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NOTAS GENEALÓGICAS

“ Embora seja fecundíssimo o meu assunto, e eu forçada a tratá-lo superficialmente,


não poderei, contudo, silenciar sobre esses grandes panegiristas, esses vaidosos
apreciadores da própria nobreza. Não é raro encontrar, entre estes, os que, com ânimo
abjeto e vilíssimas e plebéias inclinações, vos pasmem à força de repetir: “Sou um
fidalgo”. Convém provar a antigüidade de suas estirpes? Um descende do piedoso
Enéias; outro remonta ao primeiro cônsul de Roma; este procede, em linha reta, do rei
Artur. Além disso, mostram as estátuas e os retratos dos antepassados: enumeram os
bisavós e os tataravós; recordam os antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores.
Enquanto isso, pouco diferem eles de uma estátua muda, e eu os diria mesmo
inferiores às próprias figuras que vão mostrando. Esses idiotas fazem um alto conceito
de si mesmos e estão sempre cheios da estéril idéia de sua ascendência. O que é
fato, porém, é que imbuídos dessa quimera, levam uma vida contente e feliz. Ora, o
que contribui, em grande parte, para que em tão boa conta se tenha esse belo
fantasma de nobreza, é justamente o respeito que o vulgo insano demonstra por eles,
parecendo até enxergar nesse gênero de bestas, nesses nobres sem mérito, outras
tantas divindades. “
(Elogio da Loucura, Erasmo de Roterdam)

Aos que interessar possa saibam todos, de antemão, que não nos movem as intenções
acima. Nossa loucura é outra.

E tampouco poderia ser a mesma, diante da pobreza de nosso bisavô, personagem inicial e
que divide com Jeronymo o protagonismo destas linhas. Poucas. Foi o que descobrimos e
ouvimos. Só o fazemos para que o fio da meada para futura pesquisa se mantenha
disponível. Melhor não fizemos porque não nos foi possível ou não soubemos. E antes que
as folhas caiam todas, arrancadas de sua frágil vinculação à árvore da vida pelo sopro do
tempo, que se registre sua foto esmaecida. Pelo outono de quase duas gerações.

Vamos relatar uma lenda. Uma boa lenda familiar.

Tudo começou, supõe-se, em Bom Jardim, na serrania fluminense. Jeronymo, nosso avô,
assim o relatou aos nossos pais, ainda que nunca tenha obtido qualquer comprovação.
Escreveu, da distante Montenegro, para autoridades de Bom Jardim na primeira metade do
século XX mas não obteve resposta positiva.

Filho de Francisco Teixeira da Silva e Maria Rosa da Silva, José nasceu em 10.01.1849 .
Seriam seus pais imigrantes portugueses? Não foi possível descobrir. Empreendemos uma
busca - não exaustiva, a ser aprofundada,- através de microfilmes do Arquivo Histórico
Nacional, supondo que se fossem imigrantes houvessem entrado no país pelo Rio de
Janeiro. O maior problema é que não sabemos sequer o período a ser pesquisado, razão
pela qual a tentativa requer o tempo de um aposentado. De qualquer forma, recebemos do
Arquivo Nacional (Processo número 55/98-19/01) carta emitida em 29.04.1998 com a
seguinte resposta:
“ Foram examinados os índices nominais de naturalização do séc.XIX e as
Publicações Históricas do Arquivo Nacional números 46, 49, 50 e 54 que
tratam do registro de estrangeiro de 1808-1842 e nada foi encontrado sobre
Francisco Teixeira da Silva e Maria da Rosa da Silva”

Recorri ao Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Dom Eugênio Sales, que gentilmente nos
convidou a pesquisar os arquivos pessoalmente.

Fosse a eventual chegada em São Paulo, tudo seria mais fácil porquanto o bem organizado
Museu da Imigração emite certidões de desembarque em período relativamente curto.
José perdeu a mãe ainda menino. O pai, algum tempo depois, tornou a casar. Seu
relacionamento com a madrasta teria sido indigesto, o que o empurrou para a vida com as
próprias pernas. Passou a trabalhar como auxiliar de um mascate, a percorrer a paisagem
de serra – que seus olhos adolescentes azuis admiraram,- em lombo de burro.

Sabe-se lá quais eram seus dotes comerciais. Supostamente modestos porque em sua vida
posterior não há relatos na arte dos negócios.

Um incidente o teria afastado desta lida. Reza a lenda que uma das mulas do comerciante
desferiu um coice fatal numa criança. Muito desgostoso – ou quiçá sentindo-se mesmo
culpado pelo episódio,- desligou-se da empreitada.

Ato contínuo ou não – talvez jamais venhamos a saber,- alista-se no Exército e reaparece
na Guerra do Paraguai, transcorrida entre 1864 e 1870, conforme o texto abaixo:

“ A mais longa, mais sanguinolenta e mais destrutiva das guerras que


assolaram a América do Sul no século XIX foi a Guerra do Paraguai, ou
Guerra da Tríplice Aliança, que começou com a declaração de guerra pelo
Paraguai em primeiro lugar ao Brasil e depois à Argentina, seguida por uma
invasão aos territórios desses dois países, e acabou por se tornar uma guerra
travada entre Brasil, Argentina e Uruguai para a destruição do Paraguai. Foi
sem dúvida a mais prolongada e – com exceção da Guerra da Criméia – a
mais violenta guerra interestados já ocorrida em qualquer parte do mundo
entre 1815 e 1914. Durou mais de cinco anos (de outubro/novembro de 1864
a março de 1870) e consumiu cerca de 300 mil vidas (embora, à luz da
pesquisa moderna, o número de 200 mil ou até 150 mil vidas possa ser
considerado uma estimativa mais razoável). Além disso, a guerra teve um
impacto profundo sobre os assuntos econômicos, sociais e políticos de todos
os quatro países nela envolvidos. (Extraído de A Guerra do Paraguai: 130
anos depois/organização de Maria Eduarda de Castro Magalhães Marques –
Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995)

Como veremos depois, José integrou-se à guerra em 02.12.1867 . Contava, portanto, com
18 anos. A monografia de Montenegro, redigida por Coelho Neto, à página 181, relata sua
participação. Deixemos que fale o passado:

“ Eis a baixa do cabo José Teixeira da Silva, cuja heroicidade bem merece
referência especial:
Barão de São Borja, Marechal de Campo
Manoel Deodoro da Fonseca, Dignitário da Ordem Imperial do Cruzeiro,
Official da Rosa, condecorado com a medalha de prata da Campanha do
Estado Oriental do Uruguay de 1865, com a do Merito Militar e Coronel
Commandante do Primeiro Regimento d’Artilharia á Cavallo por sua
Magestade o Imperador.

Attesto que a praça abaixo declarada, que teve baixa do Serviço do Exercito
por portaria de cinco de Março de mil e oitocentos e setenta e dous, publicada
na ordem do dia da Repartição do Ajudante General do Exercito sob numero
oitocentos e quarenta e um de trese do dito mez e anno, tem no archivo d
´este Regimento os assentamentos do theor seguinte:
Segunda Bateria
Cabo d´esquadra – Numero dose – José Teixeira da Silva. Foi incluido no
estado effectivo do segundo corpo Provisorio d´Artilharia a Cavallo a dous de
Dezembro de mil e oitocentos e sessenta e sete, em virtude de ordem verbal
do Commando em chefe do Exercito de igual data, e ficou pertencendo a
segunda bateria como artilheiro. Marchou de Curupaity para Umaytá a vinte e
cinco: seguio em diligencia para o Chaco a trinta tudo de Julho de mil e
oitocentos e sessenta e oito alli tomou parte em todos os combates dados ao
inimigo até cinco de Agosto, data em que recolheu-se ao corpo. Promovido a
Anspeçada a primeiro de Setembro, passou o rio Tibicuary a quatro do
mesmo mez e destacou para o Chaco a dous de Outubro, donde embarcou
para Santo Antonio a cinco de Dezembro: tomou parte co combate de seis em
Itororó, batalha de onze em Avahy, combates de vinte e um a vinte e sete em
Lomas Valentinase a trinta tudo do dito mez de Dezembro, e predito anno de
mil oitocentos e sessenta e oito, assistiu a capitulação da guarnição de
Angustura.

