharam-no a Jerusalém
com esperanças messiânicas e ideais que não estavam em harmonia com o seu próprio. A explicação
de Marcos, que define a chave para evangelistas posteriores, mostra, é verdade, que o único ponto de
diferença era a doutrina da cruz e da ressurreição, que Jesus conheceu pela doutrina danílica, mas
eles se recusaram a recebê-la. Em outros pontos, o Mestre e os discípulos estavam de acordo.
No entanto, a história em si implica uma diferença muito maior. Nós não podemos realmente fazer
justiça aos fatos sem reconhecimento de que, em certo sentido, Jesus aceita (sob protesto) a
104
atribuição, “Tu és o Cristo”. Mas toda a questão da narrativa está perdida e os próprios eventos
tornam-se ininteligíveis, especialmente o bem chamado “conversão de Pedro”, a menos que nós
dermos significado completo para os termos da repreensão: “Não cogitas as coisas de Deus, e sim as
dos homens.” (Mc. 8:33). A diferença que separa Jesus dos Doze, deste ponto em diante até a
ressurreição, é mais do que uma diferença sobre a inclusão do martírio na carreira do Messias, é
mais do que a admissão, ou não admissão, da doutrina do Filho do Homem. É uma diferença de
qualidade ética, como os ditos citados constantemente revelam. Mais uma vez, reiteramos que o
apelo de Jesus a Jerusalém foi realmente destinado a ser messiânico. Historicamente falando, a
tragédia da Gólgota permanece inexplicável se para Jesus fugir dela apenas tinha que dizer
claramente: “eu não sou o Cristo”. Psicologicamente falando, a experiência de Pedro da ressurreição
e aqueles que logo depois a repetiram, é inexplicável, se Jesus, antes de sua morte, não tivesse em
certo sentido saudado o título de Messias.
A mente de Pedro, se tal visão ou “revelação” que Paulo teve chegou a ele depois da
crucificação, não poderia ter ficado satisfeita com ela, a menos que se correspondesse com os dados
de sua vida anterior com Jesus, não mais do que a mente de Paulo poderia ter descansado de forma
equilibrada após a sua “revelação”, a menos que o Cristo, assim encontrado, tivesse conhecido os
anseios e agonia da sua alma. No entanto, a diferença tão abertamente atestada em toda a tradição
evangélica entre a Cristologia de Pedro antes e depois de sua “conversão”, a diferença enfatizada na
grande repreensão de Jesus, “para trás de mim, Satanás”, não é a simples falta de uma doutrina do
Filho do homem.
Não é a deficiência, tão facilmente fornecida na narrativa da caminhada para o encontro em
Emaús, e, posterior com os Onze, quando o Jesus ressuscitado “abriu-lhes as Escrituras” e mostrou-
105
lhes que “assim está escrito, e assim convinha que o Cristo sofresse e entrasse na sua glória”.
Estes são abrandamentos posteriores da diferença mais fundamental enfatizada na expressão “as
106
coisas de Deus — as coisas dos homens” (τα του θεου — τα του ανθρωπο). Apenas tal diferença
profundamente religiosa e moral pode exigir um abandono tão completo de toda a esperança como os
registros atestam por unanimidade, após a catástrofe.
Por outro lado, a sua restauração poderia ser baseada em nenhum fundamento menos adequado do
que o ideal ético-religioso que, à princípio, não tinha sido bem-vindo. Foi a Cristologia de Jesus, até
onde o pensamento arrependido de Pedro poderia reproduzi-lo, com a qual Pedro “voltou-se e
fortaleceu seus irmãos”. Encontramos, então, que não é apenas as implicações das Epístolas Paulinas
que mostram o ponto de transição psicológico real como tendo ocorrido na mente de Pedro, em vez
de na mente de Paulo — implicações que têm sido também muito desconsideradas como adaptações
inconscientes por Paulo do pensamento de Pedro para o seu próprio.
