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06/11/2018 A uberização económica: nova forma de servidão

A uberização económica: nova forma de servidão


por Chris Hedges [*]

Um motorista de táxi de Nova Iorque de 65


anos, de Queens, Nicanor Ochisor, enforcou-se
na sua garagem em 16 de março, dizendo,
numa nota que nos deixou, que empresas
como a Uber e a Lyft haviam tornado
impossível ganhar o suficiente para viver. Foi o
quarto suicídio de um motorista de táxi em
Nova Iorque nos últimos quatro meses,
incluindo em 5 de fevereiro, o motorista de
carros de aluguer, Douglas Schifter, de 61 anos,
que se suicidou com uma espingarda no
exterior da municipalidade.

Escreveu Schifter: "Devido ao enorme número


de carros disponíveis com taxistas
desesperados tentando alimentar suas famílias, as tarifas vão sendo cada vez mais
esmagadas, abaixo dos custos operacionais, forçando profissionais a sair do negócio.
Eles contam o dinheiro deles e nós somos expulsos das ruas em que conduzíamos,
tornando-nos sem abrigo e com fome. Não serei um escravo a trabalhar por uns míseros
trocos. Prefiro estar morto". Dizia ainda que durante os últimos 14 anos havia trabalhado
100 a 120 horas por semana.
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Schifter e Ochisor foram dois dos milhões de vítimas da nova economia. O chamado
"corporate capitalism" está a instituir uma servidão de neo-feudal em muitas profissões,
criando uma condição na qual não há leis laborais, nem salário mínimo, nem benefícios,
nem segurança no trabalho, nem regulamentação. Trabalhadores pobres e desesperados
são obrigados a suportar 16 horas por dia e são violentamente atirados uns contra os
outros.

Os motoristas da Uber fazem cerca de 13,25 dólares por hora. Em cidades como Detroit,
este valor cai para 8,77 dólares . Travis Kalanick, o antigo CEO da Uber e um dos
fundadores, tem um património líquido de 4,8 mil milhões de dólares. Logan Green, o
CEO da Lyft, tem um património líquido de 300 milhões de dólares.

As elites empresariais tomaram o controlo das instituições de decisão incluindo o governo,


destruíram os sindicatos, estão a restabelecer as condições de trabalho desumanas que
caracterizaram o século XIX e o início do século XX. Quando os trabalhadores da General
Motors realizaram uma greve de 44 dias em 1936, muitos estavam a viver em barracas
que não tinham aquecimento nem água canalizada; Poderiam ser postos em casa durante
semanas sem compensação, não tinham benefícios médicos ou reforma e muitas vezes
eram despedidos sem explicação. Quando completavam 40 anos o seu contrato podia ser
rescindido. O salário médio era de cerca de 900 dólares por ano numa altura em que o
governo determinou que uma família de quatro pessoas precisava de um mínimo de 1 600
dólares para viver acima da linha da pobreza.

Os administradores da General Motors implacavelmente perseguiam os activistas


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sindicais. A empresa gastou 839 mil dólares em 1934 com detectives para espiar os
activistas sindicais e infiltrarem-se em reuniões do Sindicato. A GM encarregou o grupo
terrorista branco Black Legion – do qual o chefe de polícia de Detroit era suspeito ser
membro – de ameaçar e atacar fisicamente activistas sindicais e assassinar os dirigentes,
como George Marchuk e John Bielak, ambos mortos a tiro.

O reinado da classe capitalista todo-poderosa está de volta com uma vingança. As


condições de trabalho de trabalho de homens e mulheres são empurradas para trás, não
irão melhorar até que se recupere a militância e se reconstruam as organizações
populares que tomem poder aos capitalistas. Existem cerca de 13 mil táxis licenciados na
Cidade de Nova York e 40 mil carros para aluguer e limusines. Os motoristas deveriam,
como os agricultores fizeram em 2015 com tractores em Paris , fechar o centro da cidade.
E os taxistas de outras cidades deverim fazer o mesmo. Esta é a única linguagem que os
nossos mestres corporativos entendem

Os capitalistas que estão no governo são tão cruéis como eram no passado. Nada irrita
tanto os ricos como ter de partilhar uma fracção da sua obscena riqueza. Consumidos
pela ganância, tornados insensíveis ao sofrimento humano por uma vida de hedonismo e
extravagância, desprovidos de empatia, incapazes de autocrítica ou auto-sacrifício,
rodeados de sicofantas e aduladores para satisfazerem os seus desejos, apetites e
exigências. Capazes de usar a sua riqueza para ignorar a lei e destruir os críticos e
adversários, eles estão entre o que há de mais repugnante na espécie humana. Não nos
deixemos enganar pelas campanhas dos hábeis relações públicas das elites – vemos
Mark Zuckerberg, cujo património líquido é de 64,1 mil milhões de dólares, montando uma
propaganda massiva contra as acusações de que recaem sobre ele e o Facebook de
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explorar e vender as nossas informações pessoais – ou pela bajulação das novas


celebridades nos media, que actuam como cortesãos e apologistas dos oligarcas. Esses
indivíduos são o inimigo.