Está comprehendido no numero dos officiaes e praças mandadas por Sua


Magestade o Imperador por ter feito parte das forças que romperão e
desbaratarão as do inimigo nos combates de seis e onze de Dezembro de mil
e oitocentos e sessenta e oito, como consta na ordem do dia do Commando
em Chefe do Exercito numero oito de dose de Março de mil oitocentos e
sessenta e nove. Marchou daqui a vinte com forças expedicionarias
commandadas pelo Excelentissimo Senhor General João Manoel Menna
Barreto, acampou em São Lourenço no mesmo dia, a vinte e um em Capiaty,
a vinte e dous em Ita, a vinte e quatro reunio-se ao primeiro corpo do Exercito
em Itagua, donde marchou a vinte e cinco tudo de Maio e acampou em Pirajú
no mesmo dia.

Seguio na noite de dez de Junho para Paraguary, fazendo parte de uma


expedição e regressou no dia onze do dito mez. Promovido a cabo de
esquadra
Deputadosa primeiro como nas
consignarão se fez publico
actas em detalhe
das sessões de dovinteserviço parae ovinte
e quatro dia e
dous tudo de Julho.Marchou de Pirajú na noite de primeiro
cinco do referido mez de Agosto pela brilhante Victoria alcançada a dose de Agosto;
acampou
contra em Paraguary
Pirebebuy; a dois,também
e assim em frentenoo elogio
desfiladeiro de Sapucaia
feito por sua Alteza a quatro;
a todo o
tomou parte no combate de cinco no mesmo desfiladeiro; acampou
corpo por haver no combate de dezesseis de Agosto em Barreiros-Grande a dez nas
proximidades de Pirebebuy; serviços
prestado relevantissimos na madrugada
que nuncade doze tomou
poderão serposição com a
sufficientemente
bateria á alcance
elogiados, da metralha
sustentando em frente do
constantemente comdito
suareduto e tomou
artilharia parte no
activissimo fogo,
combate d´esse
ao alcance dia; da
sempre marchou
metralha a trese e acampou
inimiga, em Cacápué
e pelo commando a quinze,
de Primeiro Corpo
tomou parte na acção
do Exercito do dia dezesseis
considerado como corpo em Barreiros-Grande,
digno de louvores incorporando-se
pelos serviços
depois ao
prestadoscorpo, marchou com o mesmo a desoito e acampou em Manduvira,
digo
no junto ao rio Manduvira
bombardamento a vinte ecomo
de Pirebebuy, oito tudo
tudo do citado
consta damez
ordemde Agosto;
do dia do
marchou para Arecutaguá a nove; embarcou com
Commando em Chefe numero trinta e sete de quatorze de novembro a ala direita a também
vinte,
desembarcou a vinte e um junto a Villa do Rosário para
de mil e oitocentos e sessenta e nove. Marchou para a Villa do Rosário onde seguio e a
acampou
desesete a vinte
de mile oitocentos
seis tudo de Setembro.
e setenta. Marchou
Sendo da dita segundo
do extincto Villa a oito,
corpo
acampou em S.Estanisláu
Provisorio d´Artilharia áa trese e em
Cavallo, teveLomas Capivary
inclusão como a dezoito tudo
effectivo d
n´este
´Outubro d´onde marchou a dous de Dezembro, tudo do
Regimento a dose de Março, segundo consta da ordem regimental numero predito anno de mil
oitocentos e sessenta
cento e vinte e douseda nove;
mesma e acampou
data ficouempertencendo
Curuguaty aaonze do dito
segunda mez e
bateria.
anno.
Embarcou da Villa do Rosário a quinze de Maio e desembarcou em Humaytá
Está comprehendido
a desesete do mesmono elogio feito asembarcou
mez, donde forças deno Curuguaty pela resignação
Vapor Guaycurú com destinoe
disciplina com que supportarão prolongadas privações que não
ao Brazil, a vinte de Junho, chegou a Montevideo a vinte e cinco do dito mez, forão sem
resultado
a cidadepara a causa
do Rio Grandedo doBrazil,
Sul apor trêsquanto a ocupação
de Julho, de Capivary
a Porto Alegre a quatro e e
Curuguaty protegeo
destacou para definitivamente
a do Rio Pardo a vinte ae três quase
tudo detotalidade
Julho do do território
citado anno de
paraguayo, contra equalquer
mil e oitocentos setenta; tentativa
recolheo-se do aoseo ex-Ditador,emque
Regimento, foi Alegre,
Porto obrigado a
a vinte
abandonar os povoados e terras cultivadas para procurar abrigo
e um de Março de mil oitocentos e setenta e um. Preso a dois de Outubro por no fundo das
mattas ínvias: de
ter deixado bem mereceu
avisar da Pátria,
um oficial comopara
da bateria consta da ordem
a revista do diasolto
de mostra, do a
Comando em Chefe numero quarenta e dois de seis de
nove do mesmo mez; preso a quatorze de Dezembro, tudo do referido anno Janeiro de mil e
oitocentos e setenta. Acha-se igualmente comprehendido no
de mil e oitocentos e setenta e um, por não ter dado parte das novidades da numero dos
officiaes
bateriaeaopraças mandadas
seo respectivo louvar solto
Capitão, por Sua Magestade
a desoito do mesmoo Imperador
mez. e por
Sua Alteza Commandante em Chefe do Exercito por ter valiosamente
concorrido para do
Foi excluído os estado
triumphos que nodomez
effectivo de Agosto
Regimento de mil
a três de oitocentos
Abril de mil e e
sessenta e nove, alcançou o Exercito em prol da honra e segurança
oitocentos e setenta e dous, por ter tido baixa do serviço do Exercito, por ser do Brazil,
e contemplado
guarda nacional,no voto
como de reconhecimento
consta da ordem doe dia louvor que a Câmara
da Repartição dos
do Ajudante
senhores Senadores e
General do Exercito numero oitocentos e quarenta e um de trese de Março
também de mil e oitocentos e setenta e dous. Nada mais consta dos ditos
assentamentos aos quaes me reporto. E para constar mandei passar o
presente que assignei e fiz sellar com o sinete do Regimento. Vae sem
entrelinhas, razuras ou cousa que duvida faça.

Quartel do Commando do Primeiro Regimento d´Artilharia á cavallo, em Porto


Alegre, Provincia do Rio Grande do Sul, dose de Abril de mil oitocentos e
setenta e dous. E eu Tertuliano de Campos Duarte primeiro tenente graduado,
secretario do Regimento, a subscrevi

Manoel Deodoro da Fonseca
Como o texto acima revela, José marchou de Curupaity para Umaytá a vinte e cinco de
julho de 1868. Contava, então, com 19 anos. Percebe-se, igualmente, que permaneceu até
o fim da guerra, que teve três fases, a última das quais encerrou-se quando Solano Lopes e
sua companheira irlandesa, Elisa Alicia Lynch, perseguidos por seis meses em direção ao
norte pelas tropas brasileiras, foram encurralados e mortos em Cerro Corá, no lado extremo
da região nordeste do Paraguai, em 1o de março de 1870.

O mapa na próxima página nos permite acompanhar as incursões militares e verificar a


localização dos combates de que nosso bisavô tomou parte neste que foi o maior conflito
envolvendo países da América do Sul. Há historiadores que atribuem a guerra a Lopes e
seu expansionismo. Outros narram sem perguntar os porquês. E outros tantos acusam os
países da Tríplice Aliança e mais notadamente o Brasil de terem feito o jogo planejado pelos
ingleses para arrasar a economia do Paraguai. Para quem deseja conhecer uma destas
visões mais cáusticas recomendamos o site http://serqueira.com.br/mapas/parag1.htm .
Para ver algumas fotos, visite o site www.geocities.com/ulysses_costa/Photos2Ip.html ou
pessoalmente a seção de fotos da área iconográfica da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Para um primeiro contato recomendamos uma visita virtual em www.bn.br .