Não, as fontes não paulinas mais antigas e autênticas mostram, não menos certo, que Pedro é
realmente considerado o originador do primeiro artigo do credo cristão, a doutrina de que “Jesus é o
Cristo” e “Cristo” no sentido cristão. Paulo não está falando só para si, mas para todos os portadores
da mensagem do evangelho, acima de tudo, para aqueles que tinham sido “apóstolos antes dele,”
quando declara: “Nós (do ministério da nova aliança) daqui em diante a ninguém conhecemos
segundo a carne;” “embora nós, (como judeus) daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a
carne (κατα σαρκα, i. e., na frase marcana, um Cristo “de acordo com as coisas dos homens”); e se
107
antes conhecemos Cristo segundo a carne, já não o conhecemos (como Messias) deste modo”. É
uma referência para a grande transição do Messianismo judaico para a Cristologia cristã, e Paulo
enfaticamente deu origem a isso. Na exegese desta passagem, devemos acompanhar o autor capaz e
brilhante de Christ: The Beginning of the Dogma, e sustentar que não há qualquer referência na
mente de Paulo a qualquer conhecimento próprio com Jesus na carne. Se qualquer conhecimento
deste tipo, de alguma forma, está implícito (e isso não é uma inferência necessária), será o de Pedro
e outros apóstolos anteriores, que se o ministério da nova aliança foi κατα σαρκα pôde por este
motivo declarar uma superioridade a Paulo. Mas agora não é esse o caso. Eles e Paulo igualmente
adotaram uma nova definição de cristandade. Todos em comum têm renunciado aquilo cuja
realização está na “carne”, para aquilo cujo cumprimento é “segundo o Espírito”. Revimos desde o
testemunho de Paulo até a Cristologia petrina, e descobrimos que embora pontos ou tons de diferença
existam, estes não são fundamentais. Ambos os apóstolos já cruzaram a linha divisória que separa o
verdadeiro Messianismo judaico da Cristologia cristã. Comparamos com este mais antigo e autêntico
testemunho, embora indireto, com o testemunho da tradição não paulina, esforçando-nos a dar mais
peso às fontes que são geralmente reconhecidas como refletindo de forma menos alterada o antigo
evangelho petrino.
O resultado tem sido confirmativo da visão derivada das referências Paulinas. O Messianismo de
Pedro, “de acordo com as coisas que são dos homens”, já havia sido alterado para a forma ético-
religiosa que é distinta da religião de Jesus, muito antes que fosse possível para ele ser afetado pelas
ideias de Paulo. A adoção do rito do batismo, desde o início na igreja, que devia a sua formação a fé
de Pedro, é a prova decisiva disso. No entanto, nos resta o fator supremo na Cristologia petrina ainda
intocada. Como foi a mudança na mente de Pedro? Por que foi que, tendo experimentado a visão ou
revelação do Filho de Deus, “feito Senhor e Cristo” pela ressurreição, a sua mente, como a de Paulo,
manteve-se satisfeita com a Cristologia cuja nota fundamental — quaisquer que sejam as conotações
judaicas — é distintamente ético-religiosa?
Para a nossa pergunta final, pode haver apenas uma resposta. O significado de pecado para
Pedro, sem dúvida, teve muito a ver com a natureza de sua “conversão”. A identificação precoce do
Senhor ressuscitado com o Filho do homem danílico, cujo Dia tinha sido predito por Jesus no
desenvolvimento das advertências de João Batista, e cuja vinda era agora a grande expectativa de
todos os corações — esta concepção, também, pode bem ter desempenhado um papel no
desenvolvimento da Cristologia petrina, mas não é a mais profunda, a mais fundamental. Os eventos e
relatos teriam se moldado de forma diferente, caso tivesse a transição na Cristologia de Pedro sido
nada mais do que a adoção de um elemento escatológico do ensinamento de Jesus excluído, a
princípio, como indesejável. A origem da mudança de pensamento de Pedro deve encontra-se, nada
menos, do que na sua relação pessoal e íntima com Jesus, o Filho de Deus.
