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Armadilhas do vocabulário político

25/07/2014 11:54:36

O filólogo Victor Klemperer (1881-1960) foi um dos judeus alemães que sobreviveram ao
regime nacional-socialista. Ele não só deixou registros históricos e pessoais valiosos, como
seus Diários, mas também, conjugando seu conhecimento acadêmico à experiência existencial
de viver constantemente perseguido e marginalizado por um governo totalitário, elaborou uma
análise do uso da linguagem pelo Estado nessas condições: A linguagem do Terceiro Reich,
publicada em 1947.1 Klemperer era um homem sensível e um observador arguto. Acredito que
poucos conheceram como ele, por vias teóricas ou práticas, os usos perversos da linguagem
posta a serviço da política.2 Eis um homem que tem autoridade para falar sobre as relações
entre linguagem e mentira. Por isso, à primeira vista talvez pareça estranho que seu juízo
tenha sido este: “A linguagem revela. Por vezes, alguém procura esconder a verdade por meio
da linguagem. Mas a linguagem não mente.” 3

Há nessas palavras uma dimensão teológica oculta da qual o próprio Klemperer, como judeu
convertido a um protestantismo teologicamente liberal e comprometido com o iluminismo, pode
muito bem ter deixado de perceber: a linguagem foi criada por Deus para expressar a verdade,
de modo que a mentira é um parasita pernicioso, mas nunca de todo bem-sucedido.

Ninguém ignora que o terreno do debate político é pródigo de mentiras completas, meias-
verdades, confusões e ambiguidades, tanto propositais quanto inconscientes. É importante que
o cristão aprenda a evitar tais armadilhas. Diante disso, a sentença de Klemperer se relaciona
de várias maneiras ao espírito do presente ensaio, cujo propósito não vai além de uma
introdução à tarefa de combater alguns equívocos cometidos com frequência na reflexão
política. O método consiste em problematizar, a título de exemplo, dois pares de palavras-
chave potencialmente enganadoras, mostrando de que modos podem ser (e são) usadas para
ocultar a verdade ao invés de esclarecê-la. Ao mesmo tempo, pretendo mostrar como tais usos
podem revelar algumas verdades que são, em geral, pouco notadas.

1. Direita e esquerda

As palavras “direita” e “esquerda” são muito utilizadas para definir a posição política de
indivíduos, partidos, governos e movimentos. Existem outros modos de descrição, é claro, mas
muitas vezes essa referência direcional proporciona um bom ponto de partida e ajuda a
economizar palavras. Porém, todos sabem que não existem só duas posições políticas no
mundo. E, embora haja quem creia que toda a diversidade existente é redutível a apenas duas
atitudes ou lealdades fundamentais, em geral se admite ao menos a possibilidade de
gradações: há posições moderadas e posições radicais, que a convenção dominante situa
perto ou longe do centro, respectivamente. É assim que surgem a extrema-direita, a centro-
esquerda etc.

Tais considerações, no entanto, são estritamente formais. Passemos agora ao conteúdo. O uso
mais difundido dos termos costuma situar na esquerda as visões que priorizam a igualdade
econômica dos cidadãos, e na direita as que adotam outras ênfases. É costume também situar
no centro as posições comprometidas com a democracia, enquanto as vertentes autoritárias ou
totalitárias são empurradas para as extremidades. Assim, indo da esquerda para a direita,
teríamos: comunistas, socialdemocratas, liberais, conservadores e fascistas.

Esse esquema representa aproximadamente bem o sentido mais comum que os termos
“direita” e “esquerda”, com suas respectivas gradações, costumam ter na mente da maioria das
pessoas . Tal uso tem suas vantagens, como já afirmei. Por outro lado, essas palavras são
perigosas, pois podem nos levar a severas incompreensões na medida em que esquecemos
que são meros atalhos, incapazes de dar conta da complexa realidade das posições políticas.
Na presente seção, discorrerei sobre dois grandes perigos associados a esse uso, começando
pelo próprio fato do excesso de simplificação.

1.1. Toda classificação com base em um critério único simplifica demais a realidade

A divisão entre direita e esquerda é unidimensional, e não são poucos os que se incomodam
com isso. O site The Political Compass,5 por exemplo, apresenta um método de classificação
em que a posição política é uma grandeza vetorial, com duas dimensões. Cada visitante pode
preencher um questionário com algumas dezenas de perguntas, expressando seu grau de
acordo com certas afirmações (como “O inimigo do meu inimigo é meu amigo” ou “Quanto mais
livre for o mercado, mais livre será o povo”); com base nas respostas, o visitante é classificado
simultaneamente como direitista ou esquerdista, segundo a escala econômica, e como
autoritário ou libertário, segundo a escala social. 6 Embora não isenta de falhas, a proposta
merece menção porque o problema que os autores do método estão tentando superar é real e
importante: quando só há uma dimensão, apenas um critério pode ser usado, e isso acarreta
distorções que podem se revelar muito graves.

Uma ilustração simples das incongruências a que isso leva pode ser obtida se considerarmos o
caso do anarquismo clássico. Sem dúvida é uma posição de esquerda; mas onde devemos
colocá-lo, exatamente? Situá-lo à direita da social-democracia dará a impressão de que se
trata de uma posição menos radical que esta; se colocado entre a social-democracia e o
comunismo, parecerá que é uma posição intermediária entre ambos; e, se for posto à esquerda
do comunismo, alguns pensarão que este é apenas um anarquismo mais moderado. Todas
essas alternativas são falsas, pois o anarquismo tem peculiaridades que não foram levadas em
conta pela classificação convencional.

Muitos aspectos precisam ser levados em conta na descrição de uma posição política. A
classificação unidimensional privilegia um deles como o único importante, relegando à
obscuridade todas as demais semelhanças e diferenças que possam existir entre duas
posições quaisquer. Desse modo, basta mudar o critério, e a classificação muda
completamente. Suponhamos, por exemplo, que o critério fundamental escolhido seja o grau
de poder dado ao Estado. Nesse caso teríamos, bem perto um do outro, o nazismo e o
comunismo7 (que na classificação convencional estão em extremos opostos), ao passo que,
na outra ponta, estariam os anarquistas lado a lado com os liberais mais extremados, os assim
chamados anarco-capitalistas. Duas ideologias quaisquer podem estar muito perto ou muito
longe uma da outra, dependendo do critério adotado. Esse é um dos problemas de se ter um
critério só.
As dificuldades que inviabilizam a pretensão unidimensional são muitas, mas citarei de
passagem apenas mais dois exemplos. Se abandonássemos a classificação mais popular em
prol de outra, baseada na oposição entre posturas coletivistas e individualistas, tudo aquilo que
se convencionou chamar de extrema-direita estaria do lado coletivista, mais perto da esquerda,
e não mais poderia ser visto como uma vertente radical do liberalismo ou do conservadorismo.
Se isso parece um mero sofisma para alguns, devo lembrar que a pré-história dos movimentos
fascistas está emaranhada de modo inextricável com a história do socialismo; não seria um
grande exagero afirmar que aqueles nasceram como uma dissidência deste. Quando o
cientista político russo Aleksandr Dugin conclama o mundo a uma guerra contra a globalização
inspirando-se indistintamente em autores nazistas, fascistas e comunistas,8 não está criando ex
nihilo uma conexão sem fundamento histórico, e sim seguindo certas tendências reais e
antigas que, por motivos diversos, deixaram de ser enfatizadas ao longo do século XX. 9

