Você está na página 1de 5

ABAIXO OS TRANSISTORES!

(ou, sobre o meu professor de eletrônica, de barba e


chapéu, comendo aveia)
Matheus A. Arthus

Em certa universidade, de certo renome, do interior de São Paulo havia um peculiar


professor de eletrônica chamado Gládio. Era um professor esguio, comprido e fino, em
meia idade, que perambulava para lá e pra cá energicamente, sempre com camisa
social, calça jeans e uma bolsa escolar nas costas. Fazia o tipo metódico e rigoroso -
nerd escrupuloso, com grande domínio da matéria ministrada. Esgrimia contra as
correntes e tensões com firmeza e maestria. Impunha respeito. Era opinião corrente e
consolidada entre os estudantes que Gládio fosse o “final boss” do curso: passado por
ele, era só correr para o abraço.

Mas o ponto fulcral é o seguinte: eletrônica e Gládio eram praticamente sinônimos.


Nunca houve momento na história daquela instituição onde Gládio não dera eletrônica.
Que Gládio daria eletrônica um semestre sim e outro também, era tão certo quanto o sol
nascer toda manhã. Não importa o que acontecesse, Gládio estaria ali, impávido, com
seus ábacos, apostilas, slides e vigorosa empolgação pela frenagem regenerativa.

Dito isso, sei que o breve relato que farei a seguir parecerá um completo nonsense, pura
pilhéria, conversa fiada. Mas aconteceu, mesmo. Eu estava lá. Fui testemunha ocular.
Era eu um aluno regularmente matriculado em sua disciplina (RA1010221) e fiquei tão
estupefato à época quanto vocês (talvez) ficarão agora.

É difícil precisar o “turning point” exato que disparou essa espécie de ruptura na vida do
Gládio. Rumores posteriores dizem até que foi um mero choque na tomada da sua casa.
Eu não sei. Até onde investiguei, consigo apenas dizer que a primeira manifestação
patente do professor nesse sentido, fora um texto, discretamente compartilhado em sua
página, que dizia coisas escabrosas a respeito dos elétrons. Era um texto obscuro, em
linguagem esotérica, permeado por sentenças conspiracionistas, mesclado a teses
científicas, onde os elétrons seriam uma espécie de energia maligna, criação de um deus
mau, negativo, que faz tender toda a matéria, que seria positiva, ao sofrimento. É claro
que, naquele momento, um texto desse passou despercebido. Quem quer que o tenha
visto só pode ter tomado a coisa como uma piada esquisita.

Mas pouco a pouco a coisa foi ficando realmente estranha. Gládio, perceptivelmente, foi
perdendo o interesse nos seus componentes eletrônicos. Aquele antes fervor em
enunciar os grandes progressos da microeletrônica, dos circuitos de potência, sempre
enfatizando a beleza e a harmonia dos chips integrados, foi dando lugar a explicações
pusilânimes, desanimadas, como quem sofre por dizer contrariedades. Puxando da
memória, até houve um dia no qual Gládio, suspirando, disse que boa, mesmo, era a
época das válvulas termiônicas. Opa, alto lá! Gládio nunca gastou mais de trinta
segundos de suas aulas para falar sobre as antigas válvulas, sempre relegando tudo o
que veio antes dos transistores a um passado sombrio imemorial, quando a humanidade
ainda jazia imersa nas trevas. Claro que, mais uma vez, isso passou despercebido. Mas
agora em retrospecto, consigo me lembrar do semblante - olhar longínquo e
empedernido - e da postura corporal do professor, indicando tristeza e nostalgia por
tempos não vividos, denunciando uma perturbação profunda. E o caldo foi engrossando.

Primeiro, Gládio, proíbe peremptoriamente qualquer referência ao sentido real da


corrente, em claro repúdio a soberania dos elétrons; começou a irritar-se sobremaneira
com os toques de celulares que esporadicamente rasgavam o véu silencioso de suas
aulas, chegando a proibir e a recolher todos os aparelhos eletrônicos que, por ventura,
algum aluno ousasse utilizar (até mesmo o seu smartphone fora substituído por um
modelo antiquado, dacioliano); voltou a pregar as notas, em papel, ao mural; abandonou
gradativamente o uso dos slides (quem o conheceu sabe que isso é inimaginável); os
experimentos nos laboratórios foram sendo modificados gradualmente no sentido de
prestigiar o analógico em detrimento do digital (chegando ao ponto de se energizar
circuitos com baterias feitas de batata); Gládio passou a importunar os alunos para
sempre manterem as luzes apagadas (e quando acendiam ele sempre se contorcia num
espasmo vampiresco); sua aparência também foi se transformando: do cabelo bem
cortado, de estilo comedido, barba sempre aparada e camisa engomada, para algo de
modo rústico, cabeleira cada vez mais espessa, barba e bigode cheios, calça preta e
camisa sempre branca, suspensórios, botas, até o ponto culminante de, num fatídico dia,
Gládio surgir pelos corredores, bucolicamente, com aquele chapéu de aveia, imenso,
preto, feito um Abraham Lincoln redivivo.