Nos discursos petrinos de Atos, bem como nas epístolas paulinas, não é a Cristologia danílica do
Filho do homem que domina. Esta figura está ausente em ambos. É claro que a concepção
apocalíptica escatológica não poderia deixar de estar presente e em destaque em ambos os
escritores, mas a figura cristológica que pertence aos discursos petrinos de Atos e a Primeira
Epístola de Pedro, distintamente, sendo rastreável em outro lugar apenas em algumas passagens
litúrgicas primitivas, como a oração de Clemente de Roma, as orações litúrgicas da Didaquê, a
oração do mártir morredouro no martírio de Policarpo, e o fragmento de Apolinário de Hierápolis
sobre Cristo como a vítima pascoal, é a figura isaiana do Servo sofredor de Javé (ο παις θεου). É
significativo que a única utilização que é feita por Paulo deste tipo isaiano da doutrina cristológica é
a passagem na qual se refere ao ensino do evangelho recebido por ele de seus antecessores na fé:
“Eu recebi... que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras”. Não precisamos supor
que o emprego da figura isaiana do Servo sofredor, necessariamente, remonte ao próprio Jesus,
embora sua associação com a eucaristia deva datar de tempos extremamente primitivos. No entanto,
podemos certamente tirar esta conclusão da nossa análise dos vários tipos de Cristologia primitiva: a
transição do messianismo judaico para a Cristologia cristã foi efetuada na mente de Pedro, antes da
conversão de Paulo, e, nesta transição, o fator fundamental foi a eficiente memória de Pedro da vida
diária com Jesus. Ter estado com Ele desde o início, testemunhado a simplicidade de toda a alma, a
sua caminhada ininterrupta com Deus, a serenidade de sua fé indomável no Pai celestial, a
consagração absoluta de uma vida dada sem dúvida ou reserva para “fazer a vontade do Pai”, a
alegria e a paz do serviço e confiança exemplificada naquele a quem a filiação significa semelhança
de disposição e finalidade para o Pai — esta vida moral e religiosamente ideal, e a morte heroica,
foram influências mais profundas das impressões de Pedro, do que qualquer forma de pensamento
religioso herdado.
Não é tanto as palavras que ouvimos, como a vida que testemunhamos, que afeta mais
profundamente nossas convicções religiosas, especialmente se somos simples e sem sofisticação.
Psicologicamente falando, pode ser verdade que a visão ou revelação de Pedro, que marca a origem
da fé na ressurreição, foi condicionada à ocorrência de Cesareia de Filipe e da tragédia do Calvário.
É possível que o futuro historiador diga: a experiência psicológica de Pedro, quando Deus (para usar
a linguagem de Paulo) “o energizou para um apostolado”, revelando-lhe Jesus, como o Cristo
ressuscitado e glorificado, é inexplicável sem a sugestão antecedente de Cristandade no apelo
messiânico de Jesus a Jerusalém e, mais tragicamente ainda, na “inscrição de sua acusação”, fazendo
proclamação pública de que ele sofreu como “Rei dos Judeus”. Seja qual for a causa próxima e
externa, o que encheu o termo “Cristo” com o novo conteúdo, transformando-o de um termo judeu
para um sentido cristão, foi a concepção ético-religiosa a princípio rejeitada, mas agora, finalmente
absorvida, rastreável apenas até o próprio Jesus. As palavras de Jesus sobre a interioridade do
reino, sobre sua essência, sendo a relação filial com Deus, o fazer a vontade do Pai por todos, com
alegria, com o coração — estes, sem dúvida, voltaram para Pedro em sua “conversão”. A maior
parte do espírito e vida de Jesus serviu para dar um novo significado ao título “Filho de Deus”.
Portanto, o autor último de nossa Cristologia é o próprio Jesus.
Notas
[←1]
A paráfrase de Is. 5:1-7 em Mc. 12:1-9 reflete o mesmo ponto de vista e é melhor compreendida
como composição alegórica do evangelista do que como parábola autêntica de Jesus, embora
uma parábola que, de alguma maneira, semelhante a essa seja inserida por Mat. bem antes dela.
(Mt. 21:28-32).
[←2]
Sprüche und Reden Jesu, 1907, Exkurs I, pp. 189-211.
[←3]
No extrato, apenas os resultados positivos de Harnack são exibidos. Ele deixa em dúvida, por
exemplo, se a ordem em Mt. 11:27 não deve ser “o Pai, o Filho... ... o Filho... o Pai...”, e, se na
última cláusula não deve ser “revelado”, como na emenda de Lc., em vez de “disposto a
revelar.” Como estas são apenas possíveis mudanças e não fazem diferença prática para o
sentido, elas não são indicadas..