Aproveitando que acabo de falar em globalização, o último exemplo citado será o caráter
nacionalista ou internacionalista das propostas políticas. Nesse caso, teríamos reunidos do
lado internacionalista os seguintes elementos: comunistas e socialistas em geral, para os quais
o foco fundamental da lealdade é de natureza classista, transcendendo, portanto, as fronteiras
nacionais; os globalistas adeptos da social-democracia cujo sonho é transformar a ONU em um
governo mundial; os defensores mais extremados do liberalismo econômico, para os quais as
fronteiras nacionais constituem barreiras ao livre comércio e, portanto, à prosperidade dos
povos; diversos movimentos políticos islâmicos, que buscam implantar o sonho já bem antigo
de um califado mundial; e mesmo alguns segmentos conservadores que atribuem ao Ocidente
(ou a alguma nação em especial) a missão de civilizar e democratizar o mundo. O regime
nacional-socialista alemão propagava a ideia de que as democracias capitalistas ocidentais
eram aliadas naturais do comunismo, visto que ambos os lados eram internacionalistas e,
supostamente, controlados por judeus. Sem dúvida há uma boa medida de paranoia nisso,
mas não se pode negar que os nazistas estavam enxergando uma semelhança real e sendo
coerentes com sua própria valorização exacerbada do nacionalismo.

Todas essas considerações e exemplos apontam para a dificuldade insuperável que qualquer
método unidimensional de classificação do espectro político tem de enfrentar. Tal método
necessariamente trará simplificações que podem ser fatais uma vez que seu caráter
simplificador seja esquecido. Creio que isso pode ser reconhecido por representantes de
qualquer posição política; ou seja, não é necessário ter opiniões semelhantes às minhas sobre
qual é o melhor sistema para perceber o caráter potencialmente nocivo desse modo de
classificação. Minha primeira objeção à classificação tradicional é, na verdade, uma objeção a
qualquer classificação unidimensional.

1.2. A classificação convencional não privilegia o que é mais importante

Não existe método de representação do espectro político isento de desvantagens. Todos eles
colocam em evidência certas verdades sobre a realidade política e tornam invisíveis algumas
outras. Dessa forma, mesmo uma classificação unidimensional pode ter certo grau de utilidade,
desde que estejamos certos de que aquilo que ela ressalta é mais importante que aquilo que
ela oculta. Mas essa consideração traz à tona outro possível risco. Afinal, quem garante que
uma dada classificação de fato privilegia o mais importante? Se não o fizer, ela conduzirá a
enormes equívocos. Baseia-se nisso a minha segunda objeção ao esquema convencional.
Essa objeção possui duas características que a diferenciam da primeira: ela não é universal,
mas sim dirigida de modo específico a esse modelo; e não independe da posição política
adotada pelo observador, pois essa posição influencia os critérios que ele adota para se
classificar entre seus antagonistas, já que diz respeito de modo direto às prioridades que cada
um tem em vista.

A classificação convencional presume que de cada lado há um acordo razoável sobre os fins,
restando apenas combater os que desejam o fim oposto, assim como em uma partida de
futebol o objetivo de cada time (ganhar o jogo) é logicamente sinônimo de derrotar o time
adversário. Podem existir, é claro, diferenças severas em cada time sobre o melhor meio de
ganhar o jogo, e é provável que essa divergência sempre ocorra na ausência de um técnico ao
qual todos obedeçam. Os jogadores de um mesmo time podem, inclusive, brigar entre si e não
colaborar uns com os outros, o que reduz suas chances de vitória. Apesar disso, todos estão
de acordo quanto ao objetivo do jogo. Uma das inconveniências capitais do esquema
tradicional é que ele aponta direita e esquerda como lados simetricamente opostos, retratando
o jogo político como algo mais semelhante ao futebol do que de fato é. E não poderia ser de
outro modo, pois a definição de um único critério de classificação tem naturalmente esse efeito.

A premissa da simetria entre direita e esquerda é falsa. Pode-se dizer, sem dúvida, que a
erradicação da desigualdade econômica é uma meta consensual de todas as esquerdas
existentes, a despeito de não ser tão unânime a expectativa concreta de como seria o
socialismo ideal. Na verdade, as divergências internas da esquerda quanto a isso já foram bem
maiores do que são hoje,10 de modo que a descrição pode ser quase acurada dependendo da
época a que se refira. Porém, a unidade do lado oposto é muito menor; na verdade, quase
nula. Não há um objetivo comum, por mais vago que seja, a todas as direitas que existem. Há
quem veja essa unidade em uma defesa comum do “capitalismo”. Na seção 2 falarei mais
sobre os problemas dessa ideia. Por ora, é suficiente destacar o fato amplamente ignorado de
que, a rigor, apenas os liberais e parte dos conservadores defendem (e com graus variados de
entusiasmo) algo que pode ser chamado de capitalismo. A assim chamada extrema-direita foi
quase sempre avessa a ele, e muitas vezes com argumentos semelhantes aos da esquerda.

O achatamento de todas essas diferenças em um critério unidimensional é um dos


responsáveis pela negligência desses fatos, levando à falsa ideia de que o liberal e o
conservador são apenas nazistas moderados. É necessário entender que, dada a ausência de
unidade de fins na direita, não pode haver simetria entre direita e esquerda. Enquanto nesta há
uma unidade positiva, naquela há apenas uma unidade negativa: o que há em comum entre
todas as direitas é apenas o fato de que se opõem à esquerda; mas o fazem pelas razões mais
díspares e incongruentes entre si. O liberal se opõe à esquerda por ver nela um atentado ao
valor supremo da liberdade individual; o conservador se opõe à esquerda por ver aí uma
tentativa de subversão da ordem moral (ou espiritual) da sociedade; os fascismos se opõem à
esquerda por verem nela um atentado ao espírito nacional ou racial em prol de uma ordem que
transcende a da nação. Além disso, cada um desses motivos pode ser (e é), com o mesmo
grau de coerência, apontado por seus respectivos defensores, não só contra a esquerda, mas
também contra as demais direitas. Por conseguinte, ainda que adotemos a classificação
convencional para dizer quem é direitista, não é justo nem sensato atribuir à direita uma
unidade; o que existe é uma irredutível pluralidade de direitas.

