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Aos que interessar possa saibam todos, de antemão, que não nos movem as intenções
acima. Nossa loucura é outra.
E tampouco poderia ser a mesma, diante da pobreza de nosso bisavô, personagem inicial e
que divide com Jeronymo o protagonismo destas linhas. Poucas. Foi o que descobrimos e
ouvimos. Só o fazemos para que o fio da meada para futura pesquisa se mantenha
disponível. Melhor não fizemos porque não nos foi possível ou não soubemos. E antes que
as folhas caiam todas, arrancadas de sua frágil vinculação à árvore da vida pelo sopro do
tempo, que se registre sua foto esmaecida. Pelo outono de quase duas gerações.
Tudo começou, supõe-se, em Bom Jardim, na serrania fluminense. Jeronymo, nosso avô,
assim o relatou aos nossos pais, ainda que nunca tenha obtido qualquer comprovação.
Escreveu, da distante Montenegro, para autoridades de Bom Jardim na primeira metade do
século XX mas não obteve resposta positiva.
Filho de Francisco Teixeira da Silva e Maria Rosa da Silva, José nasceu em 10.01.1849 .
Seriam seus pais imigrantes portugueses? Não foi possível descobrir. Empreendemos uma
busca - não exaustiva, a ser aprofundada,- através de microfilmes do Arquivo Histórico
Nacional, supondo que se fossem imigrantes houvessem entrado no país pelo Rio de
Janeiro. O maior problema é que não sabemos sequer o período a ser pesquisado, razão
pela qual a tentativa requer o tempo de um aposentado. De qualquer forma, recebemos do
Arquivo Nacional (Processo número 55/98-19/01) carta emitida em 29.04.1998 com a
seguinte resposta:
“ Foram examinados os índices nominais de naturalização do séc.XIX e as
Publicações Históricas do Arquivo Nacional números 46, 49, 50 e 54 que
tratam do registro de estrangeiro de 1808-1842 e nada foi encontrado sobre
Francisco Teixeira da Silva e Maria da Rosa da Silva”
Recorri ao Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Dom Eugênio Sales, que gentilmente nos
convidou a pesquisar os arquivos pessoalmente.
Fosse a eventual chegada em São Paulo, tudo seria mais fácil porquanto o bem organizado
Museu da Imigração emite certidões de desembarque em período relativamente curto.
José perdeu a mãe ainda menino. O pai, algum tempo depois, tornou a casar. Seu
relacionamento com a madrasta teria sido indigesto, o que o empurrou para a vida com as
próprias pernas. Passou a trabalhar como auxiliar de um mascate, a percorrer a paisagem
de serra – que seus olhos adolescentes azuis admiraram,- em lombo de burro.
Sabe-se lá quais eram seus dotes comerciais. Supostamente modestos porque em sua vida
posterior não há relatos na arte dos negócios.
Um incidente o teria afastado desta lida. Reza a lenda que uma das mulas do comerciante
desferiu um coice fatal numa criança. Muito desgostoso – ou quiçá sentindo-se mesmo
culpado pelo episódio,- desligou-se da empreitada.
Ato contínuo ou não – talvez jamais venhamos a saber,- alista-se no Exército e reaparece
na Guerra do Paraguai, transcorrida entre 1864 e 1870, conforme o texto abaixo:
“ Eis a baixa do cabo José Teixeira da Silva, cuja heroicidade bem merece
referência especial:
Barão de São Borja, Marechal de Campo
Manoel Deodoro da Fonseca, Dignitário da Ordem Imperial do Cruzeiro,
Official da Rosa, condecorado com a medalha de prata da Campanha do
Estado Oriental do Uruguay de 1865, com a do Merito Militar e Coronel
Commandante do Primeiro Regimento d’Artilharia á Cavallo por sua
Magestade o Imperador.
Attesto que a praça abaixo declarada, que teve baixa do Serviço do Exercito
por portaria de cinco de Março de mil e oitocentos e setenta e dous, publicada
na ordem do dia da Repartição do Ajudante General do Exercito sob numero
oitocentos e quarenta e um de trese do dito mez e anno, tem no archivo d
´este Regimento os assentamentos do theor seguinte:
Segunda Bateria
Cabo d´esquadra – Numero dose – José Teixeira da Silva. Foi incluido no
estado effectivo do segundo corpo Provisorio d´Artilharia a Cavallo a dous de
Dezembro de mil e oitocentos e sessenta e sete, em virtude de ordem verbal
do Commando em chefe do Exercito de igual data, e ficou pertencendo a
segunda bateria como artilheiro. Marchou de Curupaity para Umaytá a vinte e
cinco: seguio em diligencia para o Chaco a trinta tudo de Julho de mil e
oitocentos e sessenta e oito alli tomou parte em todos os combates dados ao
inimigo até cinco de Agosto, data em que recolheu-se ao corpo. Promovido a
Anspeçada a primeiro de Setembro, passou o rio Tibicuary a quatro do
mesmo mez e destacou para o Chaco a dous de Outubro, donde embarcou
para Santo Antonio a cinco de Dezembro: tomou parte co combate de seis em
Itororó, batalha de onze em Avahy, combates de vinte e um a vinte e sete em
Lomas Valentinase a trinta tudo do dito mez de Dezembro, e predito anno de
mil oitocentos e sessenta e oito, assistiu a capitulação da guarnição de
Angustura.