Ochisor, um imigrante romeno, possuía uma insígnia de táxi de Nova Iorque (estas
insígnias eram em tempos cobiçadas, dado que motoristas de táxi que as possuam
podem arrendar os seus próprios táxis a outros motoristas). Ochisor conduzia no turno da
noite, durante 10 a 12 horas. Sua esposa dirigia o turno do dia. Mas depois a Uber e a Lyft
inundaram a cidade com carros, mal pagando aos motoristas. Há cerca de três anos, o
casal passou a dificilmente poder compensar as despesas. A casa do Ochisor estava
prestes ir para execução de hipoteca. A sua insígnia taxista, que em tempos valia a 1,1
milhão de dólares, havia caído para 180 mil dólares. A queda dramática desse valor, que
ele esperava poder arrendar por 3 000 dólares por mês, ou vender para financiar sua
reforma, liquidou a sua segurança económica. Enfrentava a pobreza e a ruína financeira.
E não estava sozinho.

Os arquitectos corporativos da nova economia capitalista não têm intenção de parar o


ataque. A sua intenção é transformar todos os trabalhadores em temporários, presos na
humilhante armadilha de trabalho com baixos salários, em part-time, em sectores de
serviços, sem segurança de emprego e sem benefícios, uma realidade que eles
consolidam inventando novas expressões como "the gig economy", "a economia
espectáculo".

John McDonagh começou a conduzir um táxi em Nova Iorque há 40 anos. Ele, como a
maioria dos taxistas, trabalhava com garagens possuídas e operadas por empresas. Ele
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era pago com uma percentagem do que ganhava a cada noite.

"[Então] podia-se ganhar a vida", disse-me ele. "Todos compartilharam o encargo. A


garagem partilhava-o. O motorista partilhava. Se tivesse uma noite boa, a garagem
ganhava dinheiro. Se tivesse uma noite ruim, era partilhada. Isto não é mais assim. Agora
está-se a utilizar carros em leasing".

O leasing financeiro exige que um motorista pague 120 dólares por dia pelo carro e 30
pelo combustível. Os motoristas começam um turno com 150 dólares de dívida. Por causa
da Uber, Lyft e outros apps em smartphones, os rendimentos dos motoristas foram
cortados para metade em muitos casos. Motoristas de táxi podem terminar seus turnos de
12 horas devendo dinheiro. Os motoristas estão a enfrentar falências, execuções de
hipotecas e despejos. Alguns estão na condição de sem abrigo.

"A TLC [New York City Transportation and Limousine Commission] queria limitar os
taxistas yellow cab a 12 horas de trabalho por dia", disse ele, referindo-se aos motoristas
de táxi com insígnias taxistas que podem receber passageiros em qualquer lugar nos
cinco distritos. "Houve um protesto. Motoristas de táxi protestaram porque tinham de
trabalhar 16 horas por dia para sobreviverem. Foi tudo cortado. Todos estavam a lutar por
serviços extra. Estava-se num semáforo com dois ou três táxis. Via-se alguém na rua com
bagagem e ultrapassava-se no vermelho para chegar até ele. Porque isso poderia ser
uma corrida para o aeroporto. Estava a arriscar a própria vida, arriscando a receber
multas, ao fazer coisas que nunca se faziam antes".

Não temos quaisquer cuidados de saúde", disse. "Sentados essas 12 a 16 horas por dia,
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está-se a contrair diabetes. Não há nenhuma circulação de sangue. Engorda-se e depois


há o stress adicional por não se estar a ganhar qualquer dinheiro".

A Uber e a Lyft em 2016 tinham 370 lobistas activos em 44 Estados, superando alguns
dos maiores executivos e empresas de tecnologia de acordo com o National Employment
Law Project. "O total de lobistas da Uber e da Lyft superou a Amazon, Microsoft e Walmart
juntos". As duas empresas, como muitas empresas de lóbi, contrataram também os
reguladores do governo anterior. O ex-chefe da Comissão New York City Taxi and
Limousines , por exemplo, está agora na administração da Uber. As empresas têm usado
o seu dinheiro e os seus lobistas, a maioria dos quais são membros do Partido
Democrata, para se libertarem da regulamentação e supervisão impostas à indústria do
táxi. As empresas que usam apps inundaram a cidade de Nova York com cerca de 100 mil
carros não regulamentados nos últimos dois anos.

"O táxi tem de ser de uma determinada marca" disse McDonagh. "É um Nissan. [ a Nissan
ganhou a licitação para o fornecimento de táxis da cidade]. Cada táxi tem que cobrar um
determinado preço. Quando baixa, é regulado pela cidade. Acrescentaram uma série de
impostos extras, para o agente de tranferência de mensagens (MTA) e para cadeiras de
rodas [metade dos táxis amarelos são obrigados a dar-lhes acesso até 2020] e um
imposto de hora de ponta .