Se não há, porém, unidade positiva alguma entre as direitas, resta explicar por que tantos têm
dificuldade de perceber isso. Se a classificação convencional faz parecer que existe uma
unidade que não existe, ela só pode ser uma ficção ideológica. Nesse caso, tudo se explica
uma vez que tenhamos descoberto a quem convém tal ficção. Os fatos expostos no parágrafo
anterior deixam claro que não há, para as várias direitas, nenhum interesse em atribuir a si
mesmas uma unidade que seus próprios posicionamentos impedem de reconhecer como
legítima. Portanto, a resposta é que a atribuição de uma unidade positiva a todas as direitas
convém à esquerda.

Os motivos dessa conveniência são de fácil compreensão. Antes de tudo, é uma postura
internamente coerente para um esquerdista: a igualdade econômica é, para ele, uma
motivação central da luta política. Com base nessa prioridade, faz sentido que ele considere
todos os que se opõem à sua meta como estando unidos de um mesmo lado, a saber, o lado
de lá, o outro time. Daí a ver nesse outro time uma unidade de interesses escusos e uma
defesa (aberta ou velada, consciente ou não) do inimigo supremo – o rico, o burguês, o
capitalista etc. – a distância a ser percorrida é bem pequena.

Além disso, e em grande parte por causa disso, quase todas as ideologias de esquerda
incluem alguma forma de teoria de luta de classes, para a qual é indispensável que os
interesses econômicos e os conflitos construídos a partir deles ocupem o primeiro plano. É por
isso que Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) dão início ao seu Manifesto
comunista declarando que “A história de todas as sociedades, até os nossos dias, tem sido a
história das lutas de classes”.11 Ao menos em seus momentos mais retóricos, quase todo
esquerdismo tende a reducionismos desse tipo. Por conseguinte, a negação da unidade
positiva das direitas é fatal à consistência interna de quase todas as ideologias de esquerda, e
psicologicamente constrangedora para as poucas restantes. Sem essa unidade, a primazia da
luta de classes fica bastante abalada, bem como a própria imagem que a esquerda faz do
mundo e de seu próprio papel nele.

Esse fato sugere que não há possibilidade de um pensamento de esquerda que não seja
inelutavelmente reducionista. Se há uma esquerda menos reducionista, ela o é à custa de sua
coerência interna. Contudo, é necessário esclarecer que o reducionismo não é de modo algum
uma exclusividade da esquerda. A tentação de ver o mundo como algo semelhante a um jogo
de futebol se apresenta, sob diferentes formas, a toda posição política concebível. Afinal, como
disse o filósofo Paul Ricoeur (1913-2005), “toda ideologia é simplificadora e esquemática”.12

Na política, como fora dela, o simplismo é inimigo da verdade. Reconhecer suas manifestações
em cada caso e se precaver contra elas é um dos desafios do cristão que busca compreender
a dimensão política da realidade. A polarização convencional entre direita e esquerda é uma
das manifestações mais amplamente difundidas do simplismo posto a serviço de uma agenda
política apóstata. A popularidade de tais simplificações é um indício da dificuldade envolvida na
tarefa de superá-las, e a popularidade desse esquema específico é um indício da onipresente
força cultural da esquerda.
2. Capitalismo e socialismo

Na seção anterior, utilizei os termos “capitalismo” e “socialismo”, que também são bastante
presentes nos debates políticos, geralmente designando os dois polos de uma oposição tão
fundamental quanto “direita” e “esquerda”. Dada a importância dessas palavras e seu enorme
potencial para gerar confusões e mistificações, convém discuti-las de modo mais aprofundado.

Costumo dizer que o capitalismo não existe. Naturalmente, não é uma negação a ser levada a
sério de modo absoluto. No entanto, ao enunciá-la eu pretendo dizer algo verdadeiro, em
contraposição a alguns usos equivocados do termo que se fazem com muita frequência. Nesta
seção levantarei quatro ressalvas a eles. Ao criticá-los, os usos equivocados correlatos do
termo “socialismo” também deverão ficar claros, embora a explicação nesses casos possa ser
menos desenvolvida.

2.1. O falso pressuposto de que vivemos em um mundo capitalista

Convém iniciar essa discussão pelo senso comum, como já foi feito na primeira seção. A
Wikipédia anglófona define o capitalismo nos seguintes termos:

O capitalismo é um sistema econômico em que o comércio, a indústria e os meios de produção


são controlados por proprietários privados com o objetivo de obter lucros em uma economia de
mercado. As características centrais do capitalismo incluem acumulação de capital, mercados
competitivos e trabalho assalariado. Em uma economia capitalista, tipicamente os preços
mediante os quais se oferecem ativos, mercadorias e serviços são determinados pelas partes
envolvidas em uma transação.13
Essa definição está bastante próxima do conceito mais difundido de capitalismo: indústria,
comércio e meios de produção são possuídos e controlados por indivíduos que pretendem
lucrar com isso, competem entre si, pagam seus empregados e acumulam dinheiro sem
restrições. E os preços das coisas são determinados pelas partes envolvidas nas transações –
em outras palavras, por vendedores e compradores. Está claramente implicado nessa
descrição um papel nulo ou bastante limitado para o Estado na esfera econômica, seja como
regulador ou produtor. Na verdade, o artigo acrescenta já no parágrafo seguinte: “O grau de
competição, os papéis da intervenção e da regulação e o escopo da propriedade pública
variam entre os diferentes modelos de capitalismo.” Entretanto, é fácil ver que, se o papel do
Estado for significativo, a definição dada no início já não vale mais. Dizendo de outro modo, a
participação do Estado na economia deve ser reduzida o suficiente para que sua omissão não
prejudique a pertinência da definição fornecida.

A questão posta por essas considerações é a seguinte: podemos dizer que capitalismo é
sinônimo de liberalismo econômico? Se a resposta for negativa, fica mais difícil dizer a que se
refere o termo, pois essa identificação parece natural tanto para os detratores do livre mercado
quanto para muitos de seus mais ardorosos defensores. Ela pode ser problematizada, sem
dúvida, mas ainda não encontrei um autointitulado anticapitalista que simpatize com o
liberalismo econômico, nem um crítico deste último que aceite a pecha de amigo do
capitalismo. Esse fato precisa ser levado em conta por qualquer análise que pretenda dissociar
as duas ideias. Embora o termo seja, em teoria, passível de outras definições, essa associação
é mais forte que tais artifícios. Parece, portanto, que devemos nos inclinar a uma resposta
afirmativa à pergunta do início do parágrafo.