Para que se tenha melhor idéia do teatro de guerra do qual José tomou parte transcrevemos
outro trecho histórico:
“ A segunda e principal fase (que incluiu diversos períodos em que quase não
havia luta de fato) começou quando os aliados finalmente invadiram o
Paraguai, em abril de 1866, e estabeleceram seu quartel-general em Tuyuti,
logo acima da confluência dos rios Paraná e Paraguai. Nesse local, em 24 de
maio, eles rechaçaram uma violenta investida paraguaia e ganharam a
primeira grande batalha terrestre da guerra. Contudo, passaram-se mais de
três meses até que os exércitos aliados começassem a avançar, subindo o rio
Paraguai. Quase imediatamente, em Curupaiti, em 22 de setembro apenas
dez dias depois de um encontro entre Mitre e López, em Yatayti-Corá, no qual
López ofereceu vantagens que incluíam concessões territoriais para que a
guerra pudesse chegar ao fim, contanto que ele próprio fosse poupado e que
o Paraguai não fosse totalmente desmembrado e ocupado de forma
permanente, proposta definitivamente rejeitada –, os aliados sofreram a sua
pior derrota na guerra. Eles não renovaram seus esforços de avanço até julho
de 1867, quando foi iniciado um movimento para cercar a grande fortaleza
fluvial de Humaitá (a Sebastopol do Paraguai), que bloqueou o acesso ao rio
Paraguai e à capital paraguaia, Assunção. Mesmo assim, foi preciso mais de
um ano (agosto de 1868) até que Humaitá fosse finalmente ocupada, e mais
uns cinco meses (janeiro de 1869) até que, após uma derrota decisiva e a
destruição virtual do Exército paraguaio na batalha de Lomas Valentinas (em
27 de dezembro), as tropas aliadas (na maior parte brasileiras), que, desde
janeiro de 1868, estavam sob a liderança do comandante-em-chefe brasileiro,
o Marquês de Caxias, finalmente invadiram Assunção e colocaram um ponto
final na guerra – ou assim pensavam eles, na época. (Extraído de A Guerra do
Paraguai: 130 anos depois/organização de Maria Eduarda de Castro
Magalhães Marques – Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995) “
Concluído o holocausto guarani – calma!, à época não havia tal consciência e nosso bisavô
não passara de cabo e portanto apenas serviu aos propósitos da Tríplice Aliança, dos
ingleses e de gente como o Conde d´Eu, sem suspeitar de seus reais propósitos,- José,
como vimos, retorna ao Brasil pelo Rio Grande do Sul.
Em Porto Alegre, após duas prisões disciplinares, deu baixa do Exército, assinada pelo
então Tenente-Coronel Deodoro da Fonseca. Certo dia, conversando com tio Ilus, demos
boas risadas conjeturando sobre o que fizera José. Quanto rigor para com um militar que se
expusera tanto.
Se a pesquisa no Arquivo Nacional quanto aos seus pais não trouxe resultado, no que diz
respeito a José Teixeira da Silva foi mais produtiva. No mesmo processo anteriormente
aludido foram localizados os seguintes documentos:
Ficamos a imaginar seu desencanto após o período de guerra em que arrostou a morte para
depois ser punido pela disciplina castrense. Certamente chegara ao fim este ciclo de sua
vida. Era hora de mudar.
Como foi parar em Montenegro? Parece uma veleidade que se possa tentar reconstituir sua
trajetória e descobrir seus motivos. O certo é que passou a viver na cidade banhada pelo
Rio Caí, casou-se com Maria da Conceição de Oliveira – filha de Amaro Correia de Oliveira
e Anna Florinda de Oliveira,- e teve seis filhos, o mais velho dos quais era nosso avô. Os
demais se chamavam Etelvina, Maria Luiza, Adelaide, José e Luís.
Jeronymo nasceu em 20 de julho de 1887, quando seu pai tinha 38 anos. Maria Luiza
nasceu em 27 de novembro de 1890. José e Luís morreram ainda meninos. Como
depreender-se-á mais adiante, um deles ainda vivia quando José, pai, veio a falecer.
Maria Luiza nunca casou. Ficou conhecida como a Tia Iza, generosa e amiga dos sobrinhos.
Muito religiosa, consta ter ensinado os dois filhos de Jeronymo a fumar.
Rezingava a lenda familiar que José fora internado na Santa Casa, tendo sido
eventualmente maltratado.
Nos registros do hospital José fora registrado como João Teixeira da Silva.
A declaração da Santa Casa, assinada pela encarregada do Arquivo Histórico da casa, foi a
seguinte:
“ Declaro que revendo o Livro de Porta da Santa Casa de Porto Alegre número
04 de 01.12.1902 a 19.01.1904, nele encontra-se o registro de João Teixeira
da Silva, baixa em 03.12.1902, 54 anos, natural do Rio de Janeiro, cor branca,
filho de Francisco Teixeira da Silva, pedreiro, casado, pobre, residente em
São João do Montenegro, com alta em 08.12.1902 a pedido.