[←4]
Assim pensam os alemães em geral, e Salmon (The Human Element in the Gospels, 1907). A
designação é melhor do que L (W. C. Allen, Internacional Critical Comm., 1907) ou A (H. J,
Holtzmann, Synoptische Evangelien, 1863), por isso, não prejudica a questão da relação desta
fonte Mt-Lc para a mateana “Logia do Senhor” mencionada por Papias. Burton e Sharman, da
Universidade de Chicago, empregam as letras G (documento galileu) e P (documento pereiano)
para as respectivos intercalações de Lc. 6:20-8, 8 e 9:51-18 e 14, que outros críticos designam
juntos como Q.
[←5]
Paulus und Jesus, 1907, p. 31.
[←6]
O fato de este material comum de Mt-Lc do discurso (Q) não ser derivado de um desses
evangelistas diretamente do outro foi conclusivamente demonstrado por Wernle (Synoptische
Frage, 1899, pp 40-80), e é um resultado aceitável da ciência do Novo Testamento. Até Allen
fala apenas de uma “influência” de Mateus sobre Lucas. Os defensores da tradição oral (A.
Wright) fazem da sua fonte oral o equivalente a um documento, uma vez que sua forma é tão
estereotipada a ponto de tornar a semelhança de Mt. e Lc. mais próxima nas porções que não
são partilhadas por Mc. do que nas partes tiradas por cada um a partir desta fonte
reconhecidamente escrita.
[←7]
Sprüche und Reden Jesu, p. 210, nota 1.
[←8]
No entanto, a nossa passagem fornece a única ocorrência da palavra nos evangelhos (exceto a
citação de Sl. 8:3 em Mt. 21:16) contra onze ocorrências nas epístolas paulinas.
[←9]
Sprüche und Reden Jesu, p. 126.
[←10]
Mt. 11:28-30, que deixa de aparecer em Lucas, parece, linda como é, ser de composição do
evangelista a partir de frases derivadas da literatura sapiencial. Veja W. C. Allen, ad loc. em
Internat. Crit. Commentary, 1907, e Bousset, Religion des Judentums, p, 338, para os
paralelos.
[←11]
Rm. 11:8, Cl. 2:2, 1 Co. 1:29, 30, 3:19, Rm. 9:20, 21; 2 Tm. 2:20, 21, 2 Co. 1:3-4, 7:6, 1 Tes.
3:7, 4:18, 5:14.
[←12]
Cf. apesar da passagem presente Mt. 11:5, Lc. 4:18, 7:22.
[←13]
Is. 29:9-24 (LXX).
[←14]
Mt. 11:12-15. Esta passagem obscura é iluminada pela tradição rabínica, Edujoth 8.7, onde na
autoridade de Johanan ben Zakkai a função de Elias como restaurador das tribos é declarada
sendo, “não de pronúncia limpa ou suja, para excluir ou receber em geral, mas apenas para
receber aqueles que haviam sido excluídos pela violência, e para excluir aqueles que tinham
sido recebidos pela violência”. Veja Bacon, “Elias and the men of Violence”, Expositor, sexta
série, 31 (Julho de 1902), e W. C. Allen, Intern. Crit. Comm. sobre Mt., ad loc.
[←15]
Sobre a referência ao “batismo de João” nesta resposta de Jesus à demanda por um sinal do céu,
que Mateus e Lucas, de maneira contraditória, se esforçam para aplicar ao próprio Jesus, ver
Bacon, Sermon on the Mount, p. 232, e cf. a demanda paralela do sinal e sua resposta, Mt.
21:23-25; também a combinação dos dois em Jo. 2:18-21.
[←16]
Mc. 4:11, 12 é uma inserção editorial completamente fora de sintonia com o contexto, o que
pressupõe não apenas a parábola do semeador, mas “todas as parábolas” que precederam (vs.
13), e manifesta surpresa que uma explicação deva ser necessária (vs. 13). Nos vss. 10 e 13, o
sentido da pergunta sobre as parábolas não é, como assumido nos vss. 11 e 12, “por que usar
este método?”, mas, “qual é o significado do simbolismo?” Os vss. 11 e 12 com o seu texto-
prova isaiano aplicam a doutrina paulina das dificuldades de Israel (Rm. 11:7, 8) ao fato de que
Jesus havia ensinado em “parábolas”, a “parábola” sendo erroneamente considerada um enigma,
mistério, ou dito obscuro. Marcos, sem dúvida, aplicou a parábola do semeador ao
endurecimento de Israel tanto quanto a Ep. Barn. 9:5 (cf. Hb. 6:8) aplica o protótipo comum de
Jr. 4:3, “lavrai para vós outros campo novo e não semeeis entre espinhos”. Mas, Marcos não
inventou um logion para justificar sua teoria das parábolas como uma pregação de julgamento.