Contudo, isso levanta outro problema. Ignora-se quase sempre que a palavra “capitalismo” foi
cunhada pela esquerda do século XIX para designar o sistema governado por seus inimigos. A
imensa popularização do termo, que se perpetuou sem nenhuma distorção significativa em
relação ao seu sentido original, é mais um grande indicativo da força cultural da esquerda no
Brasil e no Ocidente em geral. Assim como o próprio esquema convencional de classificação
das ideologias, discutido na seção anterior, a conceituação de capitalismo sempre serviu ao
modo esquerdista de ver o mundo. Ao mesmo tempo, quem fala em socialismo quase sempre
tem em mente uma situação ausente que, quando muito, se concretizará no futuro e da qual só
se podem ver agora exemplos imperfeitos em alguns países. A realidade concreta, ao
contrário, é vista como capitalista, já que, por definição, o capitalismo é o que existe nos
regimes modernos onde o socialismo não triunfou.

Essa maneira de pensar é bastante comum na esquerda, conquanto haja exceções históricas
notáveis. Apesar disso, ela não é compatível com a ideia do capitalismo como sinônimo de (ou
inevitavelmente associado a) liberdade econômica. Olhando em volta, é fácil ver que nos
países considerados capitalistas há graus muito discrepantes de liberdade econômica, efetiva
ou pretendida. E as variações não ocorrem apenas entre países, mas também entre gestões e
entre programas partidários. Não há motivo para surpresa nisso, pois existem visões políticas
de quase todos os tipos militando em cada país democrático, e as disputas de poder político
repercutem na orientação econômica de um país. O mesmo ocorre, aliás, em regimes
socialistas, dos quais o caso chinês é o mais óbvio.14 Em parte alguma há um exemplo de
perfeito liberalismo econômico, nem de perfeito controle estatal da economia.

Por conseguinte, a lógica da associação entre capitalismo e liberalismo econômico (e entre


socialismo e controle estatal ou “social” da economia) deveria levar à conclusão de que
estamos em um mundo de economia mista, no qual cada lado luta para fazer prevalecer seu
ideal, mas raramente com alto grau de sucesso. Em especial, o Brasil de hoje passaria a ser
visto como uma espécie de meio-termo entre capitalismo e socialismo.15 Essa concepção faz
justiça à realidade, mas cria problemas para quem está confortavelmente habituado a reclamar
de todos os males do país e do mundo como resultantes do capitalismo. Afinal, um dos
maiores álibis do socialismo nas disputas retóricas é sua inexistência concreta: ele não veio, ou
então foi implantado de modo tão distorcido que se tornou irreconhecível. Uma visão mais
realista do assunto evitará o falso pressuposto de que o status quo é capitalista. É o primeiro
erro a que leva o mau uso do termo, e que todos fariam bem em evitar.

2.2. A primazia imerecida da economia

O segundo erro é mais fundamental que o primeiro, e se relaciona a algo que foi mencionado
na seção 1: afirmei ali, limitando-me a registrar o fato, que nem todo opositor da esquerda o é
por amor ao capitalismo. Para avançar na discussão, é necessário entender esse fato.

A palavra “capitalismo” surgiu vários séculos mais tarde que o termo “capitalista”, e foi criada
para designar o sistema governado pelo burguês. Esse uso do termo pressupõe um modo
específico de enxergar e interpretar a sociedade, evidenciando que seu autor atribui ao aspecto
econômico uma importância fundamental. Há nisso uma lição a ser aprendida. Se o termo
“capitalismo” foi inventado pela esquerda para descrever aquilo a que ela se opõe, o “direitista”
que se proclama defensor do capitalismo está aceitando os termos do adversário e, de certa
forma, vestindo a carapuça. Sempre que o usuário da palavra não tiver consciência da carga
semântica embutida nela, as distorções intrínsecas às cosmovisões esquerdistas poderão se
manifestar em seu próprio discurso, a despeito de sua intenção de se opor a elas.

Uma das convicções centrais que dão sentido ao termo “capitalismo” é a do primado do
aspecto econômico. Essa absolutização indevida da economia é um dos traços mais
amplamente difundidos dos posicionamentos políticos de esquerda, e se reflete com frequência
em suas prioridades práticas. Diante disso, é natural que a defesa entusiasmada do
capitalismo (seja lá o que for que se queira dizer com isso) se manifeste entre aqueles que não
são antiesquerdistas o bastante, isto é, os que compartilham em algum grau dessa mesma
absolutização. Os opositores mais radicais e autoconscientes da esquerda se negarão com
muita naturalidade a se enquadrar nos critérios que ela usa para definir a luta política.

Por isso, os liberais tendem a ser defensores mais empolgados do capitalismo que os
conservadores: em comparação com aqueles, estes últimos se preocupam mais com
problemas morais e culturais, que veem (com razão, creio eu) como mais básicos que os
puramente econômicos. Para os liberais, como para os esquerdistas, a economia tende a
ocupar o primeiro plano, e uma consequência disso é que tanto uns quanto outros deixam de
ver as amplas afinidades que têm entre si fora do âmbito estritamente econômico. Elas
começam em um berço comum na Revolução Francesa e na adesão ao secularismo e
terminam com frequência em itens bastante específicos como a legalização do aborto e das
drogas ou as boas-vindas a um eventual governo mundial.

Sendo assim, minha segunda objeção é que o conceito de capitalismo, sobretudo quando visto
em oposição fundamental ao socialismo, coloca o aspecto econômico em primeiro plano e
tende a varrer para debaixo do tapete todos os outros elementos envolvidos na disputa política,
muitos dos quais revelariam afinidades impressionantes entre supostos inimigos mortais.

2.3. A exacerbação da luta de classes

Em parte pelo que acabo de explicar, o uso da palavra “capitalismo” para designar o mundo
ocidental de hoje acarreta uma unidimensionalização perniciosa da realidade. Essa tendência
serve a um propósito retórico e ideológico específico que não ajuda a entender melhor o
mundo. Em especial, há usos do termo “capitalismo” que só fazem sentido à luz da ideia da
luta de classes.

Devo reconhecer que essa conexão não é onipresente, embora seja comum o bastante para
merecer menção neste ensaio. Como afirmei em 2.2, muitos que defendem o liberalismo
econômico não hesitam em chamá-lo de capitalismo, e um dos meios pelos quais fazem essa
defesa passa justamente pela negação de um conflito fundamental entre os interesses dos
patrões e os dos empregados – ou seja, a negação da luta de classes.16 Além disso, o
significado preciso e as implicações da luta de classes nem sempre foram consenso na própria
esquerda, havendo casos extremos de pensadores de forte influência marxista, como o francês
Jean Jaurès (1859-1914),17 para os quais esse conceito nunca teve grande importância
prática. Uma das grandes divergências internas do marxismo nas primeiras décadas do século
XX girou em torno disso, com os assim chamados “revisionistas” sendo acusados pelos
“ortodoxos” de negar, na teoria ou na prática, a importância da luta de classes.