“
Acreditamos que o paciente tenha sido José, a despeito das incorreções de nome e idade –
tinha 53 anos ao invés de 54,- porque de outra forma teria que ser um irmão seu, de cuja
existência nunca se soube.
Quanta tristeza não se pode divisar numa casa que perde seu condutor, com cinco filhos
ainda despreparados. Devem ter sido de redobrada dor e incerteza os meses que se
seguiram. A frase de Ortega y Gasset segundo a qual “A experiência opera no homem como
o fogo no metal: quando não o reduz a cinzas, tempera-o” serve claramente para nosso avô.
Jeronymo tinha então 16 anos. Chamado à maturidade precoce, não saiu-se mal. Arrimou a
mãe e as irmãs. Seu caráter sério certamente teve vínculo com o desafio que enfrentou.
Escutamos narrativas dignas de Charles Dickens. Quando tudo parecia desesperador uma
batida à porta. Aberta esta, noite gélida, ninguém. Apenas um cesto com gêneros de
primeira necessidade.
Jeronymo casou-se, aos 25 anos, com Maria do Carmo, 23 anos, em 7 de dezembro de
1912, em cerimônia conduzida pelo Vigário Nicolau Knob. Ela era filha de João Ignacio de
Calais e de Modestina de Jesus Oliveira. Uma pitoresca amostra do espírito de Jeronymo –
um tanto surpreendente até porque sempre o tivemos em conta de homem muito contido,- é
um cartão que enviou para a noiva, abaixo reproduzido:
“Querida noiva,
É com a alma dilacerada pelas agruras da letal saudade que ouso trazer-vos estas poucas
linhas. Apenas estais lá alguns dias e já eu sinto tanto a vossa ausência, como se fossem
annos.
É bem cruel o destino em separar os corações que se idolatram.
Saudações effusivas do seu
Jeronymo Teixeira”
A neta mais velha contou-nos que passou dias com Modestina em Triunfo. Suas lembranças
são de extrema doçura, contrastando com os hábitos do avô.
Jeronymo e João Ignacio não se davam muito bem. Além da corriqueira distância entre
sogro e genro, certamente não eram vinhos da mesma pipa. O pai visitava a filha quando o
genro não se encontrava em casa. De outra parte tia Iza e vovó Conceição atucanavam
Maria do Carmo, com quem coabitavam. Conceição pitava, à grande, acocorada perto do
fogão, qual bugra. Ainda que rezingueira, deixou agradáveis recordações nos netos. Era
muito religiosa e todos eles por certo tiveram sua influência. Por determinação dela – que
decisão infeliz!,- a espada que José trouxera do Paraguai foi enterrada nos fundos do pátio,
para tristeza de todos quantos apreciam as marcas da história.
Não os cansarei com relatos que – denunciando visões pessoais e sentimentos,- seriam
dispensáveis. Particularmente tinha dois anos quando Jeronymo morreu e não tenho
lembrança alguma dele, o que significa que não o reconheceria se não houvesse visto suas
fotos.
Pode-se conhecê-lo um pouco mais através das páginas de O Progresso, do qual foi diretor
por longos anos. Sua biografia revela um homem dinâmico, de estilo clássico, com clareza e
bom poder de síntese. Enquanto dirigiu o hebdomadário não assinava artigos. Somente o
fez quando desligou-se de suas funções, sob o pseudônimo Sileno, cujo significado nos
revela que no mínimo conhecia um pouco de mitologia:
“ Dioniso era o deus do delírio místico (êxtase) e do vinho, bebida que alivia as
preocupações e inspira os homens para a música e a poesia. Também
conhecido por Baco. O thíasos, seu cortejo, compunha-se de ninfas, de
sátiros, das mênades, de Sileno e, possivelmente, de alguns animais
selvagens como leões e panteras. Às vezes o deus Pã também tomava parte
no cortejo. As mulheres e os homens que seguiam o deus eram chamados de
bacantes. Os sátiros tinham aspecto animalesco, a parte inferior do corpo
igual a um bode — ou simplesmente chifres e cauda de cavalo —. Sileno era
um sátiro muito velho e de grande sabedoria que em algumas versões da
lenda teria ajudado as ninfas a criar Dioniso. (Extraído da Internet no
endereço http://greciantiga.org/mit/mit09-13.asp)
“
Além das funções de secretário da Prefeitura e jornalista, também foi rábula, tendo realizado
inúmeros inventários, o que lhe folgava as finanças, sempre tão limitadas, o que estimulou
todos os filhos, mesmo em época na qual as mulheres não trabalhavam, a ocupar-se para
ajudar na renda familiar.
Segundo o Daudt, Jeronymo fez muitos inventários pelo interior do município, aliviando o
orçamento de uma casa numerosa, com filhos a estudar em centros maiores, como a mais
velha no Instituto Flores da Cunha em Porto Alegre.