A Uber entra. Não há regulamentos para nada. Eles podem escolher o tipo de carro que
quiserem. Qualquer cor de carro. Podem alterar os preços. Quando o serviço é lento
podem baixa-los e quando estão com mais movimento podem aumentá-los. Pode ser
duas ou três vezes, ao passo que os táxis amarelos usam a mesma tarifa o tempo todo. Ir
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ao aeroporto Kennedy a partir de Manhattan são 52 dólares, não importa como esteja o
trânsito, não importa quantas horas leva para chegar lá. A Uber irá aumentar os seus
preços duas ou três vezes e o cliente pode ter que pagar 100 dólares para chegar ao
aeroporto Kennedy. Enquanto a indústria de táxis é regulamentada quase até à exaustão.
A Uber vem com a nova tecnologia, descobrindo maneiras diferentes de como fazer
dinheiro... É o fim para os táxis amarelos".

McDonagh diz que "A Uber é um leasing de carros". "Eles dispõem de concessionárias de
carros que os vendem. E anunciam como. "Ouça, você pode ter mau crédito. Venha para
a Uber. Vai ter dinheiro ou um empréstimo para comprar um carro". E o que eles fazem é
pegar directamente no dinheiro que o motorista faz a cada dia para pagar o empréstimo.
Eles é que não podem perder. E se ficar abaixo do estipulado, eles vão vender o carro
para a concessionária e depois torna-lo a vender para o motorista imigrante seguinte. Há
todo um golpe em andamento".

"Você não tem a visão do mundo de um taxista", disse McDonagh. "Mas há aquele
famoso termo "a corrida para o fundo". Você trabalha mais horas por menos salário. Esta
é a nova economia do trabalho. Alguém vai usar um Uber para ir para um Airbnb e pegar
no telefone para encomendar alguma coisa da Amazon e comer na sua casa. Todas essas
lojas vão agora desaparecer. Dos empregados das lojas aos taxistas. Sinto-me como se
fosse um ferreiro ou um compositor tipográfico num jornal a tentar explicar-lhe o que
costumava ser a indústria de táxis. Estamos a tornar-nos obsoletos".

"O pessoal está dormindo no táxi", disse McDonagh. "Eles vão para o aeroporto Kennedy
às 2 ou 3 da manhã. Vão para a fila e dormem até conseguir um passageiro do primeiro
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voo que virá da Califórnia algumas horas mais tarde. Tem gente que não quer ir a casa
durante uns dias. Ficam na rua a rondar para tentar ganhar dinheiro. É perigoso para o
passageiro. A quantidade de acidentes vai subir porque os taxistas ficam sonolentos".

McDonagh disse que os carros da Uber e da Lyft deviam ser regulamentados. Todos os
carros devem ter taxímetros para garantir uma remuneração adequada para os
motoristas. E os motoristas devem ter cuidados de saúde e benefícios. Nada disso vai
acontecer, enquanto vivermos sob um sistema de governo onde as nossas elites políticas
dependem de contribuições de campanha das empresas e aqueles que deviam
regulamentar a indústria olham para essas empresas como o seu futuro emprego.

"Temos que limitar a quantidade de táxis, especialmente aqui na Cidade de Nova York,"
disse McDonagh. "Fizemos isto na indústria de táxis durante 50 anos, por que não
podemos fazer isso agora com a Uber? Estão a acrescentar 100 carros por semana pelas
ruas de Nova Iorque. Isto é a loucura. Quando se chama um Uber, a maior queixa que as
pessoas têm agora é: "o carro aparece aqui demasiado rápido, em dois ou três minutos.
Não consigo nem me vestir. ... Estão a rodar vazios por toda a cidade, esperando por uma
chamada".

"Os cavalos do Central Park estão regulamentados", salientou. "Há 150. Eles têm uma
boa vida, os cocheiros, os cavalos e as charretes. Chega a Uber e diz: "nós queremos
trazer a Uber aos cavalos. E queremos adicionar 100 mil". Vamos ver como o mercado vai
lidar com isso. Sabemos o que vai acontecer. Ninguém vai ganhar dinheiro. Eles tomam
todo o Central Park. E agora ninguém pode ir a nenhum lugar porque existem 100 mil
cavalos no Central Park. Seria considerado loucura fazer isso. Eles não fariam isso.
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Quando se trata de indústria de táxis, tudo o que podia haver durante 50 anos eram 13 mil
táxis mas dentro de um ano ou dois vamos ter mais 100 mil. Vamos ver como funciona o
mercado assim! Sabemos como funciona o mercado".

"Eles [os cavalos] trabalham menos horas [do que os motoristas de táxi]", disse ele. "Os
cavalos não trabalham com temperaturas muito quentes ou muito frias. Se você acredita
em reencarnação, deve reencarnar como um cavalo do Central Park. E eles vivem no
West Side de Manhattan. Nós vivemos em caves em Brooklyn e Queens. Não
melhorámos o nosso nível de vida, isso é certo."

Ver também:

Federação Portuguesa de Táxi


Sector do táxi: PS/PSD/CDS cedem – mais uma vez – aos interesses das
multinacionais

[*] Foi correspondente na América Central, Oriente Médio, África e nos Balcãs.
Trabalhou para The Christian Science Monitor, National Public Radio, The Dallas
Morning News e The New York Times.

O original encontra-se em Truth Dig e em


www.informationclearinghouse.info/49082.htm

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


03/Abr/18

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