Para que se tenha melhor idéia do teatro de guerra do qual José tomou parte transcrevemos
outro trecho histórico:
“ A segunda e principal fase (que incluiu diversos períodos em que quase não
havia luta de fato) começou quando os aliados finalmente invadiram o
Paraguai, em abril de 1866, e estabeleceram seu quartel-general em Tuyuti,
logo acima da confluência dos rios Paraná e Paraguai. Nesse local, em 24 de
maio, eles rechaçaram uma violenta investida paraguaia e ganharam a
primeira grande batalha terrestre da guerra. Contudo, passaram-se mais de
três meses até que os exércitos aliados começassem a avançar, subindo o rio
Paraguai. Quase imediatamente, em Curupaiti, em 22 de setembro apenas
dez dias depois de um encontro entre Mitre e López, em Yatayti-Corá, no qual
López ofereceu vantagens que incluíam concessões territoriais para que a
guerra pudesse chegar ao fim, contanto que ele próprio fosse poupado e que
o Paraguai não fosse totalmente desmembrado e ocupado de forma
permanente, proposta definitivamente rejeitada –, os aliados sofreram a sua
pior derrota na guerra. Eles não renovaram seus esforços de avanço até julho
de 1867, quando foi iniciado um movimento para cercar a grande fortaleza
fluvial de Humaitá (a Sebastopol do Paraguai), que bloqueou o acesso ao rio
Paraguai e à capital paraguaia, Assunção. Mesmo assim, foi preciso mais de
um ano (agosto de 1868) até que Humaitá fosse finalmente ocupada, e mais
uns cinco meses (janeiro de 1869) até que, após uma derrota decisiva e a
destruição virtual do Exército paraguaio na batalha de Lomas Valentinas (em
27 de dezembro), as tropas aliadas (na maior parte brasileiras), que, desde
janeiro de 1868, estavam sob a liderança do comandante-em-chefe brasileiro,
o Marquês de Caxias, finalmente invadiram Assunção e colocaram um ponto
final na guerra – ou assim pensavam eles, na época. (Extraído de A Guerra do
Paraguai: 130 anos depois/organização de Maria Eduarda de Castro
Magalhães Marques – Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995) “

Concluído o holocausto guarani – calma!, à época não havia tal consciência e nosso bisavô
não passara de cabo e portanto apenas serviu aos propósitos da Tríplice Aliança, dos
ingleses e de gente como o Conde d´Eu, sem suspeitar de seus reais propósitos,- José,
como vimos, retorna ao Brasil pelo Rio Grande do Sul.

Em Porto Alegre, após duas prisões disciplinares, deu baixa do Exército, assinada pelo
então Tenente-Coronel Deodoro da Fonseca. Certo dia, conversando com tio Ilus, demos
boas risadas conjeturando sobre o que fizera José. Quanto rigor para com um militar que se
expusera tanto.

Se a pesquisa no Arquivo Nacional quanto aos seus pais não trouxe resultado, no que diz
respeito a José Teixeira da Silva foi mais produtiva. No mesmo processo anteriormente
aludido foram localizados os seguintes documentos:

- Decreto de concessão de Cavaleiro da Ordem da Rosa em 22.06.1870


- Decreto militar em 22.06.1870
- Diário Oficial do Império do Brasil em 24 de junho e 25 de setembro de 1870, com a
publicação do decreto de concessão de honras de postos militares do exército aos oficiais
dos diferentes corpos provisórios de cavalaria da guarda nacional do Rio Grande do Sul,
onde se encontra mencionado José Teixeira da Silva

Ficamos a imaginar seu desencanto após o período de guerra em que arrostou a morte para
depois ser punido pela disciplina castrense. Certamente chegara ao fim este ciclo de sua
vida. Era hora de mudar.
Como foi parar em Montenegro? Parece uma veleidade que se possa tentar reconstituir sua
trajetória e descobrir seus motivos. O certo é que passou a viver na cidade banhada pelo
Rio Caí, casou-se com Maria da Conceição de Oliveira – filha de Amaro Correia de Oliveira
e Anna Florinda de Oliveira,- e teve seis filhos, o mais velho dos quais era nosso avô. Os
demais se chamavam Etelvina, Maria Luiza, Adelaide, José e Luís.

Jeronymo nasceu em 20 de julho de 1887, quando seu pai tinha 38 anos. Maria Luiza
nasceu em 27 de novembro de 1890. José e Luís morreram ainda meninos. Como
depreender-se-á mais adiante, um deles ainda vivia quando José, pai, veio a falecer.

Maria Luiza nunca casou. Ficou conhecida como a Tia Iza, generosa e amiga dos sobrinhos.
Muito religiosa, consta ter ensinado os dois filhos de Jeronymo a fumar.

Em busca na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre em 19 de março de 1997


descobrimos, quase já desistindo, o registro de uma internação de José. Em pesquisas de
natureza genealógica as dificuldades são muitas e sem critério pode-se facilmente chegar a
resultados ou conclusões errados. Intuição e sorte também são componentes importantes,
além de critério e tenacidade.

Rezingava a lenda familiar que José fora internado na Santa Casa, tendo sido
eventualmente maltratado.

Nos registros do hospital José fora registrado como João Teixeira da Silva.

A declaração da Santa Casa, assinada pela encarregada do Arquivo Histórico da casa, foi a
seguinte:
“ Declaro que revendo o Livro de Porta da Santa Casa de Porto Alegre número
04 de 01.12.1902 a 19.01.1904, nele encontra-se o registro de João Teixeira
da Silva, baixa em 03.12.1902, 54 anos, natural do Rio de Janeiro, cor branca,
filho de Francisco Teixeira da Silva, pedreiro, casado, pobre, residente em
São João do Montenegro, com alta em 08.12.1902 a pedido.

Acreditamos que o paciente tenha sido José, a despeito das incorreções de nome e idade –
tinha 53 anos ao invés de 54,- porque de outra forma teria que ser um irmão seu, de cuja
existência nunca se soube.

José faleceu em 8 de dezembro de 1903, às oito da manhã, em casa, conforme registro no


cartório de Montenegro. O declarante – Jorge Gerhardt Filho,- cometeu alguns erros ou
omissões, como a idade de 56 anos quando o certo seria 54 e não informou o nome da
viúva. Revelou, ainda, que o falecido deixava cinco filhos menores de idade. O óbito foi
assinado pelo Dr.Jorge Guilherme Moojen, que deu como causa da morte “hydrolaisia”.

Quanta tristeza não se pode divisar numa casa que perde seu condutor, com cinco filhos
ainda despreparados. Devem ter sido de redobrada dor e incerteza os meses que se
seguiram. A frase de Ortega y Gasset segundo a qual “A experiência opera no homem como
o fogo no metal: quando não o reduz a cinzas, tempera-o” serve claramente para nosso avô.
Jeronymo tinha então 16 anos. Chamado à maturidade precoce, não saiu-se mal. Arrimou a
mãe e as irmãs. Seu caráter sério certamente teve vínculo com o desafio que enfrentou.
Escutamos narrativas dignas de Charles Dickens. Quando tudo parecia desesperador uma
batida à porta. Aberta esta, noite gélida, ninguém. Apenas um cesto com gêneros de
primeira necessidade.
Jeronymo casou-se, aos 25 anos, com Maria do Carmo, 23 anos, em 7 de dezembro de
1912, em cerimônia conduzida pelo Vigário Nicolau Knob. Ela era filha de João Ignacio de
Calais e de Modestina de Jesus Oliveira. Uma pitoresca amostra do espírito de Jeronymo –
um tanto surpreendente até porque sempre o tivemos em conta de homem muito contido,- é
um cartão que enviou para a noiva, abaixo reproduzido:

“Querida noiva,

É com a alma dilacerada pelas agruras da letal saudade que ouso trazer-vos estas poucas
linhas. Apenas estais lá alguns dias e já eu sinto tanto a vossa ausência, como se fossem
annos.
É bem cruel o destino em separar os corações que se idolatram.
Saudações effusivas do seu
Jeronymo Teixeira”

As entrevistas que fizemos com os filhos revelaram algumas particularidades: Vovó


Modestina tinha ares de beatitude, João Ignácio – cujo sobrenome original era “de Oliveira”,
alterado em cartório para diferenciar-se de um primo seu, homônimo,- bebia um pouco além
da conta e dissipou seu patrimônio em artes pouco nobres, como o carteado. Era, além
disto, um tanto esquisitão. No cemitério de Triunfo sua sepultura é a única com os pés
voltados para o portão. Assim pedira antes de morrer para que, no Juízo Final, ao erguer-se,
já se encontrasse de frente para a saída.