Reproduzimos abaixo um anúncio publicado nas páginas de “O Progresso”:
Maria do Carmo - nos momentos mais críticos, quando Jeronymo sofria as conseqüências
da falência de um armazém, de cujas dívidas fora fiador, por confiar inteiramente no
proprietário, seu amigo até aquela data,- costurava para fora.
Alfredo Castro - uma espécie de vilão para a família Teixeira da Silva de então,- nada
dissera a Jeronymo, que aliás encontrava-se a caminho de Santana do Livramento, com o
intuito de visitar a irmã Adelaide e o cunhado, Antônio, quando por via telegráfica foi avisado
do desastre pelo advogado Amaury Lampert.
Mal chegado à fronteira, teve que retornar no trem noturno para começar a resolver os
enormes problemas decorrentes da bancarrota do até então amigo confidente.
Os tempos que seguiram foram difíceis e mesmo transferências de imóveis para o sobrinho
Paulo de Sá Brito foram necessárias para que Jeronymo não perdesse o próprio teto. Este
tsunami familiar certamente teve seu lado positivo, reforçando os naturais laços de
solidariedade e impulsionando os filhos a ajudarem os pais e a encontrarem seus caminhos.
Quando as ondas desapareceram e os estragos foram reparados, o sobrinho, que fora peça
importante na solução do imbroglio e exemplarmente leal, devolveu tudo para Jeronymo,
exceto uma casa, na qual habitaria até sua morte. Jeronymo, por gratidão, a presenteara.
Fico a imaginar o impacto em Jeronymo. Perdera o amigo e o sossego. Nosso pai relatava
seu rigor quanto aos débitos pessoais. Por inúmeras vezes Jeronymo o mandaria levar
importância miúda a alguém para quem a ficara devendo. Ilton ia, um tanto amuado, sem
entender por que razão o pai fazia tanta questão de pagar, com tanta pressa, míseros
trocados. A tragédia da família Castro, que igualmente muito sofreu, transferiria dívidas
imensas a um homem que não suportava o débito de um tostão ...
Para revelar um pouco mais da personalidade de nosso avô – e seu equilíbrio entre o rigor e
a ternura,- trazemos à lume uma carta encontrada na casa paterna e duas missivas,
felizmente bem guardadas por José Carlos. Ilton e Ilus estudaram, internos, no Colégio do
Carmo, em Caxias do Sul. Parece-nos que foram até mesmo contemporâneos, durante
algum tempo, ainda que não tenhamos certeza pelos documentos encontrados. Tempo em
que davam alegrias e algumas dores de cabeça. Como aliás os jovens e - por que não
lembrar?- mesmo nossos filhos, aqui e acolá, prodigalizam.
A imagem que recolhemos de Jeronymo nas buscas epistolares foi a de um homem ativo,
fato denunciado até pelos timbres dos papéis que utilizava nas cartas. Ora secretário na
prefeitura, ora diretor do jornal, ora advogado, ora cronista, ora pai. Dada a admiração e
estima dos filhos e genros, das pessoas fora da família que com ele conviveram e que
tivemos a oportunidade de conhecer, dos antigos funcionários de “O Progresso” – Gentil e
Lindolfo Cruz, em particular,- acho que cumpriu bem cada um destes papéis.
“ Querido filho Ilus,
Vejo com desagrado que foste parte num incidente aí no Ginásio, não só te
retirando sem licença mas também pernoitando fora, quando estavas sendo
esperado ali. Aconselho-te a que tenhas calma e trates os irmãos com o
respeito de que são merecedores.
Não poderás ficar como externo, porque não concordo com isto. Trata de
esquecer o incidente e cuida melhor das tuas obrigações, que me darás a
mim e à tua mãe um grande conforto espiritual.
Bem sabes o quanto detesto os meninos mal educados. Por isto aconselho-te
a que tenhas juízo e que te lembres dos aborrecimentos que causam aos teus
pais tais acontecimentos. Eu preciso de tranqüilidade de espírito para poder
cumprir os meus múltiplos e árduos deveres, motivo por que espero que
procures ser bom filho e bom aluno.
Em carta que dirijo, com esta, ao Irmão Diretor, solicitei-lhe que usasse de
brandura contigo. Espero que te compenetres dos teus deveres de filho e de
aluno. Do teu pai, que te abraça,
Jeronymo (Montenegro, 11-6-1941) “
É no mínimo curioso – ou seria testemunho da reverência prestada ao pai?- que tais cartas
tenham sido preservadas por tanto tempo porquanto não eram linhas da maior maciez. Ilton
recebeu a seguinte carta, datada de 5 de junho de 1942:
Agora devo dizer-te que homem não chora, quer seja de dor ou de raiva.
Diante de qualquer contrariedade ele sabe colocar-se à altura. O homem que
chora não é homem. Espero, pois, que cries juízo bastante para evitar que a
nota “má” não se reproduza.
Jeronymo Teixeira
O lado mais duro de Jeronymo não se limitava aos filhos-homem. Na entrevista que
gravamos, tia Iride relatou uma acerba reprimenda que levou do pai na juventude por conta
de frivolidades pelas quais nutria algum interesse.