Ele adaptou isso agora, sob consideração, para se adequar a sua teoria paulina.
[←17]
Para a estimativa de Marcos do povo judeu em geral e seu caráter religioso, ver Mc. 7:3, 4, 6,
7.
[←18]
Mc. 4:22 é dado duas vezes em Lucas. Lc. 8:17=Mc. 4:22; Lc. 12:2=Mt. 10:26.
[←19]
Comentaristas divergem quanto a se, na aplicação do evangelista, “a lâmpada” representa o
Messias, que está destinado a ocupar o trono da glória (cf. Ap. 21:23), ou, como se pretendia
inicialmente, a mensagem do evangelho. Qualquer interpretação serviria para nossa afirmação.
[←20]
2 Es. 6:55-59, referindo-se a Gn. 1:26, 27 e Is. 40:15. Cf. Salmos de Salomão 17:30: “Ele
obterá conhecimento deles, de que são filhos de seu Deus”.
[←21]
Cf. Dt. 4:6-8.
[←22]
Asc. Mo. 1:14.
[←23]
Cód. Vercell. dá em Lc. (não em Mt.), Omnia mihi tradita sunt a patre, et nemo nobit quis est
pater nisi Alius, et cuicumque voluerit filius revelavit.
[←24]
Cf. Os dois paralelos relacionados, também peculiares a Mateus, sobre o joio e a rede cheia de
peixes: Mt. 13:24-30; 36-43; 47-50.
[←25]
O paralelo com a passagem acima citada (Gl. 4:6, 7), em Rm. 8:14-16; 26-27 mostra que a
referência é ao carisma das línguas. Aqueles que “oravam em uma língua”, em meio a seus
gemidos inarticulados e declarações inteligíveis somente a Deus (Rm. 8:26, 1 Co. 14:14-17),
balbuciavam como bebê, Abba, Abba.
[←26]
Mt. 5:45 = Lc. 6:35, 2 Co. 6:18.
[←27]
2 Sam. 7:13, Sl. 132:11, mencionados em At. 2:30.
[←28]
Budde, Israel before the Exile, 1897.
[←29]
Filo, Quis rerum divinarum heres?
[←30]
Êx. 33:16, Jr. 51:45, Ez. 20:34, 41 Is. 52:11, 2 Co. 6:17.
[←31]
Essa era a função de Elias redivivus na lenda contemporânea, cf. Ml. 4:6 baseando-se em 1 Rs.
18:37. Veja Bacon, Elias and the Men of Violence, Expositor, sexta série, xxxi (Júlio, 1902).
[←32]
Mc. 1:17, baseando-se em Jr. 16:16.
[←33]
Assim, Edujoth viii, 7, baseando-se em Eccl. 48:10.
[←34]
Gl. 4:6.
[←35]
Os paralelos não são citados onde não há nenhuma evidência da tradição independente. Na
referência Mc. 8:30, a primeira das três modalidades da tradição é citada. O fato de que ela é
transcrita com ligeiras modificações em Mt. 16:20 e Lc. 9:21 não acrescenta nada à força da
evidência de Marcos.
[←36]
“Apocalipcista” (alemão) N.T.
[←37]
A história da transfiguração é expressamente concebida para trazer de volta a concepção
transcendental paulina do messianismo na carreira terrena de Jesus. Mas, mesmo na tradição
sinótica que intervém como um anacronismo psicológico, uma repreensão dos doze, que ainda
são incapazes de compreender, por conceber o messianismo de Jesus “segundo as coisas que
são dos homens”. No Apocalipse de Pedro é francamente colocado após a ressurreição.
[←38]
Sprüche und Reden Jesu, p. 166.
[←39]
No Sprüche und Reden Jesu de Harnack, eles são numerados 25 (Mt. 11:23-27) Lc. 10:21f.) e
15 (Mt. 11:16-19, Lc. 7:31-35) respectivamente.
[←40]
A passagem cuja comparação da vinda do Batista com a do “Filho do Homem” foi citada acima.
[←41]
Sobre a ideia de Jesus da vinda do Filho do Homem, veja abaixo.