Tivemos oportunidade de desfrutar do sobrenome Calais numa sexta-feira da Paixão, em


Triunfo. Aportáramos com o Capitão Germano numa praia da mais que centenária cidade e
assim permanecemos duas noites. Na primeira delas jantamos com Seu Memoriano
Almeida, amigo tradicional da família. Durante todo o encontro só se ouvia Seu Calais pra
cá, Seu Calais pra lá. Era como se houvéssemos trocado de sobrenome por algumas horas.
Sob teto antiqüíssimo, numa estalagem com paredes com largura de meio metro – dado o
desconhecimento dos antigos acerca da efetiva resistência dos materiais,- Miguel, José
Carlos e nós controlamos o riso. Era o tempo em que não tínhamos consciência da
grandeza do momento. Tratava-se de degustar um pouco o passado, como a um vinho tinto
envelhecido. De sentir ao vivo um pouco do jeito açoriano ainda presente num município
que parara no tempo, na confluência dos rios Jacuí e Taquari. Mais tarde presenciamos a
passagem da procissão, um espetáculo inesquecível, de fé e tradição, nas apertadas ruas
daquela que em 1788 viu nascer Bento Gonçalves.

A neta mais velha contou-nos que passou dias com Modestina em Triunfo. Suas lembranças
são de extrema doçura, contrastando com os hábitos do avô.

Jeronymo e João Ignacio não se davam muito bem. Além da corriqueira distância entre
sogro e genro, certamente não eram vinhos da mesma pipa. O pai visitava a filha quando o
genro não se encontrava em casa. De outra parte tia Iza e vovó Conceição atucanavam
Maria do Carmo, com quem coabitavam. Conceição pitava, à grande, acocorada perto do
fogão, qual bugra. Ainda que rezingueira, deixou agradáveis recordações nos netos. Era
muito religiosa e todos eles por certo tiveram sua influência. Por determinação dela – que
decisão infeliz!,- a espada que José trouxera do Paraguai foi enterrada nos fundos do pátio,
para tristeza de todos quantos apreciam as marcas da história.

Não os cansarei com relatos que – denunciando visões pessoais e sentimentos,- seriam
dispensáveis. Particularmente tinha dois anos quando Jeronymo morreu e não tenho
lembrança alguma dele, o que significa que não o reconheceria se não houvesse visto suas
fotos.

Pode-se conhecê-lo um pouco mais através das páginas de O Progresso, do qual foi diretor
por longos anos. Sua biografia revela um homem dinâmico, de estilo clássico, com clareza e
bom poder de síntese. Enquanto dirigiu o hebdomadário não assinava artigos. Somente o
fez quando desligou-se de suas funções, sob o pseudônimo Sileno, cujo significado nos
revela que no mínimo conhecia um pouco de mitologia:
“ Dioniso era o deus do delírio místico (êxtase) e do vinho, bebida que alivia as
preocupações e inspira os homens para a música e a poesia. Também
conhecido por Baco. O thíasos, seu cortejo, compunha-se de ninfas, de
sátiros, das mênades, de Sileno e, possivelmente, de alguns animais
selvagens como leões e panteras. Às vezes o deus Pã também tomava parte
no cortejo. As mulheres e os homens que seguiam o deus eram chamados de
bacantes. Os sátiros tinham aspecto animalesco, a parte inferior do corpo
igual a um bode — ou simplesmente chifres e cauda de cavalo —. Sileno era
um sátiro muito velho e de grande sabedoria que em algumas versões da
lenda teria ajudado as ninfas a criar Dioniso. (Extraído da Internet no
endereço http://greciantiga.org/mit/mit09-13.asp)

Além das funções de secretário da Prefeitura e jornalista, também foi rábula, tendo realizado
inúmeros inventários, o que lhe folgava as finanças, sempre tão limitadas, o que estimulou
todos os filhos, mesmo em época na qual as mulheres não trabalhavam, a ocupar-se para
ajudar na renda familiar.

Segundo o Daudt, Jeronymo fez muitos inventários pelo interior do município, aliviando o
orçamento de uma casa numerosa, com filhos a estudar em centros maiores, como a mais
velha no Instituto Flores da Cunha em Porto Alegre.
Reproduzimos abaixo um anúncio publicado nas páginas de “O Progresso”:

Maria do Carmo - nos momentos mais críticos, quando Jeronymo sofria as conseqüências
da falência de um armazém, de cujas dívidas fora fiador, por confiar inteiramente no
proprietário, seu amigo até aquela data,- costurava para fora.

Alfredo Castro - uma espécie de vilão para a família Teixeira da Silva de então,- nada
dissera a Jeronymo, que aliás encontrava-se a caminho de Santana do Livramento, com o
intuito de visitar a irmã Adelaide e o cunhado, Antônio, quando por via telegráfica foi avisado
do desastre pelo advogado Amaury Lampert.

Mal chegado à fronteira, teve que retornar no trem noturno para começar a resolver os
enormes problemas decorrentes da bancarrota do até então amigo confidente.

Os tempos que seguiram foram difíceis e mesmo transferências de imóveis para o sobrinho
Paulo de Sá Brito foram necessárias para que Jeronymo não perdesse o próprio teto. Este
tsunami familiar certamente teve seu lado positivo, reforçando os naturais laços de
solidariedade e impulsionando os filhos a ajudarem os pais e a encontrarem seus caminhos.

Quando as ondas desapareceram e os estragos foram reparados, o sobrinho, que fora peça
importante na solução do imbroglio e exemplarmente leal, devolveu tudo para Jeronymo,
exceto uma casa, na qual habitaria até sua morte. Jeronymo, por gratidão, a presenteara.

Fico a imaginar o impacto em Jeronymo. Perdera o amigo e o sossego. Nosso pai relatava
seu rigor quanto aos débitos pessoais. Por inúmeras vezes Jeronymo o mandaria levar
importância miúda a alguém para quem a ficara devendo. Ilton ia, um tanto amuado, sem
entender por que razão o pai fazia tanta questão de pagar, com tanta pressa, míseros
trocados. A tragédia da família Castro, que igualmente muito sofreu, transferiria dívidas
imensas a um homem que não suportava o débito de um tostão ...

Para revelar um pouco mais da personalidade de nosso avô – e seu equilíbrio entre o rigor e
a ternura,- trazemos à lume uma carta encontrada na casa paterna e duas missivas,
felizmente bem guardadas por José Carlos. Ilton e Ilus estudaram, internos, no Colégio do
Carmo, em Caxias do Sul. Parece-nos que foram até mesmo contemporâneos, durante
algum tempo, ainda que não tenhamos certeza pelos documentos encontrados. Tempo em
que davam alegrias e algumas dores de cabeça. Como aliás os jovens e - por que não
lembrar?- mesmo nossos filhos, aqui e acolá, prodigalizam.
A imagem que recolhemos de Jeronymo nas buscas epistolares foi a de um homem ativo,
fato denunciado até pelos timbres dos papéis que utilizava nas cartas. Ora secretário na
prefeitura, ora diretor do jornal, ora advogado, ora cronista, ora pai. Dada a admiração e
estima dos filhos e genros, das pessoas fora da família que com ele conviveram e que
tivemos a oportunidade de conhecer, dos antigos funcionários de “O Progresso” – Gentil e
Lindolfo Cruz, em particular,- acho que cumpriu bem cada um destes papéis.
“ Querido filho Ilus,
Vejo com desagrado que foste parte num incidente aí no Ginásio, não só te
retirando sem licença mas também pernoitando fora, quando estavas sendo
esperado ali. Aconselho-te a que tenhas calma e trates os irmãos com o
respeito de que são merecedores.

Não poderás ficar como externo, porque não concordo com isto. Trata de
esquecer o incidente e cuida melhor das tuas obrigações, que me darás a
mim e à tua mãe um grande conforto espiritual.

Bem sabes o quanto detesto os meninos mal educados. Por isto aconselho-te
a que tenhas juízo e que te lembres dos aborrecimentos que causam aos teus
pais tais acontecimentos. Eu preciso de tranqüilidade de espírito para poder
cumprir os meus múltiplos e árduos deveres, motivo por que espero que
procures ser bom filho e bom aluno.

Em carta que dirijo, com esta, ao Irmão Diretor, solicitei-lhe que usasse de
brandura contigo. Espero que te compenetres dos teus deveres de filho e de
aluno. Do teu pai, que te abraça,
Jeronymo (Montenegro, 11-6-1941) “
É no mínimo curioso – ou seria testemunho da reverência prestada ao pai?- que tais cartas
tenham sido preservadas por tanto tempo porquanto não eram linhas da maior maciez. Ilton
recebeu a seguinte carta, datada de 5 de junho de 1942:

“ Meu filho muito prezado,


Faço votos ao Altíssimo para que continues a estudar com esforço e boa
vontade, a fim de seres gente no futuro. Aqui todos vão bem de saúde, graças
a Deus.