Os atenuantes que acabo de citar provam duas coisas. A primeira é que, embora a palavra
“capitalismo” seja usada quase sempre para expressar uma visão de mundo em que a luta de
classes tem um papel proeminente, não é impossível usá-la com outras acepções, como fazem
os liberais. A segunda é que as tensões históricas do marxismo em torno da questão só
mostram que nem as ideologias mais polarizadoras podem deixar de fazer concessões à
realidade. A esquerda nunca conseguiu definir de modo claro, sem contradições nem
reducionismos, a relação entre os valores de classe e os valores humanos universais. De
qualquer modo, as versões mais polarizadoras do marxismo e seus descendentes são agora
mais fortes do que naquele tempo, e hoje há muitas pessoas que não conseguem pensar fora
do velho mantra da luta de classes.

Não pretendo negar que sejam comuns os conflitos de interesse entre patrões e empregados.
Mas nego que o motor da história consista nisso. Afinal, também podem existir (e existem)
conflitos de interesse entre quaisquer dois grupos de seres humanos postos em relação mútua
– pais e filhos, homens e mulheres, governantes e governados, comerciantes e clientes,
mestres e alunos, gerentes e subalternos, sindicalistas e funcionários não-sindicalizados, etc.
Nada prova que alguma dessas categorias de conflitos seja mais fundamental que as demais,
e tampouco que os conflitos sejam mais fundamentais que outras formas de relacionamento
social.18 A absolutização indevida de uma categoria específica traz duas consequências
danosas à apreensão da realidade social: a perda de vista dos interesses em comum entre as
classes e a falsa oposição entre os interesses dos revolucionários e os da elite econômica.

2.3.1. A perda de vista dos interesses em comum entre as classes

O discurso da luta de classes ignora todos os interesses em comum que possam existir entre
ricos e pobres. Tal comunidade começa pelo fato de que todos os envolvidos em uma
empresa, do patrão ao faxineiro, têm interesse no sucesso dela, e prossegue em muitas outras
áreas mais ou menos alheias às relações econômicas, nas quais todos têm interesses em
comum na qualidade de cidadãos, de pais de família etc.

Uma das reclamações mais recorrentes ao longo da história dos movimentos socialistas, em
especial os de orientação marxista, é que os proletários cujos interesses eles julgam
representar não têm “consciência de classe”, ou seja, não sabem o que é melhor para si
mesmos e se apegam à ilusão de que têm interesses em comum com seus patrões. Decorre
daí a importância da educação (ou doutrinação) no marxismo, que nisso mantém uma tradição
herdada do iluminismo. Porém, não se deve excluir sumariamente a possibilidade de os
“proletários” terem bons motivos para pensar assim, embora isso leve à conjectura (muito mais
plausível) de que o marxismo é que vive de colocar os homens uns contra os outros. Uma vez
assumido que o direito de decidir o que é melhor para o povo cabe a um punhado de indivíduos
ideologicamente iluminados e reunidos sob um determinado partido, não há meios consistentes
de evitar a justificação de qualquer tipo de barbaridade.19

2.3.2. A falsa oposição entre os interesses dos revolucionários e os da elite econômica

A segunda consequência é que, uma vez assumido o primado da luta de classes, é fácil inferir
daí uma suposta oposição entre os interesses da classe econômica mais privilegiada e os de
qualquer um que reivindique para si a posição de representante dos interesses do povo. A
ligação das duas ideias é, aliás, parte essencial da invariavelmente autolisonjeira cosmovisão
do militante de esquerda. Trata-se, porém, de uma falsa associação. Mais de cem anos atrás, o
escritor inglês G. K. Chesterton (1874-1936) expressou isso muito bem em um de seus
romances, durante uma conversa sobre um levante anarquista:

Você fala de multidões e classes operárias como se elas fossem o nó da questão. Está
contaminado por uma ideia eterna e idiota: se a anarquia vier, virá dos pobres. Por quê? Os
pobres foram rebeldes, mas anarquistas, nunca! Mais do que os outros, têm interesses em que
haja um governo decente. O pobre realmente se enraíza em sua terra. O rico, não; pode
embarcar num iate para a Nova Guiné. Algumas vezes os pobres se opuseram aos maus
governos; os ricos sempre se opuseram a qualquer governo. Os aristocratas foram sempre
anarquistas.20

O trecho acima é manifestamente literário e talvez um pouco chocante; não é à toa que seu
autor é considerado o mestre do paradoxo. Mas seu cerne não é mera pantomima literária: há
aí mais verdade do que pode parecer à primeira vista. O economista austríaco Rudolf Hilferding
(1877-1941), um dos pensadores mais interessantes da história do marxismo, percebeu muito
bem o quanto os interesses do “capital financeiro” são contrários ao liberalismo econômico21 e
favoráveis a um Estado forte e monopolizador. Em consequência disso, Hilferding também viu
que o triunfo dessa modalidade de “capitalismo” tornaria mais fácil a transição para o
socialismo. Ele só não extraiu daí a conclusão de que é perfeitamente legítima e lógica a
aliança (ainda que parcial e provisória) entre os grandes banqueiros e empresários e os
socialistas, pois isso seria fatal à coerência interna de sua ideologia. Mas não há boas razões
para rejeitar essa hipótese a priori.

Quando começamos a prestar atenção nessa possibilidade, alguns fatos começam a fazer
sentido. Por exemplo, em 1981 foi realizada a Third International Conference of Institutions for
Christian Higher Education,22 evento que tratou do marxismo de uma perspectiva cristã e
acadêmica, e à qual compareceram palestrantes com graus bastante variados de afinidade por
ele. Mais tarde, foi publicado um livro com as participações do evento. 23 O autor mais simpático
ao socialismo é John Perkins, partidário da teologia da libertação e envolvido com “teologia
negra”. Seu texto, que é intelectualmente o mais fraco do livro, possui sete páginas, 24 das
quais um total de duas linhas é dedicado a críticas ao comunismo e quase todo o restante
ataca o “capitalismo”. Mas o importante para o presente contexto é que Perkins era também o
único participante do evento que contava com o apoio oficial da Fundação Ford. 25

Esse é apenas um exemplo dentre muitos que apontam para o interesse dos “grandes
capitalistas” em apoiar e financiar aqueles que, segundo sua própria teoria, são seus maiores
inimigos. E isso ajuda a entender outro fato pertinente e pouco conhecido: quem acessar sites
e blogs mantidos por conservadores americanos descobrirá que eles não se consideram
defensores dos interesses dos ricos, e que seus maiores inimigos não são os comunistas, e
muito menos os pobres, mas sim indivíduos e entidades bilionários que gravitam em torno de
governos e organismos internacionais. Esses inimigos costumam apoiar não só o
intervencionismo estatal na economia, mas também vários programas muito caros à nova
esquerda, como os movimentos gays, a legalização do aborto e das drogas, as ações
afirmativas, etc.