Tia Icléa também enfrentou reações paternas nada agradáveis. E tia Isolete era advertida
por seus conhecidos atrasos, que eram motivo de irritação e de risos entre os irmãos.
O certo é que Jeronymo liderou uma família cheia de princípios, cuja convivência nos
pareceu muito harmoniosa pelas cartas que tivemos oportunidade de ler, como as duas que
transcrevemos abaixo, das irmãs Icléa e Iride para tio Ilus:
Enquanto concluíamos as buscas por documentos novos e iniciávamos a redação do texto
sentimos a necessidade de ler alguns textos de Jeronymo Teixeira publicados no jornal “O
Progresso”. Revisando a coleção organizada pela biblioteca municipal de Montenegro
encontramos e fotografamos digitalmente em torno de quarenta textos assinados por Sileno.
Como já realçamos na página 7, enquanto dirigiu o jornal nosso avô não assinava artigos.
Seguramente era o autor de matérias importantes e do Editorial mas sua preocupação em
cercear em si mesmo e nos filhos a autopromoção – sobretudo através do jornal,- resultou
na impossibilidade de asseverar que determinados textos foram de sua lavra.
Seu estilo é inconfundível. Contido, formal, trata os assuntos com seriedade, delicadeza e
respeito, ainda que freqüentemente utilize tiradas bem humoradas ou de fina ironia. Tivemos
a impressão de que deve ter sido sempre assim. Elegante. Sem arroubos exibicionistas ou
de imaturidade. É possível que a juventude difícil e sua religiosidade, de que falaremos
ainda um pouco, o tenham forjado com tais matizes.
Sua forma de escrever é diplomática mas nem por isto menos percuciente quando assim a
situação o exigisse. Damos um exemplo significativo. Num dos textos sobre a Revolução de
1893 nosso avô descreve que dois combatentes – tomados de pavor pela proximidade das
forças maragatas,- rolaram morro acima. O texto foi implacavelmente criticado por um algoz,
cujo texto foi impresso igualmente nas páginas de “O Progresso” conforme a reprodução
abaixo:
A resposta de nosso avô foi digna e cheia de malícia. Utilizou expressões pouco usuais
como “a colaboração do ilustre confrade teve a duração das rosas de Malherbe...”. Sua
origem é um belo poema de língua francesa, escrito por François de Malherbe (1555-1628).
Os versos foram escritos para consolar o amigo (Du Perier) que perdera a filha muito
jovem. Malherbe comparou a vida efêmera daquela criatura como uma rosa que vive no
curto “espace d’une matin”. Consta, aliás, que Jeronymo lia em francês com fluência.
No texto acima, Jeronymo revida à base de “E como não acreditamos que haja imergido no
arcaico caldeirão de Pero Botelho, onde a estas horas pudesse estar a ebulir,...”. Jeronymo
tinha o hábito da leitura e certamente lera os irmãos Azevedo. Pero Botelho é um
personagem de Fritzmac, texto de Artur Azevedo e Aluísio Azevedo, que começa da
seguinte forma:
CENA I
(Pequena pausa)
Do Botelho citado,
Um capricho engraçado
Vai ser, senhores meus, o ponto de partida
Da frívola comédia a que ides assistir.
Quando a revista, por desenxabida,
Vos obrigue a dormir...
É o patrão!
Atenção!
Vai abrir-se o alçapão!
Verão!
(Música forte. Pero Botelho surge do alçapão, acompanhado de labaredas. Cessa a música.)
PERO BOTELHO - Não te enganes, Fritzmac, sou eu. (Consultando o relógio.) Meia-noite: é a minha hora,
meu velho. Não sou desses demônios de hoje, que se enfaram de modernismo, e desdenham os costumes
dos nossos avós. É justamente por isso que te procuro, amigo.
FRITZMAC - Amigo, diz Vossa Alteza muito bem, porque nós, os homens da ciência, nada mais somos do que
espíritos rebeldes, que se voltavam, como vós outros, contra as imposições de Deus. (Pero Botelho pula e
estremece.) Desculpe... sempre me esqueço de que não devo pronunciar o nome deste sujeito em presença
de Vossa Alteza. (Vai buscar um banco e oferece-o a Pero Botelho.) Deixe lá falar o velho Doutor Fausto,
sábio carola e freguês de missas: a ciência é e sempre foi inimiga da Bíblia. Sente-se Vossa Alteza.
E por aí vai o texto de Artur e Aluísio Azevedo - a satirizar até o Fausto de Goethe,- que às
tantas menciona o caldeirão:
OS PECADOS- Que diabólica artimanha! Que esquisita sensação! Sinto que uma força estranha vai me pôr
no caldeirão!
(Continua a música na orquestra. Fritzmac, sempre a fazer passes magnéticos, obriga os Pecados a entrarem
para a caldeira. Eles o fazem a contra gosto. A Preguiça é a última.)
A título ilustrativo, relembremos que a Revolução Federalista ocorreu no sul do Brasil logo
após a proclamação da república. Irrompeu devido à instabilidade política gerada pelos
federalistas que pretendiam "libertar o Rio Grande do Sul da tirania de Júlio de Castilhos",
então presidente do Estado.