Ficamos bastante aborrecidos com o cartão branco que deste um jeito de


arrumar. É preciso que te compenetres de que estás internado no Ginásio
para estudar e não para passear e gozar a vida. Para isto terás tempo de
sobra, mais tarde, quando te fizeres homem.

Agora devo dizer-te que homem não chora, quer seja de dor ou de raiva.
Diante de qualquer contrariedade ele sabe colocar-se à altura. O homem que
chora não é homem. Espero, pois, que cries juízo bastante para evitar que a
nota “má” não se reproduza.

Se fores maltratado aí, avisa-me, porque imediatamente tomarei providências


junto à diretoria do Ginásio. É preciso obedeceres aos teus professores. Isso
não significa, porém, que estejas obrigado a sofrer perseguições ou agüentar
desaforos. Não és aluno de favor. Portanto tens direito de ser bem tratado.
Não desobedeças, nem te revoltes, desde que a tua dignidade não seja
menosprezada. Assim evitarás notas más. Comunico-te que os “bicos”
seguirão ainda nesta semana. Já estão em casa. Deus te abençoe e te dê
vida e saúde é o que desejamos. Teu pai

Jeronymo Teixeira

Segue junto um vale postal de 200$000 para pagamento ao Ginásio.


O lado mais duro de Jeronymo não se limitava aos filhos-homem. Na entrevista que
gravamos, tia Iride relatou uma acerba reprimenda que levou do pai na juventude por conta
de frivolidades pelas quais nutria algum interesse.
Tia Icléa também enfrentou reações paternas nada agradáveis. E tia Isolete era advertida
por seus conhecidos atrasos, que eram motivo de irritação e de risos entre os irmãos.

O certo é que Jeronymo liderou uma família cheia de princípios, cuja convivência nos
pareceu muito harmoniosa pelas cartas que tivemos oportunidade de ler, como as duas que
transcrevemos abaixo, das irmãs Icléa e Iride para tio Ilus:
Enquanto concluíamos as buscas por documentos novos e iniciávamos a redação do texto
sentimos a necessidade de ler alguns textos de Jeronymo Teixeira publicados no jornal “O
Progresso”. Revisando a coleção organizada pela biblioteca municipal de Montenegro
encontramos e fotografamos digitalmente em torno de quarenta textos assinados por Sileno.
Como já realçamos na página 7, enquanto dirigiu o jornal nosso avô não assinava artigos.
Seguramente era o autor de matérias importantes e do Editorial mas sua preocupação em
cercear em si mesmo e nos filhos a autopromoção – sobretudo através do jornal,- resultou
na impossibilidade de asseverar que determinados textos foram de sua lavra.

As crônicas ou a série de comentários sobre a Revolução de 1893 e sua repercussão na


pequena cidade em que vivia – veiculada parceladamente em inúmeras edições,- passaram
a ser publicados de 1957 em diante.

Seu estilo é inconfundível. Contido, formal, trata os assuntos com seriedade, delicadeza e
respeito, ainda que freqüentemente utilize tiradas bem humoradas ou de fina ironia. Tivemos
a impressão de que deve ter sido sempre assim. Elegante. Sem arroubos exibicionistas ou
de imaturidade. É possível que a juventude difícil e sua religiosidade, de que falaremos
ainda um pouco, o tenham forjado com tais matizes.

Memorialista, não fala de si ou dos seus. Relembra fatos pitorescos, bizarros, da


Montenegro de outrora. E revela, ainda que discretamente, um gosto pelas letras e uma
cultura acima de seus pares locais. Miguel, certo dia, nos disse que percebera que vô
Jeronymo era um homem à frente de seu tempo. Concordamos.

Sua forma de escrever é diplomática mas nem por isto menos percuciente quando assim a
situação o exigisse. Damos um exemplo significativo. Num dos textos sobre a Revolução de
1893 nosso avô descreve que dois combatentes – tomados de pavor pela proximidade das
forças maragatas,- rolaram morro acima. O texto foi implacavelmente criticado por um algoz,
cujo texto foi impresso igualmente nas páginas de “O Progresso” conforme a reprodução
abaixo:

A resposta de nosso avô foi digna e cheia de malícia. Utilizou expressões pouco usuais
como “a colaboração do ilustre confrade teve a duração das rosas de Malherbe...”. Sua
origem é um belo poema de língua francesa, escrito por François de Malherbe (1555-1628).
Os versos foram escritos para consolar o amigo (Du Perier) que perdera a filha muito
jovem. Malherbe comparou a vida efêmera daquela criatura como uma rosa que vive no
curto “espace d’une matin”. Consta, aliás, que Jeronymo lia em francês com fluência.

No texto acima, Jeronymo revida à base de “E como não acreditamos que haja imergido no
arcaico caldeirão de Pero Botelho, onde a estas horas pudesse estar a ebulir,...”. Jeronymo
tinha o hábito da leitura e certamente lera os irmãos Azevedo. Pero Botelho é um
personagem de Fritzmac, texto de Artur Azevedo e Aluísio Azevedo, que começa da
seguinte forma:

CENA I

FRITZMAC, depois PERO BOTELHO


FRITZMAC - Meus senhores, eu sou Fritzmac, o alquimista:
A falta de outro artista,
O prólogo farei da pândega revista.
Desgostoso da terra,
Onde sofri dos homens dura guerra,
Ao serviço me pus
Do bom Pero Botelho,
Diabo assaz conhecido,
Bon vivant, divertido,
Que bons cobres me dá, me trata por meu velho,
No conceito me tem do rei dos nigromantes,
E em breve - ele é que o diz - vai dar-me uma grã-cruz,
De ouro de lei, rodeada de brilhantes!
Um presente de truz!

(Pequena pausa)

Do Botelho citado,
Um capricho engraçado
Vai ser, senhores meus, o ponto de partida
Da frívola comédia a que ides assistir.
Quando a revista, por desenxabida,
Vos obrigue a dormir...

(Acelera-se o movimento da música.)

Mas que ouço!! A concluir sou forçado de chofre!


Vem barulho do chão... sinto cheiro de enxofre!

(Endireitando aqui e ali algum objeto.)

É o patrão!
Atenção!
Vai abrir-se o alçapão!
Verão!

(Música forte. Pero Botelho surge do alçapão, acompanhado de labaredas. Cessa a música.)

PERO BOTELHO - Não te enganes, Fritzmac, sou eu. (Consultando o relógio.) Meia-noite: é a minha hora,
meu velho. Não sou desses demônios de hoje, que se enfaram de modernismo, e desdenham os costumes
dos nossos avós. É justamente por isso que te procuro, amigo.

FRITZMAC - Amigo, diz Vossa Alteza muito bem, porque nós, os homens da ciência, nada mais somos do que
espíritos rebeldes, que se voltavam, como vós outros, contra as imposições de Deus. (Pero Botelho pula e
estremece.) Desculpe... sempre me esqueço de que não devo pronunciar o nome deste sujeito em presença
de Vossa Alteza. (Vai buscar um banco e oferece-o a Pero Botelho.) Deixe lá falar o velho Doutor Fausto,
sábio carola e freguês de missas: a ciência é e sempre foi inimiga da Bíblia. Sente-se Vossa Alteza.

E por aí vai o texto de Artur e Aluísio Azevedo - a satirizar até o Fausto de Goethe,- que às
tantas menciona o caldeirão:

FRITZMAC- Vamos lá, senhoras minhas.


Sem fazer oposição;
Entrem todas direitinhas
Para aquele caldeirão!
PERO BOTELHO- A fazer um simples gesto,
Tudo alcança um sabichão!
As pequenas, sem protesto,
Vão entrar no caldeirão!

OS PECADOS- Que diabólica artimanha! Que esquisita sensação! Sinto que uma força estranha vai me pôr
no caldeirão!

FRITZMAC - Vamos lá! senhoras minhas! etc.

PERO BOTELHO - A fazer um simples gesto, etc.

OS PECADOS - Que diabólica artimanha! etc.

(Continua a música na orquestra. Fritzmac, sempre a fazer passes magnéticos, obriga os Pecados a entrarem
para a caldeira. Eles o fazem a contra gosto. A Preguiça é a última.)

A série de artigos publicados sobre a revolução de 1893 iniciou-se em 8 de julho de 1957 e


perdurou por inúmeras edições. Ficou também conhecida como a Revolta Federalista, uma
escaramuça entre o poder político vigente e o poder econômico agropastoril, marcada por
ódios e barbáries inimagináveis, ápice de um maniqueísmo político extremado que nossa
geração afortunadamente não conheceu.