Pausa.

Antes de prosseguir com a narrativa, vale a pena uma reflexão. A atmosfera universitária
parece tornar a todos bastante resilientes frente a esquisitices diversas. Muitas coisas
estranhas acontecem o tempo todo dentro de uma universidade e as pessoas que ali se
encontram, a começar pelos próprios professores, desviam-se da média no que
concerne a atitudes e comportamentos sociais. Por isso, não importa o quão
bizarramente você se vista, fale ou se comporte, você será absorvido, mais hora, menos
hora: nada é tão atípico assim que não possa ser consumido pelo torpor universitário.
Então, tenha sempre isso em mente quando, a partir do meu relato, você vier a pensar:
“Mas, meu Deus, como isso pode ter acontecido e ninguém ter feito nada? Como foi
possível as pessoas seguirem com seus afazeres normalmente? ”. Pois é, na
universidade isso é possível: foi questão de três ou quatro dias para todos se
acostumarem com o Gládio, de chapéu e botas, a ministrar suas aulas, fazendo cosplay
de Amish (ou Quaker, nunca soube a diferença).

E então houve um dos pontos críticos da saga do Gládio: o famoso sermão - que só não
foi da Montanha pois ali não havia uma (mas havia a bancada do lab de eletrônica que
serviu para o mesmo propósito). Gládio, então, numa bela manhã, vestindo seu já
corriqueiro chapéu protestante, atravessou os corredores, com um candelabro e um
rastelo nas mãos, até o laboratório. Pediu para os alunos apagarem todas as luzes e a
desligarem todos os aparelhos. Reivindicando silêncio absoluto, acendeu as sete velas
do candelabro e subiu na bancada. Agitando ao ar tanto as chamas das velas - que o
iluminavam de cima para baixo lhe dando um aspecto grave e horripilante -, quanto o
rastelo - como um báculo de bispo -, bradou veemente contra os elétrons. Destilou, aos
berros, palavras de ódio a respeito dos circuitos eletrônicos. Batia os pés e o cabo do
rastelo na superfície da bancada, num furor mosaico de quem retém as tábuas da
salvação. A mensagem era clara: a eletricidade era o grande mal. Enquanto a
humanidade não se livrar dela, jamais retornaremos ao paraíso terrestre. O conforto e as
comodidades da luz elétrica e da tecnologia nos afastam de nossas origens: alienam da
vida verdadeira de quando éramos mais próximos do Criador. Nesse ponto, vale
ressaltar, já haviam alunos - especificamente os puxa-sacos (desses que acertam os
‘testinhos’ em aula) e os veteranos desesperados em se formar - imitando o novo visual
do professor. E assim, cada palavra de ordem proferida pelo Gládio era acompanhada
pari passu de uma revoada de vivas e urros (e ao fundo, é claro, sempre uma voz
mesquinha: “isso cai na P1? ”). Todo o comício não durou mais do que uma hora. Mas
foi tempo o suficiente para se ditar os mandamentos, se definir os pecados, anunciar a
boa nova da promessa messiânica, como seria o cálculo da média final e o horário das
vistas de prova, o inimigo em comum, espalhar o temor escatológico e instituir o rito: a
nova seita estava pronta para operar. Logo após ter proferido suas últimas palavras,
Gládio, calmamente, apagou as velas e desceu da bancada. Então, como que tomados
por um espírito de revolta, a reunião foi encerrada na balbúrdia, no alvoroçar da legião,
aos gritos, no quebra-quebra dos protoboards, no estilhaçar das lâmpadas, na
vandalização dos osciloscópios, ao fedor dos componentes derretidos ao fogo de
isqueiros. Depois desse dia a universidade nunca mais foi a mesma: o caldo entornou
de vez.

Outra pausa.

Houve uma condição específica no campus que catalisou a seita do Gládio, lhe deixando
o terreno livre. O diretor, de então, era um arquiconhecido progressista completamente
atolado na cartilha politicamente correta, que tinha um imenso pavor de parecer
minimamente intolerante. Preso nessa gaiola mental, ele nada pôde fazer para amenizar
a situação e colocar ordem na casa. Inicialmente ele até tentou condenar o movimento
do Gládio como algo medieval (única época da história que não tem a condescência do
relativismo cultural) e obscurantista. Mas o contestaram, por óbvio, dizendo que o Gládio
nada tinha de medieval, primeiro, porque sua inspiração era protestante, fenômeno
tipicamente moderno; segundo, porque Gládio se opunha à energia elétrica e, bem, ainda
não existia energia elétrica na Idade Média. Restou apenas ao diretor tentar capitalizar
em cima da nova seita da melhor maneira possível - ainda mais depois de o Gládio ter
recebido notório apoio do maior líder ecologista do campus, folcloricamente conhecido
por copular com uma árvore (e atenção para o artigo definido “uma”, isso mesmo, ele
mantinha um tipo de ‘casamento’ com uma ipê rosa, muito formosa - diga-se de
passagem -, por acreditar piamente que as árvores são monogâmicas, coisa da qual,
aliás, seus próprios seguidores consideravam ser de um radicalismo exacerbado, por ser
algo muy medieval, por certo). E, bem, com os ecologistas, o diretor sabia muito bem,
não se brinca (basta um canudinho plástico e finch! já lhe guilhotinam a cabeça). O
diretor, então, fez questão de se gabar, anunciando aos quatro ventos que o seu campus
era o único no mundo a conter uma comunidade de neo-amishes, prova inconteste de
que o seu mandato era o mais plural, tolerante e descolado da história daquela
instituição.