A divergência se iniciou por atritos ocorridos entre aqueles que procuravam a autonomia
estadual frente ao poder federal e seus opositores. A luta armada durou aproximadamente
três anos e atingiu as regiões compreendidas entre o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná. Jeronymo tinha seis anos de idade quando tudo começou.
“ O Partido Federalista do Rio Grande do Sul foi fundado em 1892 por Gaspar Silveira Martins. Em
tese, defendia o sistema parlamentar de governo e a revisão das constituições estaduais, prevendo
a centralização política e o fortalecimento do Brasil como União Federativa.
Desta forma, esta filosofia chocava-se frontalmente contra a constituição do Rio Grande do Sul de
1891. Esta era inspirada no positivismo e no presidencialismo, resguardando a autonomia estadual,
filosofia adotada por Júlio de Castilhos, chefe do Partido Republicano, e que seguia o princípio
comtiano das "pequenas pátrias".
As desavenças iniciaram-se com a concentração de tropas sob o comando de João Nunes da Silva
Tavares, barão de Itaqui, maragato, ou gasparista, em Carpintaria, localidade na linha divisória com o
Uruguai.
Logo após o potreiro de Ana Correia, vindo do Uruguai em direção ao Rio Grande do Sul,
encontrava-se o coronel caudilho federalista Gumercindo Saraiva.
A primeira derrota dos maragatos foi em maio de 1893, junto ao arroio Inhanduí, em Alegrete,
município sul-rio-grandense. Neste combate ao lado dos legalistas participou o senador Pinheiro
Machado. Gumercindo Saraiva e sua tropa dirigiram-se para para Dom Pedrito. De lá iniciaram uma
série de ataques relâmpagos contra vários pontos do estado, desestabilizando as posições
conquistadas pelos legalistas. Em seguida rumaram ao norte, avançando em novembro sobre Santa
Catarina e chegando ao Paraná, sendo detidos na cidade da Lapa, a sessenta quilômetros a
sudoeste de Curitiba. Nesta ocasião, o coronel Gomes Carneiro morreu em fevereiro de 1894 sem
entregar suas posições ao inimigo, no episódio que ficou conhecido como o Cerco da Lapa. O
almirante Custódio de Melo, que chefiara a revolta da Armada contra Floriano Peixoto, uniu-se aos
federalistas e ocupou Desterro, atual Florianópolis. De lá chegou a Curitiba, ao encontro do caudilho-
maragato.
A resistência da Lapa impediu o avanço da revolução. Gumercindo, então, bateu em retirada para o
Rio Grande do Sul. Morreu após ser ferido no combate de Campo Novo, em agosto de 1894. A
revolução federalista foi vencida em junho de 1895 no combate de Campo Osório. Saldanha da
Gama, possuidor de um contingente de 400 homens, lutou até a morte contra os legalistas
comandados pelo general Hipólito Ribeiro. A paz finalmente foi assinada em Pelotas no dia 23 de
agosto de 1895. O presidente da República era então Prudente de Morais, e o emissário do governo
federal era o general Galvão de Queirós.
Outra versão para os termos "maragato" e "pica-pau", usados para se referir às duas grandes
correntes políticas gaúchas, e identificados, respectivamente, com o uso do lenço vermelho e do
lenço branco, surgiu no Rio Grande do Sul em 1893, durante a Revolução Federalista. Os maragatos
foram os que iniciaram a revolução, que tinha como justificativa a resistência ao excessivo controle
exercido pelo governo central sobre os estados. O objetivo da revolução seria, portanto, garantir um
sistema federativo, em que os estados tivessem maior autonomia. O termo "maragato", aplicado aos
federalistas, tem uma explicação complexa. No Uruguai eram chamados de maragatos os
descendentes de imigrantes espanhóis oriundos da área situada na província de León, na Espanha,
conhecida como Maragateria. Os maragatos espanhóis eram eminentemente nômades, e adotavam
Jeronymo soube, com habilidade, esgueirar-se de uma narrativa que poderia abranger o
estado para enfatizar o envolvimento da então Vila de São João do Montenegro, que
chegou a ser tomada pelos federalistas.
Deixemos que nosso avô nos conte um pouco a respeito da revolução – vide edição de 06
de julho de 1957 de “O Progresso”:
Tal era o estado de ânimo da população local, que causava pânico a simples
evocação das façanhas atribuídas aos chefes revolucionários Gumercindo Saraiva,
Joca Tavares, Major Palmeira e outros. Diziam-se horrores dos maragatos:
degolavam prisioneiros, ateavam fogo a casas, jogavam crianças para o ar e
aparavam-nas nas pontas das lanças. Em suma, onde eles passavam deixavam
tudo arrasado ...
Ao tempo não havia telégrafo na vila. As notícias eram divulgadas pelos jornais de
Porto Alegre (A Federação, A Reforma, Jornal do Comércio e outros), que aqui
chegavam, diariamente, pelos vapores. Mas o que trazia a população presa de
verdadeiro pânico eram as informações dos boateiros que chegavam à vila, e os
comentários das comadres sobre cenas horripilantes, massacres brutais praticados
com requintes de perversidade pelos revolucionários.