[←42]
Wernle, Synoptische Frage, p. 226: “Diese zwei Stiicke [o discurso de Batista e a Tentação de
Jesus] sehen tiberhaupt aus wie eine geschichtliche Einleitung, die nachtraglich dem Werk
vorgesetzt wurde”.
[←43]
Contra Harnack, que afirma, a propósito, o mesmo, “Welch’ ein Zeichen der Echtheit!” (p. 165).
[←44]
Jo. 6:30ff. combina esses dois.
[←45]
Note a antítese similar em Lc. 12:13-34, onde Salomão aparece como o rico e sábio rei de
Eclesiastes em contraste com a pobreza de Jesus e seus seguidores.
[←46]
Assonância entre os nomes de João e Jonas pode ter desempenhado um papel.
[←47]
Não é evidente a partir da linguagem de Harnack na nota 2 da p. 165 se ele considera essa
ocorrência como “unsicher”, bem como que em Lc. 12:8, em que o paralelo Mt. 10:32 tem
simplesmente “eu”, ou se ele tem Mt. 12:32, Lc. 12:10 como sendo certamente autêntico. O
primeiro é por ele designado No. 34a, o último No. 34b. Sua declaração na p. 165 é: “Doch ist
er fder Ausdruck Menschensohn em Nr. 34 unsicher”.
[←48]
Prima facie é uma expressão latina que significa “à primeira vista”. A frase é muitas vezes
utilizada na filosofia, na maior parte das vezes no mesmo sentido do que quando é usada em
ciências jurídicas. (N. do T.)
[←49]
Cf. Euseb., H. E. ii, 23 13.
[←50]
Cf. Jerome, De viris illustribus 2.
[←51]
Cf. Clem. Alex., Strom, iv, 6 36.
[←52]
Não está dentro do escopo da presente discussão apontar a superioridade prática de uma
expressiva fórmula do sentimento de lealdade pessoal acima de uma fórmula expressiva apenas
da crença abstrata. No entanto, em dias como os nossos, quando estão sendo feitos esforços para
encontrar uma palavra de ordem de união, dificilmente se pode resistir a fazer a pergunta: Por
que não voltar para o mais antigo atestado de todos? Milhares de pessoas que diferem
amplamente em suas definições da pessoa de Cristo, e suas teorias da natureza dessa redenção,
estão prontos para unir-se no princípio de uma lealdade comum a um mestre comum. Por que
não unir a confissão de “Jesus como Senhor”?
[←53]
Cf. Também Rm. 8:34, Ef. 1:20, Cl. 3:1.
[←54]
Journal of Biblical Literature, vol. xxvi (1907), pp. 151-161.
[←55]
Um exemplo notável é a citação de Sl. 102:25ff. em Hb. 1:10-12 como se aplicando a Cristo
como criador. Veja a presente discussão do escritor em Zeitschrift fur neutestamentliche
Wissenschaft, vol. iii, 1902. Aqui, a doutrina, é claro, é uma doutrina paulina.
[←56]
Case, ibid. p. 161.
[←57]
Em adição a At. 2:34f. e 1 Cor. 15 25, veja especialmente Rm. 8:34, Ef. 1:20, Cl. 3:1. Sl. 110 e
8, combinado em 1 Cor. 15 25-27, são feitos quase a inteira Escritura substrato da Epístola aos
Hebreus.
[←58]
No Evangelho de Mateus, que não foi seguido pelo registro das obras ponderosas do Espírito, o
senhorio é expresso por uma declaração de Jesus (Mt. 28:18; Cf. Mc. 16:17).
[←59]
Sobre o último e o caráter lendário de At. 1:6-14 como comparado com At. 2:15ff., e ainda
mais com At. 3:1-4, 31, veja Harnack, Atos, ad loc.
[←60]
Do francês, “inapropriadamente”.
[←61]
Se o senhorio (kuriotes) desprezado pelos hereges em Jud. 8, 2 Ped. 2:10, é o de Cristo, é algo
duvidoso.
[←62]
Tal, de acordo com Sanday e Headlam, deve ser a tradução de Rm. 1:4.