O uso da palavra “capitalismo” sem a consciência da frequente comunhão de interesses entre


os grandes ricos e a militância socialista traz consigo o sumiço de todo um lado da realidade
política. Uma das vítimas locais de tais compreensões é Demétrio Magnoli, um esquerdista
moderado e bastante sensato em vários de seus posicionamentos, mas que viu na
implementação das cotas raciais pelo governo Lula a prova de uma “crise do pensamento de
esquerda”26 no Brasil, com base em parte no argumento de que as cotas são apoiadas pela
Fundação Ford.27 E tudo isso porque lhe parece inverossímil que os grandes ricos apoiem
algum programa de esquerda.

2.4. A confusão de categorias econômicas, políticas e culturais

A quarta objeção que faço ao uso da palavra “capitalismo” é que ela leva com facilidade à
confusão quanto à relação entre economia, política e cultura. O termo é usado algumas vezes
para descrever tão somente uma determinada configuração econômica, ou os traços
essenciais a um conjunto delas. Em outras situações, porém, ele pode adquirir um sentido bem
mais amplo, designando instituições políticas e sociais, bem como valores morais e culturais
vigentes em uma sociedade cuja economia é considerada capitalista. É assim que muitos
pretendem, por exemplo, que palavras como “consumismo”, “individualismo” ou “democracia”
designem qualidades intrínsecas ao “capitalismo”.

Tais associações não são sempre problemáticas, mas passam a sê-lo quando envolvem
reducionismo. A ideia marxiana da superestrutura, por exemplo, destina-se a fazer crer que as
condições econômicas de uma sociedade determinam, de algum modo, a configuração de todo
o resto. Há sempre uma tendência reducionista, com graus diversos de concretização, no
discurso e na reflexão teórica de escolas, partidos e doutrinas comprometidos com a
absolutização da economia. Esse é um vício compartilhado pelos setores majoritários do
socialismo e do liberalismo político. O pressuposto por trás disso é, em última análise,
materialista. Quem não se dispõe a enveredar por esse caminho faz bem em questionar a
validade desse pressuposto.

Contudo, o reducionismo, já abordado na seção 2.2, não é o único problema. Afinal, é possível
combater conscientemente o economicismo e ainda endossar os erros de categoria ligados ao
conceito de “capitalismo”, seja para combatê-lo, seja para defendê-lo. D. A. Carson
observa28 que muitas vezes falta sutileza nas discussões sobre democracia, ignorando-se as
mutações do conceito e da realidade ao longo da história e suas variantes nos diversos países.
Um cuidado semelhante deveria existir com relação ao conceito de “capitalismo”. Se essa
recomendação fosse seguida, as discussões em torno do tema seriam bem menos retóricas.
Em especial, muitas das falsas associações entre categorias políticas, culturais e econômicas
seriam prontamente vistas como falaciosas, e seria também mais fácil fazer justiça aos
momentos de verdade restantes nas associações mais corriqueiras.

Não há espaço aqui para discorrer de modo amplo sobre as razões pelas quais convém evitar
essa confusão de categorias, mas exporei a que julgo a mais importante. É natural que
ideologias que supervalorizam a economia vejam tudo o mais como decorrente dela. Em
consequência disso, seus adeptos não verão sua própria missão como uma simples reforma
econômica, e sim como uma transformação integral da realidade humana. Além disso, verão
tudo aquilo que reprovam na sociedade atual como efeito do sistema econômico que
combatem. Em especial, o próprio fato de terem menos poder do que gostariam será
interpretado como uma consequência das injustiças do presente sistema. Daí à rejeição das
limitações que esse sistema impõe ao seu poder a distância é muito pequena. Combinado com
uma ênfase coletivista, esse fator leva com demasiada facilidade ao radicalismo político e a
diversas modalidades de violência.

Dizendo de outro modo, a busca de uma unidade fundada no aspecto econômico, uma vez
refletida no vocabulário, leva a uma confusão conceitual entre categorias econômicas e
políticas que, por sua vez, abre as portas para a legitimação do combate à democracia e ao
estado de direito.29 Afinal, se o esquerdista radical defende a instauração de uma “ditadura do
proletariado”, só pode ser porque vê a democracia representativa e o estado de direito como
facetas um tanto hipócritas do “sistema capitalista”, os quais ajudam a perpetuar a opressão
econômica e, portanto, não merecem sua lealdade.

Brota daí a ambiguidade muitas vezes presente no discurso político de esquerda, mesmo nos
casos menos radicais: o mesmo termo “capitalismo” é usado para designar, ora uma
configuração econômica tida como liberal (em geral, aliás, de modo equivocado), ora as
instituições políticas, sociais e culturais vigentes. Sem dúvida há casos em que esse uso das
palavras revela simples confusão mental de indivíduos honestos. Contudo, há também casos
em que a confusão é promovida de modo intencional, e serve ao propósito de ocultar projetos
de poder que não receberiam o mesmo apoio se fossem declarados sem disfarces.

A aceitação irrefletida do uso corrente do termo “capitalismo” para descrever nossa sociedade
nos priva da capacidade de resistir de modo firme a tais artifícios, e assim, inadvertidamente,
nos leva a colaborar com o triunfo cultural e político de ideologias com as quais muitos de nós
de fato não desejamos compactuar. Esse erro basilar deve ser resistido se não quisermos
correr o risco de, no intento de denunciar abusos do poder financeiro, ajudar alguns a corroer
as bases da própria democracia. O termo “capitalismo” presta-se com demasiada facilidade ao
papel de alimentar bodes expiatórios.