Pois então, com carta branca em mãos, Gládio se radicalizou e levou até às últimas
consequências a sua ideologia. Substituiu suas aulas de eletrônica por aulas de como
construir celeiros, consertar carroças, confeccionar espantalhos, criar e domesticar
animais, plantar trigo, ferrar cavalos, costurar chapéus, brigar com enxadas e rastelos, e
etc. A pregação religiosa era feita fora do horário letivo e não era obrigatória, apesar de
servir como atividade extra e para fazer uma média com o professor (nem preciso dizer
que todos os veteranos iam, eu incluso). Haviam coisas obscuras, também. Um amigo
próximo, que resolveu fazer iniciação científica com o Gládio, me relatou em primeira
mão que todos os seus orientandos eram convidados a participar de sacrifícios e rituais
iniciáticos. Uma vez por mês, por exemplo, na própria casa do Gládio, era realizado um
“sacrifício eletrônico”. Vestindo túnicas pretas e vermelhas, pegava-se um transistor
(GTO, de preferência) para ser a vítima da vez e o colocava sobre uma bigorna
ornamentada. Com maçaricos, martelos e outras ferramentas, os participantes iam
danificando o pobre componente até a sua total desfiguração. Ao final, lançava-se o
transistor à uma lareira para ser consumido pelas chamas. Não se sacrificava só
transistores: todos os recém egressos eram incentivados a sacrificar seus próprios
equipamentos: celulares, notebooks, videogames, arduinos, tablets, e até 8051’s (juro) -
todos vinham a perecer no holocausto.

O cotidiano do campus também mudou drasticamente. Pouco a pouco, conforme a


adesão ao Gládio aumentava, o estacionamento, antes abarrotado de carros, foi sendo
ocupado por carroças, cavalos e jumentos; com o aval do diretor, se construiu cocheiras
e estábulos, para melhor acomodar os animais (o próprio RU passou a servir ração e
feno); pelos corredores agora se acumulavam capim e barro arrastados pelas botas; o
aroma de excremento fresco passou a fazer parte, assim como a da queima de óleo de
candeeiros, do amálgama de cheiros comuns ao campus; ao lado das portas das salas
de aula viam-se cabideiros, sustentando chapéus e sobretudos; o rapaz do xerox passou
a vender óleo e pavio de lampião, velas, cordas, esporas, celas, ferradura, graxa,
pederneira, Bíblia, cantil, martelo, alicate, canivete, e por aí a fora. Sutilmente, aos
pingos, todos foram se acostumando com os novos e convertidos colegas - até mesmo
com os blackouts que, vez ou outra, aconteciam por ação daqueles mais exaltados que
desligavam os disjuntores. E então, o torpor universitário, que tudo arrasta, consome e
absorve numa mixórdia de esquisitices, mais uma vez, se consolidava na nova
normalidade da universidade.

Quanto a mim, que vou ficando por aqui, vislumbrara finalmente uma chance de ouro
para passar em “eletrônica” e me formar. Apresentei meu projeto de moinho hidráulico
do século XIX (sugestão do próprio Gládio, claro), passei e dei o fora. E isso já faz um
bom tempo. Não sei exatamente o que se passou nesse ínterim, mas, segundo minhas
fontes, aquela universidade do interior ficou pequena demais para o Gládio. O perene
professor de eletrônica, agora transmutado em pastor Amish (ou seja lá o que for), fundou
uma comunidade num sítio localizado em pequena cidade do Vale do Ribeira. E pelo
menos uma vez por mês, periodicamente, ao anoitecer, é possível ver da estrada uma
mancha luminosa, donde se desprende uma turva e acinzentada fumaça, plástica, tóxica,
proveniente do holocausto eletrônico perpetrado por Gládio e seus asseclas. Também
se ouve - mesclado ao trepidar da fogueira, do tilintar das foices e rastelos, e dos estalos
e estouros advindos dos pobres componentes agonizando nas brasas - o grito sectário,
entoado a plenos pulmões, na cadência do vento, reverberando incessantemente noite
adentro: “ABAIXO OS TRANSISTORES! ABAIXO OS TRANSISTORES! ABAIXO OS…”

Você também pode gostar