A título ilustrativo, relembremos que a Revolução Federalista ocorreu no sul do Brasil logo
após a proclamação da república. Irrompeu devido à instabilidade política gerada pelos
federalistas que pretendiam "libertar o Rio Grande do Sul da tirania de Júlio de Castilhos",
então presidente do Estado.

A divergência se iniciou por atritos ocorridos entre aqueles que procuravam a autonomia
estadual frente ao poder federal e seus opositores. A luta armada durou aproximadamente
três anos e atingiu as regiões compreendidas entre o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná. Jeronymo tinha seis anos de idade quando tudo começou.

“ O Partido Federalista do Rio Grande do Sul foi fundado em 1892 por Gaspar Silveira Martins. Em
tese, defendia o sistema parlamentar de governo e a revisão das constituições estaduais, prevendo
a centralização política e o fortalecimento do Brasil como União Federativa.

Desta forma, esta filosofia chocava-se frontalmente contra a constituição do Rio Grande do Sul de
1891. Esta era inspirada no positivismo e no presidencialismo, resguardando a autonomia estadual,
filosofia adotada por Júlio de Castilhos, chefe do Partido Republicano, e que seguia o princípio
comtiano das "pequenas pátrias".

Os seguidores de Gaspar da Silveira Martins, Gasparistas ou maragatos, eram frontalmente opostos


aos seguidores de Júlio de Castilhos, castilhistas ou pica-paus. Empenharam-se em disputas
sangrentas que acabaram por desencadear a revolução federalista, uma guerra civil que durou de
fevereiro de 1893 a agosto de 1895 e foi vencida pelos Pica-paus, seguidores de Júlio de Castilhos.
Neste conflito, houve mais de dez mil mortos e centenas de milhares de feridos.

As desavenças iniciaram-se com a concentração de tropas sob o comando de João Nunes da Silva
Tavares, barão de Itaqui, maragato, ou gasparista, em Carpintaria, localidade na linha divisória com o
Uruguai.

Logo após o potreiro de Ana Correia, vindo do Uruguai em direção ao Rio Grande do Sul,
encontrava-se o coronel caudilho federalista Gumercindo Saraiva.

Eficientemente, os maragatos dominaram a fronteira, exigindo a deposição de Júlio de Castilhos, que


havia sido eleito presidente do estado pelo voto direto. Havia também o desejo de um plebiscito onde
o povo deveria escolher a forma de governo.

Devido à gravidade do movimento, a rebelião adquiriu âmbito nacional rapidamente, ameaçando a


estabilidade do governo riograndense e o regime republicano em todo o país. Floriano Peixoto, então
na presidência da República, enviou tropas federais sob o comando do general Hipólito Ribeiro para
socorrer Júlio de Castilhos.

Foram estrategicamente organizadas três divisões, chamadas de legalistas: a do norte, a da capital e


a do centro. Além destas, foi convocada a polícia estadual e todo o seu contingente para enfrentar o
inimigo.

A primeira derrota dos maragatos foi em maio de 1893, junto ao arroio Inhanduí, em Alegrete,
município sul-rio-grandense. Neste combate ao lado dos legalistas participou o senador Pinheiro
Machado. Gumercindo Saraiva e sua tropa dirigiram-se para para Dom Pedrito. De lá iniciaram uma
série de ataques relâmpagos contra vários pontos do estado, desestabilizando as posições
conquistadas pelos legalistas. Em seguida rumaram ao norte, avançando em novembro sobre Santa
Catarina e chegando ao Paraná, sendo detidos na cidade da Lapa, a sessenta quilômetros a
sudoeste de Curitiba. Nesta ocasião, o coronel Gomes Carneiro morreu em fevereiro de 1894 sem
entregar suas posições ao inimigo, no episódio que ficou conhecido como o Cerco da Lapa. O
almirante Custódio de Melo, que chefiara a revolta da Armada contra Floriano Peixoto, uniu-se aos
federalistas e ocupou Desterro, atual Florianópolis. De lá chegou a Curitiba, ao encontro do caudilho-
maragato.

A resistência da Lapa impediu o avanço da revolução. Gumercindo, então, bateu em retirada para o
Rio Grande do Sul. Morreu após ser ferido no combate de Campo Novo, em agosto de 1894. A
revolução federalista foi vencida em junho de 1895 no combate de Campo Osório. Saldanha da
Gama, possuidor de um contingente de 400 homens, lutou até a morte contra os legalistas
comandados pelo general Hipólito Ribeiro. A paz finalmente foi assinada em Pelotas no dia 23 de
agosto de 1895. O presidente da República era então Prudente de Morais, e o emissário do governo
federal era o general Galvão de Queirós.

Atualmente, a denominação Maragato é título honroso para os defensores da tese parlamentarista no


Rio Grande do Sul. Na época da revolução, os republicanos legalistas usavam a apelação como
pejorativa, atribuindo-lhes propósitos mercenários. "Denominação dada ao revolucionário ou
partidário da revolução riograndense de 1893, adepto do credo político pregado por Gaspar da
Silveira Martins e adversário do partido então dominante, chefiado por Júlio Prates de Castilhos.
Revolucionário ou partidário da revolução rio-grandense de 1923, adepto do partido liderado por
Joaquim Francisco de Assis Brasil e contrário a Antônio Augusto Borges de Medeiros, governador do
Estado. O último sentido de federalista tem breve história. "Na província de León, Espanha, existe
uma comarca denominada Maragateria, cujos habitantes têm o nome de maragatos, e, que, segundo
alguns, é um povo de costumes condenáveis; pois, vivendo a vagabundear de um ponto a outro, com
cargueiros, vendendo e comprando roubos e por sua vez roubando principalmente animais; são uma
espécie de ciganos. Aos naturais da cidade de São José, no Estado Oriental do Uruguai, dão neste
país o nome de maragatos, talvez porque os seus primeiros habitantes fossem descendentes de
maragatos espanhóis. Pelo fato de os rebeldes em suas excursões irem levantando e conduzindo
todos os animais que encontravam, tendo apenas bagagens ligeiras, cargueiros, etc. Como os da
Maragateria e porque (com exceções) suspendiam com o que encontravam em suas correrias,
aplicou-se-lhes aquela denominação, que aliás eles retribuíram com outras não menos delicadas aos
republicanos." (Romaguera).

Outra versão para os termos "maragato" e "pica-pau", usados para se referir às duas grandes
correntes políticas gaúchas, e identificados, respectivamente, com o uso do lenço vermelho e do
lenço branco, surgiu no Rio Grande do Sul em 1893, durante a Revolução Federalista. Os maragatos
foram os que iniciaram a revolução, que tinha como justificativa a resistência ao excessivo controle
exercido pelo governo central sobre os estados. O objetivo da revolução seria, portanto, garantir um
sistema federativo, em que os estados tivessem maior autonomia. O termo "maragato", aplicado aos
federalistas, tem uma explicação complexa. No Uruguai eram chamados de maragatos os
descendentes de imigrantes espanhóis oriundos da área situada na província de León, na Espanha,
conhecida como Maragateria. Os maragatos espanhóis eram eminentemente nômades, e adotavam

profissões que lhes permitissem estar em constante deslocamento. Os defensores do governo


central passaram a chamar os revolucionários de "maragatos" com o intuito de insinuar que, na
verdade, as tropas dos rebeldes eram constituídas por mercenários uruguaios. A realidade oferecia
alguma base para essa assertiva — Gumercindo Saraiva, um dos líderes da revolução, havia entrado
no Rio Grande do Sul vindo do Uruguai pela fronteira de Aceguá, no Departamento de Cerro Largo, e
liderava uma tropa de 400 homens entre os quais estavam uruguaios. No entanto, dar esse apelido
aos revolucionários foi um tiro que saiu pela culatra. Os próprios rebeldes passaram a se denominar
"maragatos", e chegaram a criar um jornal que levava esse nome, em 1896. Já o termo pica-pau,
aplicado aos republicanos que apoiavam o governo central, teria surgido em função das listras
brancas do topete do pássaro, pois os governistas usavam chapéus com divisas brancas, que
lembravam o topete do pica-pau, enquanto que as dos maragatos eram vermelhas. Quanto ao termo
chimango, a grafia também pode ser ximango. Ave de rapina, falconídea, semelhante ao carcará.
Epíteto depreciativo dado aos liberais moderados pelos conservadores, no início da Monarquia
brasileira. No RS, nos anos de 1920, foi a alcunha dada pelos federalistas ao governistas do PRR. O “
lenço de cor BRANCA identificava os chimangos. (Fonte: pt.wikipedia.org/wiki/Maragatos)

Jeronymo soube, com habilidade, esgueirar-se de uma narrativa que poderia abranger o
estado para enfatizar o envolvimento da então Vila de São João do Montenegro, que
chegou a ser tomada pelos federalistas.