3. Esclarecimentos e considerações finais

Se o espaço permitisse, haveria mais a ser dito sobre outros termos que padecem de maus
usos semelhantes, como democracia, ideologia, progresso, reação, revolução, justiça social,
conservadorismo, liberalismo, individualismo, coletivismo, totalitarismo, laicismo etc. Contudo,
não devo encerrar esta exposição sem fazer um esclarecimento ao leitor sobre o que pretendo
e o que não pretendo promover com a argumentação das seções precedentes. Um bom atalho
para isso consiste em refletir de modo breve sobre as seguintes palavras do filósofo espanhol
José Ortega y Gasset (1883-1955), dado o forte paralelo entre as minhas intenções e as dele:

A obra intelectual aspira, frequentemente em vão, a esclarecer um pouco as coisas, enquanto


a do político, ao contrário, geralmente consiste em confundi-las mais do que já estavam. Ser da
esquerda, assim como ser da direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher
para ser um imbecil: na verdade, ambas são uma forma de hemiplegia moral. Além disso, a
existência desses qualificativos contribui muito para falsificar mais ainda a “realidade” do
presente, já falsa por si só, porque as experiências políticas a que cada uma corresponde
giraram cento e oitenta graus, como demonstra o fato de que hoje as direitas prometem
revoluções e as esquerdas propõem tiranias.30
Existem duas maneiras de entender essas declarações. Como frequentemente acontece, a
mais fácil é a errada: equivocar-se-á quem tomá-las como um incentivo à insurreição contra
todas as definições, todos os posicionamentos e todos os compromissos. No contexto do
presente ensaio, convém combater os rótulos de modo a que ninguém se deixe enganar por
eles. Mas, ao fazer isso, não pretendo dar munição aos que se comprazem em fugir das
definições firmes. Todos conhecem os velhos chavões comuns no meio evangélico, como “não
sou de direita nem de esquerda, e sim de Cristo”. Há certo valor em tal postura, mas é fácil ver
que, por trás de uma máscara de equilíbrio, caráter conciliador e superioridade intelectual ou
espiritual, ela pode ocultar (e muitas vezes oculta) um simples desejo covarde de não
desagradar ninguém ou, pelo menos, um desinteresse oriundo da pura ignorância.

Diante disso, é necessário enfatizar duas verdades. A primeira é que posturas evasivas desse
tipo, ao contrário do que proclamam seus possuidores, não eliminam os dualismos. Apenas
substituem os existentes por outros: entre equilibrados e desequilibrados, entre os tolos que
aceitam rótulos e os sábios que os rejeitam. E, como em outros casos analisados neste ensaio,
os novos dualismos também servem ao propósito de elogiar implicitamente seus adeptos. A
segunda é que nada garante a utilidade de tais posturas na compreensão da realidade política.
Quem se põe acima de todas as definições e correntes políticas pode muito bem continuar não
entendendo nada de algumas delas, ou mesmo de todas. Assim, não há razões sérias para
promover um agnosticismo em matéria de conceituação política, e tampouco uma
imparcialidade absoluta em termos de posicionamento político. É nessa perspectiva que devem
ser entendidos tanto a citação de Ortega transcrita acima quanto o espírito deste ensaio.

Há um sentido em que a postura do cristão precisa, de fato, fugir às categorias impostas por
correntes políticas alheias às verdades do cristianismo. Afinal, os critérios e prioridades dessas
correntes estão sempre, de alguma forma, apoiados em uma cosmovisão fundamentalmente
equivocada. Da mesma forma, se recusamos um posicionamento ao lado dos sunitas ou dos
xiitas, ninguém pode reclamar que estamos em cima do muro. A distinção entre sunitas e xiitas
é uma divisão interna do islamismo, e não faz sentido para quem não é muçulmano. Os
cristãos podem ter razões para considerar um desses grupos melhor que o outro sob algum
critério, mas jamais poderão se identificar com ele em um sentido absoluto sem que deixem de
ter uma cosmovisão autenticamente cristã.

Esse princípio também se aplica no terreno da política, tanto na luta concreta quanto na
epistemologia. É importante que saibamos evitar a tirania das palavras, não necessariamente
deixando de usá-las,31 mas usando-as de modo que expressem a verdade de modo consciente
e intencional. Devemos lembrar que o problema último não está nas palavras, e sim no coração
do homem, que é mais enganoso que todas as coisas (Jeremias 17.9). Por isso, não é
saudável supor que nos livraremos do risco de errar apenas porque evitamos certos termos, e
tampouco que a invenção de termos novos é suficiente para nos aproximar da verdade. Basta
que saibamos que os termos usados colocam em evidência certos fatos e relações ao mesmo
tempo em que ocultam certos outros. Usá-los sem ter consciência do que se faz é um meio
seguro de ficar aquém da verdade. Ao cair nessa armadilha verbal, tornamo-nos portadores de
uma ideologia falsa por excesso de simplificação.

As palavras são úteis quando as dominamos, e deixam de sê-lo quando elas nos dominam –
ou, o que é ainda pior, quando alguém nos domina através delas. De um modo ou de outro,
isso é o que acontece quando (e na medida em que) não submetemos nossa compreensão da
realidade ao senhorio de Cristo. O reconhecimento de Deus como Criador e Soberano da
dimensão política da realidade e de suas leis é o único caminho seguro para nos levar à
verdade sobre o assunto, pois qualquer outra coisa será idolatria. A mudança em nosso uso
das palavras só pode ser proveitosa se ocorrer como consequência desse compromisso
fundamental.

________________________
1
A obra foi lançada no Brasil pela editora Contraponto (Rio de Janeiro, 2010).
2Como se pode ver, há várias semelhanças entre Klemperer e seu contemporâneo inglês

George Orwell (1903-1950), escritor bem mais famoso e também interessado na relação entre
linguagem e totalitarismo.
3
KLEMPERER, Victor, Os diários de Victor Klemperer: testemunho clandestino de um judeu na
Alemanha nazista, 1933-1945 (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), p. 442.
4Esse é o motivo pelo qual dedico algum espaço a esse esquema no presente ensaio, embora

haja também acadêmicos que o endossam; cf., por exemplo, Norberto BOBBIO, Direita e
esquerda: razões e significados de uma distinção política (São Paulo: Unesp, 1995), p. 119.
Por isso, passo a me referir a ele usando a expressão “classificação convencional”, ou outras
equivalentes.
5
Disponível em http://www.politicalcompass.org/. Acesso em 2 de março de 2014.
6
Um esquema bidimensional semelhante, embora não idêntico, é apresentado por Franklin
FERREIRA no artigo “Totalitarismo, o culto do Estado e a liberdade do evangelho” (Teologia
Brasileira, n. 29, 2014). Dsponível em
http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=392. Acesso em 8 de julho de
2014.
7A pertinência dessa semelhança também é ressaltada e defendida por FERREIRA, op. cit.