Por outro lado, o movimento das forças legais, vindas de Porto Alegre e que aqui
estacionavam, antes de seguirem para o campo de operações, na região colonial
italiana, trazia em constante sobressalto a população. “
Na edição de 20 de julho de 1957 o texto descreve a invasão da vila por tropas federalistas,
quando esta se encontrava (des)guarnecida por pouquíssimos soldados recrutas:
Como é fácil de avaliar, a população, mal desperta ainda, tratou de abandonar a vila,
ante a inaudita surpresa. Os invasores, sem encontrarem a mínima resistência,
apossaram-se da Intendência, então instalada no sobrado fronteiro à sede do Clube
7 de Setembro, à rua João Pessoa, pois os 4 ou 5 recrutas que guarneciam o prédio
tinham-se posto em fuga, logo que souberam da notícia ...
Um dos chefes da situação mal teve tempo de tomar uma canoa no porto da vila e
passar para o outro lado do rio Caí, onde conseguiu por-se a salvo.
Um oficial republicano, que a cavalo passava pela rua Barão (atual João Pessoa),
viu-se, de inopino, cercado pelas forças invasoras. Sem perda de tempo abandonou
a montaria e saltou o muro da Casa dos Padres, local onde hoje se ergue o Ginásio
São João. Os bondosos sacerdotes deram-lhe asilo, recusando-se a entregá-lo aos
maragatos. Outro republicano, Jacob Kauer, a cavalo, em frente à casa de um
amigo, à entrada da vila (fronteiro à casa Seelig), saboreava um chimarrão. Ao notar
a aproximação do inimigo mal teve tempo de devolver a cuia e cerrar pernas no
animal. Bem montado, como sempre andava, em poucos instantes distanciou-se
dos invasores, escapando ileso, apesar dos seis tiros disparados ... Jacob Kauer
ainda é vivo, residindo, atualmente, na cidade de Lagoa Vermelha.
Nosso saudoso pai, logo que soube da entrada dos maragatos, embrenhou-se nos
matos do morro São João, enquanto nossa mãe, depois de arranjar, às pressas,
algum alimento para o desjejum, abandonava a casa com os 4 filhos (nós e 3
irmãos). Depois de vararmos uma capoeira existente no terreno atualmente
destinado à construção do Hospital Sagrada Família, escondemo-nos num valo
velho na encosta do morro São João. Mal tínhamos nos escondido, ouvimos
estranho ruído nas capoeiras, seguido de forte brado: “Pára, senão vai bala!”. Ato
contínuo, um popular de nome Adriano passava a alguns metros de nosso
esconderijo. “
Na tarde daquele mesmo dia os revolucionários se retiraram. O então menino Jeronymo viu
passarem pelas ruas grupos de maragatos, armados, ostentando nos chapéus e nas lanças
laços de fita encarnada. Horas depois aportava um vapor trazendo forças para a defesa da
vila, quando os invasores já andavam bem distantes.
José Teixeira, dada sua experiência na Guerra do Paraguai e pertença à Guarda Nacional,
deve ter sido envolvido na preparação da defesa da vila. Jeronymo encerra o trecho
publicado mais uma vez mencionando o pai:
“ Afinal, certo dia veio ordem superior para dissolver a força de emergência, sendo o
fato festejado com tiros de armas de todos os calibres e feitios ... Lembramo-nos,
ainda, que nosso pai desceu a encosta do morro dando tiros de pistola para o ar. O
regozijo era grande ... “
Júlio de Castilhos vencera. Político à antiga, exerceu influência singular sobre a política
gaúcha. Redigiu praticamente sozinho a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul de
1891 e usou todos os meios possíveis para sua aprovação. Tal constituição inspirava-se
muito fortemente no positivismo do filósofo francês Augusto Comte e garantia ao governante
os meios legais de implementar a política de inspiração positivista. Embora tida por
autoritária, tal constituição pretendia implementar no caráter do regime republicano aspectos
racionais, baseados na História e na Ciência a fim de superar aspectos populares ou
metafísicos.
O castilhismo consolidou-se como corrente política e teve voz ativa por cerca de quarenta
anos. Borges de Medeiros, sucessor de Castilhos, seguiu firmemente os ideais do mestre.
No plano nacional, Getúlio Vargas procurou implementar o castilhismo no Estado Novo,
entre 1937 e 1945.
No último episódio nosso avô descreve a deposição das armas pelo exército vencido. Sua
descrição do estado dos maragatos é reveladora. Júlio de Castilhos vencera.
Era mais um exemplo da dignidade com que conduziu sua vida. A última publicação que
localizamos, dividida em cinco partes, intitulava-se “Montenegro de Outro Tempo – Preito de
veneração à benemerência”, concluída no início de 1959. Depois, a ausência. Lembramo-
nos de episódio semelhante no próprio “O Progresso” em nossa juventude. A monografia do
jesuíta - e historiador competente,- Arthur Rabuske sobre Montenegro era publicada com
sofreguidão. Dividida em dezenas de pedaços perdia o sentido e seu acompanhamento só
seria possível se os leitores recortassem as partes e depois as lessem. Nosso avô parece
ter-se dado conta disto, como o bom jogador que sabe a hora de parar. Sua saúde também
não era das melhores. O coração já ameaçara parar dez anos antes. E só bateu pelos
subseqüentes dez anos porque Jeronymo era um estóico. Proibido de comer carne por
recomendação médica, por vezes a comprava ele próprio, para a família, sem contudo
consumi-la.