Deixemos que nosso avô nos conte um pouco a respeito da revolução – vide edição de 06
de julho de 1957 de “O Progresso”:

“ A pacata vila de São João do Montenegro, durante o período revolucionário, viveu


dramáticos momentos, que tentaremos descrever em rápidos traços. Relataremos o
que presenciamos, pessoalmente, e o que ouvimos de pessoas adultas à época.

Tal era o estado de ânimo da população local, que causava pânico a simples
evocação das façanhas atribuídas aos chefes revolucionários Gumercindo Saraiva,
Joca Tavares, Major Palmeira e outros. Diziam-se horrores dos maragatos:
degolavam prisioneiros, ateavam fogo a casas, jogavam crianças para o ar e
aparavam-nas nas pontas das lanças. Em suma, onde eles passavam deixavam
tudo arrasado ...

Ao tempo não havia telégrafo na vila. As notícias eram divulgadas pelos jornais de
Porto Alegre (A Federação, A Reforma, Jornal do Comércio e outros), que aqui
chegavam, diariamente, pelos vapores. Mas o que trazia a população presa de
verdadeiro pânico eram as informações dos boateiros que chegavam à vila, e os
comentários das comadres sobre cenas horripilantes, massacres brutais praticados
com requintes de perversidade pelos revolucionários.

Evidentemente havia exagero nessas notícias, que as distanciavam da realidade. É


certo que durante a revolução registraram-se fuzilamentos e outros atos de barbárie
próprios dos ânimos exaltados. Eram conseqüências inevitáveis da luta fratricida em
que se empenhavam as duas facções. Mas não com a ferocidade selvagem que
lhes atribuíam os boateiros.

Por outro lado, o movimento das forças legais, vindas de Porto Alegre e que aqui
estacionavam, antes de seguirem para o campo de operações, na região colonial
italiana, trazia em constante sobressalto a população. “

Na edição de 20 de julho de 1957 o texto descreve a invasão da vila por tropas federalistas,
quando esta se encontrava (des)guarnecida por pouquíssimos soldados recrutas:

“ A invasão verificou-se num Dia de Reis, ao amanhecer, quando ninguém mais


acreditava que os revolucionários aparecessem. O certo é que a aterradora notícia
logo se espalhou: os maragatos estavam entrando na vila!

Como é fácil de avaliar, a população, mal desperta ainda, tratou de abandonar a vila,
ante a inaudita surpresa. Os invasores, sem encontrarem a mínima resistência,
apossaram-se da Intendência, então instalada no sobrado fronteiro à sede do Clube
7 de Setembro, à rua João Pessoa, pois os 4 ou 5 recrutas que guarneciam o prédio
tinham-se posto em fuga, logo que souberam da notícia ...

Um dos chefes da situação mal teve tempo de tomar uma canoa no porto da vila e
passar para o outro lado do rio Caí, onde conseguiu por-se a salvo.

Um oficial republicano, que a cavalo passava pela rua Barão (atual João Pessoa),
viu-se, de inopino, cercado pelas forças invasoras. Sem perda de tempo abandonou
a montaria e saltou o muro da Casa dos Padres, local onde hoje se ergue o Ginásio
São João. Os bondosos sacerdotes deram-lhe asilo, recusando-se a entregá-lo aos
maragatos. Outro republicano, Jacob Kauer, a cavalo, em frente à casa de um
amigo, à entrada da vila (fronteiro à casa Seelig), saboreava um chimarrão. Ao notar
a aproximação do inimigo mal teve tempo de devolver a cuia e cerrar pernas no
animal. Bem montado, como sempre andava, em poucos instantes distanciou-se
dos invasores, escapando ileso, apesar dos seis tiros disparados ... Jacob Kauer
ainda é vivo, residindo, atualmente, na cidade de Lagoa Vermelha.
Nosso saudoso pai, logo que soube da entrada dos maragatos, embrenhou-se nos
matos do morro São João, enquanto nossa mãe, depois de arranjar, às pressas,
algum alimento para o desjejum, abandonava a casa com os 4 filhos (nós e 3
irmãos). Depois de vararmos uma capoeira existente no terreno atualmente
destinado à construção do Hospital Sagrada Família, escondemo-nos num valo
velho na encosta do morro São João. Mal tínhamos nos escondido, ouvimos
estranho ruído nas capoeiras, seguido de forte brado: “Pára, senão vai bala!”. Ato
contínuo, um popular de nome Adriano passava a alguns metros de nosso
esconderijo. “

Na tarde daquele mesmo dia os revolucionários se retiraram. O então menino Jeronymo viu
passarem pelas ruas grupos de maragatos, armados, ostentando nos chapéus e nas lanças
laços de fita encarnada. Horas depois aportava um vapor trazendo forças para a defesa da
vila, quando os invasores já andavam bem distantes.

Na edição de 3 de agosto de 1957 descreve episódios divertidos que ocorreram durante a


invasão da vila, daqueles que põem por terra muitas reputações, sobretudo as de gente que
comprara um posto de oficial na Guarda Nacional, mandara confeccionar lindos uniformes,
com alamares , galões dourados e botões brilhantes. Pura figuração, destinada aos salões,
ao embevecimento, este fogo fátuo da condição humana.

José Teixeira, dada sua experiência na Guerra do Paraguai e pertença à Guarda Nacional,
deve ter sido envolvido na preparação da defesa da vila. Jeronymo encerra o trecho
publicado mais uma vez mencionando o pai:

“ Afinal, certo dia veio ordem superior para dissolver a força de emergência, sendo o
fato festejado com tiros de armas de todos os calibres e feitios ... Lembramo-nos,
ainda, que nosso pai desceu a encosta do morro dando tiros de pistola para o ar. O
regozijo era grande ... “
Júlio de Castilhos vencera. Político à antiga, exerceu influência singular sobre a política
gaúcha. Redigiu praticamente sozinho a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul de
1891 e usou todos os meios possíveis para sua aprovação. Tal constituição inspirava-se
muito fortemente no positivismo do filósofo francês Augusto Comte e garantia ao governante
os meios legais de implementar a política de inspiração positivista. Embora tida por
autoritária, tal constituição pretendia implementar no caráter do regime republicano aspectos
racionais, baseados na História e na Ciência a fim de superar aspectos populares ou
metafísicos.

O castilhismo consolidou-se como corrente política e teve voz ativa por cerca de quarenta
anos. Borges de Medeiros, sucessor de Castilhos, seguiu firmemente os ideais do mestre.
No plano nacional, Getúlio Vargas procurou implementar o castilhismo no Estado Novo,
entre 1937 e 1945.

Júlio de Castilhos morreu prematuramente em 1903, vítima de câncer na garganta. A última


casa em que viveu foi adquirida pelo governo do Estado em 1905 e ainda neste ano ali
instalou o Museu Júlio de Castilhos, no centro de Porto Alegre.

No último episódio nosso avô descreve a deposição das armas pelo exército vencido. Sua
descrição do estado dos maragatos é reveladora. Júlio de Castilhos vencera.

Após o encerramento da série sobre a revolução foi publicada a conclusão de “Cincadas


nossas e alheias ...” em 20.09.1957. A crônica tem intróito a nosso ver premonitório.
Ampliamos abaixo o texto inicial, que nos parece trair a percepção do autor de que seu
tempo chegava ao fim.

Era mais um exemplo da dignidade com que conduziu sua vida. A última publicação que
localizamos, dividida em cinco partes, intitulava-se “Montenegro de Outro Tempo – Preito de
veneração à benemerência”, concluída no início de 1959. Depois, a ausência. Lembramo-
nos de episódio semelhante no próprio “O Progresso” em nossa juventude. A monografia do
jesuíta - e historiador competente,- Arthur Rabuske sobre Montenegro era publicada com
sofreguidão. Dividida em dezenas de pedaços perdia o sentido e seu acompanhamento só
seria possível se os leitores recortassem as partes e depois as lessem. Nosso avô parece
ter-se dado conta disto, como o bom jogador que sabe a hora de parar. Sua saúde também
não era das melhores. O coração já ameaçara parar dez anos antes. E só bateu pelos
subseqüentes dez anos porque Jeronymo era um estóico. Proibido de comer carne por
recomendação médica, por vezes a comprava ele próprio, para a família, sem contudo
consumi-la.