8Cf. o estudo de Marlene LARUELLE, Aleksandr Dugin: A Russian Version of the European

Radical Right?, disponível em http://www.wilsoncenter.org/sites/default/files/OP294.pdf. Acesso


em 4 de abril de 2014.
9Cf. o pungente testemunho pessoal prestado por Gustavo Corção (1896-1978) em seu livro A

descoberta do outro (São Paulo: Agir, 1944) sobre os círculos revolucionários que frequentou
na década de 30, antes de sua conversão ao catolicismo: “Fiquei então convencido, nesse
tempo, de que o mundo estava torto, intencionalmente torto, por malícia humana, para
benefício exclusivo da detestada classe burguesa. [...] Encontrei amigos velhos e conheci
novos. [...] Formamos logo um grupo conspirador onde havia um pouco de tudo o que fosse
revolucionário: leninistas, trotskistas e fascistas. [...] De excitação em excitação, e certos de
que todo o mal estava na direção burguesa baseada ou na mais-valia ou na mentira vital, a
maior parte do grupo não fazia questão da doutrina. A mim, devo confessar que o materialismo
histórico nunca me pareceu suficientemente claro. Dessa displicência surgiam discussões
porque os outros não podiam suportar essa espécie de agnosticismo revolucionário, e três ou
quatro rostos ansiosos de catequese viravam-se para mim. E lá vinha o Manifesto, a sociedade
sem classes e tudo mais. Mas pouco se me dava o materialismo histórico: o que eu queria era
o fígado do burguês. Nesse ponto havia uma instantânea concordância. E assim ficávamos, até
altas horas, espancando esse judas ausente, com entremeios de anedotas inéditas.” O capítulo
“O viúvo viu a ave”, que contém esses trechos, está disponível em
http://permanencia.org.br/drupal/node/86. Acesso em 8 de julho de 2014.
10Tal conclusão brota naturalmente, por exemplo, da leitura de The Founders, o primeiro
volume da trilogia Main Currents of Marxism, de Leszek KOLAKOWSKI (Oxford: Clarendon
Press, 1978), focado sobretudo no século XIX; cf. especialmente o capítulo X, “Socialist ideas
in the first half of the nineteenth century as compared to Marxian socialism” (p. 150-191).
11MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Cátedra,

1987, p. 27.
12Citado por Jonas MADUREIRA em Afinal, o que é “totalitarismo”? Disponível em

http://jonasmadureira.com/2009/12/07/afinal-o-que-e-totalitarismo/. Acesso em 30 de maio de


2014.
13Capitalism, disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Capitalism. Acesso em 7 de junho de

2014. Tradução minha.


14Sobre o funcionamento do Estado chinês e alguns efeitos de suas disputas internas de poder,

ver CHAO, Jonathan, “Function and the role of the state: the place of religion and education (a
case study: China)”, in VANDER STELT (org.), John C., The Challenge of Marxist and Neo-
Marxist Ideologies for Christian Scholarship (Sioux Center: Dordt College Press, 1982, p. 187-
209). Gary NORTH, em Marx’s Religion of Revolution: Regeneration through Chaos (Tyler:
Institute for Christian Economics, 1989, p. 200-231), fornece um interessante exemplo adicional
ao tratar do histórico das oscilações no grau de liberdade econômica da União Soviética.
15Convém acrescentar, nesse contexto, que o Brasil não tem nenhuma tradição forte de

liberalismo econômico, e esse é apenas um dos motivos pelos quais é tremendamente


impróprio associar a assim chamada “direita” brasileira às vertentes clássicas do
conservadorismo ou do liberalismo político. Em nosso país, via de regra, a visão da “direita”
sobre economia não é muito menos estatista que a da esquerda.
16Um exemplo disso pode ser encontrado em vários momentos da obra pública de Rodrigo

Constantino, um dos mais famosos economistas liberais da imprensa brasileira atual.


17Um bom resumo de seu pensamento e sua relação com outras correntes marxistas pode ser

encontrado no volume 2 (The Golden Age) de KOLAKOWSKI, op. cit., p. 447-467.


18
O filósofo neocalvinista holandês Herman Dooyeweerd (1894-1977) expressou a mesma ideia
ao criticar o conceito de classes sociais vigente no socialismo do século XIX: para ele, as
relações sociais “podem exibir um caráter de mútua neutralidade, de confronto, livre
cooperação, antagonismo, competição ou luta” Cf. A New Critique of Theoretical Thought, vol.
3 (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1957), p. 177, citado em DOOYEWEERD,
Herman, Roots of Western Culture: Pagan, Secular, and Christian Options (Toronto: Wedge,
1979), p. 201-202.
19A doutrina leninista da “vanguarda do proletariado” é um exemplo histórico bastante típico,

tanto no discurso quanto nas consequências mais concretas, do que esse elitismo igualitário
pode fazer. Vladimir Lênin (1870-1924) também foi o pensador marxista mais explícito em sua
denúncia do caráter burguês da “ideologia” dos operários não submetidos ao Partido.
20CHESTERTON, G. K., O homem que foi Quinta-feira: um pesadelo (São Paulo: Círculo do
Livro, 1976), p. 132.
21Por essa razão, entre outras, o uso do termo “neoliberalismo” para descrever a economia

globalizada promovida por esses ricos é outro dos grandes equívocos que convém evitar.
22Ocorrida em Sioux Center, Iowa, de 13 a 20 de agosto de 1981.

23VANDER STELT, John C. (org.), op. cit.

24Ibid., p. 104-110.

25
Ibid., p. 264.
26MAGNOLI, Demétrio, O grande jogo: política, cultura e ideias em tempo de barbárie. Rio de

Janeiro: Ediouro, 2006, p. 247.


27“A política de cotas raciais surgiu nos Estados Unidos como reação conservadora aos

movimentos pelos direitos civis e propagou-se, entre ativistas negros, sob o patrocínio de
instituições do establishment como a Fundação Ford” (ibid., p. 244).
28Cf. a discussão em CARSON, D. A., Cristo e cultura: uma releitura (São Paulo: Cultura Cristã,

2012), p. 111-116.
29
É importante deixar claro que não estou dizendo que todos os absolutizadores da economia
fazem isso, e sim que, uma vez assumidos seus pressupostos, não há meios coerentes de
manter as portas bem fechadas contra essa possibilidade.
30ORTEGA Y GASSET, José, A rebelião das massas (São Paulo: Martins Fontes, 2007), p. 25-

26. Essas palavras foram escritas originalmente em 1937.


31Em especial, as palavras discutidas aqui podem ser (e têm sido) usadas com sentidos

descritivos e científicos bem definidos, conquanto não isentos de divergências interpretativas.


Não é meu objetivo impugnar os debates sérios nessa área. O propósito deste ensaio é
denunciar usos que ocultam a verdade em vez de revelá-la, e isso acontecerá com tanto maior
frequência quanto mais retóricos e ideológicos forem. Um esforço autenticamente científico
envolvendo esses termos não ignorará as questões levantadas aqui.

http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadetpre.asp?codigo=397

Acesso em 31/07/2014

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