Jeronymo, cuja mãe era muito religiosa, foi católico praticante. Seus textos – por meio dos
quais podemos ler um pouco de sua alma,- são sempre ternos quando se refere a Deus Pai
ou ao Deus filho. Segundo consta, gostava de assistir missa no Pareci, o que fez até idade
avançada. Também se mostra reverencioso quando fala de padres ou de irmãos de ordem
religiosa, como os que dirigiam a escola em que Ilus e Ilton estudaram em Caxias do Sul.
Sua esposa, a quem a simples menção do nome de Jeronymo fazia chorar, mesmo após
anos e anos de viuvez, sobreviveu-lhe até 7 de dezembro de 1979. Por vinte anos sentiu-se
de alguma forma deserdada, sempre a lamentar a perda de seu Jeronymo. É um amor que
se torna cada vez mais raro - bem o sabemos,- e só os afortunados o experimentam.
Com o passar dos anos Maria do Carmo, a vó Carmem, não ficou em situação econômica
muito confortável. Aviltada a pensão que percebia, passaria por apertos não fosse a
generosa idéia de seus filhos. A caridade só o é plena quando incógnita e mencionar o fato
não é lá muito apropriado mas só o fazemos para estimular as gerações futuras com a força
de tal exemplo.
Um ano após a morte de seu pai, Ilton redigiu a crônica abaixo, intitulada 14 de Setembro,
forma que encontrou para catalisar a saudade do pai que se fora.
“ Hoje reverencio a memória de um homem, há um ano falecido, que se tornou chefe
de família na adolescência. Não existe nenhum contrasenso na afirmativa. Único
varão na família, perdeu o pai quando tinha apenas 16 anos e, para assegurar à
mãe viúva e às irmãs o indispensável, penetrou demasiado cedo na arena da vida.
Luta ingente, sem tréguas, desigual para quem nasceu sob o signo da pobreza,
converteu o adolescente esperançoso no adulto sem ilusões.
Forjado no difícil ganha-pão de cada dia, esse homem aos poucos foi superando a
crise que se abatera em sua vida. Criou as irmãs, amparou a mãe e adquiriu um teto
para acolher seus entes queridos. Casa modesta, de madeira, em rua de gente
humilde. Ainda morava na mesma casa quando casou e criou cinco filhos.
Com o passar dos anos vieram os netos freqüentar a casa do vovô, enchendo de
alegria a sua velhice. Parecia que o destino, arrependido, resolvera conceder-lhe, no
ocaso da existência, a felicidade que lhe havia negado no verdor dos anos.
Ao fim de cada tarde a casa, tão sossegada, via-se invadida pelo riso álacre dos
netos que chegavam, a pedir a benção, fazendo dissipar as rugas que muitas vezes
vincavam a testa do vovô.
Dia após dia, semana após semana, as tardes eram sempre iguais, quer chovesse,
quer fizesse frio.
O destino ingrato, entretanto, não permitiu que aquelas tardes felizes continuassem
por mais tempo. Chegou o dia em que os netos não foram vê-lo. A velha casa, que
abrigara tantas recordações alegres, estava triste e silenciosa. Não se ouvia um riso
infantil, os netos já não brincavam, pois o vovô havia falecido.
Aos netos foi vedado ver o vovô pela derradeira vez. Conservassem, na sua
inocência, na sua memória infantil, a lembrança do vovô amigo.
A velha casa já não tem o encanto de outrora. Hoje ela é apenas o repositório de
saudades que se abrigam em cada canto, de carinhosas lembranças que o tempo,
inutilmente, procura apagar, de sentidas recordações que transformam a velha casa
em objeto de respeitosa veneração, pois ela é o fruto de uma existência honrada.
Descansa em paz, vovô! Dorme o sono eterno dos justos, dos que sempre viveram
honestamente, dos que amaram e foram amados.
Nossas notas e impressões – que ora findam, de frente para a escuridão do futuro,-
padecem de certa precariedade pela carência de textos, de fotos - de pesquisa também, por
que não?- mas sobretudo pela chance que não tivemos de privar com Jeronymo. Sentimos
falta de alguém que se foi cedo demais, para nossa lástima. Fica um bem querer
melancólico sem reminiscências pessoais. Como escreveu o comentarista esportivo Tostão
em crônica recente, o grande encontro é o reencontro do que se havia perdido. Resta,
portanto, a imensa vontade de reencontrá-lo, um dia.
Queridas filhas, caros irmãos e primos, não temos fidalguia cartorial alguma. Nosso legado
é outro. Como nos disse a tia mais velha – a quem entrevistamos em sua casa de sítio,- ao
responder qual era a marca dos Teixeira da Silva. Sem hesitar, após poucos segundos,
desferiu: “A honestidade”.