Recomendamos a todos quantos queiram conhecer um pouco da história da vila de então


que leiam os textos de “Montenegro de Outro Tempo – Preito de veneração à
benemerência”. Suspeitamos, sem comprovação, que nosso avô vinha sendo segregado
por alguns figurões da época. Entre elogios aos administradores de antanho dispara um
míssil nos egos de muitos medalhões. Cabotinos de larga nomeada.
Não é difícil de imaginar o desconforto dos administradores de então, sobretudo o alcaide
de plantão, diante de tais comentários. Homens que se julgam superiores – os eleitos,
digamos assim, pelos deuses, com a confirmação terrena nas urnas,- acima de toda e
qualquer crítica, certamente ficaram muito sensibilizados pela bordoada.

Em geral cheio de prudência e diplomacia, Jeronymo sabia os preços a pagar. E os bancou.


Nós o imaginamos cansado das humanas farsas, a vislumbrar o fim da estrada. Não deixou
por menos. Pressentira os caminhos que então se abriam aos medíocres, que como
sabemos foram muito prolíficos. Contabilizar os medíocres, hoje, talvez seja tarefa tão
impossível quanto contar as estrelas no céu.
Jeronymo veio a falecer em sua casa no dia 14 de setembro de 1959, às 13 horas, sem
bens a inventariar. A causa de morte, segundo o signatário do óbito, seu confidente, Paulo
Ribeiro Campos, foi “Angor pectores devido a insuficiência cardíaca”. Partia para o repouso
um contador de histórias, que delas fez não o apanágio das agressões ou de seus
recalques, mas o esteio de coisas que vale a pena dizer e lembrar.

Não encontramos na coleção da Biblioteca de Montenegro a edição posterior ao


desaparecimento daquele que por décadas dirigiu “O Progresso”. Nos permitimos supor que
a não circulação tenha sido a forma de mostrar o luto das páginas do hoje mais que
centenário jornal.

Jeronymo, cuja mãe era muito religiosa, foi católico praticante. Seus textos – por meio dos
quais podemos ler um pouco de sua alma,- são sempre ternos quando se refere a Deus Pai
ou ao Deus filho. Segundo consta, gostava de assistir missa no Pareci, o que fez até idade
avançada. Também se mostra reverencioso quando fala de padres ou de irmãos de ordem
religiosa, como os que dirigiam a escola em que Ilus e Ilton estudaram em Caxias do Sul.

Sua esposa, a quem a simples menção do nome de Jeronymo fazia chorar, mesmo após
anos e anos de viuvez, sobreviveu-lhe até 7 de dezembro de 1979. Por vinte anos sentiu-se
de alguma forma deserdada, sempre a lamentar a perda de seu Jeronymo. É um amor que
se torna cada vez mais raro - bem o sabemos,- e só os afortunados o experimentam.

Com o passar dos anos Maria do Carmo, a vó Carmem, não ficou em situação econômica
muito confortável. Aviltada a pensão que percebia, passaria por apertos não fosse a
generosa idéia de seus filhos. A caridade só o é plena quando incógnita e mencionar o fato
não é lá muito apropriado mas só o fazemos para estimular as gerações futuras com a força
de tal exemplo.

Os filhos inventaram uma aposentadoria concedida pela OAB e mensalmente um deles


colocava sob a porta um aviso do banco – um boleto fajuto, coletado no balcão da
instituição,- de que a pensão fora depositada na sua conta bancária.
Quando dona Carminha, como também era chamada, passava a desfiar suas preocupações
com as contas, a reclamar que o dinheiro não dava mais para custear a manutenção da
casa e da mesa, prontamente um aumento providencial concedido pela “OAB” lhe aliviava
de preocupações maiores. Nossa avó jamais desconfiou de nada. Faleceu em total
ignorância a respeito. Completava-se, portanto, a plenitude da caridade. Um exemplo
inesquecível.

O hábito da escrita e do jornalismo em nossa família perpassa três gerações, de Jeronymo


aos netos Miguel e Jeronymo Neto.

No jornal “O Progresso” Ilton o sucedeu, sempre exaltando as qualidades do próprio pai ou


diminuindo as suas, como ilustra um trecho da crônica a seguir reproduzido:

Um ano após a morte de seu pai, Ilton redigiu a crônica abaixo, intitulada 14 de Setembro,
forma que encontrou para catalisar a saudade do pai que se fora.
“ Hoje reverencio a memória de um homem, há um ano falecido, que se tornou chefe
de família na adolescência. Não existe nenhum contrasenso na afirmativa. Único
varão na família, perdeu o pai quando tinha apenas 16 anos e, para assegurar à
mãe viúva e às irmãs o indispensável, penetrou demasiado cedo na arena da vida.
Luta ingente, sem tréguas, desigual para quem nasceu sob o signo da pobreza,
converteu o adolescente esperançoso no adulto sem ilusões.

Forjado no difícil ganha-pão de cada dia, esse homem aos poucos foi superando a
crise que se abatera em sua vida. Criou as irmãs, amparou a mãe e adquiriu um teto
para acolher seus entes queridos. Casa modesta, de madeira, em rua de gente
humilde. Ainda morava na mesma casa quando casou e criou cinco filhos.

Com o passar dos anos vieram os netos freqüentar a casa do vovô, enchendo de
alegria a sua velhice. Parecia que o destino, arrependido, resolvera conceder-lhe, no
ocaso da existência, a felicidade que lhe havia negado no verdor dos anos.

Ao fim de cada tarde a casa, tão sossegada, via-se invadida pelo riso álacre dos
netos que chegavam, a pedir a benção, fazendo dissipar as rugas que muitas vezes
vincavam a testa do vovô.

Dia após dia, semana após semana, as tardes eram sempre iguais, quer chovesse,
quer fizesse frio.

O destino ingrato, entretanto, não permitiu que aquelas tardes felizes continuassem
por mais tempo. Chegou o dia em que os netos não foram vê-lo. A velha casa, que
abrigara tantas recordações alegres, estava triste e silenciosa. Não se ouvia um riso
infantil, os netos já não brincavam, pois o vovô havia falecido.

Era a tarde de 14 de Setembro de 1959.

Jeronymo Teixeira entregara a alma ao Criador.

Aos netos foi vedado ver o vovô pela derradeira vez. Conservassem, na sua
inocência, na sua memória infantil, a lembrança do vovô amigo.

A velha casa já não tem o encanto de outrora. Hoje ela é apenas o repositório de
saudades que se abrigam em cada canto, de carinhosas lembranças que o tempo,
inutilmente, procura apagar, de sentidas recordações que transformam a velha casa
em objeto de respeitosa veneração, pois ela é o fruto de uma existência honrada.

Para quem da vida só conheceu as asperezas, era justo que envelhecesse


docemente. E a velhice sossegada que se agasalhara em seu coração venerando –
mais como reparação que consolo,- foi interrompida abruptamente, pela morte.

Descansa em paz, vovô! Dorme o sono eterno dos justos, dos que sempre viveram
honestamente, dos que amaram e foram amados.

Descansa em paz Jeronymo Teixeira. Descansa em paz, meu pai ... “

Nossas notas e impressões – que ora findam, de frente para a escuridão do futuro,-
padecem de certa precariedade pela carência de textos, de fotos - de pesquisa também, por
que não?- mas sobretudo pela chance que não tivemos de privar com Jeronymo. Sentimos
falta de alguém que se foi cedo demais, para nossa lástima. Fica um bem querer
melancólico sem reminiscências pessoais. Como escreveu o comentarista esportivo Tostão
em crônica recente, o grande encontro é o reencontro do que se havia perdido. Resta,
portanto, a imensa vontade de reencontrá-lo, um dia.

Ao fim e ao cabo, ficam as impressões. Muitas divagações, a compor um mosaico.


Impressionista no tempo. Que olhamos, respeitosamente, a certa distância.

Queridas filhas, caros irmãos e primos, não temos fidalguia cartorial alguma. Nosso legado
é outro. Como nos disse a tia mais velha – a quem entrevistamos em sua casa de sítio,- ao
responder qual era a marca dos Teixeira da Silva. Sem hesitar, após poucos segundos,
desferiu: “A honestidade”.

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