[←63]
Clemente de Alexandria mostra precisamente este ponto de vista na argumentação da
observância do décimo quarto dia de Nisã, como o aniversário da morte e ressurreição. “E a
ressurreição confirma isso [argumento para observância Quartodecimana]. Em todos os eventos
[Jesus] ressuscitou no terceiro dia, que é o primeiro dia das semanas de trigo da colheita, em
que foi prescrito que o sacerdote deve oferecer o molho [das primícias]”. (Citation in Pascal
Chronicle)
[←64]
Epifânio, Haer. απα γαρ του ετους μιαν ημεραν του πασχα οι
τοιουτοι (quartodecimano) φιλονεικως αγουσι.
[←65]
“Semanal”. Do latim hebdomãda e este do grego εβδόμαδα (semana). (N. do T).
[←66]
Apolináris de Hierápolis em Paschal Chronicle.
[←67]
Character and Authorship of the Fourth Gospel, p. 471.
[←68]
“E o Senhor clamou, dizendo: Meu Poder, meu Poder, tens me abandonado. E assim que ele
falou, foi levado”. (και ειπων ανεληφθη)
[←69]
New Schaff-Herzog Encyclopaedia, Art. “Páscoa”, vol. iv (1909), pp. 46f.
[←70]
Didaquê 8:1.
[←71]
Até o Quarto Evangelho quartodecimano é afetado sobre este ponto pelos seus predecessores
(cf. Jo. 20).
[←72]
Cf. A afirmação de Clemente citada acima, p. 219, note.
[←73]
Alusão a Hb. 2:14 e 15. (N. do T).
[←74]
A Interpretação rabínica ortodoxa da data legal, “o dia depois do sábado”, parece ter sido já
nos tempos do Novo Testamento, o 16° dia de Nisã, independentemente do dia da semana. A
prática samaritana e sectária fez as Primícias (e, consequentemente, o Pentecostes) cair
invariavelmente no domingo.
[←75]
Character and Authorship of the Fourth Gospel, p. 466.
[←76]
Alusão a At 1:3. N. do T.
[←77]
See especially W. Sanday, Christologies Ancient and Modern, 1910; J. Weiss, Christ: The
Beginnings of the Dogma, 1911; J. C. Granbery, Outline of N. T. Christology, 1909; e a edição
de W. Bauer (1911) de Neutestamentliche Theologie de Holtzmann.
[←78]
2 Co. 3:17f.
[←79]
Cl. 1:15-17, cf. Sap. 7:24-27.
[←80]
1 Co. 10 4; cf. 1 Pd. 1 11.
[←81]
1 Co. 15:27.
[←82]
Cf. At 2:40, 3:21, 10:42, 17:31 com Gl. 1:4, 1 Ts. 1:10, etc.
[←83]
Apóstrofe é uma figura de linguagem caracterizada pela evocação de determinadas entidades,
consonante com o objetivo do discurso. (N. do T.)
[←84]
1 Tm. 4 8.
[←85]
Gl. 2:8; cf. 2 Co. 4:6 (“nossos corações”).
[←86]
1 Co. 15:5-8.
[←87]
Rm. 1:1-4.
[←88]
Do francês, literalmente “pé no chão”, usado para se referir a uma estadia temporária. (N. do T.)
[←89]
Fl. 3:6, 9.
[←90]
Gl. 2:15-21.
[←91]
Cf. Gl. 2:21 com 1 Co. 15:3.
[←92]
Cf. At. 13:38f.
[←93]
Cf. A defesa de Josefo do rito de Batista como “não para a expiação de pecados”. (Ant. XVIII,
v. 2).
[←94]
Gl. 2:16.
[←95]
1 Pd. 3 22.
[←96]
Rm. 1:4.
[←97]
Cf. Mc. 12:35-37, e a omissão de linhagem.
[←98]
Cf. At. 16 7 (RV).
[←99]
Luc. 22:32.
[←100]
1 Co. 15:1-8.
[←101]
Cf. Mc. 9:41.
[←102]
Pesikta 496: “O Messias, como Moisés, aparecerá primeiro e depois se ausentará 45 dias”; cf.
Ap. 12 5, Jo. 7:27.
[←103]
2 Esd. 7:28ff.
[←104]
Sobre a questão levantada por Wrede, se Jesus alguma vez encorajou a aplicação a si mesmo do
nome e papel messiânico, veja meu Beginnings of Gospel Story, pp. 109ff.
[←105]
Lc. 24:25-27 e 44-17.
[←106]
Mc. 8:33.
[←107]
2 Co. 5:16.

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